Resumos
Esta pesquisa busca promover reflexões sobre a clínica psicológica enquanto lugar de abertura a uma fala criadora de sentido, partindo da experiência de sujeitos usuários. Compreendendo que há uma especificidade da linguagem no espaço da clínica, acredita-se que este trabalho possibilite maior clareza quanto à propriedade, singularidade e importância dessa temática, além de levar a reflexões e discussões, tanto do ponto de vista teórico quanto dos campos de atividade do psicólogo. A modalidade clínica escolhida para refletir acerca da linguagem expressa na narrativa do sujeito foi a psicoterapia. Para isso, utilizou-se, enquanto método investigativo, a perspectiva fenomenológica existencial para compreender e interpretar, pela hermenêutica, as experiências de três clientes, sem levar em consideração idade, sexo e abordagem teórica, pois o objetivo foi colher narrativas acerca da experiência na clínica psicológica, sem especificidades. O acesso a essas pessoas se deu a partir de um contato prévio com colegas de profissão, o que possibilitou uma interlocução direta. Foi feita uma pergunta disparadora/provocadora, a fim de que os sujeitos pudessem transitar livremente por suas experiências. As discussões tornaram-se possíveis a partir de afetações e reflexões entre relatos e pesquisadora, bem como através de diálogos com autores que transitam pelo tema.
Psicologia clínica; Discurso; Criação de sentido; Narrativa
This paper intends to promote a reflection on the psychological clinic as an opening place to a creative speech of direction, starting from the experience of the users. Taking into account that there is a particularity of the language in the clinic, one believes that this work makes possible a better understanding of the uniqueness, singularity and importance of this field, leads to reflections and discussions and gives support to the academy and the psychologist's fields of activity. The clinical modality chosen to reflect the expressed language in the narrative of the subjects was psycotherapy. For this, it was used the existencial phenomenological methodology to understand and to interpret, through hermeneutics, the experiences of three patients, without taking in consideration age, sex and theoretical approach, because the objective was to collect narratives concerning the experience in the psychological clinic without any specification. The access to these people was made through a previous meeting with colleagues, what made possible the direct contact with the subjects. A triggering/provoking question was asked with the intention of making the patients speak feely about their experience. The discussions became possible from affectations and reflections among the testimonies and the researcher, as well as from dialogues with authors who deal with this field.
Clinical Psychology; Speech; Creation of meaning; Narrative
ARTIGOS
Da experiência da fala de sujeitos usuários na clínica psicológica às suas possíveis repercussões
On the experience of speech with subjects of the psychological clinic and its possible repercussions
Lucyanna de Farias Fagundes Pereira* * Psicóloga, Mestre em Psicologia clínica pela Universidade Católica de Pernambuco. , Marcus Túlio Caldas** ** Psiquiatra. Doutor em Psicologia pela Universidade de Deusto - Espanha, professor do Departamento de Psicologia e do Mestrado em Psicologia clínica da Universidade Católica de Pernambuco. , Ana Lúcia Francisco*** *** Psicóloga. Doutora em Psicologia pela PUC de São Paulo, professora do Departamento de Psicologia e do Mestrado em Psicologia clínica da Universidade Católica de Pernambuco.
Universidade Católica de Pernambuco
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Lucyanna de Farias Fagundes Pereira Rua Professor Antônio Campos, 2303, Lagoa Nova 9075-090, Natal, RN, Brasil Tel.: (84) 9109-7602 E-mail: lucyannafarias@gmail.com
RESUMO
Esta pesquisa busca promover reflexões sobre a clínica psicológica enquanto lugar de abertura a uma fala criadora de sentido, partindo da experiência de sujeitos usuários. Compreendendo que há uma especificidade da linguagem no espaço da clínica, acredita-se que este trabalho possibilite maior clareza quanto à propriedade, singularidade e importância dessa temática, além de levar a reflexões e discussões, tanto do ponto de vista teórico quanto dos campos de atividade do psicólogo. A modalidade clínica escolhida para refletir acerca da linguagem expressa na narrativa do sujeito foi a psicoterapia. Para isso, utilizou-se, enquanto método investigativo, a perspectiva fenomenológica existencial para compreender e interpretar, pela hermenêutica, as experiências de três clientes, sem levar em consideração idade, sexo e abordagem teórica, pois o objetivo foi colher narrativas acerca da experiência na clínica psicológica, sem especificidades. O acesso a essas pessoas se deu a partir de um contato prévio com colegas de profissão, o que possibilitou uma interlocução direta. Foi feita uma pergunta disparadora/provocadora, a fim de que os sujeitos pudessem transitar livremente por suas experiências. As discussões tornaram-se possíveis a partir de afetações e reflexões entre relatos e pesquisadora, bem como através de diálogos com autores que transitam pelo tema.
Palavras-chave: Psicologia clínica, Discurso, Criação de sentido, Narrativa.
ABSTRACT
This paper intends to promote a reflection on the psychological clinic as an opening place to a creative speech of direction, starting from the experience of the users. Taking into account that there is a particularity of the language in the clinic, one believes that this work makes possible a better understanding of the uniqueness, singularity and importance of this field, leads to reflections and discussions and gives support to the academy and the psychologist's fields of activity. The clinical modality chosen to reflect the expressed language in the narrative of the subjects was psycotherapy. For this, it was used the existencial phenomenological methodology to understand and to interpret, through hermeneutics, the experiences of three patients, without taking in consideration age, sex and theoretical approach, because the objective was to collect narratives concerning the experience in the psychological clinic without any specification. The access to these people was made through a previous meeting with colleagues, what made possible the direct contact with the subjects. A triggering/provoking question was asked with the intention of making the patients speak feely about their experience. The discussions became possible from affectations and reflections among the testimonies and the researcher, as well as from dialogues with authors who deal with this field.
Keyword: Clinical Psychology, Speech, Creation of meaning, Narrative.
O homem contemporâneo tem marcas. Marcas de experiências, de lutas, de sofrimentos. Marcas de ausência, presença, conquistas, perdas. Marcas que traduzem ou revelam quem ele é, como foi sua história, seu passado, como planeja seu futuro. Sua forma de estar no mundo, seu olhar diante dos acontecimentos e o modo como se relaciona desvelam, para aquele que se dispõe a ouvir, todo o arsenal de conhecimento a respeito de si próprio e daquilo que o cerca, e parece brotar da própria angústia a revelação das dimensões do sofrimento e da fragilidade humana.
É esse retrato de homem que se apresenta à clínica psicológica, quando vem buscar uma imagem de si ao tentar construir-se ou reconstruir-se à medida que participa da compreensão do seu existir. Ele se coloca imerso no trânsito da própria existência, "mergulhado", muitas vezes, num aqui difícil de ser transposto, "preso no presente indefinido do sofrimento" (Barus-Michel, 2001, p.21).
A pesquisa que será descortinada buscou, a partir desse homem, uma compreensão, compreensão de vida, de existência, de modo de ser e de se relacionar. Ele e suas experiências foram pontes pelas quais foi possível dar pausas e vislumbrar, com riqueza de detalhes, sentimentos e sensações, sentindo na pele como é (re)viver experiências. Procurou-se, neste trabalho, uma forma de preenchimento singular, a maneira de expressar, para os leitores, um olhar próprio de ver os fenômenos e acolhê-los da forma como se apresentaram. Por essa razão, a fenomenologia existencial abriu caminhos de passagem pelas entranhas mais férteis, inquietantes e mobilizadoras do homem contemporâneo que chega à clínica. Por permitir ao pesquisador outras possibilidades de reflexão, essa forma de investigação respaldou a compreensão do homem em sua maneira de ser no mundo, designando a experiência como o modo próprio de o homem dar sentido e significado ao mundo.
A experiência foi o caminho escolhido para refletir a proposta da pesquisa. Somente ela poderia revelar outras maneiras de ver, de sentir e de perceber a realidade a partir do olhar do outro, daquele que efetivamente foi tocado, afetado diretamente. Narrar a própria experiência é abertura para a dimensão existencial do homem no mundo fenomenal e forma de acesso à sua singularidade, e permitir abarcar a experiência do sujeito como obra aberta (Eco, 1993), sujeito que se encontra na condição de ator e protagonista de sua própria história. Somente esse sujeito pode se voltar para a sua vivência, resgatando a dimensão do vivido e entrando num processo de descoberta de sua própria humanidade.
"Muitas vezes as pessoas nunca tiveram oportunidade de efetivamente dizer sua experiência. Fazem-no então pela primeira vez, e freqüentemente se surpreendem com o que dizem. A pesquisa fenomenológica é a pesquisa do vivido" (Amatuzzi, 2005, p.19).
