Resumo
Atualmente verifica-se uma alteração no perfil de morbimortalidade brasileiro. Diminuem as mortes por doenças infectocontagiosas e aumentam as mortes por doenças crônico-degenerativas, como o câncer. O diagnóstico de câncer representa a possibilidade de morte, que para alguns configura-se como realidade, não sendo raro que pacientes oncológicos estejam sob Cuidados Paliativos (CP). CP são uma abordagem que busca melhorar a qualidade de vida de pacientes e famílias que enfrentam uma doença ameaçadora da vida. Adoecimento e tratamento oncológico trazem intensa mudança no corpo e vida do paciente. Considerando que tais modificações podem ser causa de sofrimento, este estudo investiga efeitos psicológicos das modificações corporais decorrentes do adoecimento oncológico em pacientes sob CP. Trata-se de uma pesquisa exploratória de caráter qualitativo. Foram entrevistados quatro pacientes com diagnóstico de câncer internados numa enfermaria de CP. As entrevistas foram gravadas e transcritas, a análise dos dados baseou-se na análise do discurso. O discurso dos sujeitos evidencia que as mudanças corporais são potenciais geradoras de sofrimento, configurando-se também como disparadores para o tema da finitude. O estigma negativo ligado ao câncer também aparece, sendo que os CP recebidos contribuíram para o resgate da subjetividade dos entrevistados. Assim, este estudo sugere que a vivência do câncer no corpo repercute numa perda para além da física, numa perda de si. Sendo que, a incorporação das modificações corporais possibilita a reconstrução da visão que o paciente tem de si e este processo é facilitado pelo encontro intersubjetivo do paciente com os profissionais que cuidam singularmente dele.
Cuidados Paliativos; Psicologia; Neoplasias; Imagem Corporal
Abstract
In recent decades, Brazil has been changing its morbidity and mortality profile. In this transition, mortality from infectious diseases declined followed by an increase of deaths due to chronic-degenerative diseases, such as cancer. The diagnosis of cancer represents the possibility of death, which for some people really occurs, and it is not uncommon for cancer patients to be under Palliative Care. PC is an approach that seeks to improve the quality of life of patients and families facing a life-threatening illness. Sickness and oncological treatment bring intense change in the body and life of patients. Considering that such modifications may cause suffering, this study aims to investigate the psychological effects of the corporal modifications resulting from the oncologic illness in patients under PC. In this exploratory qualitative research, four patients diagnosed with cancer hospitalized in a PC ward of a public hospital in São Paulo were interviewed. The interviews were recorded and transcribed; data analysis was based on discourse analysis. Subjects’ discourse shows that the corporal changes are potential generators of suffering, also configuring as triggers for the theme of finitude. The negative stigma associated with cancer also appears in the participants’ discourse, and the care received contributed to the recovery of the subjectivity of the patients. Thus, this study suggests that the experience of cancer in the body extends beyond the physical body loss, to a loss of the self. Moreover, the incorporation of corporal modifications allows the reconstruction of the patient’s view of himself and this process is facilitated by the intersubjective encounter of the patient with the professionals who care for him singularly.
Palliative Care; Psychology; Neoplasms; Body Image
Resumen
Actualmente se verifica una alteración en el perfil de morbimortalidad brasileño. Disminuir las muertes por enfermedades infectocontagiosas y aumentar las muertes por enfermedades crónico-degenerativas, como el cáncer. El diagnóstico de cáncer representa la posibilidad de muerte, que para algunos se configura como realidad y, no siendo raro que los pacientes oncológicos estén bajo Cuidados Paliativos (CP). CP son un enfoque que busca mejorar la calidad de vida de pacientes y familias que enfrentan una enfermedad amenazadora de la vida. La enfermedad y el tratamiento oncológico traen un intenso cambio en el cuerpo y la vida del paciente. Considerando que tales modificaciones pueden ser causa de sufrimiento, este estudio investiga efectos psicológicos de las modificaciones corporales derivadas del enfermo oncológico en pacientes bajo CP. Se trata de una investigación exploratoria de carácter cualitativo. Se entrevistó a cuatro pacientes con diagnóstico de cáncer internados en una enfermería de CP. Las entrevistas fueron grabadas y transcritas, el análisis de los datos se basó en el análisis del discurso. El discurso de los sujetos evidencia que los cambios corporales son potenciales generadores de sufrimiento, configurándose también como disparadores para el tema de la finitud. El estigma negativo ligado al cáncer también aparece, siendo que los CP recibidos contribuyeron al rescate de la subjetividad de los entrevistados. Así, este estudio sugiere que la vivencia del cáncer en el cuerpo repercute en una pérdida más allá de la física, en una pérdida de sí. Siendo que la incorporación de las modificaciones corporales posibilita la reconstrucción de la visión que el paciente tiene de sí y este proceso es facilitado por el encuentro intersubjetivo del paciente con los profesionales que cuidan singularmente de él.
Cuidados Paliativos; Psicología; Neoplasias; Imagen Corporal
Diante do envelhecimento populacional e da modificação dos hábitos de vida as estatísticas de mortes por doenças infectocontagiosas têm diminuído, ao passo que as mortes por doenças crônico-degenerativas, como o câncer, são crescentes e trazem uma importante alteração ao perfil de morbimortalidade brasileiro. A estimativa para o biênio 2016–2017 aponta a ocorrência de aproximadamente 600 mil casos novos de câncer no Brasil (Brasil, 2016Brasil. (2016). Ministério da Saúde. Estimativa 2016: Incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva.).
Devido ao avanço tecnológico e a relevância epidemiológica dada ao câncer, a produção de conhecimento acerca deste tema tem se tornado progressivamente maior e mais complexa, fazendo com que a possibilidade de falência terapêutica seja cada vez menos aceitável pelas equipes de saúde especializadas em tratamento oncológico. Muitas vezes, a sociedade espera do médico a cura e ele, por sua vez, pela formação também focada na cura, vê-se na obrigação de atender a esta demanda (Corrêa, 2013Corrêa, J. A. (2013). Em busca de uma ética em face da morte e do morrer. In: M. D. Moura (Org.), Oncologia: Clínica de limites terapêuticos? (pp. 29-62). Belo Horizonte, MG: Artesã.).
