Resumo
Objetivo analisar, na percepção dos cuidadores, as práticas de cuidado em saúde prestadas às crianças quilombolas.
Método estudo exploratório-descritivo, qualitativo, realizado na comunidade quilombola Santa Rita de Barreira, São Miguel do Guamá, Pará, Brasil. Os dados foram produzidos entre julho e setembro de 2021, com cuidadores de crianças de zero a cinco anos, por meio de entrevistas individuais guiadas com instrumento semiestruturado. Para análise, utilizou-se o Microsoft Office Excel 2019 e o software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires 0.7, alpha 2, por meio da Classificação Hierárquica Descendente.
Resultados participaram 18 cuidadores do sexo feminino, com idade entre 20 e 67 anos. Relacionaram o cuidado à prevenção e ao tratamento de doenças, aos hábitos de vida, ao acesso aos serviços de saúde e às práticas populares que valorizam a medicina tradicional.
Conclusões e implicações para a prática os saberes e as ações das mulheres expressaram influências de sua cultura, suas crenças e seus modos de interpretar e simbolizar a realidade. Reconhecer e problematizar as práticas quilombolas no cuidado às crianças é um desafio que ultrapassa o discurso biomédico, reducionista e estigmatizante, contexto no qual é preciso ampliar o debate interdisciplinar sobre o tema.
Palavras-chave: Criança; Grupo com Ancestrais do Continente Africano; Populações Vulneráveis; Saúde da Criança; Saúde das Minorias Étnicas
Resumen
Objetivo analizar, en la percepción de los cuidadores, las prácticas de atención a la salud que se brindan a niños quilombolas.
Método estudio exploratorio-descriptivo, cualitativo, realizado en la comunidad quilombola Santa Rita de Barreira, São Miguel do Guamá, Pará, Brasil. Los datos fueron recolectados entre julio y septiembre de 2021, con cuidadores de niños de cero a cinco años, a través de entrevistas individuales guiadas con instrumento semiestructurado. Para el análisis, se utilizó el programa Microsoft Office Excel 2019 y el software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires 0.7, alpha 2, a través de la Clasificación Jerárquica Descendente.
Resultados participaron 18 cuidadoras, con edades entre 20 y 67 años. Relacionaron el cuidado con la prevención y tratamiento de enfermedades, hábitos de vida, acceso a los servicios de salud y prácticas populares que valoran la medicina tradicional.
Conclusiones e implicaciones para la práctica los saberes y acciones de las mujeres expresaron la influencia de su cultura, sus creencias y sus formas de interpretar y simbolizar la realidad. Reconocer y cuestionar las prácticas quilombolas en el cuidado de los niños es un desafío que va más allá del discurso biomédico, reduccionista y estigmatizador, contexto en el que es necesario ampliar el debate interdisciplinario sobre el tema.
Palabras clave: Niño; Grupo de Ascendencia Continental Africana; Poblaciones Vulnerables; Salud del Niño; Salud de las Minorías Étnicas
Abstract
Objective to analyze, in caregivers’ perception, the health care practices provided to Quilombola children.
Method an exploratory-descriptive, qualitative study carried out in the Quilombola community Santa Rita de Barreira, São Miguel do Guamá, Pará, Brazil. Data were produced between July and September 2021, with caregivers of children aged zero to five years, through individual interviews guided with a semi-structured instrument. For analysis, Microsoft Office Excel 2019 and the Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires 0.7, alpha 2 were used, through Descending Hierarchical Classification.
Results eighteen female caregivers participated, aged between 20 and 67 years. They related care to disease prevention and treatment, life habits, health services access and popular practices that value traditional medicine.
Conclusions and implications for practice women’s knowledge and actions expressed influences from their culture, their beliefs and their ways of interpreting and symbolizing reality. Recognizing and questioning Quilombola practices in child care is a challenge that goes beyond the biomedical, reductionist and stigmatizing discourse, a context in which it is necessary to expand the interdisciplinary debate on the subject.