As portas foram abertas. Os ouvidos postos à escuta. Esta pesquisa foi o espaço de abertura para a construção de reflexões que se apresentaram aos pesquisadores como caminhos possíveis para se compreender, na prática, as experiências de pessoas que passaram pela clínica psicológica como clientes. Compreender suas experiências, na clínica, ao falar de si, é buscar outros modos de compreensão, é ir além, é buscar na própria experiência o sentido singular ou plural de um determinado fenômeno, é abrir possibilidades, é permitir que outros modos de ser se apresentem.
Os autores que buscamos para transitar por essa temática suscitaram alguns questionamentos que logo foram se acomodando e estruturando a questão da pesquisa: Que sentido aponta a experiência do sujeito ao falar de si? Que possíveis repercussões (dessa experiência) acontecem nos lugares onde esse indivíduo atua? Ouvir as experiências dessas pessoas, compreender o que viveram e compartilhar momentos tornaram-se o modo de agir, o como pesquisar, o caminho a ser seguido.
Metodologia
Para compreender essas experiências, buscamos, na perspectiva fenomenológica existencial, o fundamento para nossas investigações. Por englobar um modo de ação e relação, desvelando a trama da vida a partir daquele que se despe ao narrar sua própria história, essa forma particular de pesquisa se abre para a compreensão da clínica a partir de relações de intersubjetividades próprias do existir humano e da própria clínica, o que requer a abertura dos sujeitos - pesquisado e pesquisador - à experiência, numa mútua afetação.
Recorremos, nesse sentido, à narrativa de clientes que passaram pelo processo de psicoterapia. Não nos prendemos à abordagem teórica, pois o intuito era o de conhecer o processo para compreender como o cliente, ao narrar sua história, ao falar de si, entra em contato (no sentido fenomenológico do termo, de ser mobilizado ou tocado pela experiência) com suas vivências, tendo em vista que o espaço proporcionado pela clínica pode levar a reflexões e elaborações de suas próprias questões.
Esses sujeitos foram ouvidos tal qual se apresentaram, com suas especificidades e abrangências, singularidades e multiplicidades, apreendendo-se sua história, sua estranheza, seu lado incompreendido. O espaço criado para colher suas narrativas foi a própria experiência em ação, foi a abertura para cuidar de si mesmo, considerando-se que o caminho que se pretendeu investigar, dentro desse espaço criado, permitiu chegar a essas experiências no modo como elas se mostraram. Então, foi possível percorrer a questão-norte da nossa pesquisa em direção a uma reflexão acerca da clínica psicológica como um lugar de abertura de possibilidades para uma fala desconstrutora e criadora de sentidos, e, para compreender essa clínica, buscamos, nesses sujeitos, a partir de seus depoimentos, a compreensão e a reflexão necessárias para esse fazer clínico. Para que isso se tornasse possível, lançamos mão da narrativa como elaboração e registro da experiência, de acordo com a perspectiva de Walter Benjamin, conforme proposta por Schmidt (2004), como metodologia. A narrativa é, segundo Benjamin (1985), uma forma artesanal de comunicação, na qual a vivência do narrador é a matéria-prima a ser trabalhada; mais do que isso, abrange dados que se desdobram ao longo da vida, constituindo não só a forma de construção da experiência e da memória como também a da sedimentação e reconstrução do processo vivido. Isso significa entrar em contato com a experiência vivida e, somente a partir desse encontro, é possível re-significá-la ao ser atravessado pelo processo de des-velamento próprio da abertura do homem diante da busca pela compreensão de si mesmo. A narrativa permite que o viver humano seja permanentemente colocado em evidência.
A opção por essa metodologia se dá devido à importância da relação entre experiência e narrativa. A experiência se refere a uma elaboração do fluxo do vivido, que ocorre pela consolidação e incorporação do singular e do plural que compõem a vida do indivíduo, sendo a narrativa a forma de expressar essa pluralidade de conteúdos, em constante mutação no tempo (Schmidt, 2004). Isso acontece porque a narrativa abre a dimensão existencial do homem no mundo fenomenal, sua singularidade e suas escolhas.
A importância dessa forma de pesquisa está justamente na evidência atual de desaparecimento da forma de comunicação mais adequada ao ser humano: contar histórias, compartilhar experiências, criar e recriar acontecimentos. É a narrativa, pela sua característica oral, que permite ao homem reconstruir sua história à medida que vai sendo relatada. Por essa razão, a narrativa é um caminho para se chegar ao que ocorreu tal como foi vivido pelo narrador, com seus valores e percepções presentes naquele momento (Benjamin, 1985).
Nesse sentido, foi feita, aos participantes da pesquisa, uma pergunta ampla e disparadora - como é/foi, para você, a experiência de terapia? - de forma a dar margem para o sujeito se colocar e responder com liberdade, podendo transitar pelos fatos e acontecimentos vividos. Três pessoas foram convidadas para uma entrevista; não levamos em conta idade, nem sexo, pois tínhamos o objetivo de colher narrativas acerca da experiência na clínica psicológica, sem especificidades. O acesso a essas pessoas não se estabeleceu via instituição, mas a partir de um contato prévio com colegas de profissão, o que possibilitou uma interlocução direta.
Os depoimentos foram gravados em áudio, transcritos e literalizados (ou seja, são corrigidos os vícios de linguagem, concordâncias e tempos verbais, sem alterar as falas e o sentido, usando pontuações gráficas para expressar o ritmo da fala do narrador e assim poder permitir a leitura do leitor, com sua própria interpretação (Souza, 2001)), submetendo-os, após, à apreciação dos entrevistados para que autenticassem a sua fidelidade. A interpretação partiu de uma escuta clínica, a partir da qual foi possível uma hermenêutica que, articulada à interlocução com autores que refletem acerca da fala e da clínica psicológica, permitiu uma reflexão crítica.
"(...) Ao tomar a hermenêutica como processo de compreensão de significados ou decifração de um sentido, e que tanto o significado quanto o sentido estão relacionados ao seu contexto histórico e situacional, não cabe mais interpretar como explicar princípios, mas interpretar como acompanhar o acontecimento em sua historicidade. Nesse sentido, a hermenêutica é o estudo do encontro histórico que apela para a experiência pessoal do que está no mundo" (Palmer, 1999, p. 20).
Assim, compreensão e interpretação são dimensões originárias do estar-no-mundo. Isso quer dizer que o homem é compreensão, é abertura ao ser, ao mundo, interpretando os entes que se mostram a ele dentro do mundo. A compreensão se funde à interpretação: "interpretar não é tomar conhecimento do que se compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas na compreensão" (Heidegger, 2002, p.204) Assim, é possível interpretar o fenômeno na compreensão do mundo, isto é, na compreensão do modo de ser impróprio, próprio do homem.
Ao contar, portanto, sua experiência através da narrativa, o homem está exercitando a sua compreensibilidade, carregando consigo tudo o que lhe constitui em seu estar-no-mundo, articulando, pela linguagem, a compreensão num modo de existência (Dutra, 2002). Nesse sentido, o método de interpretação - hermenêutica - de Heidegger (2002) se dá a partir da compreensão ligada à pre-sença, ou seja, ao ser-no-mundo, ou ser-aí.
Essa é a finalidade do método: "desvelar um fenômeno que se interroga para vir a compreendê-lo e interpretá-lo" (Bruns & Trindade, 2005, p.67). É importante acrescentar que, na interpretação, está implicada e envolvida a subjetividade de quem interpreta. Dessa forma, essa abordagem teórico-metodológica é uma possibilidade de compreender e interpretar um fenômeno que se apresente ao pesquisador, já que busca desvelar aspectos da existência humana que se encontram velados e amplia a compreensão existencial humana a que se lançou (ibidem). A partir do espaço criado para o desenvolvimento desta pesquisa, os sujeitos tiveram a possibilidade de refletir acerca de suas experiências (em ação, no momento da pesquisa), de forma que suas falas adquirissem a dimensão de cuidado, cuidado de si. O sujeito se revela e se desvela ao contar sua história, tendo sido provocado ao reviver o que aconteceu. É aí que o sujeito se sentirá impelido a transitar pela sua vida, criando sentidos, construindo caminhos.
Nesses termos, adotar a narrativa como pesquisa fenomenológica é, concordando com Dutra (2002), adotar, como horizonte teórico e filosófico, a existência, compreendida na experiência vivida. O fenômeno a ser pesquisado nunca se esgota, pois faz parte do campo de possibilidades dentro da existência humana mesma, constantemente em processo, em vir-a-ser.
Compreensão das entrevistas: dialogando com os resultados
"(...) só depois de umas três ou quatro sessões foi que eu comecei a falar com ela, e eu tinha medo de falar, não era medo de expor, acho que era da sociedade em si (...)" (Cristina).
