Resumo
Este estudo parte de uma pesquisa de cunho qualitativo, objetivando analisar a formação da identidade política ao longo de três gerações de mulheres da comunidade quilombola Cajá dos Negros, situada na zona rural da cidade de Batalha, Alagoas. As participantes da pesquisa foram três moradoras da comunidade (jovem de 18 anos, adulta de 26 anos e uma idosa de 60 anos), que apresentaram, em suas trajetórias, vivências de lutas e enfrentamentos ao sistema de dominação e de busca pelo rompimento de estruturas sociais racistas e sexistas. Para a produção das informações, foram utilizados, como instrumentos, a observação participante, os diários de campo e as entrevistas semiestruturadas. A análise das narrativas e observações registradas foram amparadas no método de análise de conteúdo, mediante o aprofundamento da pré-análise, exploração do material, quando foram construídas duas categorias temáticas: a identidade política quilombola na formação subjetiva de mulheres negras e a expressão da identidade política nas diferentes gerações. Como um espaço comunitário fortalecido, as mulheres focalizadas no estudo são vizinhas, amigas de vida e companheiras de luta, feições que possibilitam os destraves políticos na afirmação de uma identidade coletiva, negra e ancestral. As análises apontam as nuances das produções identitárias elaboradas, as quais se renovam a cada geração, com características singulares a cada uma delas, mas que mantêm em si elaborações de pertencimento, luta e transformação de suas vidas e da comunidade.
Palavras-chave:
Identidade Política; Quilombo; Gênero; Geração
Abstract
This study is part of a qualitative research aiming to analyze the political identity formation along three generations of women from the Cajá dos Negros quilombola community, located in the rural area of the municipality of Batalha, state of Alagoas. The research participants were three residents of the community (18-year-old, 26-year-old adult, and 60-year-old woman), who experienced struggles and confrontations with the system of domination and the search for the rupture of racist and sexist social structures in their trajectories. To produce information, we used participant observation, field diaries, and semi-structured interviews as instruments. The analysis of the registered narratives and observations were based on the content analysis method, by deepening the pre-analysis, exploring the material, in which two thematic categories were constructed: the quilombola political identity in the subjective formation of black women and the expression of political identity in different generations. As a strengthened community space, the women focused on in the study are neighbors, lifelong friends, and companions in the struggle, features that enable the political unlocking in affirming a collective, black, and ancestral identity. The analyses point to the nuances of the elaborated identity productions, which are renewed by each generation, with unique characteristics to each one of them, but which still maintain elaborations of belonging, struggle, and transformation of their lives and of the community.
Keywords:
Political Identity; Quilombo; Genre; Generation
Resumen
Este estudio es parte de una investigación cualitativa, cuyo objetivo es analizar la formación de identidad política en tres generaciones de mujeres de la comunidad quilombola Cajá dos Negros, ubicada en el área rural de la ciudad de Batalha - AL. Los participantes de la investigación fueron tres residentes de la comunidad (18 años, 26 años, mujer adulta y 60 años), que experimentaron luchas y confrontaciones con el sistema de dominación y la búsqueda de la ruptura de las estructuras sociales racistas y sexistas en sus trayectorias. Para la producción de información, utilizamos la observación participante, los diarios de campo y las entrevistas semiestructuradas como instrumentos. El análisis de las narrativas y observaciones registradas comenzó desde el método de análisis de contenido, a través de la profundización del preanálisis, la exploración del material, en el que se construyeron dos categorías temáticas: la identidad política de Quilombola en la formación subjetiva de las mujeres negras y la expresión de la identidad política en diferentes generaciones. Como un espacio comunitario fortalecido, las mujeres presentadas en el estudio son vecinas, amigas de la vida y compañeras en la lucha, características que permiten el desbloqueo político en la afirmación de una identidad colectiva, negra y ancestral. Los análisis apuntan a los matices de las elaboradas producciones de identidad, que son renovadas por cada generación, con características únicas para cada una de ellas, pero que aún mantienen elaboraciones de pertenencia, lucha y transformación de sus vidas y la comunidad.
Palabras clave:
Identidad política; Quilombo Género; Generación
Introdução
Os processos de colonização dos países latino-americanos levaram à constituição de espaços territoriais marcados por práticas de racialização e heteronormatização das relações sociais, formas de organização articuladas por meio de relações de poder e mecanismos de opressão que infringem modos de ser dos povos colonizados (Ferrara, 2019Ferrara, J. A. (2019). Diálogos entre Colonialidade e Gênero. Revista Estudos Feministas , 27(2), e54394. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v27n254394
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
). De acordo com Veiga (2019Veiga, L. M. (2019). Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. [número especial]. Fractal: Revista de Psicologia, 31, 244-248. https://doi.org/10.22409/1984-0292/v31i_esp/29000
https://doi.org/https://doi.org/10.22409...
), o sofrimento psíquico é de ordem política, ao se considerar que o êxito da colonização se deu não somente por colonizar territórios geográficos, mas pela conquista de territórios-existências, a penetração de subjetividades negras, que introjetaram “. . . modos de ser, estar, sentir e perceber o mundo” (p. 245).