Keywords: Child; African Continental Ancestry Group; Vulnerable Populations; Child Health; Health of Ethnic Minorities
INTRODUÇÃO
O cuidado sempre fez parte do cotidiano, de forma ontológica, a partir das experiências humanas e das suas compreensões sobre as necessidades de executá-lo. Nesse sentido, o cuidado se faz autêntico e permite dar significado às diversas formas de cuidar, manifestando-se ativamente no cotidiano.1 Pode-se dizer que o cuidado é próprio e indissociável do homem e de sua natureza e cultura, sendo construído a partir do entendimento sobre saúde e doença, o qual se relaciona intimamente com as representações sociais, culturais, políticas e geográficas elaboradas no processo vivencial.2
Portanto, o cuidar é determinado pelas conotações de quem o pratica, e se diferencia a depender das particularidades de grupos humanos distintos, como ocorre com as comunidades quilombolas, que concebem a saúde de forma particular e singular, considerando o modo como se organizam socialmente, sua cultura e suas experiências identitárias.3
Essas comunidades são grupos étnico-raciais ligados à ancestralidade negra, que conquistaram gradativamente sua visibilidade e seus direitos de acesso a serviços e políticas públicas. A assistência a esses povos perpassa pela valorização de suas especificidades historicamente traçadas, que se refletem no modo como cuidam e nos determinantes de saúde, sobretudo no contexto dos cuidados às crianças, o qual envolve política, cultura, sociedade e economia.4
No bojo dos direitos conquistados, destaca-se a garantia à saúde, por meio do Programa Brasil Quilombola, implementado em 2004.5 Em decorrência, foram publicadas, pelo Ministério da Saúde, a Portaria nº 1.434, de 14 de julho de 2004, que financia ações de saúde,6 e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, instituída pela Portaria nº 992, de 13 de maio de 2009, que estabelece direcionamentos à promoção da equidade em saúde da população negra.7
Embora essas conquistas tenham sido alcançadas no contexto brasileiro, a invisibilidade da saúde dos povos quilombolas ainda é predominante devido ao racismo, às relações de poder e à desqualificação profissional, caracterizando-os como populações vulneráveis.8 Nesse cenário, oferta-se às crianças quilombolas assistência culturalmente desqualificada, ao mesmo tempo em que se reconhece sua invisibilidade no campo das políticas de assistência infantil, sem assegurar cuidado integral, universal e equânime que articule as dimensões biológica, psicossocial e cultural. Assim, a valorização cultural é negligenciada na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança9 e na assistência ao crescimento e desenvolvimento.10
Portanto, no bojo dos estudos sobre a saúde das minorias étnicas, é essencial conhecer e interpretar as práticas de cuidado, que são construídas, significadas/simbolizadas e compartilhadas no contexto da saúde das crianças quilombolas, tendo em vista as demandas peculiares da faixa etária e as particularidades socioculturais que repercutem nas intervenções empreendidas por seus cuidadores. Entende-se que essas intervenções ocorrem no cotidiano da vida em sociedade, a partir das relações estabelecidas com o grupo social e com o ambiente, cenário onde as pessoas atribuem sentidos às suas ações.
Considerando a relevância do tema, elaborou-se a questão de pesquisa: qual a percepção de cuidadores sobre as práticas de cuidado em saúde prestadas às crianças quilombolas? Para responder a essa questão, este estudo objetiva analisar, na percepção dos cuidadores, as práticas de cuidado em saúde prestadas às crianças quilombolas.
MÉTODO
Estudo exploratório-descritivo, qualitativo, realizado segundo o COnsolidated criteria for REporting Qualitative research (COREQ), que orienta pesquisas qualitativas de acordo com os domínios: caracterização e qualificação da equipe de pesquisa; desenho do estudo; e análise dos resultados.11
Foi desenvolvido na comunidade quilombola Santa Rita de Barreira, no município de São Miguel do Guamá, nordeste paraense, Brasil. Apresenta dimensão territorial de 371,3032 ha e título de posse emitido pelo Instituto de Terras do Pará (ITERPA), em 22 de setembro de 2002, além de certidão de reconhecimento fundiário pela Fundação Cultural Palmares, publicada no Diário Oficial da União em 22 de dezembro de 2011.12 A comunidade não dispõe de serviços de saúde, tendo que se deslocar para o perímetro urbano do município para receber cuidados básicos e hospitalares.
A produção dos dados ocorreu entre julho e setembro de 2021. Participaram os cuidadores de crianças na faixa etária de zero a cinco anos, com idade igual ou superior a 18 anos, residentes e nativos da comunidade quilombola, independente de sexo/gênero, que cuidavam de crianças nativas da comunidade. Foram excluídos cuidadores que possuíssem deficiência cognitiva ou qualquer outra que dificultasse a clara comunicação com o pesquisador, não havendo exclusão.
A aproximação com a comunidade se deu em reunião da Associação de Moradores, que contou com a presença dos líderes e demais moradores. Na ocasião, foi apresentada a pesquisa, sendo realizado o agendamento das entrevistas individuais com os que aceitaram participar, contando com a colaboração do presidente da associação para facilitar a aproximação e o estabelecimento de vínculo entre pesquisador e participantes.
Precedendo as entrevistas, as participantes receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para leitura, esclarecimento de dúvidas e posterior assinatura. Para guiar as entrevistas, utilizou-se um instrumento semiestruturado contendo perguntas referentes às condições sociodemográficas das participantes e suas percepções sobre o cuidado com crianças.
As entrevistas ocorreram em locais previamente definidos pelas participantes, garantindo conforto e privacidade, sendo majoritariamente realizadas em seus domicílios. Foram gravadas com consentimento e transcritas na íntegra, compondo o corpus textual para análise. A identificação das participantes se deu com as letras C, de “cuidador”, e Q, de “quilombola”, seguidas pelo número arábico sequencial das entrevistas.