"Ela (uma profissional) me indicou para terapia e faz mais de ano (...) Eu acho bom, porque lá eu me solto, lá eu falo coisas que eu não posso...não é que eu não posso, mas eu não devo falar por censura...lá me vem raiva, me vem o choro..." (Júlia).
Cristina e Júlia se mostraram temerosas com o que poderiam fazer com suas falas, quem teria acesso às suas intimidades, em quem poderiam realmente confiar. Esse é o retrato de homem que se apresenta à clínica: marcado por um certo sofrimento, permeado por questionamentos, deparando-se, na clínica, com a possibilidade de estar diante de sua existência, com o desafio de ser ele mesmo, partindo em busca de possíveis sentidos dentro do incompreendido: "conduzido o homem a essa condição, posto à escuta, não lhe resta outra alternativa senão falar" (Figueiredo, 1994, p.112).
Ao longo da história da humanidade, o homem foi sendo moldado e "construído" em meio a uma sociedade utilitarista, voltada para interesses próprios de poder e de conquistas científicas. As disputas e competições que promoviam lutas de todos contra todos, numa ininterrupta busca pelo conhecimento (Mello & Costa, 1999), colaborou para o esvaziamento do sentido de si e do sentimento de humanidade. A história do homem foi composta por experiências que comprometeram a busca por referências e identificações próprias. Foram acontecimentos que o estimularam a "fugir" de si mesmo, deixaram à deriva valores humanos e não permitiram a abertura de espaço para sua intimidade, para seu eu mais próprio.
A constituição da subjetividade moderna começa a se delinear quando, diante de um passado puramente racional, calculista e objetivo, o homem ainda não sabe quem é, o que precisa fazer, que direitos lhe são próprios. O homem contemporâneo é marcado por seus limites, inserido num contexto sociocultural, preso a medos e sofrimentos que não sabe de onde vêm, nem o que são, não sabe qual é o seu lugar, que posição tomar, que escolhas fazer.
"Eu queria ver a vida de uma maneira muito mais otimista (...). Mas é difícil...eu fico olhando meus filhos de uma maneira diferente, como se fosse uma despedida" (Júlia).
As maneiras pelas quais costumeiramente o homem se relaciona (Najmanovich, 1996) o impedem de dar sentido às vivências, o que possibilita a construção de patologias e pode impedir sua corrida para a liberdade e para a responsabilidade para que é convidado. Isentando-se de promover mudanças em sua própria vida, o homem delega ao outro (e aí é possível estender esse fato à sociedade, de uma forma geral) o "poder" de guiá-lo, e coloca-se à deriva, à espera da sentença final. O sofrimento humano limita o campo de possibilidades dentro da existência, traz angústia, depressão, desmoronamento, sensação de vazio e medo e anuncia uma destruição, uma perda, um sentimento que pode chegar à sensação de morte: a impossibilidade de falar.
Que espaços existem para esse homem se colocar, expressar o que sente, manifestar suas opiniões e seus anseios? E para ancorar seus temores? Dividido entre priorizar suas razões interiores ou submeter-se à sociedade, o homem entra em crise por estar destituído de referências de sentido, descentrado do mundo. A necessidade, agora, é de buscar parâmetros e de compreender o seu modo de existir.
"Lá (na terapia) eu consegui dizer "não" a muita coisa, porque a gente tem uma síndrome lá em casa de ser boazinha com todo mundo, de não dizer "não" a ninguém, você tem que ser para aquela pessoa o que aquela pessoa quer que você seja, você não tem suas vontades (...). Isso foi começando a mudar... me ajudou a ser muito mais feliz...Às vezes eu acho que eu estou conseguindo encarar melhor (...) Eu estou até me surpreendendo como estou reagindo aos problemas que eu tenho" (Júlia).
A peregrinação do homem em busca de compreender a si mesmo mostrou-lhe realidades que aparentemente reacendiam dores antigas, mas que, na verdade, se for observado cuidadosamente, são atuais. Suas dores comprometem o sentido da vida e, preso à desordem das emoções e à impossibilidade de colocar-se em palavras, o homem carrega o peso da dor, do conflito que se transforma em crise interior, não passível de ser traduzido ou compartilhado. É o sofrimento, que inibe as capacidades dos homens e priva-os de sua linguagem.
Como está amparado por forças que ditam ou regulam seu comportamento, sua expressão, suas decisões, seus pensamentos, o homem se vê frente à existência impossibilitado de enxergar-se como criador e produtor de sentido, visto que se encontra assujeitado a um sistema que fecha ou esgota o campo de possibilidades e da própria criação humana. O ser do projeto encontra sua morada na dúvida, na angústia, no medo, naquilo a que não consegue dar significado.
"Vivemos num tempo atônito que, ao debruçar-se sobre si próprio, descobre que seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não ser, ora pensamos não ter ainda deixado de ser, ora pensamos nunca vir a ser" (Santos, apud Eizirik, 1995, p.22).
Essa crise leva o homem a apresentar diferentes formas de se apresentar diante do social. Os modos de se estar no mundo muitas vezes exigem do sujeito a sustentação de uma imagem irreal de si e o uso de máscaras socialmente convencionadas para "sobreviver". Essa forma de construção subjetiva "congela" o homem em sua capacidade criadora, fecha-o para as possibilidades e arquiteta, ao seu redor, um espaço "protetor" contra as ameaças à sua estrutura. A máscara passou a ser um aspecto inseparável da personalidade: ela é a outra face. Não é por acaso que alguns autores, como Augras (1986), Beaini (1981), Rolnik (1995) e Figueiredo (2002), caracterizam a civilização contemporânea como a cultura da máscara, que obriga os indivíduos a manter uma identidade social como questão de sobrevivência, pois ela isenta o homem de assumir a responsabilidade de buscar a própria identidade. Esse acontecimento possibilita a formação de um profundo vazio existencial, o que torna os sujeitos criadores e mantenedores de personalidades-simulacro.
Perdendo-se em sua própria condição, o homem passa a desenvolver um discurso alienado, a linguagem perde o sentido e as palavras deixam de ecoar, instituindo-se, em conseqüência, o abandono da propriedade de si mesmo. O encontro com a alteridade leva-o a encontrar sentidos para sua existência à medida que vai se destituindo de suas próprias amarras e se deparando com os possíveis caminhos que podem surgir ao permitir deixar-se mostrar inteiro e completamente. Nesse sentido, entregar-se à transformação pelo encontro com a alteridade é uma forma de construir subjetividade, acrescentando-se a isso a possibilidade de ser afetado e provocado ao iniciar um processo de re-significação de sua situação no mundo.
Assim, o contato com a própria experiência permitiu que Júlia encarasse a si mesma, o que abriu caminhos possíveis para que lhe seja permitido desdobrar-se e aí abrir-se para poder dar-se a conhecer. Esse é o sentido de viver experiências, pois o encontro com ela mesma re-significa o que foi vivido e atravessa o processo de desvelamento próprio da abertura do homem diante da busca pela compreensão de si mesmo.
A tarefa da clínica psicológica se centraliza na produção de sentido na terapia e na vida, tendo o terapeuta e o cliente a responsabilidade de procurarem superar a crise contemporânea, que é a da produção de sentido. Safra (2004) já disse que o primeiro passo para a emergência do sentido de si é abrir caminhos, na clínica psicológica, para escutar esse homem.
Então, se a clínica está comprometida com a escuta do "excluído" (Figueiredo, 2004, p.39), o acolhimento da experiência tal como se dá com o sujeito é o caminho que permite retirar o sentido buscado, mergulhar na experiência direta e deixar-se atravessar por ela. Isso significa entrar em contato com a alteridade: "fazer uma experiência com o que quer que seja, uma coisa, um ser humano, um deus, isso quer dizer: deixá-la vir sobre nós, para que nos atinja, nos caia em cima, nos transforme e nos faça outro" (ibidem, pp.19/20).
"(...) procurei tudo que era de médico (...) fazia todo tipo de exame (...) tudo foi acontecendo a partir de problemas que eu estava acumulando só para mim, sem poder colocar para fora" (Cristina).
Essa é a expressão do mal-estar do sujeito, que solicita ser escutado numa relação de ajuda, a fim de que seja possível colocar em palavras seu sofrimento e palavras em suas angústias. Colocando o sujeito que sofre na relação, é-lhe permitido dar continuidade a um discurso inacabado ou interrompido, devolvendo-lhe, "dessa forma, a dor suportável, restaurando-lhe a palavra, envolvendo o sofrimento e reabsorvendo-o através do discurso" (Barus-Michel, 2001, p.31).
Por essa razão, a clínica contemporânea exige do terapeuta posicionamento e manejo em relação ao mal-estar atual, que inviabiliza as condições fundamentais para o emergir do sentido de si. É a clínica que exige do profissional uma escuta diferenciada da dor do cliente no momento do seu aparecimento. É ajudá-lo a colocar as questões fundamentais da sua existência em constante processo, mobilizando-as para poder compreender os aspectos paradoxais de seu ser, colocando o sentido de sua própria existência sempre em transformação ao longo da vida (Safra, 2004).