Nesse contexto de assistência, verifica-se a massiva utilização de métodos invasivos, nem sempre apropriados e que podem gerar o sofrimento do sujeito e de sua família (Matsumoto, 2012Matsumoto, D. Y. (2012). Cuidados paliativos: Conceitos, fundamentos e princípios. In: R. T. Carvalho & H. A. Parsons (Org.), Manual de cuidados paliativos ANCP (pp. 23-30, 2a ed. ampl. e atual.). Porto Alegre, RS: Sulina.). Este cenário assistencial nomeado por Kovács (2008)Kovács, M. J. (2008). Morte no contexto dos cuidados paliativos. In: R. A. Oliveira (Coord.), Cuidado paliativo (pp. 547-558). São Paulo, SP: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. de “investimento na vida a qualquer preço” faz-se palco para o estabelecimento de uma modalidade de assistência denominada Cuidados Paliativos, definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como:
Os cuidados paliativos são uma abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes (adultos e crianças) e suas famílias que enfrentam problemas associados a doenças potencialmente fatais. Previne e alivia o sofrimento através da identificação precoce, avaliação correta e tratamento da dor e outros problemas, sejam eles físicos, psicossociais ou espirituais (World Health Organization, 2017World Health Organization – WHO. (2017). 10 facts on palliative care. Geneva: WHO. [tradução nossa]).
A OMS também enfatiza ser fundamental a realização de um trabalho na modalidade multiprofissional (Matsumoto, 2012Matsumoto, D. Y. (2012). Cuidados paliativos: Conceitos, fundamentos e princípios. In: R. T. Carvalho & H. A. Parsons (Org.), Manual de cuidados paliativos ANCP (pp. 23-30, 2a ed. ampl. e atual.). Porto Alegre, RS: Sulina.; Maciel, 2008Maciel, M. G. S. (2008). Definições e princípios. In: R. A. Oliveira (Coord.), Cuidado paliativo (pp.15-33). São Paulo, SP: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.). Quanto à contribuição da Psicologia, entende-se que o trabalho do psicólogo é articulado a partir de um referencial teórico, bem como, mediante formação básica em Cuidados Paliativos, que permita ao profissional trabalhar na assistência ao paciente, à sua família e em equipe multidisciplinar (Franco, 2008Franco, M. H. P. (2008). Psicologia. In: R. A. Oliveira (Coord.), Cuidado paliativo (pp. 74-76). São Paulo, SP: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.; Nunes 2012Nunes, L. V. (2012). O papel do psicólogo na equipe. In: R. T. Carvalho, H. A. Parsons (Org.), Manual de cuidados paliativos ANCP (pp. 337-341, 2a ed. ampl. e atual.). Porto Alegre, RS: Sulina.).
Os pacientes hospitalizados, em especial os que vivenciam um adoecimento ameaçador da vida, como é o caso do câncer, convivem com perdas diárias: a perda da saúde, do corpo perfeito, de papéis sociais, e em certa medida a “perda de si”. E são estas experiências de perda que propiciam a vivência do luto antecipatório, o luto que compreende ao momento anterior à morte (Fonseca, 2004Fonseca, J. P. (2004). Luto antecipatório. Campinas, SP: Livro Pleno.). Entrar em contato com a dor que perdas desta ordem causam e, dar algum sentido a elas, têm um caráter preventivo, o que torna importante o trabalho voltado para o luto antecipatório nas instituições hospitalares e nos programas de Cuidados Paliativos (Kovács, 2008Kovács, M. J. (2008). Morte no contexto dos cuidados paliativos. In: R. A. Oliveira (Coord.), Cuidado paliativo (pp. 547-558). São Paulo, SP: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.).
Considerando as especificidades impostas pelo diagnóstico do câncer, a literatura nacional sobre o tema aponta que somente o fato de ser informado sobre o adoecimento ocasiona o contato com a possibilidade de finitude (Viera, & Queiroz, 2006Viera, C. P., Queiroz, M. S. (2006). Representações sociais sobre o câncer feminino: Vivência e atuação profissional. Psicologia & Sociedade, 18(1), 63-70. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822006000100009
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; Silva et al., 2010Silva, S. E. D., Vasconcelos, E. V., Santana, M. E., Rodrigues, I. L. A, Leite, T. V., et al. (2010). Representações sociais de mulheres mastectomizadas e suas implicações para o autocuidado. Revista Brasileira de Enfermagem, 63(5): 727-34. https://doi.org/10.1590/S0034-71672010000500006
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; Menezes, Schulz, & Peres, 2012Menezes, N. N. T., Schulz, V. L., Peres, R. S. (2012). Impacto psicológico do diagnóstico do câncer de mama: Um estudo a partir dos relatos de pacientes em um grupo de apoio. Estudos de Psicologia, 17(2): 233-240. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2012000200006
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), ruptura do corpo saudável, sensação de impotência etc. (Almeida, Guerra, & Filgueiras, 2012). Neste sentido, Barbosa e Francisco (2006) salientam a força do estigma do câncer e, na avaliação dos autores, este fato pode ser fonte de ansiedade para o paciente. Ademais, pontuam sobre a relevância de olhar e escutar ao invés de apenas ver e ouvir esses sujeitos.
Silva (2005)Silva, L. C. (2005). Vozes que contam a experiência de viver com câncer. Psicologia Hospitalar, 3(1): 1-17. demonstra em seu estudo haver, em cada paciente, um processo de transformação inerente ao adoecimento oncológico, que muitas vezes, é circunscrito através de algum nível de sofrimento. Além do sofrimento ligado ao fato de ser “portador” do diagnóstico de uma doença grave, há também um sofrimento relacionado às modificações corporais acarretadas pelo câncer, que incidem significativamente no psiquismo dos pacientes oncológicos (Castro-Arantes, & Lo Bianco, 2013).
O processo de descoberta da doença pode ter início antes do diagnóstico propriamente dito, geralmente ocorre quando o sujeito percebe algo modificar-se em seu corpo (Salci & Marcon, 2009Salci, M. A., Marcon, S. S. (2009). Itinerário percorrido pelas mulheres na descoberta do câncer. Escola Anna Nery Revista Enfermagem, 13(3): 558-566.). Os relatos de caso apresentados por Castro-Arantes e Lo Bianco (2013)Castro-Arantes, J. M., & Lo Bianco, A. C. (2013). Corpo e finitude: A escuta do sofrimento como instrumento de trabalho em instituição oncológica. Ciência & Saúde Coletiva, 18(9), 2515-2522. https://doi.org/10.1590/S1413-81232013000900005
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demonstraram que, de alguma forma, o corpo, ou a perda de suas funções, promove a aproximação com a finitude e com a fragilidade humana.