Para a análise, os dados sociodemográficos foram tratados no programa Microsoft Office Excel 2019, e aqueles provenientes das questões subjetivas, que abordaram as percepções sobre o cuidado, foram processados no software livre Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRaMuTeQ), versão 0.7, alpha 2. O IRaMuTeQ permite gerenciar e tratar textos oriundos de questionários abertos, possibilitando a compreensão lexicométrica e conferindo maior confiabilidade em resultados de pesquisas qualitativas.13 Optou-se pelo tratamento dos dados subjetivos segundo a Classificação Hierárquica Descendente (CHD).
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Pará, sob Parecer nº 4.748.604, em junho de 2021, respeitando-se todos os princípios éticos estabelecidos pela Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.14
RESULTADOS
Participaram 18 cuidadores, todos do sexo feminino, com média de idade de 30,8 anos, variando de 20 a 67 anos. Todos relataram ser católicos, 83,3% (15) vivem em união estável e 77,8% (14) têm a agricultura como a principal atividade geradora de renda. Quanto à renda familiar, 77,8% (14) informaram renda mensal menor que um salário mínimo vigente, e 72,2% (13) vivem com mais de três pessoas no domicílio, com média de 4,38 moradores por domicílio. Do total, 83,3% (15) são assistidos por programa governamental de transferência de renda.
Por meio da CHD, foram identificados 307 segmentos de texto (ST), com aproveitamento de 245 (79,8% do corpus), resultando em três ramificações, que originaram quatro classes: Classe 3 - Significados de cuidado (com 60 ST, 24,5% do material); Classe 2 - Identificação das necessidades de cuidado (63 ST, 25,7%); Classe 1 - Acesso aos serviços de cuidados formais (62 ST, 25,3%); e Classe 4 - Uso de práticas populares (60 ST, 24,5%), conforme a Figura 1. Optou-se por demonstrá-las nessa ordem, prezando pela organização e clareza dos dados. Essas classes, com os excertos que melhor as representam, são apresentadas a seguir.
Dendrograma dos segmentos de texto analisados. Belém, Pará, Brasil, 2021. Fonte: elaborada pelos autores.
Classe 3 - Significados de cuidado
Essa classe reúne as informações referentes aos significados de cuidado, demonstrando como tais percepções se relacionam com a saúde. Assim, para as cuidadoras quilombolas, o cuidado assume a expressão de zelar pelo espaço de convívio e por aqueles que habitam ou ocupam esse espaço, conforme as falas a seguir:
[...] para mim, então, cuidado é isso, é ter zelo, zelar pelas nossas coisas na nossa família, pelos nossos filhos (CQ1).
Pra mim, cuidado é cuidar das coisas que a gente tem, ter zelo, essas coisas (CQ2).
Pra mim, cuidado é ter zelo pelos outros, pelas nossas coisas, pela nossa casa (CQ7).
As participantes relacionaram o cuidado, ainda, com o ambiente doméstico organizado:
Para mim, cuidado é ver as coisas bem arrumadas (CQ4).
Pra mim, cuidado é querer ver as coisas bem arrumadas, tudo direitinho (CQ11).
Outras percepções, desveladas no estudo, referem-se à compreensão do cuidado como sentimento do outro estar bem ou como compromisso de oferecer atenção:
Cuidado, acho que é ver o outro bem e feliz (CQ10).
[...] cuidado é a gente fazer as coisas pra ficarem bem ou ajudar a ficar bem (CQ16).
Pra mim, assim, cuidado é dar atenção (CQ17).
Quando relacionados ao cuidado em saúde, esses entendimentos são paralelos a ações de prevenção e tratamento de doenças, como observado nas falas:
Cuidado pra saúde, pra mim, é assim, que se eu tiver doente, você dá esse carinho e essa atenção pra tratar da doença, aí é levar pra tratar daquela doença em algum lugar, pra ver se fica bom, pra ensinarem os remédios (CQ13).
[...] se eu tiver cuidado, ter sempre que ver as coisas bem, então vai ter saúde. E penso, assim, que o cuidado tem a ver com isso, porque, quando a gente cuida, a pessoa evita ter doença e tem mais saúde (CQ14).
Classe 2 - Identificação das necessidades de cuidado
Nessa classe, estão retratadas as percepções de necessidades de cuidado pelas cuidadoras, com forte associação aos cuidados primários. As cuidadoras entendem que os primeiros atos de cuidado se relacionam às necessidades de prevenir doenças, que se expressam na preocupação com hábitos de vida, incluindo a alimentação das crianças, a higiene pessoal e os cuidados gerais:
Eu tenho que cuidar deles [referindo-se às crianças] no dia a dia, com banho, comida, e ficar olhando para eles não pegarem em coisa que não têm que pegar (CQ1).
Primeiramente, o cuidado é com a alimentação, com as frutas que a gente vai dar para a criança. Eu penso assim, eu tenho esse cuidado de não dar as coisas pra eles, com medo de adoecer (CQ2).