"Estou me assumindo...estou me assumindo aos poucos (...) eu tive problemas semana passada, chorei, mas...chorei de cabeça erguida, porque eu fui e tentei resolver o problema (...). Consegui, então sou apta a fazer isso, como qualquer outra pessoa...eu estou me achando assim...o máximo, estou me achando o máximo" (Cristina).
A fala de Cristina resgata a importância da singularidade de si mesmo, rompe o estabelecido, re-inicia sua história e afirma-se diante da vida. É um estado que possibilita ao homem ter, como destinação, o risco, com vistas a seu próprio acontecer humano. Esse é o resgate da liberdade tolhida, da fala escondida, do sentimento sufocado. Desprendendo-se dessas amarras, é possibilitado ao homem "gritar" e se fazer ouvir, atravessar a si mesmo e entregar-se a tudo o que solicita passagem dentro de si.
Quem entra em processo terapêutico corre o risco do enfrentamento ao se deparar com uma imagem de si até então "protegida" pelo medo de ser revelada. O espelho que reflete essa imagem é a "porta para a visão do outro mundo" (Augras, 1986, p.59). A imagem refletida oferece ao indivíduo condições de compreensão que se estendem para outros modos de ser, ou seja, ultrapassam os limites do consultório, refletindo mudanças, provocando o aprendizado.
"As mudanças que estão ocorrendo estão indo para a minha vida, estou aprendendo a viver, estou aprendendo a crescer" (Cristina).
"O consultório era como se fosse um confessionário para mim...eu sabia que ali eu podia falar tudo o que eu quisesse..que só quem ia me escutar era ela. Eu entrava ali, ela fechava a porta, eu não tinha medos, eu não tinha nada" (Solange).
O sofrimento inerente à condição humana manifesta-se, na clínica, por uma fala destituída de sentido. Por essa razão, a psicoterapia é um contexto significativo que acolhe o sujeito em sua diferença, ao mesmo tempo em que lhe devolve a responsabilidade e a liberdade de escolha. Em seu campo perceptivo, ele pode visualizar o que o aflige, elaborar e operar mudanças no seu modo de sofrimento. É a travessia humana em busca de sentidos: ao abrir-me para tudo o que germina em mim, para o meu silêncio barulhento, é possível captar o sentido dos sentimentos, a fala do pensamento, a dimensão do ser existindo-no-mundo. É a partir dessa escuta diferenciada que é possível fazer verdadeiramente uma experiência com a linguagem e ser por ela transformado, pois algo passa a criar uma presença e, portanto, uma realidade. Algo passa a ser falado, e a palavra coloca o homem em contato com essa realidade, amplia sua visão e modifica sua existência.
"Falar de mim foi horrível, foi horrível (...) chorei muito (...) foi um medo, uma curiosidade de saber (como é) ... Você nunca teve essa oportunidade de colocar sua vida, principalmente para alguém que você nunca viu na sua vida. (...) Eu nunca tive oportunidade de conversar meus problemas com ninguém" (Cristina).
É essa ebulição que se encontra dentro daquele que passa por essa experiência, gritando/apelando para se tornar presente, para ser escutado, compreendido, acolhido. Ao mesmo tempo em que há uma necessidade de se dizer, de se mostrar, de falar, há medo do que o outro pode fazer com essas questões. A clínica é um caminho/espaço de escuta e fala, somente possível quando parte da própria pessoa um querer voltado para esse encontro consigo mesmo, para esse risco de olhar para si, provocado pelo olhar do outro, disponível para escutar o seu dizer.
Nesse sentido, a linguagem, enquanto condição humana de ser e de existir no mundo, permite ao sujeito dizer de si, mostrar-se em seu sendo. No entanto, longe de ser meramente meio de comunicação ou forma de expressão, a linguagem abre caminho para que o dizer responda à revelação do ser implícito na aparição dos entes (Heidegger, 2003). É um dizer que, originalmente, ouve o ser. É o silêncio da escuta que traz à palavra, é a escuta do chamado, da quietude do centro que evoca coisa e mundo.
"Tratando de dar coerência ao caos das excitações e às exigências que o agitaram, ele tenta, com perseverança, falar. Ser de linguagem, nascido no meio de linguagem, ele encontra sua unidade e continuidade apenas na construção da linguagem: poder reunir os elementos disparadores e contraditórios de sua experiência, para colocar para si, em palavras, para contar a si mesmo, na temporalidade (seu passado, seu presente, seu porvir), na sua relação com os outros" (Barus-Michel, 2001, p.25).
A fala em processo de libertação se traduz pela escuta do apelo do ser, o apelo que mobiliza a quietude do centro do homem, tornando-o palavra e abrindo espaços para que os fatos e o mundo renasçam e adquiram sentidos. Para "habitar" na linguagem, é preciso assumir as questões de sentido ligadas à abertura do ser-no-mundo para, então, ser possível estruturar a experiência, definir e redefinir o viver e provocar uma mudança no modo de existir. Será que os homens se encontram preparados para ouvir o apelo do ser e ser por ele transformados?
"Quando eu tinha algum sonho (...) que eu tenha falado em medo de ficar trancada, presa no elevador, multidão, eu tenho medo de multidão, me dá falta de ar, eu tenho medo de briga (...) eu ia contanto, ia relacionando. (...) Eu deduzi que esse meu medo está todo relacionado a essa época (da infância), então aí chegou...Eu mesma fiz a dedução, ela não fez por mim...eu mesma fiz" (Solange).
O esforço de Solange na terapia foi para aprender a se ouvir, a se escutar. Esse movimento levou-a a criar sentidos a partir do enfrentamento das situações, descobrindo, na sua busca, revelações que podem ser compreendidas como aprendizagem a partir da sua própria (re)construção experiencial. Ao apresentar à terapeuta sua vida, era devolvida a ela a responsabilidade por si mesma, o que lhe permitiu compreender seus caminhos e mudar suas perspectivas históricas. Assim, foi reconstruindo suas experiências e retirando de sua fala o meio de acesso a si mesma. As situações surgidas remeteram-na a uma investigação privada - a escuta de si mesma -, o que caracteriza a fala outra, a fala que dá andamento a um processo. Já disse Heidegger (2002) que a escuta é a dimensão mais profunda e mais simples de falar. Isso quer dizer que, ao me permitir me escutar, meu sentir tem a possibilidade de se expressar.
"Ela ia dando uns toquezinhos e eu ia desenvolvendo as coisas e desenvolvia com o que vinha na minha cabeça na hora. E eu gosto muito de falar..." (Solange).
"Eu acho que já descobri uma coisa da minha vida. Assim...ela mexeu numa teclazinha que eu não conseguia me envolver (...). Eu acho que ela conseguiu fazer com que eu enxergasse algumas coisas" (Júlia).
Essa é a necessidade de o homem se conhecer, de doar sentido à sua busca, é o desejo quase desesperado de acrescentar, junto à compreensão do que ocorre, a compreensão de si mesmo (Santos, 1985). Sentir-se provocado em relação à atitude do terapeuta leva à abertura que permite ao sujeito sair de si, colocar-se e confirmar-se no entre da relação e constituir-se como presença e como sujeito atuante. A relação com o profissional adquire uma significação marcante quando o caminhar junto passa a representar a construção de sentido dentro do incompreendido ou da ordem do indizível.
Cliente e terapeuta estabelecem uma relação de encontro, de abertura de possibilidades, de contato direto entre mundos. A fala é, portanto, dirigida a - ao ser tocado, o cliente se despe, diz de si, dá-se a conhecer, pois é somente nessa fala que o outro, a quem o terapeuta se dirige, se constitui como pessoa, e não simplesmente como um ente fictício cujo fato de viver se reduz a ser escutado. Assim, uma fala só será verdadeiramente fala se for dirigida a, o que possibilitará a descoberta do outro (Buber, 1982).
Foi assim que as pessoas entrevistadas transitaram pelas suas experiências e se reconheceram enquanto protagonistas do que construíram. Devolvidas a elas a autonomia e a possibilidade de modificar suas existências, respondem em suas singularidades e se revelam "pelo reflexo do rosto do outro" (Safra, 2004, p.43).
"Eu sentia um alívio. Eu me sentia segura de dizer uma coisa a uma pessoa que entendia, eu sabia que ela me entendia, embora mil coisas fossem relacionadas a problema, mas eu tinha certeza de que ela me entendia, então eu falava muito com ela, eu sentia muita segurança" (Solange).
"A terapia é um momento que...é a única hora da semana que eu olho para mim, para dentro de mim, para as coisas que mais me doem, para as coisas que mais me machucam e porque me machucam..." (Júlia).