Tratando-se especificamente sobre os grupos negros quilombolas, a construção discursiva em torno deles envolve postulações científicas e sociais que estereotiparam o sujeito negro quilombola. Desumanizando-o, explorando-o e estigmatizando-o, exprimiram inferiorização e depreciaram suas formações subjetivas. De acordo com Fernandes, Galindo e Parra-Valencia (2020Fernandes, S. L.; Galindo, D. C. G., & Parra Valencia, L. (2020). Identidade quilombola: atuações no cotidiano de mulheres quilombolas no agreste de alagoas. Psicologia em estudo, 25, e45031. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v25i0.45031
https://doi.org/https://doi.org/10.4025/...
) um dos primeiros impasses a serem enfrentados pela população quilombola é o direito de afirmar sua identidade a partir de seu modo de vida e não por meio de um outro Estado ou saber científico que lhe atribua o status de existência.
Os estudos da psicologia em territórios quilombolas (Costa, 2012Costa, E. S. (2012). Racismo, política pública e modos de subjetivação em um quilombo do Vale do Ribeira [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca digital de teses e dissertações da USP. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-13082012-104304/publico/costa_do.pdf
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
; Fernandes & Santos 2019Fernandes, S. L., & Santos, A. O. (2019). Itinerários Terapêuticos e Formas de Cuidado em um Quilombo do Agreste Alagoano [número especial]. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 38-52. https://doi.org/10.1590/1982-3703003176272
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
; Fernandes, Galindo, & Parra-Valencia, 2020Fernandes, S. L.; Galindo, D. C. G., & Parra Valencia, L. (2020). Identidade quilombola: atuações no cotidiano de mulheres quilombolas no agreste de alagoas. Psicologia em estudo, 25, e45031. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v25i0.45031
https://doi.org/https://doi.org/10.4025/...
; Valentim & Trindade, 2011Valentim, R. P. F. & Trindade, Z. (2011). Modernidade e comunidades tradicionais: memória, identidade e transmissão em território quilombola. Psicologia Política, 11(22), 295-308.) apontam que a luta política das comunidades quilombolas apresenta um campo de ambiguidades entre a possibilidade de afirmação da sua identidade, por meio de uma legislação que garante este direito, e, ao mesmo tempo, a tutela dos seus modos de vida pelo Estado. É neste campo ambíguo que a luta e a garantia de direitos às comunidades quilombolas é gestada.
Assim, esta pesquisa buscou desenvolver uma análise de como as mulheres da comunidade quilombola Cajá dos Negros têm produzido a identidade política, ao longo das gerações. Discutir as identidades políticas quilombolas de mulheres negras da zona rural do sertão alagoano é posicionar a psicologia num olhar ligado à produção da subjetividade cotidiana, coletiva e territorial de povos tradicionais que historicamente estão à margem da sociedade.
A pesquisa foi concretizada por meio de observação participante, diários de campo e entrevistas semiestruturadas, utilizando a análise de conteúdo (Bardin, 1977Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Edições 70.) para a análise da produção de informações, na construção de duas categorias temáticas: 1) Identidade política quilombola na formação subjetiva de mulheres negras; e 2) A expressão da identidade política nas diferentes gerações.
Neste estudo almejou-se apresentar uma dimensão da realidade vivenciada, usando como instrumento de análise os discursos elaborados pelas participantes, na relação com os afetos que perpassam e que capturam a identidade - não uma identidade fixa e inflexível, mas tecida em suas relações com a sociedade, a qual está sendo tracejada no seu viver, não está pronta ou dada, porém, está em constante elaboração, visando a contrapor-se a discursos essencialistas.
Como afirmam Leite (2000Leite, I. B. (2000). Os quilombos no Brasil: Questões conceituais e normativas. Etnográfica, 4(2), 333-354. https://doi.org/10.4000/etnografica.2769
https://doi.org/https://doi.org/10.4000/...
) e Costa (2012Costa, E. S. (2012). Racismo, política pública e modos de subjetivação em um quilombo do Vale do Ribeira [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca digital de teses e dissertações da USP. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-13082012-104304/publico/costa_do.pdf
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
), a construção da identidade política quilombola tem como base a necessidade de ressignificação do conceito de quilombo para o momento histórico do presente, com uma releitura que atualiza as disputas políticas nas comunidades quilombolas como lugar de resistência marcado por trajetórias históricas específicas de luta contra a opressão. A concordância do substantivo “históricas” no plural não aparece por acaso, mas vem afirmar que as comunidades quilombolas, mesmo sendo lugares de produção de valores que congregam um determinado grupo étnico-racial, apresentam sua formação de maneiras diversas em cada território ocupado nas terras brasileiras.
“Quando eu estou, eu sou”: Notas sobre a produção histórica e política dos quilombos
A busca pela delimitação conceitual do termo “quilombo” é percorrida desde o século XIX, caracterizando-se por uma construção que se inicia dentro dos ciclos sociais, posteriormente entre as perspectivas acadêmicas (antropologia, sociologia, história etc.) e em debates no âmbito jurídico. Arruti (2006Arruti, J. M. (2006). Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Edusc.) define o quilombo como um objeto “aberto”, “em curso”, cuja perspectiva advém da dificuldade em determinar uma única definição, por compreender a gama de sentidos e significados que o quilombo carrega, bem como os modos diversos de suas formações territoriais e históricas.