Apesar de existirem recursos de enfrentamento e estratégias de manejo comuns à maioria dos indivíduos, a experiência de estar com um câncer é sempre única. A maneira como o sujeito lida com a situação vai além do fato concreto de estar doente. Trata-se de uma experiência permeada por componentes psíquicos e subjetivos (Moretto, 2013Moretto, M. L. T. (2013). Entre o luto e a luta: sobre a noção de sofrimento psíquico do paciente com câncer e o trabalho do psicanalista em situações limite na instituição hospitalar. In: M. D. Moura (Org.), Oncologia: Clínica de limites terapêuticos? Psicanálise & medicina (pp. 352-365). Belo Horizonte, MG: Artesã.). Estar com câncer é reconhecer que a imortalidade é irreal e que a morte está mais perto do que imaginava ou desejava o sujeito. É “entrar em contato com a finitude, no Real do corpo” (Moretto, 2013Moretto, M. L. T. (2013). Entre o luto e a luta: sobre a noção de sofrimento psíquico do paciente com câncer e o trabalho do psicanalista em situações limite na instituição hospitalar. In: M. D. Moura (Org.), Oncologia: Clínica de limites terapêuticos? Psicanálise & medicina (pp. 352-365). Belo Horizonte, MG: Artesã., p. 360).
O referido contato pode causar um nível de desorganização psíquica tão intenso que se faz pertinente retomar a forma como este sujeito se relaciona com seu corpo desde o início de sua existência. Com base na perspectiva psicanalítica, Fernandes (2006)Fernandes, M. H. (2006). Entre a alteridade e a ausência: O corpo em Freud e sua função na escuta do analista. In: E. M. U. Cintra (Org.), O corpo, o eu e o outro em psicanálise: Ciclo de palestras na Clínica Dimensão (pp. 29-54). Goiânia, GO: Dimensão. sinaliza que o bebê humano, devido à sua prematuridade, necessita de cuidado de um outro. É na relação com o outro – mãe ou figura que assume esta função – através dos sons, toques, odores, paladar e, por último as imagens, que o bebê percebe o mundo. Através da interação entre o bebê e a mãe que nomeia para ele as partes, as funções e as sensações do corpo que, nos termos de Fernandes (2006)Fernandes, M. H. (2006). Entre a alteridade e a ausência: O corpo em Freud e sua função na escuta do analista. In: E. M. U. Cintra (Org.), O corpo, o eu e o outro em psicanálise: Ciclo de palestras na Clínica Dimensão (pp. 29-54). Goiânia, GO: Dimensão., o “corpo de sensações” torna-se um “corpo falado”. E a partir do investimento afetivo contido na relação com a figura materna, que o sujeito é capaz de conceber seu corpo como um “espaço unificado” (Fernandes, 2006Fernandes, M. H. (2006). Entre a alteridade e a ausência: O corpo em Freud e sua função na escuta do analista. In: E. M. U. Cintra (Org.), O corpo, o eu e o outro em psicanálise: Ciclo de palestras na Clínica Dimensão (pp. 29-54). Goiânia, GO: Dimensão.).
Dessa maneira, o diagnóstico de uma doença ameaçadora da vida possivelmente altera a concepção de eu e de corpo como “espaço unificado” que o sujeito construiu ao longo de sua história de vida, ou seja, o corpo que o caracterizava como ser único no mundo já não é o mesmo. Para que o sujeito reconstrua sua noção de corpo como “espaço unificado” é necessário um investimento ou reinvestimento nesse corpo, nesse caso, o psicólogo “à semelhança da alteridade materna, pode investir o corpo do paciente, acolhendo e nomeando as sensações desse corpo, transformando-o assim em um corpo falado” (Fernandes, 2006Fernandes, M. H. (2006). Entre a alteridade e a ausência: O corpo em Freud e sua função na escuta do analista. In: E. M. U. Cintra (Org.), O corpo, o eu e o outro em psicanálise: Ciclo de palestras na Clínica Dimensão (pp. 29-54). Goiânia, GO: Dimensão., p. 54).
O câncer incide sobre o corpo fazendo-o perder funcionalidade, cor, beleza, modifica seus padrões e exige que o paciente se adapte a uma nova realidade que ameaça a integridade da vida. Da mesma maneira que o diagnóstico de câncer, a indicação de Cuidados Paliativos representa um forte estigma. Se o diagnóstico remete a possibilidade de morte, os Cuidados Paliativos a concretizam e ela se torna temporalmente mais próxima do sujeito.
Tendo em vista a incidência marcante do câncer no Brasil e considerando que as modificações corporais ocasionadas pelo adoecimento podem ser causa de sofrimento, torna-se fundamental estar atento a este fato. A partir de sua escuta qualificada o psicólogo permite que os sujeitos possam dizer e ressignificar seus sentimentos em face da morte, reflexões que se tornam inevitáveis quando a proximidade do falecimento está demarcada em seu corpo. Estudos que abordem os efeitos psicológicos das mudanças corporais causados pelo câncer são necessários na medida em que permitem a aproximação, por parte da equipe de saúde, à vivência desses sujeitos, tornando-se instrumento de trabalho para atuação da Psicologia em Cuidados Paliativos, campo ainda incipiente.
Neste sentido, este estudo objetiva investigar os efeitos psicológicos das modificações corporais decorrentes do adoecimento e tratamento oncológico em pacientes que estão sob Cuidados Paliativos. Tendo como objetivos específicos: investigar a história de vida e de adoecimento do paciente; identificar as mudanças corporais percebidas pelo paciente a partir do adoecimento e tratamento oncológico; identificar sentimentos apresentados pelos pacientes quanto às modificações corporais verificadas; investigar a avaliação do paciente em relação à contribuição dos Cuidados Paliativos em sua história de vida e adoecimento.
Método
Desenho do estudo
Pesquisa exploratória, de caráter qualitativo.
Sujeitos
Com base no critério de amostragem por saturação em pesquisa qualitativa em saúde (Fontanella, Rica, & Turato, 2008Fontanella, B. J. B., Ricas J., Turato E. R. (2008). Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Caderno de Saúde Pública, 24(1), 17-27. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2008000100003
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) a amostra deste estudo é composta por quatro pacientes que entre maio e agosto de 2016 estiveram internados numa enfermaria de Cuidados Paliativos em um hospital público de São Paulo.
Critérios de Inclusão: ter sido informado sobre o diagnóstico de câncer; apresentar cognição e comunicação preservadas; ter idade maior que 18 anos; estar com sintomas controlados no momento da entrevista1 1 A entrevistadora esteve atenta à manifestação explícita de sintomas como dor, fadiga e dispneia, que, segundo Coradazzi e Oliveira (2011), são frequentes em pacientes oncológicos e estando exacerbados inviabilizariam o seguimento da entrevista. ; Critérios de Exclusão: pacientes em acompanhamento psicológico com a entrevistadora; pacientes previamente diagnosticados com transtornos psiquiátricos.