Aquilo que dói, fala. É o apelo do ser (Heidegger, 2003) que solicita o chamado para a "verdade de mim mesmo" (Dubois, 2004, p.152). É esse dizer íntimo e privado que solicita, pela via do discurso, o testemunho de si e permite ao homem desdobrar-se. A aprendizagem aparece como um resgate do desejo de aprender a aprender e coloca o indivíduo em contato direto com sua história de vida. O encontro consigo mesmo se dá a partir do momento em que o sujeito permite abrir-se para o mundo e para os outros homens, disponibilizando-se para reconquistar sua experiência individual, o seu "modo singular de existência" (Gondar, 2003, p.14).
"Antes de falar, o homem terá que deixar-se apelar pelo Ser mesmo, com o risco de, sob tal apelo, ter pouco ou raramente algo a dizer. Somente assim se restituirá à palavra a preciosidade de sua Essência e, ao homem, a habitação para morar na Verdade do Ser (Heidegger, 2003, p.34).
Encontrar-se com a própria história de vida e enfrentar o sofrimento inerente à condição humana de ser e estar no mundo ao reconhecer os próprios erros e as próprias necessidades são passos no processo de transformação, é o início da metamorfose. Esses são pilares de sustentação ao se assumir a tarefa de ser si mesmo, destinando-se para fora, para a condição de lançado no mundo.
Esse encontro homem-linguagem permite que os fatos se apresentem em seu é à medida que se mostram, criando "o mundo segundo o homem e o homem para o mundo" (Amatuzzi, 1989, p.29). "Cria-se mundo" quando falar é decidir, quando a fala for o próprio pensamento em ato, quando brota da relação mesma uma fala genuína, destituída do instituído, uma fala aberta e disposta a abarcar toda a ebulição que germina no homem, trazendo-o para fora, despertando nele outras formas de compreensão ao cumprir a fala do sentimento e do pensamento que estão presentes.
Assim, pensamentos e sentimentos pedem passagem por alguma forma de expressão. Eles solicitam uma nomeação e ressoam no homem, chamando à palavra. Nomear é chamar a ser, deixar-se mostrar, tornar-se presente, provocar uma evocação daquilo que se encontra à distância para que entre em vigor o que antes se encontrava ausente. Esse chamado é a essência do falar (Heidegger, 2003).
"Eu tenho facilidade de falar (...) mas tem muita coisa que fica encoberto que você nem sabe, que você protege inconscientemente...e depois você vai cavando. Tem determinadas coisas que é difícil falar mesmo, que é difícil conviver com isso, mas esse é o caminho, você tem que falar" (Júlia).
"Estou adorando (a terapia) porque sinto mais liberdade para falar, que eu era muito receosa para falar, eu tinha muita vergonha, eu era muito tímida (...). E hoje em dia não (...). Estou mais calma, mais pé no chão, sabe, tenho dificuldades, mas vou em frente, quero batalhar para mim..." (Cristina).
Mergulhar num processo de auto-conhecimento implica re-visitar fatos e re-significar acontecimentos. Isso desencadeia uma relação autônoma de si para si mesmo. A linguagem é esse caminho, ela coloca o homem na travessia da busca de sentido, para a abertura de regiões de si que permite o surgimento de novas concepções de ser, novas organizações de mundo.
A clínica possibilita a revelação da existência, que abre o sujeito a um outro que o escute e o confirme no mundo a partir do seu desvelamento, da sua revelação. Clínica é, portanto, prática política quando permite ao sujeito abrir-se para novas possibilidades, numa atitude incessante de enfrentamento e mudança no modo de existir: "construir-se a si mesmo é reinventar-se a cada momento" (Eizirih, 1995, p.25).
"A terapia proporciona muito sofrimento, proporciona sim...porque mexe com as tristezas, com as neuras, e você mexer, reviver aquilo, embora saiba que (...) tem que ter contato com tudo...eu acho doloroso, quantas vezes não se chora. Com certeza a terapia me abriu para descobertas" (Júlia).
"Eu mesma faço minha terapia hoje em dia (...). Eu mesma saio conectando, (...), sempre estou buscando..." (Solange).
"Você cresce, você cresce fisicamente, você cresce moralmente, você cresce em tudo, em tudo, toda vez você se considerou um zero à esquerda, de repente começa a vencer...isso é muito bom, muito bom, crescer, opinar, poder dizer as coisas (...)" (Cristina).
A revelação da singularidade de cada sujeito transparece na clínica, ao afetar o sujeito, e proporciona o trânsito para as experiências desalojadoras e mobilizadoras de novos aconteceres humanos. A busca para compreender as modificações que o enfrentamento de si proporciona permeia aspectos da experiência e da aprendizagem que se apresentam como matérias-primas para o crescimento pessoal.
Falar de si mostra a força que existe dentro das pessoas e a potencialização para a mudança. O que fez a terapia ser bem sucedida foi a aprendizagem adquirida ao longo do processo, a construção de sentidos e as mudanças de perspectivas das situações-limite.
Assim, a aprendizagem se revela não como aquisição de informações ou conteúdos, mas tão somente como possibilidade de o aprendiz ser o verdadeiro sujeito de sua própria experiência, resgatando o desejo de aprender a aprender. Segundo Gendlin (1973), a aprendizagem significativa passa primeiro pelo processo de compreensão e conhecimento para chegar à atribuição de sentido a relações e situações experienciadas.
Entende-se que aprendizagem significativa seja uma ação compreensivamente articulada, que permite ao homem aberturas e mudanças a partir de experiências de encontro consigo mesmo, com o mundo e com outros homens. Uma compreensão assim permite que se aprenda com o que se viveu "podendo `trazer-se de volta' (atualizar o passado) para, lançando-se adiante (projetando-se ao futuro), transformar-se" (Morato, 1999, p.36). Isso significa que compreender algo na própria ação leva à compreensão de si e de seu modo de ser humano. Assim, aprendizagem significativa é criação de sentido, onde afeto e cognição estão articulados e ampliam o campo de aproximação entre pedagógico e psicológico. Segundo Rogers (1978, p.258), "É uma aprendizagem penetrante, que não se limita a um aumento de conhecimentos, mas que penetra profundamente todas as parcelas da sua existência", por isso provoca e redefine o viver.
Apreender os próprios problemas, assumi-los e discutir sobre eles contemplam a dimensão do aprendizado de ouvir a si mesmo, de permitir ser tocado pelo contato com a experiência e ser por ela atravessado, marcado, desconstruído. Trabalhar a vivência é permitir ser interpelado, acolhido e devolvido à realidade significativa para aí compreender o que foi vivido, sentido, refletido.
É o movimento de trânsito entre desalojamento e alojamento, que permite que, pela abertura, o estranho se torne familiar e o indizível se torne dizível, ao mesmo tempo em que arrisca outras tramas de sentido. Ao reconhecer sua história e ao (re)contá-la, o sujeito tem a possibilidade de elaborar e (re)tecer tudo o que foi vivido, refletindo acerca de outros rumos a seguir. Isso significa possibilidade de criação de sentido, o que inaugura, no momento da narrativa, outra experiência.
"Eu estou me sentindo bem, todo mundo está notando a diferença em casa, o pessoal, a minha família, meus irmãos, eu estou descobrindo que eu tenho como fazer e estou fazendo (..)" (Cristina).
Companheiro de jornada, o psicólogo se posiciona de forma a manejar a relação terapêutica com cuidado para que o mal-estar próprio de nosso tempo não inviabilize as condições para o emergir do sentido de si. Assim, ele cuida de "reconhecer o `outro' na sua alteridade irredutível a qualquer representação teórica, o `outro' resistente a qualquer assimilação ao `mesmo', refratário ao `idêntico' (...)" (Lévinas, apud Figueiredo, 2004, p.166).
Isso quer dizer que o homem entrou num processo de transformação ao longo de sua história, experienciando, ininterruptamente, sua recriação, conquistando a si mesmo e sua situação no mundo, adaptando-se às novas possibilidades de ser que foram sendo construídas enquanto modos de agir. O homem, portanto, transformou a História na verdade do seu acontecer humano, assumindo a existência segundo o modo da historicidade. O homem é como é, isto é, encontra-se sendo devido à facticidade de seu passado, e é ainda afetado, no tempo presente, por tudo o que veio adquirindo como modos de ser (Beaini, 1981).