[...] eu ensino a escovar os dentes direitinho [...] aí, banho também: são três banhos por dia, porque, senão, fica todo encardido de terra, aí pega verme. E a comida, eu tenho o maior cuidado de não fazer gordurosa. Eu tiro todo aquele óleo que solta e não deixo eles ficarem comendo toda hora esse negócio de bombom, skilho [salgadinho industrializado] e pipoca (CQ12).
Destaca-se o olhar atento das cuidadoras para possíveis sinais expressos nas alterações de comportamento das crianças ou mesmo no humor, despertando-as para a investigação de quadros mórbidos:
Eu sei que eles estão doentes quando ficam quietos, porque eles são muito perigosos [isto é, agitados, inquietos]. Aí, quando eles só ficam em casa, já sei que têm alguma coisa [...] aí, já vou ver o que eles têm (CQ4).
Quando eu olho para ele, vejo que muda, fica diferente: se é alegre, fica mais triste, fica mufino [gíria aqui empregada como sinônimo de apatia] [...]. Esses dias, eu não sabia que ele tinha batido a perna, vi que tava triste, e aí fiquei olhando que ele não tava brincando, e ele também gosta de ficar dançando [...], vi que bateu a perna. Mudou totalmente, eu já sabia que tava doente (CQ5).
Classe 1 - Acesso aos serviços de cuidados formais
Essa classe diz respeito à oferta de serviços na unidade de saúde do município. Identificou-se que a procura, por parte das cuidadoras, compreende ações restritas à verificação de peso e da altura e atualização do calendário vacinal das crianças:
No posto [de saúde], eu levo ele para ver o peso e as vacinas (CQ4).
Eu levo ele mais no posto. No hospital, eu acho que nunca levei, mas, no posto, eu levo pra pesar e ver quanto tá medindo (CQ9).
Eu levo ele mais para ver as questões da vacina e também do peso e altura (CQ12).
Ao serem questionadas sobre a qualidade dos serviços prestados, em sua maioria, as cuidadoras definiram como sendo boa. No entanto, relataram os empecilhos para o acesso à unidade de saúde, determinados por dois fatores principais: as dificuldades de locomoção, em virtude da localização da unidade em relação à comunidade; e a organização do fluxo e dos horários de atendimento:
A gente chega lá [na unidade] e é um sacrifício, às vezes. A gente está com pressa, porque tem a roça [atividades laborais no campo], aí chega cedo e espera lá, e só atende o interior [isto é, pessoas que residem em localidades interioranas do município] um dia na semana, aí ficam ‘amarrando’ para atender [os profissionais demoram a realizar o atendimento] (CQ3).
Eu acho muito demorado pra começar a atender, porque a gente é do interior, chega bem cedo lá, até mesmo por causa do ônibus que leva a gente, aí vai começar a atender lá pelas nove horas, e sem contar a dificuldade pra marcar essa consulta (CQ8).
Eu gosto e acho bom, porque a enfermeira é bem atenciosa, mas é difícil marcar a consulta, porque aqui o nosso Agente [Comunitário de Saúde] é o presidente da comunidade, aí ele viaja e fica complicado (CQ11).
Classe 4 - Uso de práticas populares
Nessa classe, o teor temático corresponde ao uso de outras práticas no cuidado com crianças, valorizando a medicina tradicional, com o reconhecimento da facilidade de acesso, sobretudo à fitoterapia:
[...] prefiro fazer o remédio caseiro [do] que levar lá [em um serviço de saúde], porque eles [os profissionais de saúde] passam esses remédios de farmácia e, às vezes, é difícil de comprar, também porque a gente não tem dinheiro às vezes para comprar, aí tem que dar o nosso jeito [...]. O remédio caseiro, a gente consegue emprestando, às vezes, até no quintal mesmo, aí eu faço aqui as coisas que eu tenho (CQ1).
[...] eu acho até mais fácil cuidar assim [com remédio caseiro], porque eu pego as folhas aqui no terreiro mesmo (CQ13).
Dentre as práticas populares de cuidado, emergiu, essencialmente, a utilização de chás e banhos em diversas situações, preparados com folhas e raízes. A maioria das intervenções foi para o tratamento de gripe, febre, infecções parasitárias e problemas intestinais. A posologia varia conforme a indicação, mas, de modo geral, a ingestão dos chás e a aplicação dos banhos substituem as atividades diárias de beber água e de tomar banho:
Para verme, eu uso priprioca e raiz do mamão macho. Ponho para ferver e dou como chá. A gente faz e, quando chega a hora de beber água, a gente dá o chá (CQ3).
Às vezes, dá uma gripe, ele [referindo-se à criança] fica com o nariz todo entupido, aí eu faço o banho da folha do limãozinho, deixo no sereno e fico dando banho nele com essa água e, junto, eu fico dando o chá do limãozinho (CQ9).