Procedimentos de coleta
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Autorização da participação do paciente através do preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e aplicação de um questionário com questões sociodemográficas previamente definidas.
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Entrevista com duração média de 40 minutos, norteada por um roteiro de entrevista psicológica semiestruturada (Minayo, 2014Minayo, M. C. S. (2014). O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde. (14a ed.). São Paulo, SP: Hucitec.) com questões abrangendo os temas: história de vida, história de adoecimento; mudanças corporais percebidas; percepção dos Cuidados Paliativos.
Algumas entrevistas ocorreram em mais de uma sessão, devido às condições clínicas e disponibilidade de cada participante. O áudio das entrevistas foi gravado e transcrito, na íntegra, para posterior análise de dados.
Procedimento de análise
O conteúdo das entrevistas, depois de transcrito, foi submetido a uma análise de discurso conforme as indicações estabelecidas por Gill (2002)Gill, R. (2002). Análise do discurso. In: M. W. Bauer, G. Gaskell (Ed.). Pesquisa qualitativa com texto imagem e som: Um manual prático (pp. 244-269). (P. A. Guareschi, Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.. Um dos preceitos da análise do discurso é compreender a forma como o sujeito constrói seu discurso e, para tanto, é necessário que o pesquisador mantenha seu sistema de crenças em suspenso, pois não se trata de apreender a verdade real ou esperada, mas sim a verdade do sujeito que fala, buscando a compreensão da maneira como o sujeito elabora seu discurso e que faz dele singular diante dos demais indivíduos (Gill, 2002Gill, R. (2002). Análise do discurso. In: M. W. Bauer, G. Gaskell (Ed.). Pesquisa qualitativa com texto imagem e som: Um manual prático (pp. 244-269). (P. A. Guareschi, Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.). Dessa forma, as categorias de análise emergiram do discurso dos sujeitos. Para preservar a singularidade de cada participante elas serão apresentadas de forma individualizada.
Aspectos éticos
Em respeito a Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996, o projeto de pesquisa foi submetido a análise ao Comitê de Ética do Hospital Público em questão e aprovado através do parecer de número: 1.528.115.
Resultados e discussão
Na análise dos dados demográficos (Tabela) as maiores divergências são em relação à escolaridade, ao tempo de diagnóstico e ao tempo em Cuidados Paliativos. Na análise do conteúdo das entrevistas, será apresentado um breve relato de história de vida do participante e na sequência as seguintes categorias de análise:
Saber-se doente através dos sinais do corpo: os relatos contidos nesta categoria dizem respeito ao processo de descoberta do câncer e sobre como cada sujeito, à sua maneira, constrói a sua forma de se relacionar com a doença.
Sentir o câncer modificar o corpo: o conteúdo desta categoria está ligado aos sentimentos relacionados às mudanças corporais ocasionadas pelo câncer e sobre o sentido simbólico de tais modificações para cada participante.
Os efeitos psicológicos de estar sob Cuidados Paliativos: essa categoria trata sobre a contribuição dos Cuidados Paliativos na história de vida e adoecimento dos sujeitos.
Ressalta-se que os nomes utilizados são fictícios, originados do latim e fazem referência a características pessoais dos participantes.
Benício: “o que está sempre bem”
Benício, diagnóstico de leucemia mieloide crônica, nasceu em São Paulo, onde viveu até aposentar-se. Depois de aposentado passou a residir no litoral. Retornou a São Paulo há oito anos em virtude do adoecimento. Casado há 61 anos com Dora, mulher com quem teve um filho, dois netos, uma neta e um bisneto.
Benício fala de si da seguinte forma: “eu sempre fui uma pessoa compreensiva...”. Fala que permite compreender a forma resignada como o participante se vê diante da vida e como se relaciona com a doença.
Saber-se doente através dos sinais do corpo
O relato de Benício demonstra que o seu contato inicial com a doença se deu através dos sinais de seu próprio corpo: “eu não tinha dor, não tinha nada, só tinha aparecia essas manchas... eu tinha hematoma, quando eu me machucava dava assim, hemorragia”. Conforme sinalizam Salci e Marcon (2009)Salci, M. A., Marcon, S. S. (2009). Itinerário percorrido pelas mulheres na descoberta do câncer. Escola Anna Nery Revista Enfermagem, 13(3): 558-566. e tal qual evidenciado na fala de Benício, o processo de descoberta da doença tem início antes do diagnóstico propriamente dito. O participante percebia algo diferente em seu corpo e foi em busca de uma resposta: “eu sempre ia em médicos e eles nunca descobriam o que era”.
Benício permaneceu por dois anos em busca do seu diagnóstico, que em sua avaliação foi definido por um assistente de laboratório:
como eu fiquei fazendo exame, eu tinha um, um, onde faz exame, é o laboratório... o rapaz uma vez chegou pra mim: seu [Benício], o senhor tem feito tanto exame aqui e não descobriram o que cê tem e eu descobri... ele falou, o senhor tá com plaquetas baixas e já fazia quatro anos que eu fazia tratamento e não sabia e aí se tornou crônica por causa disso.
No trecho acima nota-se a dificuldade do participante em dizer a palavra câncer. Considerando que “o estigma do câncer imprime sua marca na cultura e, ainda hoje, a cristalização deste estigma repleto de representações negativas parece não se dissolver” (Barbosa & Francisco, 2007Barbosa, L. N. F., Francisco, A. L. (2007). A subjetividade do câncer na cultura: Implicações na clínica contemporânea. Revista da SBPH, 10(1), 9-24., p. 15) é possível que diante de tais representações negativas seja menos sofrido para o participante não as olhar de frente. Neste caso, ao dizer que tem “plaquetas baixas” Benício suaviza o impacto de ter um câncer. E embora saiba que sua doença não tem cura, Benício fala de uma doença “crônica”, expressão que apresenta uma conotação menos negativa do que o termo doença incurável, mais uma tentativa de minimizar o impacto do câncer em sua vivência do adoecimento.
Como dito anteriormente, características pessoais de Benício modulam sua forma de relacionar-se com a doença:
o que eu tiver de passar vai ser só pra mim, não vai ser pra ninguém, compartilhado com ninguém, porque o que eu vou ter que passar, sou eu que vou ter que passar... então eu compreendo tudo isso [a doença].
Segundo Corrêa (2013Corrêa, J. A. (2013). Em busca de uma ética em face da morte e do morrer. In: M. D. Moura (Org.), Oncologia: Clínica de limites terapêuticos? (pp. 29-62). Belo Horizonte, MG: Artesã., p. 30), “o paciente poderá, então, encontrar modos de buscar forças para enfrentar esse difícil momento” e o relato de Benício representa uma serenidade construída ao longo de sua história de vida, bem como, dos 10 anos de convivência com a doença, e como o próprio participante diz, compreende tudo o que acontece com ele.