Nesse sentido, na era colonial e imperial, este termo era usado de forma pejorativa, para reprimir e fomentar a perseguição, não havendo nisso nenhum cunho de reconhecimento cultural ou político (Arruti, 2006Arruti, J. M. (2006). Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Edusc.). Na legislação colonial, bastavam cinco escravos fugidos em um rancho permanente para delimitar um quilombo. Já na legislação imperial, esse número diminuiu para três e não era necessário se constituir em rancho permanente (Almeida, 1996Almeida, A. W. (1996). Quilombos: sematologia face a novas identidades. In Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos. Frechal: terra de preto, quilombo reconhecido como reserva extrativista (pp. 11-19). SMDDH.).
Uma das resistências ao projeto colonial foi a produção do Quilombo dos Palmares. Esse território se desenvolveu com moldes próprios de resistência, vivências transmigradas e experiências cotidianas de luta pelo seu corpo, pela sua vida. Sua luta não foi apenas uma passagem rápida pela história do país, mas uma luta de um século, entre 1597 e 1694. O Quilombo dos Palmares esteve em combate desde o início de sua existência e, mesmo após a sua derrocada, de acordo com Nascimento (2006Nascimento, B. (2006). Kilombo e memória comunitária: um estudo de caso. In A. Ratts (Org.). Eu sou atlântica: sobre trajetória de vida de Beatriz Nascimento (pp. 111-116). Imprensa Oficial.), esta não levou à eliminação do modo de vida quilombola: ao contrário, esse modo se enraíza nos interiores e se fortalece para novas emergências na história do país.
No percurso histórico, os discursos sobre os quilombos vão se modificando e ganhando força como território de resistência e luta, no início do século XX. O antropólogo Arruti (2006Arruti, J. M. (2006). Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Edusc.) irá propor a visualização de três formas de construção discursiva sobre o quilombo, no século XX: primeiro, como resistência cultural; segundo, como resistência política; e, por fim, afirmação do movimento negro.
O caráter de resistência cultural distingue o quilombo como responsável pela manutenção dos modos de vidas africanos, que tinham suas ligações a diversas etnias e povos da África, que construíram uma aliança entre o estar na América, vivenciar o sistema escravista e afirmar seus lugares transmigrados. A segunda forma aparece como resistência política, citada por Arruti (2006Arruti, J. M. (2006). Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Edusc.), a qual englobará o quilombo como um lugar de resistência popular vinculado ao debate de classe, como comunidade potencialmente revolucionária com respeito à ordem dominante. Por fim, a terceira ressemantização possibilitará a relação entre a primeira e a segunda, numa junção entre resistência cultural e política, na construção da categoria de resistência negra: “Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial” (Nascimento, 1980Nascimento, A. (1980). O Quilombismo. Vozes., p. 263).
É em meio aos tensionamentos e à diversidade de narrativas que é gerado o quilombo no imaginário social brasileiro. Esses discursos atuarão na formação identitária das comunidades, nas representações políticas sobre os quilombos, na produção de garantia de direitos constitucionais, como também na construção de posições de enfrentamento aos modos de opressão do sistema dominante. Como afirmam R. M. Oliveira e R. J. Oliveira (2019Oliveira, R. M. S., & Oliveira, R. J. (2019). Psicologia e saúde mental: educação quilombola no Recôncavo da Bahia. In R. M. S. Oliveira (Org.). Quilombos: Saúde Mental, Psicologias e Outras visões (pp. 37-80). EDUFRB.), a luta pela garantia de direitos às comunidades quilombolas é necessária e fundamental, porém, junto dela deve-se buscar ações, práticas e produções que fortaleçam os modos de produção da subjetividade destes coletivos negros frente ao racismo estrutural que se expressa nestas vidas diariamente.
A emergência de identidades políticas como força política
Ao debater-se sobre comunidades quilombolas, apresentam-se discussões sobre o movimento social que luta contra o sistema de desigualdade racial, de classes e de gênero, o qual perpassa gerações, desde o período colonial até os dias de hoje. Essa luta vai além da busca por igualdade, porque ela reivindica o reconhecimento de seus modos de viver e luta por recursos políticos e direitos sociais à população negra.
A democracia racial brasileira, como afirma Costa (2012Costa, E. S. (2012). Racismo, política pública e modos de subjetivação em um quilombo do Vale do Ribeira [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca digital de teses e dissertações da USP. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-13082012-104304/publico/costa_do.pdf
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
), é forjada de forma ideológica pelo mito de uma nação miscigenada que busca impedir a afirmação das identidades raciais negras e indígenas, bem como enquadrar modos de vida ancestrais ao padrão da supremacia branca. Este mecanismo possibilita a reprodução de expressões preconceituosas e práticas discriminatórias que atuam de forma sofisticada nos interditos do cotidiano.