Essa condição contemporânea coloca-o em meio a ambigüidades - entre ser próprio e ser impróprio. Segundo Heidegger (2002), quem eu sou responde a partir de um eu mesmo, do sujeito, do próprio. Quem é aquele que, independentemente das mudanças de atitude e vivências se mantém idêntico, embora continue a referir-se enquanto eu múltiplo. Por outro lado, é importante afirmar que o quem do ser-no-mundo cotidiano pode não ser sempre eu mesmo. Posso me assumir enquanto eu e enquanto não eu. E aí Heidegger questiona, de forma intrigante: "E se a constituição de ser sempre minha da pre-sença fosse uma razão para ela, na maior parte das vezes e antes de tudo, não ser ela própria?" (Heidegger, 2002, p.166). Em cada contexto, o homem pode se revelar como o seu "contrário". Compreendido nessa direção, o não eu não significa que, em sua essência, esteja desprovido de eu, mas, pelo contrário, indica um determinado modo de ser do próprio eu - a perda de si próprio.
Se quem pode adquirir essa característica ambígua, pode igualmente apresentar-se como um quem neutro, ou melhor, como a gente. Nesse sentido, o impessoal está por toda parte, ele retira a responsabilidade de cada pre-sença e assume tudo facilmente, respondendo por tudo, "já que não há ninguém que precise responsabilizar-se por alguma coisa. O impessoal sempre `foi' quem...e, no entanto, pode-se dizer que não foi `ninguém'" (Heidegger, 2002, p.180).
Ainda assim, segundo esse mesmo autor, o impessoal não é um nada, ele se revela como "o sujeito mais real" (ibidem, p.181) da cotidianidade, não decidindo em nada sobre o seu modo de ser. O próprio impessoal é o próprio da pre-sença cotidiana, o que significa dizer que seu sentido é diferente do si mesmo em sua propriedade. Ser impropriamente é o modo de ser cotidiano, que encontra o homem disperso na impessoalidade, sem uma direção, perdido de si mesmo.
Dessa forma, "`eu' não `sou' no sentido do propriamente si mesmo, e sim, os outros, nos moldes do impessoal" (Heidegger, 2002, p.182), isto é, a pre-sença é impessoal, permanecendo assim até que abra a si mesmo para descobrir o mundo, para descobrir a si própria, seu próprio ser para, então, eliminar tudo o que a obscurece e vela.
É isso que se busca na clínica, a abertura do sujeito para regiões de si, a permissão para adentrar em seu ser e resgatar uma fala geradora de novas possibilidades, uma fala-atitude, mobilizadora, investigativa, uma fala-peregrina, sempre à procura de compreender seu modo de ser e de se mostrar. Uma fala criadora e renovadora, uma fala própria, singular.
Porém, enquanto vive no modo impessoal, o homem alimenta uma dependência em relação aos outros, igualando-se a eles até o ponto de se perceber dominado. Isso significa que ele começa a produzir um discurso pronto, pasteurizado, sem conteúdo próprio, banal, e até mesmo isento de responsabilidade consigo mesmo. O outro dominador é, inclusive, um impessoal, é próprio do homem em sua existência inautêntica (Beaini, 1981).
Esse encontro com o outro abre portas de esconderijos, mostra máscaras de dissimulação, desvia o querer mais próprio e iguala o homem a "todo-o-mundo". O homem destituído de seu ser é o homem da linguagem inautêntica do cotidiano - "na qual, fruto de seu tempo, está perdido no palavreado e na opinião de `todo-o-mundo' e na linguagem científica - que, buscando dominar o ser, o dissipa, tornando-o nada" (ibidem, p.16).
A sociedade da aparência, da valorização, da forma e da beleza, a sociedade do consumismo, do medo, das doenças psicopatológicas, da fuga de responsabilidades, do desespero, da perdição, do impessoal, da alienação, colocou o homem num caminho onde não é possível reconhecer seu ser. Por essa razão, não resta outra alternativa senão distanciar-se de seu próprio ser e deserdá-lo.
Por essa razão, o discurso da contemporaneidade possui, em sua essência, um modo de ser especificamente mundano. O estar-no-mundo cotidiano traz o falatório como fenômeno ligado à pre-sença, abordando a mesma coisa numa mesma medianidade a partir de uma compreensão em comum (Heidegger, 2002). A questão aqui é falar, sem necessariamente haver preocupação com a veracidade de um ponto de referência, pois o que faz sentido é "repetir e passar adiante a fala" (ibidem, p.228).
É essa fala sem substância, reproduzida, que constitui um dos modos de ser do homem e nunca acrescenta verdadeiramente algo à condição existencial, mas, pelo contrário, alimenta uma compreensão mediana que não alcança a possibilidade de compreender a condição originária do que foi falado ou ouvido dizer. Assim, o impessoal se mostra pelo falatório, ao compreender tudo sem ao menos se apropriar da essência mesma. Por não se apropriar, não corre o risco de fracassar, não assume responsabilidades e elabora uma compreensibilidade indiferente, sem nada excluir, mas também sem nada autenticar (Heidegger, 2002).
O falatório encobre os entes intramundanos, pois apresenta-se como modo de ser que não mostra conscientemente algo como algo, ou seja, como não tem fundamento o seu discurso, por transformar a abertura em fechadura, o falatório é, por si mesmo, fechamento, por se abster de aprofundar-se e fixar-se no referencial. Mas esse é seu objetivo: "reprimir, postergar e retardar toda e qualquer questão e discussão" (ibidem, p.229).
Esse modo de ser já é próprio da pre-sença. Toda nova forma de compreensão e comunicação passa, primeiramente, pelo crivo do falatório, sendo a interpretação pública o juiz que sintoniza o modo como o mundo é tocado pela pre-sença, ou seja, o impessoal determina o quê e como se vê (Heidegger, 2002).
O falatório é, portanto, segundo Heidegger (2002), desenraizado, destituído de sentido e sem laços suficientemente fortes que o prendam entre aqueles que sintonizam e convivem no mundo. O falatório tira da pre-sença a condição de resgatar sua originalidade ontológica primordial com seu poder-ser próprio e com outros (co-pre-sença). Por se manter oscilante, a pre-sença confirma a disposição de não-ser desenraizado e constrói a "realidade" cotidiana.
Falatório é discurso impessoal e de ninguém, abre caminhos para o cego universal de si mesmo, para o senso comum, onde tudo se compreende e todos são compreendidos de qualquer forma e de qualquer jeito, sem a responsabilidade do dizer algo e do compreender. O discurso próprio e verdadeiro somente pode ser re-enraizado no "fazer silêncio", quando há uma apropriação de si enquanto relação própria de si para si e de si para o outro. Retirado o falatório, é permitida a compreensão genuína e restaurada a escuta e a fala em sua singularidade. O discurso singular "me chama para a verdade de mim mesmo" (Dubois, 2004, p.152).
É dessa forma que o homem deve testemunhar aquilo que é, anunciando e enunciando o sentido de si, numa abertura que dá acesso a muitas outras possibilidades de ser em função de si mesmo, para outros e com outros, buscando, na linguagem, a significância de abertura de si para o mundo, apropriando-se de seu espaço, sem perder de vista sua condição de ser e fazendo uso da fala como sua mais própria morada. Para que isso ocorra, é necessário fazer experiências, ou seja, encontrar caminhos possíveis para que seja permitido ao homem revelar-se.
De acordo com Beaini (1981), o homem não está condenado à banalidade, ao inautêntico ou ao impessoal. Ao assumir-se e escolher-se, ele mesmo busca os reais caminhos de seu ser, abre-se para as possibilidades e permite a emergência do sentido de si, constituindo-se ao sair de si. É essa a questão que torna a linguagem fundamento da revelação do ser. Ec-sistindo, o homem se aproxima do ser e o redimensiona. O mundo se transforma, nesse sentido, na clareira do ser que o convida a uma proximidade. Só assim é possível entrar em contato com a verdade de si mesmo que constitui a liberdade de deixar-se o ente, no ato humano, abrir-se ao ser.
"O sentido hoje da minha vida é só de crescer, crescer e viver bem e ser feliz" (Cristina).
"A terapia está me ajudando, mas eu não vou me envolver com a terapia demais, sabe, porque de repente acaba, e aí? Como eu vou resolver? (...) Não vou depender sempre da terapia" (Cristina).
"Eu não fui à terapia buscar cura (...) para os meus problemas. Eu fui buscar...é...me encontrar. Acho isso uma ilusão, eu acho que a gente aprende a lidar, a conviver com os traumas, com as coisas...para mim o efeito foi esse e eu não tenho nenhuma decepção de ter feito...e eu não volto por isso, porque eu consigo entender alguma coisa, consigo superar aquela angústia (...). O importante é viver o que está agora, o que vem à frente" (Solange).
Para modular a existência, a fala que define e redefine o viver e provoca mudanças no modo de existir é aquela que assume o processo de transição - fala falada para fala falante, ou seja, apropriada e assumida. Nesses termos, o objetivo da psicoterapia é caminhar para uma fala criadora de sentidos, buscando sua organização e estruturação, e, além disso, observando aonde o discurso do cliente o leva, como sua narrativa é estruturada. A compreensão da fala do indivíduo é a ponte para a investigação da sua situação no mundo, como fonte de encontro com o outro e consigo mesmo (Augras, 1986).