Por mais pessoas que se tenha ao lado, a morte é mesmo uma experiência solitária. Talvez pela proximidade de seu falecimento este sentimento estivesse tão claro para o participante. Benício faleceu três dias após conceder essa entrevista.
Sentir o câncer modificar o corpo
Com o avançar da doença, atividades corriqueiras tornam-se cada vez mais difíceis para Benício: “eu não posso fazer, qualquer coisa que eu vou fazer, eu fico cansado, eu já, eu não posso me abaixar, eu não posso subir uma escada, nem por exemplo, pra mim tomar um ônibus agora vai ser difícil”. Limitações que demarcam a falta do que era psiquicamente significativo para o participante: “e quando eu fui mudar pro litoral, a minha casa lá, quem fez ela fui eu... comprei o terreno, fiz tudo sozinho... e agora não poder fazer nada, a gente fica meio, meio chateado, né”. E o afastamento daquilo que é constitutivo de sua subjetividade configura-se como fonte de sofrimento: “eu acho que a pior coisa que tem, que existe no mundo é a pessoa querer fazer alguma coisa e não ter condição de fazer”.
Dar nome e lugar ao sofrimento torna-o tolerável ao sujeito que o vivencia. E a partir do contato com um profissional que a invista ou reinvista no paciente, torna-se possível que este novo corpo que se apresenta fragmentado ao sujeito transforme-se em corpo falado e possível de ser simbolizado (Fernandes, 2006Fernandes, M. H. (2006). Entre a alteridade e a ausência: O corpo em Freud e sua função na escuta do analista. In: E. M. U. Cintra (Org.), O corpo, o eu e o outro em psicanálise: Ciclo de palestras na Clínica Dimensão (pp. 29-54). Goiânia, GO: Dimensão.). Diante do contato com a entrevistadora Benício construiu sua metáfora de vida e seu sofrimento ganhou forma e lugar: “a pessoa se torna um prisioneiro da doença [silêncio]”. Ser prisioneiro nada mais é do que estar privado de algo e, a saída mais saudável é habituar-se diante desta realidade, aparentemente este é o caminho adotado por Benício, resignação em vez de revolta, o que não quer dizer resignação sem sofrimento.
Os efeitos psicológicos de estar sob Cuidados Paliativos
A contribuição dos Cuidados Paliativos em sua história de vida e adoecimento é apresentada por Benício com uma conotação positiva: “olha, foi a melhor coisa que apareceu até agora”. O participante enfatiza a importância da comunicação clara e sincera no seu enfrentamento à doença:
eu achei muito bom a médica chegar pra mim e falar... olha seu [Benício] senhor tem uma doença crônica e não vai ter como reverter esse pobrema, o senhor vai ter que conviver com ela e a gente procura, procura melhorar, mas sarar nunca, então foi muito bom.
Algo que reforça a ideia de que o êxito terapêutico está intimamente ligado à prática da comunicação e ninguém melhor do que o próprio paciente para definir o que vem a ser uma comunicação adequada (Leite, 2013Leite, M. T. T. (2013). Desilusão da onipotência frente aos limites do real. In: M. D. Moura (Org.), Oncologia: Clínica de limites terapêuticos? Psicanálise & Medicina (pp. 77-89). Belo Horizonte, MG: Artesã.).
Curiosamente, ao contrário do estigma de abreviação da morte criado em torno dos Cuidados Paliativos, Benício apresenta a percepção de prolongamento de vida: “se não fosse o paliativo... eu já teria morrido já”.
Letícia: “mulher alegre”
Letícia é uma mulher que se define da seguinte forma: “adoro cozinhar, ter a família perto, sou alegre, festeira”. Ela é casada com Nando há 40 anos, com quem tem dois filhos e dois netos. No momento da entrevista o diagnóstico de câncer de tireoide com invasão de laringe datava cerca de seis anos de evolução, ao longo deste período Letícia perdeu o contato verbal e há algum tempo se comunicava pela via escrita, a mesma via de comunicação pela qual concedeu a entrevista.
Nota-se que esta entrevista não pode ser concluída por conta de a paciente ter se cansado, ter rebaixado o nível de consciência e falecido dias após o primeiro contato.
Dada a relevância do conteúdo da entrevista, optou-se por não descartar este material.
Saber-se doente através dos sinais do corpo
Quando questionada sobre sua história de adoecimento Letícia responde de forma objetiva e sucinta, contudo deixa claro que as alterações no corpo são os primeiros indícios da doença: “o pescoço inchou aí procurei um médico, fiz os exames e detectou o problema”. Assim como Benício, Letícia não fala em câncer, mas em “problema”, uma palavra enigmática, mas que apresenta a mesma conotação negativa de que falam Barbosa e Francisco (2007)Barbosa, L. N. F., Francisco, A. L. (2007). A subjetividade do câncer na cultura: Implicações na clínica contemporânea. Revista da SBPH, 10(1), 9-24., afinal os problemas causam incômodos e nem todos eles podem ser solucionados.
A fala objetiva e sucinta é uma característica marcante em Letícia, contudo, a partir de um questionamento diretivo, a participante evidencia sutilmente seu sofrimento diante da doença e sinaliza a contribuição da religiosidade e da família no seu enfrentamento: “a princípio foi um choque, depois meu marido e filhos conversaram muito comigo e a minha fé em Deus estão me trazendo até aqui”.Corrêa (2013)Corrêa, J. A. (2013). Em busca de uma ética em face da morte e do morrer. In: M. D. Moura (Org.), Oncologia: Clínica de limites terapêuticos? (pp. 29-62). Belo Horizonte, MG: Artesã. pontua que, o sujeito, à sua maneira, encontra formas de viver a vida que lhe resta. Observa-se que a forma encontrada por Letícia para seguir a vida apesar da doença é evitar entrar em contato com as implicações subjetivas decorrentes de seu adoecimento, situação em que a religião e a família aparentam ofertar a sustentação emocional que ela necessita para manter-se na posição de quem evita olhar para o seu próprio sofrimento. Letícia evita este contato justamente por ser-lhe doloroso.
As respostas objetivas e sucintas da participante possivelmente indicam dificuldade em entrar em contato com algum tema que a mobiliza, e talvez, Letícia não tivesse disponibilidade emocional para acessar tal conteúdo, naquele momento.