Como afirma Schucman (2010Schucman, L. V. (2010). Racismo e antirracismo: a categoria raça em questão. Psicologia política, 10(19), 41-55.), o racismo tem suas raízes cravadas sobre o terreno de um discurso biologicista já desvalidado, mas que se perpetua enquanto categoria social, que marca os sujeitos de forma inferiorizada pela sua cor de pele, traços físicos, gestos, sotaques, religiosidade e expressões culturais. É sobre a categoria raça, consolidada de forma pejorativa, que a discriminação e o preconceito se perpetuam, mas é sobre ela, também, como afirma Schucman (2010), que a população negra vem se afirmando e se unindo. Racializar as relações de modo a negritar as assimetrias de poder implicadas à população negra, trazendo à tona os embates sociais e as desigualdades fundadas nas relações étnico-raciais, produzindo campos de resiliência sobre a mesma categoria social, é a luta travada pelo movimento negro e quilombola na sua afirmação como povos.
De acordo com Santos (2016Santos, A. O. (2016). A psicologia na compreensão da identidade étnico-racial do negro no Brasil. CEAD/UFF.), aqueles que lutam por reconhecimento vivenciam situações desiguais de recursos e poder, não sendo considerados enquanto sujeitos de direitos, e sua reivindicação é a chave para superar as desigualdades vividas de forma coletiva. É a partir da relação, da permanência e da transformação que o sujeito vai reconhecer suas semelhanças e diferenças em face do outro.
No Brasil, grupos étnico-raciais produzem em sua luta política cotidiana uma descentralização do padrão branco como ideal, por meio de trocas simbólicas e culturais, abrindo espaço para outras formas identitárias baseadas numa maneira subjetiva de ver e entender o mundo, com base em sua própria forma de viver, pensar e agir. Essa nova formação atua, tanto no plano coletivo quanto individual, auxiliando no fortalecimento de identidades políticas que afirmem as diferenças étnico-raciais como resistência.
O processo de identidade política está associado ao fenômeno contrário à dominação, pois trata de uma tentativa de construir um plano que agrupe as formas de ser e existir numa luta em comum por direitos e reconhecimento. Esse espaço em comum possibilita que as identidades políticas emerjam em suas diferentes expressões, as quais, num processo de relação com seus pares, são capazes de definir referências simbólicas e intersubjetivas que os diferenciem de padrões coletivos da supremacia branca e os aproximem das suas realidades afrodiaspóricas, transmigradas e elaboradas cotidianamente a partir do compartilhamento de suas experiências de subalternização, demonstrando sua potência, que se revela na cultura, produção de saber, nas relações de cuidado e modos de subjetivação, dentre outros (Prado, Campici & Pimenta, 2004Prado, M. A., Campici, C. P. F., & Pimenta, S. D. (2004). Identidade coletiva e política na trajetória de organização das trabalhadoras rurais de Minas Gerais: para uma psicologia política das ações coletivas. Psicologia em Revista, 10(16), 298-317.).
A identidade política tem a capacidade de se fazer e se refazer, em vista das circunstâncias que nela predominam e da vontade de transformação política dos que dela fazem parte. É nesse campo criativo que as comunidades negras quilombolas transformam seus modos de existência. Ao mesmo tempo em que se afirmam enquanto comunidades negras, elas questionam a ordem de uma sociedade baseada no racismo e na exploração agrária. A negociação das identidades políticas frente ao Estado possibilita o reconhecimento jurídico-político necessário à garantia dos direitos aos povos quilombolas, mas na relação deste reconhecimento com o Estado se produz uma forma de governo que visa tutelar seus modos de vida (Oliveira R. M., & Oliveira R. J., 2019Oliveira, R. M. S., & Oliveira, R. J. (2019). Psicologia e saúde mental: educação quilombola no Recôncavo da Bahia. In R. M. S. Oliveira (Org.). Quilombos: Saúde Mental, Psicologias e Outras visões (pp. 37-80). EDUFRB.).
Aquilombamento: Caminhos da Pesquisa
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com três lideranças do Cajá dos Negros de diferentes gerações na comunidade quilombola localizada no sertão alagoano - uma das comunidades mais antigas do estado, reunindo cerca de 80 famílias -, caracterizada por um grande histórico de lutas travadas pelos direitos quilombolas. A Cajá dos Negros não possui acesso a alguns serviços básicos de subsistência, como calçamento, saneamento básico ou água encanada, tendo ainda vivido e resistido diante desses processos.
A imersão na comunidade aconteceu por meio um contato prévio entre uma das pesquisadoras, a qual morava em uma comunidade campesina situada perto do Cajá dos Negros, de sorte que essa proximidade territorial foi crucial para o desenvolvimento de laços e criação de vínculo. O contato foi iniciado em 2019, quando foi apresentada às lideranças a proposta de pesquisa. O projeto foi discutido e construído a partir dessa relação participativa entre pesquisadora e lideranças.
Os critérios de inclusão para a participação da pesquisa foram: ser residente na comunidade, ter acima de 18 anos de idade, de diferentes gerações e que aceitaram participar da investigação, por meio da compreensão e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), respeitando-se o anonimato, por meio de um roteiro de entrevista que buscasse atender a dois diferentes conjuntos, como guias para discernimento das construções sociais, históricas, políticas e culturais: a) Identidade: o que significa “ser quilombola”; b) Memória e formação do quilombo.
Para analisar a produção de informações, adotou-se a análise temática de conteúdo (Bardin, 1977Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Edições 70.) mediante três fases: pré-análise, exploração do material e análise de conteúdo. A utilização do método de análise de conteúdo levou à categorização de duas temáticas: 1) “Identidade política quilombola na formação subjetiva de mulheres negras”; 2) “A expressão da identidade política nas diferentes gerações”. O projeto foi submetido à avaliação e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).