Ele tem dor de barriga, diarréia, eu faço chá pra ele. Tem vários tipos que eu faço: o boldo, que é pro fígado, e tem também o elixir paregórico (CQ11).
Embora o uso dos chás e dos banhos seja o principal tratamento para as alterações relatadas, foi identificada, de maneira esporádica, a associação dessa prática com a medicação quimioterápica:
[...] quando eles [as crianças] estão com gripe, eu pego a folha do limãozinho, que é aquele limão pequeno, lavo para tirar a terra [...], coloco para ferver e, quando ferve bastante, fica aquele cheiro do limão, aí eu vou quebrar um AAS [comprimido do medicamento ácido acetilsalicílico], jogo dentro, espero dissolver, é assim (CQ1).
[...] se ele tá com febre, eu faço o banho de hortelãzinho com camomila, dou o banho e também uma nimesulida [comprimido] ou uma pílula de AAS (CQ18).
Tratando-se exclusivamente da febre, a terapêutica natural ou biomédica é iniciada após um dia de sintomatologia, como demonstrado nas falas a seguir:
[...] o pessoal diz que não pode dar remédio para febre no primeiro dia, porque ‘amansa’ [baixa] a febre, mas depois ela volta mais forte. Tem que esperar passar um dia para dar o remédio [...], eu espero o primeiro dia e dou o remédio (CQ1).
[...] essa febre nele [...], mas só pode dar depois de um dia de febre, porque, se der antes, pode disfarçar ela (CQ16).
Outros produtos usados nos cuidados com as crianças são os azeites extraídos de sementes, como a andiroba, e as gorduras extraídas de animais, como a galinha e o jacuraru, denominadas pelas cuidadoras como “banhas”. São utilizados para prevenir ou controlar edemas, induzir respostas anti-inflamatórias, e têm reconhecida ação cicatrizante nos ferimentos e nos cuidados com o coto umbilical:
[…] às vezes, também acontece muito dele se bater, aí eu vejo onde se bateu e cuido com as coisas que eu tenho em casa mesmo: a banha de galinha, banha do jacuraru [...]. A banha do jacuraru é mais difícil de conseguir, porque o jacuraru tem só um pouco de gordura e também é difícil de pegar [caçar] ele [...]. A gente passa para desinflamar, porque é muito bom, é melhor que a banha de galinha (CQ1).
Eu primeiro vejo como é esse baque, se for coisa ‘besta’ [termo aqui empregado para se referir a uma lesão de pequeno porte], eu passo só uma banha de galinha, que é pra não inflamar, e cubro com um pano limpo [...], e sara logo. Se for mais sério, é melhor a banha do jacuraru, porque é mais forte (CQ6).
[…] eu limpava o umbigo dele com álcool que mandaram do hospital e colocava também andiroba pra ajudar a não inflamar (CQ15).
O uso desses óleos e banhas, por vezes, também é associado a algum medicamento que tenha função terapêutica similar ou complementar, para obter a cura ou resolução do quadro:
Eles vivem com ferida, porque ficam caindo por aí. Isso eu cuido com rifocina e com banhas que tem aqui: a de galinha e de jacuraru, mas também tem a andiroba (CQ11).
[…] ele pisou num prego, aí eu tive que lavar bem com sabão e água, limpei e depois coloquei aquela rifocina em cima pra não inflamar, fiquei passando banha de galinha e andiroba. Ficou inchado, eu fiquei passando só a banha de galinha com andiroba e também uma sulfa quebrada [aplicação de comprimido macerado de um medicamento antimicrobiano no local do ferimento] (CQ16).
Outro tipo de cuidado relatado diz respeito ao tratamento para asma, descrita pelas cuidadoras como “puxado”, uma doença associada, por elas, com condições de nascimento, brincadeiras em tempos chuvosos, mudanças de temperatura corporal de forma brusca e contato com poeira:
[...] apanha [expõe-se à] chuva, [ao] sereno e vem do terreiro, toma banho com o corpo quente e a gente tem que deixar esfriar para não dá puxado, que é aquela asma que chamam. Igual já aconteceu com eles, que estavam chorando e ficaram suados, aí eles tomaram banho e deu puxado (CQ3).
[…] tem asma, já tem tempo que ele tem isso. Tu quer ver quando chove e dá aquela frialdade, aí que ele fica ruim mesmo [...]. A asma foi resto de parto que não saiu. Assim, o pessoal fala e tem que ter cuidado, porque qualquer coisa inflama (CQ7).
A asma, o pessoal conhece aqui como puxado. A pessoa fica cansada, com falta de ar, e a poeira faz piorar (CQ18).