Letícia estava morrendo, provavelmente ela percebia a morte chegar, e possivelmente não contava com recursos simbólicos para traduzir suas emoções em palavras. “É frequente que, diante de uma situação de sofrimento “inédito” (aquilo que nunca foi dito), o paciente se apresente “sem palavras” para se referir ao que acontece com ele próprio – angustiado, portanto” (Moretto, 2013Moretto, M. L. T. (2013). Entre o luto e a luta: sobre a noção de sofrimento psíquico do paciente com câncer e o trabalho do psicanalista em situações limite na instituição hospitalar. In: M. D. Moura (Org.), Oncologia: Clínica de limites terapêuticos? Psicanálise & medicina (pp. 352-365). Belo Horizonte, MG: Artesã., pp. 358-9). A morte por ser inédita e inesperada calou o discurso de Letícia.
Sentir o câncer modificar o corpo
O relato de Letícia sobre a vivência do câncer geralmente perpassa por uma experiência no corpo, e nos últimos meses dos seis anos de adoecimento ela nota mudanças significativas: “ultimamente emagreci demais e o rosto inchou”. Mais adiante sua fala indica a percepção de que seu estado de saúde se agravara: “vivi normalmente com o tratamento até dois meses atrás, onde piorou e eu emagreci e inchou o rosto, inchou mais o rosto”. Conforme sinalizado anteriormente, trata-se de “entrar em contato com a finitude, no Real do corpo” (Moretto, 2013Moretto, M. L. T. (2013). Entre o luto e a luta: sobre a noção de sofrimento psíquico do paciente com câncer e o trabalho do psicanalista em situações limite na instituição hospitalar. In: M. D. Moura (Org.), Oncologia: Clínica de limites terapêuticos? Psicanálise & medicina (pp. 352-365). Belo Horizonte, MG: Artesã., p. 360), o corpo apresenta a morte para Letícia de forma imperativa, clara e sem possibilidade reversão. Quando esse conteúdo começa a emergir a participante se diz cansada e solicita a interrupção da entrevista, cansaço este que não pareceu ser apenas físico.
Ademais, sabe-se que a doença é um dos fatores que pode alterar a autoimagem do sujeito, o que repercute na sua autoestima e interações sociais (Almeida et al., 2012Almeida, T. R., Guerra, M. R., Filgueiras, M. S. T. (2012). Repercussões do câncer de mama na imagem corporal da mulher: Uma revisão sistemática. Physis, 22(3), 1003-1029. https://doi.org/10.1590/S0103-73312012000300009
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). De fato, o câncer modificou profundamente o corpo de Letícia, no momento da entrevista, a participante estava emagrecida, traqueostomizada, com edema de face e perda da sustentação da língua, o que fazia sua boca ficar aberta ininterruptamente. Além do contato com a finitude, os trechos destacados, ainda que de forma implícita, indicam a percepção de mudança na autoimagem de Letícia. E a dificuldade em dizer sobre este conteúdo sinaliza que alguma reflexão desse tipo estava posta para a participante. A intensa degradação do corpo diz sobre a proximidade da morte e Letícia aparenta escutar sua mensagem.
A categoria Efeitos psicológicos de estar sob Cuidados Paliativos não será apresenta em decorrência da incompletude da entrevista.
Valentina: “mulher valente”
Valentina, mulher irreverente e de difícil tradução. Em suas palavras: “eu não parava, eu fazia minhas coisas, eu não gosto que ninguém faça nada pra mim”. Veio da Bahia para São Paulo em 1982 já para tratar um tumor e nesta cidade permaneceu, separou-se do esposo e criou sozinha sete filhos. Ainda que esteja visivelmente fragilizada diante da recidiva do câncer de tireoide, não admite ter sua autonomia desautorizada: “ele [o filho] disse: mãe eu vou conversar com a médica... eu [ela] digo: agora quem manda aqui sou eu... eu tô lúcida... quem manda agora sou eu”.
Saber-se doente através dos sinais do corpo
O corpo se modifica e sinaliza a Valentina que ela não é mais a mesma:
eu acho que eu não sou mais a mesma, pra fazer tudo isso [cuidado com a casa e com ela mesma], Jesus é quem sabe se ainda vou ser... isso aí eu não vou lhe dizer, aqui agora, eu tenho certeza que não sou aquela [Valentina] que tava em casa antes de adoecer.
Conforme assinalam Castro-Arantes e Lo Bianco (2013Castro-Arantes, J. M., & Lo Bianco, A. C. (2013). Corpo e finitude: A escuta do sofrimento como instrumento de trabalho em instituição oncológica. Ciência & Saúde Coletiva, 18(9), 2515-2522. https://doi.org/10.1590/S1413-81232013000900005
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, p. 2516), “qualquer alteração do corpo terá repercussão na ordem do psíquico” e, neste caso, não ser mais a mesma é algo tão desorganizador da ordem psíquica de Valentina que a participante delega a Deus o poder de mudar essa realidade.
E a partir da escuta psicológica é possível perceber que ao falar das irmãs, Valentina fala de si mesma e das fantasias que construiu em torno do câncer:
uma irmã faleceu um dia desses... os filhos não cuidava dela, ela ficou na cama aí jogada parecendo um cão sem dono largando a pele do corpo, até que um dia Jesus teve pena e levou... e aí na Lapa tem uma que tá mal também e agora ela tá até melhor, ela veio da Bahia de avião com um tumor na barriga... tirou e o médico disse que não era maligno, já o meu não é tão bom.
Nesse sentido, ao falar do processo de adoecimento das irmãs, Valentina fala de seus medos, do que ela não quer que aconteça com ela: “ficou na cama aí jogada [a irmã] parecendo um cão sem dono largando a pele do corpo”. Medos e reflexões que somente quem sabe da gravidade da sua doença é capaz de ter e fazer.
Sentir o câncer modificar o corpo
Valentina fala de seu adoecimento de forma bastante apropriada. Conforme sinalizado anteriormente, a primeira manifestação do câncer na participante foi em 1982, ocasião em que a doença foi devidamente tratada. Desse modo, estar com câncer não é uma surpresa, na medida em que Valentina conhece o caminho que tem pela frente, e talvez, por conhecer esse caminho a revolta e a indignação são os sentimentos mais evidentes em seu discurso:
aí agora eu fiz aquele tratamento maluco de tomar iodo forte ... e nada foi nada, eles me disseram, não D. Valentina, Luiza, minha filha que tava aqui perguntou “e aí, doutor, matou a doença?”; “matou!”. Falou pra minha filha que tinha matado e hoje eu disse a ela: podia ter matado era a eles! Disse que tinha matado a doença e era tudo mentira. Ai, doutora! Quer que eu conte uma história suja, uns médico porco, por mim pode tá gravado aí que eu não me importo! Agora eu morro, meus neto fica sozinho e a vida é assim, pra eles não tem nada errado, eles tão vivo [silêncio]... Eu tô nessa situação sem saber o que vai acontecer com minha vida, só Jesus é quem sabe.