Nessa entrega de si para si, é possível reconhecer-se enquanto sujeito histórico munido de um olhar ético e disposto a enxergar valores próprios. Esse acontecimento é possibilitado quando, na clínica, se cuida para que o mal-estar do nosso tempo não inviabilize as condições fundamentais para o emergir do sentido de si. A linguagem acolhe esse indivíduo de forma a colocá-lo no trânsito da transformação por um novo modo de subjetivar-se, buscando novos modos de ser frente às inquietações inerentes à sociedade contemporânea, de forma que cheguem a provocar uma constante sensação de que algo está fora do lugar ou de foco.
"Investir em mudanças no campo subjetivo é combater práticas de assujeitamento que fecham ou esgotam o campo de possíveis, propiciando a criação de outros possíveis ou mesmo do próprio possível, quando o campo parece esgotado" (Gondar, 2003, p.14).
A clínica é o lugar de viver essa experiência com a linguagem, como um meio potencializador de luta contra a ordem do mundo para, então, ser possível criar, dentro desse mundo, "um modo singular de existência" (Gondar, 2003, p.14). O indivíduo precisa, de antemão, ser transparente para consigo mesmo, precisa dar-se por si mesmo, ao seu modo próprio. A psicoterapia facilita o processo na busca pela compreensão de si ao "tematizar" sentidos e permitir que o sujeito saia do enclausuramento - regido por leis da situação no mundo - colocando-o no trânsito da abertura para si mesmo, para o mundo, para os outros. É a conquista da própria liberdade, da libertação de si, o que proporciona reflexão sobre o sentido do que existe e ocorre, traz discernimento sobre o mundo da publicidade, da impessoalidade, e busca resgatar a sua singularidade.
Isso gera possibilidades de encontro com a própria história de vida e adquire a importância de re-significá-la. Por essa razão, é por demais válida a proposta de Benjamin (1994), quando afirma que narrar não é simplesmente falar, mas construir, desconstruir e reconstruir acontecimentos e afetos ligados à experiência do sujeito através da linguagem.
Esse é o sentido da fala criadora, transformadora e mobilizadora. Criação e transformação partem daí, do resgate da experiência, da busca pela compreensão de si mesmo. Esse é modo de enfrentamento diante de uma realidade fragmentada, destituída de sentido, geradora e transmissora de falas medianas, nas quais prevalece a univocidade da palavra e a destruição da possibilidade de novas significações (Benjamin, 1994).
Segundo Benjamin (1985, p.253), o "adulto alivia seu coração do medo e goza duplamente sua felicidade quando narra sua experiência". Assim, a narrativa pode se apresentar como clínica, abrindo-se para o sujeito tornar-se narrador ao atravessar o caminho entre o relato e a experiência. Esse acontecimento redimensiona o sentido clínico de linguagem por abarcar situações nas quais o episódio narrado é reconstruído à medida que é trazido à tona e assim, cria cada vez mais sentidos e alcança significados ímpares.
A importância da narrativa está em sua condição única: fazer conexões ao se contar histórias, abrir o homem e revelar sua experiência ao mundo. É essa a clínica da emergência do sentido, da fala viva e autêntica, comprometida com a experiência da criação/recriação, re-significação de outro caminhar. Até que ponto, afinal, a clínica está investindo nessa proposta, ou seja, contribuindo para que essa experiência se transforme em narrativa viva, que possibilita, ao sujeito, ouvir/dizer, elaborar/refletir acerca de suas experiências?
"O consultório, só de você chegar no prédio, saber que você vai entrar naquela sala, você já vai leve, é como se você fosse levada (...) É esse cuidado, de ser ouvida, você ser ouvida (...) Isso me ajuda a investir na terapia (...) O pessoal da sua família, vendo que você está com problemas, nunca chegou e perguntou: "venha aqui, vamos conversar". É só crítica, crítica, crítica...de repente chegar uma pessoa e...eu sei que é o trabalho dela, mas tem tantos que não dão certa atenção (...) Estou me sentindo realizada (...) Um dia eu posso chegar para ela e dizer: hoje é a nossa última sessão, porque eu estou me sentindo bem" (Cristina).
A narrativa desvela a dimensão existencial e os significados vivenciados pelo sujeito no seu estar-no-mundo. Desvela, inclusive, o campo perceptual do indivíduo para tudo o que lhe afeta a experiência no momento. À medida que narra, vai tecendo sentidos, construindo pontes e intercambiando experiências (Dutra, 2002). Esse movimento abriga a experiência do sujeito na clínica e possibilita-lhe o livre aparecer. O homem acaba, portanto, afetado, mobilizado e transformado, pois, ao permitir ser atravessado por essa experiência, entra em contato com o sentido de sua fala, na qual, no contexto do encontro com o outro em sua alteridade, lhe são mostrados reflexos do lugar que ocupa na contemporaneidade, sua condição de ser e estar no mundo.
O que Cristina pareceu adquirir em seu processo foi a convicção do que estava buscando: aprender a aprender a lidar, aprender a compreender, a ultrapassar, a transcender, a transitar... Escutar a si mesma mostrou-lhe que é possível enfrentar questões, reconhecer o peso da experiência, descobrir a própria fortaleza. Responsabilizar-se por si mesmo é um caminho possível que coloca o sujeito num processo de transição fala falada - fala falante, num movimento de abertura para desconstruções e reconstruções, num percurso onde é possível conhecer-se ou reconhecer-se, entregar-se a uma caminhada sem pausa e sem tempo para fixar-se. É apropriando-se de si mesmo que é possível encontrar meios que facilitem o acontecer humano.
O modo como as entrevistadas relataram suas experiências dá uma idéia de intensidade muito aquém do que é possível apreender por suas palavras. Suas experiências são narradas como se estivessem sendo vividas naquele momento, com toda a riqueza de detalhes, com todas as percepções envolvidas.
"Todo mundo está vendo que eu estou tendo a minha opinião também. Quando eu não ligo, alguém liga para mim, entendeu? Ligam para saber por que eu não liguei...hoje eu vejo todos eles e eles me vêem. Só sei que eu estou bem demais, enquanto eu não conseguir o que eu quero, eu vou ficar em terapia" (Cristina).
É fundamental, para o cliente, uma avaliação madura e concreta de suas ações que alcance o sentido da própria fala e revele a disponibilidade em abrir-se para si mesmo. Arriscar-se diante desse encontro pode ser a direção apontada na emergência do seu movimento, nas aberturas e fechaduras de sua experiência, na sua própria forma de aprender a aprender sobre si mesmo. Esse movimento gera novas possibilidades, novas organizações de mundo, voltadas para o homem em sua abertura para caminhos outros, para o encontro com ele mesmo, por isso é importante viver essa experiência, pois, rumo ao acontecer humano, a narrativa se apresenta como um caminho possível e coloca o sujeito numa atitude incessante de enfrentamento e de mudanças no modo de existir. Amatuzzi (1989, p.37) diz que o objetivo da psicoterapia é "restituir a função da palavra, ou seja, é caminhar de falas secundárias para falas originais", sendo nessa perspectiva que o sujeito vai reestruturando seu modo de ser, posicionando-se diante da vida. A fala original caracteriza-se pelo sentido que a pessoa dá a ela mesma e ao que fala; é quando coloca o pensamento em ação e quando seu falar designa o próprio sentimento. Já o falar secundário se volta para um discurso pronto, de antemão recheado de pré-conceitos e da ignorância dos próprios sentimentos e pensamentos.
Conceber a fala simplesmente como transmissão de sons que permite a comunicabilidade entre as pessoas é limitar o seu conceito a termos abstratos e técnicos, além de não dar conta da situação psicoterápica, onde a fala estabelece um encontro, um estar-junto-com-outrem. A fala é especificamente humana, proveniente de um sujeito que carrega consigo dimensões históricas, espaciais e temporais, fruto de experiências e significações em sua vida.
A relação terapêutica é a arte do encontro: "É na relação que se encontra o ser. É na relação vivida, e não na relação pensada" (Amatuzzi, 1989, p.42). A capacidade de afetar própria desse encontro mobiliza o centro de ambas as partes, mas é pela atitude de escuta aberta do terapeuta que, por si só, se facilita o caminho para fazer emergir expressões e sensações cada vez mais assumidas no cliente: "É me sentindo ouvido que eu falo, é me sentindo recebido que eu venho a me dar" (ibidem, p.62).