Foram incluídas na pesquisa três moradoras da comunidade de três grupos etários distintos: jovem de 18 anos, adulta de 26 anos e idosa de 60 anos. Assim, foi possível compreender, nas diferentes gerações, as elaborações diversas produzidas sobre a identidade política quilombola presente no território do Cajá dos Negros.
A jovem da comunidade, filha de agricultores, mãe da Paraíba e pai descendente de quilombo, nascido e criado no Cajá dos Negros, sobrinha da liderança comunitária, afetuosa e destemida, reconhecida por toda a comunidade. Desde nova, esteve imersa nos espaços de liderança: sua mãe foi uma das mulheres que lutou pelo reconhecimento da comunidade e hoje é uma das cuidadoras do banco de sementes. Esse breve enlaçar de narrativa visa a evidenciar que o percurso dela é tracejado ao lugar no qual hoje ela se afirma, assumindo a posição de liderança em relação às jovens da comunidade.
Na comunidade, há alguns anos, surgiu o grupo de dança “Dandara”, objetivando potencializar os aspectos culturais ensejados na comunidade, de forma a construir um espaço de fortalecimento da ancestralidade afrodescendente; ora, uma das mulheres responsáveis pela construção, manutenção e protagonismo desse grupo foi a adulta participante da pesquisa. Atualmente não está mais ligada ao grupo, porque teve de se afastar, devido à gravidez e ao trabalho na roça, contudo, continua a defender o grupo como um lugar de potência coletiva para as jovens participantes.
Por fim, a idosa participante do estudo foi uma das propulsoras no desenrolar do reconhecimento do Cajá dos Negros pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), sendo ainda uma das colaboradoras e cuidadora do banco de sementes da comunidade. Em todo o seu discurso, caracteriza as mulheres da comunidade como fortes, lutadoras e construtoras dos saberes e cuidados coletivos.
Como um espaço comunitário fortalecido, as mulheres apresentadas eram vizinhas, amigas de vida e companheiras de luta, feições que possibilitavam os destraves políticos na afirmação de uma identidade coletiva, negra e ancestral. Assim, as participantes da pesquisa foram escolhidas em razão de sua participação nos espaços de resistência e liderança da comunidade e pelas suas diferenças geracionais. Para referenciá-las, durante a discussão, resguardamos o anonimato e trazemos como alusões plantas da região do sertão alagoano, que resistem às adversidades às quais são expostas. Dessa maneira, as participantes serão identificadas como Aroeira (idosa de 60 anos), Ipê (adulta de 26 anos) e Caroá (jovem de 18 anos).
Identidade política quilombola na formação subjetiva de mulheres negras
O processo de colonização deixou marcas que atravessam as vidas negras até as relações atuais, desenvolvendo práticas de abuso que se sustentam por meio de instituições, pessoas e produções de conhecimentos, em um emaranhado capaz de levar à deslegitimação e interdição de ações, conhecimentos e modos de existência dos povos colonizados.
As interdições vão desde a possibilidade de afirmação da ancestralidade, das memórias contadas e refletidas, da produção de saberes comunitários, práticas de cuidado, até propriamente o grito de liberdade das amarras coloniais. Os silenciamentos acontecem de modo a negar trajetórias, migrações e elaborações coletivas, as quais fundaram e fundamentam as lógicas de existência da população negra.
Contudo, os quilombos produziram saberes comunitários e lutas coletivas que permitiram a emergência de identidades políticas, no intuito de constituir uma identidade étnico-racial quilombola, capaz de difundir transformação e perspectivas de resistência, rompendo com paradigmas discursivos de elaborações hegemônicas.
Inseridas em um contexto rural, quilombola, no sertão de Alagoas, mulheres da Comunidade Cajá dos Negros têm elaborado vivências que perpassam as quebras dos entraves costumeiros e propiciam transgressões que reformulam suas vidas, corpos, ações e criações. O ato de emergir nessas lutas e buscar transformações indaga diferentes subjetividades ao longo das gerações, as quais mantêm em si a resistência frente ao sistema opressor.
No abraçar das causas comunitárias, no costurar de memórias ancestrais, nas quais se apresentam lutas, perdas, ganhos, produções de cuidado e saberes, essas mulheres vão se construindo e se afirmando enquanto grupo étnico racialmente marcado, levando a carga de seu gênero em suas experiências de alteridade.
O reconhecimento do Cajá dos Negros pelo Incra aconteceu em 2005 e foi fruto de uma articulação política lançada e mantida por mulheres da comunidade, segundo expressa Aroeira: “. . . nós montamos uma associação e ela foi de água abaixo, aí nós levantamos uma associação de mulheres, essa associação é mais mulheres do que mesmo homem. Quando tem reunião, só dá mulher, qualquer coisa que tenha, só dá mulher”.