Embora a indignação de Valentina seja direcionada ao tratamento e à equipe que lhe assistiu, em alguma medida, ela sabe que essa falha também é sua, de seu corpo, que ficou bem por um tempo e depois não resistiu: “se foi em 2012 que eles me operaram, 12, 13 em 2014 que eles vieram me chamar pra dizer que eu tava com esse problema?”, quando fala deles, dos médicos, Valentina fala dela.
O corpo da participante não somente não resistiu ao longo desses mais de 30 anos, mas a colocou em contato com a possibilidade de morte. Valentina fala da crise responsável pela sua internação atual: “eu sentia muita dor e a barriga encostando no pescoço, era muita dor, só não morri porque Deus não deixou, quando eu dei entrada no pronto socorro, Ave Maria, eu não gosto nem de me lembrar, doutora”.
Conforme sinalizado por Corrêa (2013Corrêa, J. A. (2013). Em busca de uma ética em face da morte e do morrer. In: M. D. Moura (Org.), Oncologia: Clínica de limites terapêuticos? (pp. 29-62). Belo Horizonte, MG: Artesã., p. 30), “a patente manifestação e a constatação de nossa incompetência para vencer a morte acabarão por impedir e roubar toda a pacificação buscada no imaginário”, ao constatar sua incompetência diante da morte, Valentina se desorganiza a tal ponto de direcionar sua revolta e indignação ao outro, possivelmente esta é sua maneira de atenuar seu sofrimento.
Os efeitos psicológicos de estar sob Cuidados Paliativos
Assim como Benício, Valentina apresenta uma percepção positiva em relação aos Cuidados Paliativos: “me sinto bem, muito bem, graças a Deus, me tratam muito bem, graças a Deus... não eu não sinto mais nada... eu vim de casa quase morta”. A participante faz um contraponto em relação ao período em que esteve no pronto socorro: “e ainda ficar lá sentada porque tinha muita gente, esperando o socorro, não foi brincadeira não” – “melhor aqui, melhor do que no pronto socorro, dez mil vez... em tudo, não tô vendo tanto sofrimento”. Ver o sofrimento do outro, certamente a faz pensar no seu próprio sofrimento.
Em Cuidados Paliativos o foco não é a doença a ser curada, e sim o paciente que sofre por uma doença, mas que é ativo em seu processo de adoecimento (Maciel, 2008Maciel, M. G. S. (2008). Definições e princípios. In: R. A. Oliveira (Coord.), Cuidado paliativo (pp.15-33). São Paulo, SP: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.). Por vezes, o investimento no paciente e não na doença se reflete em bem-estar.
Paco: “homem livre”
O discurso trazido por Paco parte de duas perspectivas, o trabalho e a liberdade: “sempre gostei de trabalhar, principalmente sozinho”. Paco veio da Bahia ainda jovem para trabalhar e buscar oportunidades de crescimento que o sertão não lhe proporcionava. Embora tenha tido a possibilidade de criar raízes (foi casado e teve dois filhos deste casamento), decidiu seguir sozinho, até mesmo diante do diagnóstico de câncer de pâncreas.
Saber-se doente através dos sinais do corpo
O relato de Paco dá a entender que o câncer não se encaixa em sua história de vida: “já tive assim um acidente, um machucado, machuca uma, uma, um braço, uma cabeça, uma pancada assim, mais, doença mesmo interna eu nunca tive não... eu trabalhando, eu percebi, eu descobri que tava com diabetes”.
O contato de Paco com a doença, à semelhança do discurso dos demais participantes, foi mediado pelas alterações no seu corpo. Alterações corporais que inicialmente lhe causaram estranheza: “Eu tô morrendo de fraqueza, não posso andar, não posso trabalhar, não aguento fazer nada, só por causa de um diabetes?”. Estranheza que com o desenrolar dos fatos tomou conotação de certeza: “fui fazer os exames, descobri o que eu tenho, e eu tinha certeza que eu tinha outra coisa além da diabetes”. Antes mesmo de ter o diagnóstico exato, Paco sabia que algo modificara em seu corpo, mudanças não justificáveis pelo diagnóstico de diabetes. Fala sobre o momento em que recebeu o diagnóstico oncológico: “não... normal, né? Não assustei em nada, né? Porque todo mundo passa por isso, não é? Então... eu sabia que alguma coisa tava errada comigo mesmo... e, é... tem que encarar, né?”.
Fernandes (2006Fernandes, M. H. (2006). Entre a alteridade e a ausência: O corpo em Freud e sua função na escuta do analista. In: E. M. U. Cintra (Org.), O corpo, o eu e o outro em psicanálise: Ciclo de palestras na Clínica Dimensão (pp. 29-54). Goiânia, GO: Dimensão., p. 33) pontua que “a fala afeta o corpo” e, mais adiante, a autora sinaliza: “Sentir dor informaria o ego sobre a existência de um corpo constituído de órgãos, tornando-lhe possível a representação interna do próprio corpo” (Fernandes, 2006Fernandes, M. H. (2006). Entre a alteridade e a ausência: O corpo em Freud e sua função na escuta do analista. In: E. M. U. Cintra (Org.), O corpo, o eu e o outro em psicanálise: Ciclo de palestras na Clínica Dimensão (pp. 29-54). Goiânia, GO: Dimensão., p. 39). Trata-se de um processo cíclico – o sintoma informa ao sujeito que algo não está bem, a partir disso o sujeito dá-se conta de que ele possui órgãos, talvez adoecidos, por fim, falar sobre estas questões dá sentido ao que o sujeito vivencia. Neste caso, o processo de tomada de consciência vivenciado por Paco foi intensamente sofrido. A mensagem de seu corpo dizia sobre a falência orgânica e a proximidade da morte, algo, provavelmente doloroso de ser percebido, afinal de contas não se tratava apenas da diabetes.
Sentir o câncer modificar o corpo
Embora notasse algo errado em seu corpo já há algum tempo, o diagnóstico de Paco era recente: “tem... fez um ano, agora que eu vim descobrir mesmo tem o quê? tem uns seis meses tava tratando de diabetes e cada dia que passa só piorava e nos exames constatou que eu tinha um câncer [fala câncer com a voz bem fraca]”, contudo a certeza do diagnóstico é ainda mais recente: “agora essa semana”.