O tratamento para a asma envolve ações precoces, por meio do uso de puxações e de outros preparos à base de vegetais e de insetos. Esse uso é compartilhado e perpetuado nas conversações originadas no seio das relações sociais, a partir de experiências no cuidado com outras crianças:
A receita que ela passou foi fazer o pó do embuá, da barata e do escorpião, aí eu fui conseguir esses insetos. Colocava eles na panela, torrava até ficar queimadinho, depois amassava no pilão até virar pó. Colocava na água e dava para ele tomar até vomitar, tipo uma baba, que era a asma saindo do peito dele [...], aquilo grosso como um catarro [...]. Hoje, ele ainda tem um pouco dessa asma, mas não é forte (CQ1).
Para asma, eu dou a cebolinha do mato, que é igual uma cebola. Corta em três [partes] e joga na água para ferver. A minha mãe que ensinou. Deixa apurar bem, depois amassa e coa, e dá para a criança beber um litro até vomitar. Ele vai vomitar aquela baba, que é a asma (CQ3).
[...] já pensou alguém ficar sem ar? É coisa séria, e a gente foi ali na mulher que reza, ela puxou o peito dele (CQ19).
Ainda no cotidiano da comunidade, as cuidadoras relataram práticas baseadas na assistência religiosa, sobretudo no benzimento, ao reconhecerem que o adoecimento adveio de influências espirituais ou místicas. Dentre as principais causas, estão os feitiços ocasionados por seres da natureza, como a mãe d’água:
Eles ficam mufinos, não querem brincar e só ficam em casa deitados, dá febre; às vezes, dá dor de barriga também e dor de cabeça [...]. Têm crianças, quando o olhado [feitiço] é muito forte, que ficam falando coisas confusas [...] aí, a gente leva na senhora que benze, ela passa a receita. Às vezes, as receitas são difíceis, mas a gente faz, porque é um negócio sério quando é olhada de bicho (CQ1).
[...] eu levo muito ele lá [na benzedeira], porque tem esse negócio de mau-olhado de bicho, ele não quer comer, fica muito fino [emagrece], aí ela reza e passa [...]. Eu acredito muito nela (CQ4).
[...] o baque [mau-olhado] de bichos, que são aqueles bichos de igarapé, que tem a mãe d’água, que faz a criança ficar com febre, dor de cabeça, aquela mufinesa [apatia], aí leva na benzedeira pra ela benzer a criança, faz as rezas e ela passava o remédio (CQ13).
DISCUSSÃO
Na comunidade quilombola, os cuidados com crianças valorizam, prioritariamente, as práticas nativas embasadas nos conhecimentos tradicionais, entretanto há utilização de tratamentos biomédicos de forma associada à medicina nativa. Há reconhecimento da eficácia terapêutica dos tratamentos caseiros, visto que são utilizados como primeira opção e em larga escala.
A totalidade dos cuidadores é de mulheres, também observada em estudo no qual a mulher foi a principal cuidadora de crianças.15 Entre os participantes, houve predominância da religião católica, renda de até um salário mínimo proveniente da agricultura familiar e incrementada por programas de transferência de renda, como o Bolsa Família e os programas de habitação. Em consonância com esses resultados, estudo realizado em uma comunidade quilombola no Pará também identificou renda familiar menor que um salário mínimo vigente durante a coleta de dados.16
O cuidado, no entendimento das mulheres que participaram desta pesquisa, tem relação com o ambiente doméstico e com as funções que elas desempenham para a manutenção desse espaço, que inclui a própria cuidadora, a família e a casa onde residem. É interessante notar que as mulheres fazem referência ao cuidado, relacionando-o também ao papel de gênero, historicamente construído, que atribui à mulher a função de zeladora pelo espaço doméstico. Tratando-se das mulheres negras, esse estereótipo é mais acentuado, considerando toda a construção de racismo e dificuldade de oferta de trabalho formal, se comparado à mulher branca.17
Outro destaque se refere às práticas de cuidado entendidas como meios para a prevenção de doenças e agravos, valorizando hábitos saudáveis. Conforme as recomendações do Caderno de Atenção Básica/Ministério da Saúde para o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento de crianças, promover esses hábitos, sobretudo a alimentação saudável, adequada para a idade, é fundamental, não apenas para o crescimento e desenvolvimento satisfatórios, mas para prevenir quadros mórbidos e suas possíveis complicações, como episódios de anemia e desnutrição, além de aumentar a imunidade.10