Esse relato evidencia a participação de mulheres nos espaços de resistência, sempre presentes ao longo da história do Cajá. Assim, as mulheres da comunidade vão desempenhando diversas funções, desde o plantio até o cuidado da casa, a luta por acesso aos direitos básicos e as práticas de cuidados do coletivo. O relato de Aroeira vem ao encontro dos estudos de Souza e Araújo (2014Souza, P. B., & Araújo, K. A. (2014). A mulher quilombola: da invisibilidade à necessidade por novas perspectivas sociais e econômicas.. In J. T. Esteves, J. L. A. Barbosa, & P. R. L Falcão. Direitos, gênero e movimentos sociais II (pp. 163-182). Conpedi.), as quais afirmam que as mulheres quilombolas encontram-se em atividades centrais em seus territórios participando como lideranças políticas, guardiãs dos saberes ancestrais e produtoras agrícolas.
Essa presença nos espaços as leva tanto a um lugar de acúmulo de trabalho como de produção de conhecimentos. Nesse sentido, é a partir desse local racialmente definido e nas subjugações por seu gênero que se forjam as experiências dessas mulheres negras, mediante a marginalização de grupos socialmente oprimidos que buscam a rearticulação de suas vidas. Segundo Guedes e Salgado (2017Guedes, A. C. B, & Salgado, M. S. (2017). Mulheres quilombolas: breves considerações sobre gênero, raça e geração no quilombo de Santa Rita da Barreira. In Anais, XI Encontro Regional Nordeste de História Oral (pp. 1-15). Universidade Federal do Ceará. http://www.nordeste2017.historiaoral.org.br/resources/anais/7/1493986755_ARQUIVO_Artigoencontrohistoriaoral.pdf
http://www.nordeste2017.historiaoral.org...
) há no Brasil uma invisibilidade sobre a participação das mulheres negras na vida social, e, de forma mais acentuada, da mulher do campo. Prioriza-se a narrativa do universo masculino como orientador dos processos produtivos no campo. Porém, tal afirmativa é uma falácia, já que as mulheres negras campesinas são protagonistas na produção, na luta política e na organização da vida comunitária.
A entrevista com Aroeira demonstra esse lugar de enfrentamento no percurso de sua vida, de como foi difícil estudar devido ao deslocamento à cidade ou quanto às condições financeiras da família, o que fez com que muito jovem já começasse a trabalhar na agricultura. Fez relatos sobre a maternidade e o contentamento em ver sua filha cursar o ensino superior e, por fim, o quão crucial foi seu envolvimento nos enfrentamentos da comunidade, trazendo de maneira enfática a participação das mulheres no resgate de memórias, cuidados coletivos e luta por direitos. Hoje, Aroeira é uma das cuidadoras do banco de sementes e garante nunca mais se afastar dos espaços de discussão e articulação da comunidade.
O relato da idosa expõe que, na produção de identidade política quilombola, é necessário que, ao desempenhar de papéis comunitários, a aliança e a elaboração de resistência estejam unidas, num processo de colocar-se em relação com o outro, para que sejam constituídos vínculos, pertencimento e reconhecimento. Nesse amarrar de saberes, subjetividades, modos de ser e de acolher, as mulheres se constroem por meio de uma dupla alteridade, de raça e gênero (Fernandes, 2016Fernandes, D. A. (2016). O gênero negro: apontamentos sobre gênero, feminismo e negritude. Revista Estudos Feministas, 24(3), 691-713. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2016v24n3p691
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
).
Ressalta Fernandes (2016Fernandes, D. A. (2016). O gênero negro: apontamentos sobre gênero, feminismo e negritude. Revista Estudos Feministas, 24(3), 691-713. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2016v24n3p691
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
): “Os modos pelos quais cada comunidade negra rural se incorpora o conceito de quilombo é determinante na maneira como elas gerenciam suas relações e vida comunitária” (p. 202). Essa afirmação nos leva a alguns dos relatos expressos pelas participantes, os quais denotam a importância de se colocar em uma posição de enfrentamento político e orgulho, tal como exposto por Ipê: “Ter ancestralidade de afrodescendentes, pessoas que sofreram muito, mas que lutaram muito para serem livres, isso sim é meu orgulho . . . aqui entre nós não tem preconceito, preconceito a gente sofre lá fora, aqui não. Nós somos uma comunidade!”.
A fala de Ipê reflete seu percurso dentro da comunidade. Ela participou da primeira fase do grupo de dança “Dandara” e considera sua passagem no grupo como um caminho ao reconhecimento e fortalecimento de vínculos entre mulheres negras na comunidade. O desligamento aconteceu após mais de três anos e devido a uma gravidez não-planejada, que a levou a voltar-se para o âmbito do trabalho. Contudo, frisa que sua participação nas ações e debates da comunidade continua assídua: “. . . a comunidade reconhece seu orgulho e isso é o importante, que traz conquistas na luta. Tem reuniões de discussões, a líder comunitária conversa, qualquer coisa tem que se juntar todas pra ser uma comunidade junta e unida”.
No tracejo de sua luta, Ipê destaca a participação das mulheres nos enredos construídos pela comunidade: “Aqui [na comunidade] conseguimos ter tudo, posto de saúde, mercado. Tem enfermeiro, dentista, médico”. Tudo isso é fruto das lutas travadas por elas.