O discurso de Paco apresenta como sentimento preponderante a raiva pela doença ter mudado seu corpo, seu modo de vida, e por consequência sua forma de ser:
meu Deus do céu! Não dá pra comparar, não tem comparação ... se eu peso 80kg pra 48 tem muita diferença, não é? Aqui só tá os ossos [estica a pele que sobra do braço] não tem mais pra onde emagrecer mais.
A raiva de Paco aparenta encobrir uma tristeza relacionada a um não reconhecimento de si neste novo corpo, em virtude disso o participante sente-se: “ah... um lixo! [silêncio] não guento fazer nada, não guento pegar um, um... pegar nada, só desânimo, só fraqueza, só isso”. O que seria de Paco sem o trabalho e sem a liberdade de ir e vir que ele tanto preza? Um lixo! Certamente um lixo, pois tudo aquilo que fazia parte de sua constituição psíquica foi alterado bruscamente pela doença.
O discurso de Paco deixa claro que as modificações corporais ocasionadas pelo câncer são elementos potencialmente desorganizadores de seu psiquismo. O cadenciamento das palavras na fala de Paco dá a entender que estas mudanças corporais lhe retiram a noção de corpo unificado de que fala Fernandes (2006)Fernandes, M. H. (2006). Entre a alteridade e a ausência: O corpo em Freud e sua função na escuta do analista. In: E. M. U. Cintra (Org.), O corpo, o eu e o outro em psicanálise: Ciclo de palestras na Clínica Dimensão (pp. 29-54). Goiânia, GO: Dimensão.. E neste caso, a escuta da fala do paciente surge como ferramenta de trabalho, “uma vez que corpo e psíquico são articulados na e pela palavra daquele que a profere” (Castro-Arantes, & Lo Bianco, 2013, p. 2516). Ao falar que é um lixo, Paco se escuta e ao perceber que há um interlocutor que tolera ouvir o conteúdo de seu discurso, seu sofrimento pode ser aliviado e sua dor ganha forma e sentido.
Os efeitos psicológicos de estar sob Cuidados Paliativos
Da mesma maneira como surgiu no discurso de Benício e de Valentina, para Paco os Cuidados Paliativos resgatam a vida para além da doença: “nossa senhora! Muito bom! Muito bom! Eu tô, eu melhorei, melhorei um pouco, eu não consegui tá conversando, eu não conseguia tá sentado aqui”. Cuidar do sujeito considerando-o como ser biográfico e autônomo em seu processo de adoecimento, por vezes, culmina em um resgate à subjetividade ameaçada pela doença (Matsumoto, 2012Matsumoto, D. Y. (2012). Cuidados paliativos: Conceitos, fundamentos e princípios. In: R. T. Carvalho & H. A. Parsons (Org.), Manual de cuidados paliativos ANCP (pp. 23-30, 2a ed. ampl. e atual.). Porto Alegre, RS: Sulina.).
Paco reforça suas impressões sobre os Cuidados Paliativos: “Agora tô tomando os remédio direitinho aí, tô, melhorei!”. Para alguém que tanto preza por sua liberdade e autonomia, receber e agradecer pelo cuidado recebido é muito significativo.
Considerações finais
As reflexões decorrentes do processo de construção deste trabalho permitem perceber que a vivência do câncer no corpo está relacionada à perda de vitalidade, da independência física e do exercício pleno da autonomia, e em alguma medida, a perda de si. Trata-se de um nível de desorganização psíquica que vai além da mudança da autoimagem, perpassa por não se reconhecer em um novo corpo que não responde ou corresponde às suas expectativas e planos de vida. A vivência de um câncer terminal apresenta de maneira imperativa a realidade da morte.
No que se refere aos sentimentos contidos nos discursos dos sujeitos sobre o adoecimento e modificações corporais, observa-se que a raiva, a revolta e a evitação surgiram com grande intensidade, contudo, também foi possível identificar a resignação nos relatos dos participantes. Nota-se que a maneira como cada um dos entrevistados lida com as implicações psicológicas do adoecimento está relacionada às características pessoais e visão de mundo anteriores ao diagnóstico de câncer, mas que diante da doença são intensificados.
Ao longo das entrevistas ficou evidente que perguntar ativa e diretamente sobre as mudanças corporais fechava o discurso dos entrevistados. A partir disso cogita-se a possibilidade de que os participantes não tenham entendido a natureza do questionamento, ou que, não pudessem entrar em contato com o conteúdo emocional que esta pergunta lhes remetia naquele momento. Contudo, nos momentos em que os sujeitos falavam livremente sobre sua história de vida e adoecimento, os conteúdos ligados às modificações corporais surgiam de forma rica e intensa.
A partir do encontro intersubjetivo do paciente com os profissionais que cuidam singularmente dele, torna-se possível que este sujeito vivencie um reencontro com as marcas de suas imagens internas. Muitas vezes, a partir desse novo encontro o sujeito é capaz de reconstruir sua visão de si e incorporar o adoecimento e todas suas implicações em seu novo eu modificado pela doença. No entanto, para que este reencontro ocorra é preciso que o sujeito fale de si, e falar de si não está necessariamente ligado ao adoecimento, mas a tudo aquilo que faça sentido para ele.
Cabe destacar que todos os entrevistados, em menor ou maior intensidade, evitaram falar a palavra câncer, enfermidade nomeada como uma “doença popular maldita”. Culturalmente uma palavra mal-dita é aquela que não pode ser dita, que dá má sorte somente por ser evocada. A expressão “doença popular maldita”, provavelmente, faz relação com o fato de o diagnóstico de câncer ter um estigma ligado à morte, tema tangenciado pelos participantes que merece ser melhor explorado em outros estudos.
Para além do exposto, o relato da maioria dos participantes, evidencia que os Cuidados Paliativos recebidos contribuíram para o resgate da sua subjetividade. A partir desta forma de assistência o sujeito é olhado além de seu corpo adoecido, esse indivíduo é visto como alguém que tem história de vida, família e principalmente desejo. Desse modo, faz-se pertinente que estudos futuros possam explorar detidamente a contribuição dos Cuidados Paliativos na percepção de qualidade de vida dos pacientes em fim de vida.
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1
A entrevistadora esteve atenta à manifestação explícita de sintomas como dor, fadiga e dispneia, que, segundo Coradazzi e Oliveira (2011), são frequentes em pacientes oncológicos e estando exacerbados inviabilizariam o seguimento da entrevista.
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2
O participante refere apropriação sobre as duas religiões.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Abr 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
10 Mar 2017 -
Revisado
09 Jul 2018 -
Aceito
23 Ago 2018