Esse movimento é fundamental, principalmente quando se observa que o indivíduo que se apresenta à clínica se encontra desenraizado de si mesmo, coisificado e reduzido, pela tecnologia, a um ser que pensa e produz, o que limita suas possibilidades e aumenta seu sofrimento. Tudo isso se dá devido à atrofia da experiência em decorrência dos modos de vida contemporâneos. A informação hoje é, por excelência, o critério-norte para transmissão do saber e é avessa à narrativa, devido ao seu caráter de imediatismo e plausibilidade. Não se concebe mais o saber como advindo da experiência direta, do contato com o desconhecido, o que suscita reflexão. O homem contemporâneo automatizou sua forma de viver e perdeu o sentimento de pertença coletiva.
O sofrimento desse homem na contemporaneidade demonstra a necessidade de ser ouvido. Reinvestindo em si mesmo, o indivíduo opera mudanças em sua vida e em seu modo de sofrimento e abre-se às possibilidades e aos caminhos a que a linguagem se propõe a levá-lo: linguagem enquanto fala em processo de desdobramento, de narrativa viva, aquela que possibilita ao homem transformar-se e ser atravessado por ela.
A clínica coloca o homem nesse processo de transição para outros espaços, para novas ancoragens, para outras direções. A experiência é a mola-mestra desse processo. É ela que vai dizer para onde o sujeito deve seguir. Os sentidos apontados no seu dizer, em sua fala, em sua narrativa, as expressões, sentimentos e angústias vão levá-lo, ou conduzi-lo, a conhecer e a se deparar com outros modos de ser, de viver, de refletir, de construir conhecimento. É sua experiência que vai autenticar a sua peregrinação, o seu investimento, o seu desdobramento, a sua disponibilidade de abertura e de reconhecimento do que lhe é singular e plural. As entrevistas cumpriram o seu papel de refletir a teoria e acrescentar à experiência vivida significados muito distantes da possibilidade de serem traduzidas ou nomeadas pela própria linguagem. As experiências das entrevistadas transcendiam para além daquele momento; as histórias presentificadas ressurgiam com toda a intensidade com que foram vivenciadas e emergiam com sentimentos primeiros, emoções em processo de re-significação, histórias (re)contadas como se estivessem sendo vividas pela primeira vez.
A narrativa se soma à pesquisa de orientação fenomenológica e existencial, acrescenta e enriquece a compreensão da condição humana, mostra meios que partem da própria experiência e aponta direções possíveis de outros modos de ver o homem, de ver a clínica, de ver o mundo. Narrar é fala viva, é fala em processo, é abertura, é disponibilidade, é afetação, criação, presença, ausência, complementação, falta, é claro, é escuro, velamento, desvelamento, posicionamento, descentramento, permissão, limites, estagnação, andamento, incompletude, ambigüidade, é poder-ser, enquanto pura possibilidade.
O fechamento deste trabalho é abertura para outras pesquisas, é receptividade para o novo, para o estranho, para o desconhecido, é um movimento que se dispõe a continuar buscando atingir novos objetivos. Assim, é importante levar em consideração o sentido da linguagem para cada um de nós, o que ela representa, para onde ela nos leva, que direção ela nos aponta, que desdobramentos são possíveis quando nos permitimos vivê-la, tê-la como nossa própria morada, como nossa mais genuína forma de expressão e revel-ação.
Se "a fala torna possível o mundo" (Augras, 1986, p.80), ela nos abre reflexões acerca de nossa situação no mundo, enuncia o sentido do encontro com o outro e restitui o recolhimento do indivíduo para o problema de sua existência, de seus dilemas e horizontes desejantes. Para que o homem se aproprie de sua própria humanidade, é imprescindível que ele se reconheça enquanto produtor e criador de sua própria peregrinação, amplamente responsável por si mesmo ao construir campos de forças de possibilidades de sentido, na emergência mesma do horizonte humano, sendo constantemente marcado por suas experiências.
Recebido 16/08/06
Reformulado 14/11/06
Aprovado 26/01/07
- AMATUZZI, M. M. O Resgate da Fala Autêntica - Filosofia da Psicoterapia e da Educação Campinas, SP: Papirus, 1989.
- ______. Pesquisa Fenomenológica em Psicologia. In: Bruns, M. A. T. & Holanda, A. F. (org.) Psicologia e Pesquisa Fenomenológica: Reflexões e Perspectivas 2ª ed. São Paulo: Omega Editora, 2005.
- AUGRAS, M. O Ser da Compreensão - Fenomenologia da Situação de Psicodiagnóstico Petrópolis, RJ: Vozes, 1986.
- BARUS-MICHEL, J. Sofrimento, Trajetos, Recursos, Dimensões Psicossociais do Sofrimento Humano. In: Bulletin de Psychologie, vol.54 (2), nº 452, março-abril de 2001.
- BEAINI, T. C. À Escuta do Silêncio: um Estudo sobre a Linguagem no Pensamento de Heidegger . São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1981.
- BENJAMIN, W. Obras Escolhidas Magia e Técnica, Arte e Política. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
- ______. Obras Escolhidas Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, vol.1, 1985.
- BRUNS, M. A. T. & TRINDADE, E. Metodologia Fenomenológica: a Contribuição da Ontologia-Hermenêutica de Martin Heidegger. In: Bruns, M. A. T. & Holanda, A. F. (org.) Psicologia e Pesquisa Fenomenológica: Reflexões e Perspectivas 2ª ed. São Paulo: Omega Editora, 2005.
- BUBER, M. Do Diálogo e do Dialógico Trad, Marta Ekstein de Souza Queiroz e Regina Weinberg. São Paulo: Perspectiva, 1982.
- DUBOIS, C. Heidegger: Introdução a uma Leitura Trad. Bernardo Barros Coelho de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
- DUTRA, E. A Narrativa como uma Técnica de Pesquisa Fenomenológica. In: Estudos de Psicologia, Natal, UFRN, nº 2, vol.7, 2002.
- ECO, U. Interpretação e Superinterpretação São Paulo: Martins Fontes, 1993.
- EIZIRICH, M. F. Paradigmas da Subjetividade Contemporânea. In: Educação, Subjetividade e Poder. Porto Alegre, nº 2, vol. 2, pp. 22-25, abril/1995.
- FIGUEIREDO, L. C. Escutar, Recordar, Dizer - Encontros Heideggerianos com a Clínica Psicanalítica. São Paulo: EDUC: Escuta, 1994.
- ______. Revisitando as Psicologias - da Epistemologia à Ética das Práticas e Discursos Psicológicos 3ª ed. ver. e ampl. - Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
- ______. A Invenção do Psicológico - Quatro Séculos de Subjetivação (1500-1900). 6ª ed. São Paulo: Escuta, 2002.
- GENDLIN, E. T. Experiential Psychotherapy. In: Corsini, R. (org.) Current Psychotherapies Itasca, Illinois: Peacock, 1973.
- GONDAR, J. Clínica, Desejo e Política. In: Martins, A. et. al. Cadernos do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos A Clínica como Prática Política, ano 3, nº 3, out. 2003.
- HEIDEGGER, M. Ser e Tempo 12ª ed., vol. 1. Petrópolis: Vozes, 2002.
- ______. A Caminho da Linguagem Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003.
- MELLO, L. I. & COSTA, L. C. A. História Moderna e Contemporânea São Paulo: Scipione, 1999.
- MORATO, H. T. P. (org.) Aconselhamento Psicológico Centrado na Pessoa: Novos Desafios São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.
- NAJMANOVICH, D. Novos Sofrimentos Psíquicos? In: Cadernos de Subjetividade, nº 4, vol. 1-2, São Paulo/SP-PUC, 1996.
- PALMER, R. Hermenêutica Lisboa: Edições 70, 1999.
- ROGERS, C. R. Sobre o Poder Pessoal São Paulo: Martins Fontes, 1978.
- ROLNIK, S. Subjetividade, Ética e Cultura nas Práticas Clínicas Palestra proferida na mesa-redonda "Psicologia: ética e cultura", no I Congresso Mineiro de Psicologia Universo-Diverso, CRP 4ª Região. Belo Horizonte, 1995.
- SAFRA, G. A Pó-Ética na Clínica Contemporânea Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2004.
- SANTOS, B. Um Discurso sobre as Ciências Porto: Afrontamento, 1985.
- SCHMIDT, M. L. Estilos narrativos e pertença social: análise de histórias de vida Capturado em 07/1/2004. Online. Disponível na Internet http://www.imaginario.com.br/artigo/a0001_10030/a0001-01.shtml
- SOUZA, S. R. L. A Experiência de Adolescentes Abandonados e Institucionalizados frente ao Desligamento Institucional. Dissertação de Mestrado em Psicologia. Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2001.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Ago 2012 -
Data do Fascículo
Set 2007
Histórico
-
Aceito
26 Jan 2007 -
Revisado
14 Nov 2006 -
Recebido
16 Ago 2006