Na conversa com Caroá, a qual ocorreu em sua residência, ela pôde abordar suas experiências ligadas ao ingresso na universidade e como essa conquista a fortaleceu, pois, desde os nove anos, ela começara a trabalhar de babá para uma madrinha que morava na cidade de Batalha, o que, ao mesmo tempo, dificultava seus estudos, mas fornecia auxílio financeiro à família. Segundo Caroá mesmo expôs, “. . . muitas jovens precisam começar a trabalhar cedo para ajudar aos pais, nossa vida aqui não é fácil, não temos oportunidades de emprego”.
A jovem atuava junto às lideranças da comunidade, auxiliando na parte de secretaria e articulando documentos; também era coordenadora do grupo de dança “Dandara”, que está na segunda fase de formação. Toda sua trajetória e colaboração com ações do coletivo demonstram seu orgulho e pertencimento, que tanto ela indica prezar durante a conversa, denotando o quanto foi forte ver outras mulheres guiando essas práticas de resistência ao longo da história da comunidade. Em uma das falas iniciais, quando foi questionada sobre o que significava ser quilombola, ela narrou: “É bom por parte, porque a gente vê o reconhecimento não só aqui na comunidade, mas também fora. Mas também é ruim, porque, tipo, a gente sempre fala que estamos ultrapassando alguns limites, mas continuamos sofrendo preconceito, principalmente fora”.
As narrativas apresentadas levam à configuração de duas discussões: primeiramente, o antagonismo quanto à afirmação identitária, que, em uma via, indica as diferenças entre coletivos e como estes devem ser símbolos de reconhecimento por suas especificidades nos modos de ser e produzir vivências; por outra via, no momento em que assume o lugar de quilombola, apropria-se de marcas e discursos hegemônicos que lhe foram impostos e que sucumbem em relações racistas. Os estudos de Fernandes e Santos (2016Fernandes, S. L., & Santos, A. O. (2016). Itinerários terapêuticos de mulheres quilombolas de Alagoas, Brasil. Interfaces Brasil/Canadá, 16(2), 137-153.), Fernandes, Galindo e Parra-Valencia (2019Fernandes, S. L., & Santos, A. O. (2019). Itinerários Terapêuticos e Formas de Cuidado em um Quilombo do Agreste Alagoano [número especial]. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 38-52. https://doi.org/10.1590/1982-3703003176272
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
) e Valentim e Trindade (2011Valentim, R. P. F. & Trindade, Z. (2011). Modernidade e comunidades tradicionais: memória, identidade e transmissão em território quilombola. Psicologia Política, 11(22), 295-308.) apontam, também, para este duplo vínculo vivido pelas moradoras e moradores na relação com a identidade quilombola, que ora afirma o território e fortalece a luta, e ora enfrenta as produções branco-hegemônicas que buscam desqualificar e violentar seus modos de vida.
Dessa maneira, a identidade deve ser pensada e baseada em um terreno que confere reconhecimento às equivalências de direitos, na criação de espaços de atuação política, configurados diante da luta por reconhecimento e recursos, a qual vai sendo articulada por meio de tensionamentos políticos, na tentativa constante de quebras hegemônicas, reatualizando o que é “ser quilombola”. Nisso, indaga-se a identidade política como um processo psicossocial, na busca por visibilidade social e rompimento de práticas de dominação (Prado, Campici, & Pimenta, 2004Prado, M. A., Campici, C. P. F., & Pimenta, S. D. (2004). Identidade coletiva e política na trajetória de organização das trabalhadoras rurais de Minas Gerais: para uma psicologia política das ações coletivas. Psicologia em Revista, 10(16), 298-317.).
A segunda discussão que deve ser levantada concerne aos papéis de gênero atribuídos a essas mulheres, no decorrer de suas vidas, os constantes lugares de dificuldades - estudo, gravidez, trabalho, entre outros - e como elas conseguem executar esses múltiplos afazeres e se afetar com eles, como uma potência propulsora para a militância política. A militância dessas mulheres não se encontra como um projeto segmentado dos seus afazeres cotidianos e de seus modos de viver que não necessariamente atendem a uma normalização de gênero embranquecida (Carvalho, Galindo, Lopes, Fernandes, & Valencia, 2019Carvalho, H., Galindo, D., Lopes, M., Fernandes, S., & Valencia, L. P. (2019). Pomba-giras: contribuições para afrocentrar a Psicologia. Quaderns de Psicologia, 21(2), e1466. https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1466
https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia....
). Ao contrário, seus modos de viver, assimetricamente experienciados na intersecção dos marcadores sociais de raça, gênero e geração, mobilizam suas vidas para a luta política.
Nessa perspectiva, assinala Fernandes (2016Fernandes, D. A. (2016). O gênero negro: apontamentos sobre gênero, feminismo e negritude. Revista Estudos Feministas, 24(3), 691-713. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2016v24n3p691
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
): “A identidade política é a emergência destes projetos possíveis, que por não estarem ainda efetivados, permitem o enfrentamento da ordem social na criação e na invenção de outras realidades” (p. 205). No Cajá dos Negros, todos os cargos de liderança são ocupados por mulheres - liderança comunitária, agente de saúde local, direção da escola, banco de sementes, entre outros. Em uma das falas da liderança comunitária, registrada no diário de campo, Ipê ressalta: “Aqui as mulheres são a força, toda atividade ou reunião, todas estão presentes, pois buscamos o melhor para comunidade e para nós, pra que a gente construa uma comunidade com acesso a todos os direitos que lhe pertence”. Assim, as mulheres vão desempenhando aspectos de liderança constante, transmitida ao longo de gerações como uma das características ancestrais do território quilombola.