No que concerne aos hábitos de higiene, sabe-se da sua relação com as enteroparasitoses, bem como do reconhecimento internacional que as práticas de higiene pessoal e os cuidados no preparo e na manipulação dos alimentos possuem entre as principais medidas preventivas.18-20 É oportuno frisar que esses cuidados tendem ao engendramento de uma compreensão limitante sobre a saúde como mera ausência de doença, tendo em vista o esforço para impedir que as crianças adoeçam. Deve-se tal pensamento a diversos fatores, como o entendimento de saúde como ausência de doença, disseminado pelo modelo biomédico e enraizado no imaginário social.21
Para as cuidadoras, a oferta em saúde nos serviços públicos se reduz à verificação de peso e estatura das crianças, além da atualização do calendário vacinal. Esse fato coincide com resultados de estudo realizado com mães quilombolas de uma comunidade no estado da Bahia, que investigou os significados que elas atribuíam às consultas de puericultura, identificando forte relação entre a procura pelo serviço e as ações de verificação de peso e altura, bem como a procura pela imunização.22
Vale ressaltar que as consultas infantis não devem se restringir à verificação das medidas antropométricas, mas considerar também as desigualdades sociais e as condições em que vivem as famílias, valorizando integralmente os aspectos relacionados à avaliação do crescimento e desenvolvimento. Desse modo, o acompanhamento clínico precisa obedecer aos princípios e às diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), ao tratar a criança como um ser biopsicossocial e espiritual cuja integralidade deve ser respeitada no cotidiano dos serviços de saúde.10,23
Segundo as cuidadoras, o acesso aos serviços de puericultura é dificultado pela distância entre a comunidade e a unidade de saúde, pelos horários dos atendimentos, além de dificuldades para o agendamento de consultas. Dialogando com esse resultado, estudo desenvolvido em Ilha de Maré, Bahia, investigou os fatores que interferem na assiduidade de crianças quilombolas às consultas agendadas, constatando que a justaposição de atendimentos com as atividades domésticas e as ocupações de trabalho, as dificuldades de agendamento de consultas e o tempo de espera para o atendimento são fatores que distanciam a comunidade dos serviços.24
É importante sublinhar que o acesso aos serviços de saúde, no contexto dos quilombolas, é marcado pela fragilidade, iniquidade e omissão do poder público, que tem o desafio de oferecer assistência pautada na complexidade histórica, geográfica e cultural dessa população. Destaca-se, ainda, que, no bojo dos direitos conquitados, estão as políticas de saúde que valorizam as particularidades de vida dos quilombolas. Mesmo assim, verifica-se que o cenário brasileiro não corresponde a tais peculiaridades, intensificando as dificuldades de acessibilidade e assistência à saúde.25
A utilização da medicina tradicional foi citada como prática de cuidado prioritária, atribuída, sobretudo, à facilidade de aquisição dos produtos empregados no preparo dos remédios. Salienta-se que, ao longo da história, o uso de plantas e de outros produtos fitoterápicos vem ocorrendo em estreita relação com a saúde, a cultura e a natureza, sendo bastante difundido entre os povos tradicionais. Na contemporaneidade, essas práticas figuram uma alternativa terapêutica de muitos brasileiros desprovidos de condições econômicas satisfatórias para a aquisição de medicamentos ou, ainda, por não terem acesso ao sistema formal de saúde.26
Impulsionado pelo reconhecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a importância econômica da medicina tradicional, o Ministério da Saúde desenvolveu a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS, que, embora implementadas no país, ainda não estão totalmente difundidas.27 Dentre as práticas populares citadas pelas cuidadoras, identificou-se o uso de plantas como um recurso recorrente, sendo priorizadas as folhas e raízes manipuladas para consumo na apresentação de infusão. Esse uso, com fins terapêuticos, expressa forte relação com a natureza, integrando os diferentes universos de saberes e práticas tradicionais, que são valorizados e sobre os quais lança mão em situações de adoecimento da criança.
A opção por folhas e raízes foi, do mesmo modo, identificada como prioritária em outras pesquisas, que abordaram o uso de plantas medicinais em comunidades quilombolas, principalmente para a preparação de chás, com maior indicação para o tratamento de sintomas gripais e problemas gastrointestinais.28,29 Consonante com os achados desses estudos,28,29 nota-se que, no relato das cuidadoras, as práticas tradicionais foram utilizadas, sobretudo, nos casos de gripe, problemas do aparelho digestivo e febre, sendo que, para essa última manisfestação, as práticas ocorrem com cautela, isto é, a partir do segundo dia de manisfestação, sem apoio na literatura científica acessada.
Foi relatado, ainda, o uso de óleos vegetais, como o óleo de andiroba, para debelar processos inflamatórios, propriedade natural reforçada por diferentes estudos.30,31 Sabe-se que, além desse efeito, o óleo de andiroba também atua como antisséptico, antiparasitário, emoliente, cicatrizante, inseticida e antioxidante, sendo comercializado por todo o mundo como agente ativo em formulações farmacológicas.30
As gorduras animais, como a banha de galinha e a banha de jacuraru, foram identificadas com uso corriqueiro na comunidade. O emprego de animais na medicina popular é conhecido como etnozooterapia, e está relacionado, desde os primórdios da humanidade, aos rituais de cura, segundo pesquisadores de uma universidade localizada no estado de São Paulo. Esses autores desenvolveram um estudo em comunidade rural, identificando o uso recorrente de banhas extraídas de animais, sendo a banha de jacuraru a mais citada, em virtude de sua eficácia, seguida da banha de galinha, usadas no tratamento de quadros álgicos e para a eliminação de catarro, dentre outras indicações. Embora não tenha sido realizado com quilombolas, demonstra que as práticas tradicionais são transversais à construção da sociedade brasileira, constituindo-se como importante elemento da cultura nacional.32
Apesar de a gordura de jacuraru ter notória relevância para a população que a utiliza, as indicações terapêuticas não têm comprovação científica, uma vez que já foram realizados testes para verificar a composição da gordura desse animal.33
Neste estudo, o uso de práticas populares combinadas com quimioterápicos foi identificado como recurso nos cuidados, compatível com outra pesquisa, cujos achados revelaram combinação de recursos de cuidados da medicina formal e informal nos agravos de saúde.15
Outra condição que requer cuidado, segundo as cuidadoras, é a asma, denominada por elas como “puxado”, e tratada com práticas nativas. Vale destacar que a forma como a doença é entendida, associada aos periódos chuvosos, é referendada em outro estudo, que comprovou o aumento de hospitalizações em decorrência de asma durante o inverno, em crianças de zero a quatro anos, na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais.34 Do mesmo modo, duas pesquisas identificaram relação da asma com mudanças climáticas, sobretudo em períodos de queda da temperatura ambiente, quando a umidade do ar está mais acentuada.35,36
A busca pela benzedeira foi mencionada como recurso de cuidado quando as causas do adoecimento são espirituais ou místicas. A prática de benzer e a sua concepção se enlaçam em um sincretismo religioso, folclórico e cultural comum entre indígenas, africanos e católicos. Além dos encargos de curar, os benzedeiros são os símbolos de reinvidicação e conservação da memória e dos saberes, cujo processo de ação envolve o híbrido entre a apropriação dos recursos da natureza, a religiosidade e o misticismo.37
Na comunidade estudada, a procura por esse recurso ocorre a partir da identificação de um quadro mórbido causado por seres da natureza, como a mãe d’água. No contexto da cosmovisão, as cuidadoras percebem a floresta como a morada de seres capazes de causar doença em virtude do não respeito ao seu espaço, imaginário que se justifica, por exemplo, pela preocupação em não estar nos igarapés em determinados horários. Para elas, esses seres enfeitiçam a criança que, na realidade tangível, passa a apresentar sinais e sintomas que somente as benzedeiras e os seus conhecimentos místicos são capazes de curar.
Nesse sentido, um importante estudo que contribui para as reflexões apresentadas, embora não realizado com quilombolas, destaca a cura por benzedeiros diante das morbidades causadas por mau-olhado de seres da natureza,38 ressaltando o fato de os benzedeiros compreenderem que as suas práticas curativas oportunizam o afastamento das encantarias.39
CONCLUSÕES E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA
Este estudo permitiu conhecer as experiências relacionadas aos cuidados prestados por mulheres às crianças quilombolas e o contexto sociocultural em que essas experiências se concretizam, ao mesmo tempo em que possibilitou conhecer os significados atribuídos à prática de cuidado e às suas relações com a saúde, com o acesso aos serviços de saúde e os saberes que norteiam os cuidados tradicionais.
No desvelar das percepções, constatou-se como as cuidadoras lidam com os conflitos do cotidiano, frente às limitações no acesso aos serviços, para manter ou obter um estado satisfatório de bem-estar da criança que transcenda os aspectos biológicos, pois engloba também aspectos psicossociais e espirituais. Ao ofertarem o cuidado, os saberes e as ações das cuidadoras expressaram, de forma ativa, influências de sua cultura, de suas crenças e de seus modos de interpretar e simbolizar a realidade.
Portanto, reconhecer e problematizar as práticas quilombolas no cuidado às crianças é um desafio que ultrapassa o discurso biomédico, reducionista e estigmatizante ainda vigente em muitos espaços acadêmico-científicos da área da saúde. Na perspectiva da interdisciplinaridade, é preciso ampliar o debate sobre o tema no contexto da educação e do exercício profissional, estimulando a formação de grupos de estudo e a produção de novas pesquisas que contribuam para a superação de tal desafio e para o fortalecimento da atenção à saúde dessa população, considerando as particularidades que caracterizam sua condição de grupo com ancestrais do continente africano e demarcam suas vulnerabilidades.
Entende-se que o desenvolvimento deste estudo em apenas uma comunidade quilombola no estado do Pará pode limitar a generalização de seus resultados, visto que os fatores humanos, ambientais, organizacionais e operacionais influenciam na construção das subjetividades. Entretanto, é reconhecível o seu potencial para subsidiar reflexões e investigações em diferentes cenários, visando contribuir para promover a saúde individual e coletiva, sobretudo a saúde da criança nos territórios quilombolas.
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Editado por
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EDITOR ASSOCIADO
Aline Cristiane Cavachilli Okido 0000-0003-4309-5612
-
EDITOR CIENTÍFICO
Ivone Evangelista Cabral 0000-0002-1522-9516
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Jan 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
10 Maio 2022 -
Aceito
20 Ago 2022