Ao colaborarem com a construção da associação comunitária, as mulheres da comunidade começam a trilhar um percurso de resistência frente às adversidades políticas, sociais e históricas que lhes foram impostas, posteriormente, com o reconhecimento do Incra - o qual representa uma conquista na luta pelo direito à terra e ao território -, elas atestam suas possibilidades de potência, de forma que vai sendo construída uma identidade política que perpassa as gerações, trilhando subjetividades subversivas capazes de transformar seu pertencimento e sua realidade, em que se enfrentam lutas constantes e cotidianas.
Durante as narrativas, observa-se que as mulheres da comunidade têm construído laços que se revertem em lutas cotidianas, em face de uma sociedade atravessada por machismo e racismo, a qual erotiza a mulher negra e a coloca em um lugar social subalterno - a dupla alteridade da mulher negra revela a característica interseccional da opressão (Hooks, 1995Hooks, B. (1995). Intelectuais negras. Revista Estudos Feministas , Florianópolis, 3(2), 464-476.) em que é duplamente caracterizada como um ser inferior, por sua condição de mulher negra. Assim, ela é vista a partir de seu corpo tido como mais próximo da natureza e mais primitivo que o corpo da mulher branca ou do homem negro. Ora, ao reverter essa ordem, elas se colocam no lugar de implicação, indagação de suas realidades, e projetam uma nova concepção de vida.
Ao longo das gerações, mesmo que as frentes de atuações das mulheres tenham se modificado, ainda há o princípio de atuar pelas conquistas comunitárias, o engajamento pelo reconhecimento social e luta pela terra. Dessa forma, desmistificam o corpo negro e transgridem a existência, além de renovar seus saberes e suas formas de ser e existir no mundo, potencializando as práticas coletivas.
A expressão da identidade política nas diferentes gerações
A identidade política tem a capacidade de passar por processos constantes de modificação, articulando-se por meio das demandas históricas, políticas, sociais e econômicas expressas por diferentes épocas. Nesse sentido, o roteiro trilhado pelas mulheres do Cajá dos Negros se constitui de formas diversas, em seus recortes geracionais.
No trânsito de vida de Aroeira, ela acompanhou processos iniciais das experiências coletivas sobre o que é “ser quilombola”. Durante a conversa, ela narra como se deram as primeiras situações nas quais puderam refletir sobre suas histórias, suas formas de organização individual e coletiva, e de quais lugares vieram esses modos de existência:
Nos anos 60 era uma comunidade muito pequena, com casas espalhadas, aí apareceu uns homens, uns soldados num jipe, e aí, quando o povo via, o povo corria pros matos, tinha medo. Aí eles queriam descobrir a origem desse povo negro, de onde tinham vindo, porque tinham só famílias negras. Só que eles queriam saber era do negro velho que veio fugido do quilombo dos Palmares. Aí foi quando a gente foi juntando peça com peça, pois não tínhamos o entendimento completo, foi que nem um quebra-cabeça. Mas demorou a ser reconhecida a história. (Aroeira)
Nesse relato, Aroeira aborda o reconhecimento coletivo sobre o caminho trilhado, a identificar-se enquanto sujeitos pertencentes a um grupo étnico racialmente demarcado, o qual carrega consigo raízes ancestrais, formas de existência singulares, construindo elaborações específicas em seu modo de ser e agir em sociedade. Essas reflexões ainda não haviam sido traçadas e o pontapé ocorreu com as visitas do exército à comunidade, na época da ditadura militar.
Foi por meio dessa passagem adversa que a comunidade foi trilhando a narrativa da sua história. Aroeira expõe que as/os moradoras/es levaram um tempo até conseguir montar o quebra-cabeça dos trajetos percorridos até a formação atual. Conta que o passo inicial foi delimitar a história do “nego véio”:
. . . “nego véio” é a maneira que a comunidade chama o primeiro homem negro daqui, ele foi o fundador do nosso quilombo. A história conta que ele veio fugido do Quilombo dos Palmares até as terras de um fazendeiro daqui, aí ele permaneceu e passou a trabalhar nessa fazenda, depois ele ganhou um chãozinho do fazendeiro e deu início a sua família. Depois, foi se formando outras famílias e assim foi sendo construído o quilombo. (Aroeira)
O reconhecimento aconteceu em 2005, pois os anos anteriores foram marcados por processos de produção identitária, criação da associação comunitária e, posteriormente, um longo processo de ações para conseguirem ser reconhecidos como quilombolas. Em geral, a luta por reconhecimento e titulação de terras costuma ser mesmo longa. Aroeira enfatiza: “Quando conseguimos o reconhecimento, veio alguns projetos para cá, só que depois foi caindo, diminuindo, aí vejo que a gente tem que ainda lutar mais e lutar muito. Antes de ser reconhecida, não chegava nada aqui, era muito ruim”. Em seguida, ela explica:
Hoje facilitou mais, porque tem a Bolsa-Escola, tem Bolsa-Família, aí já podemos comprar um arroz, um fubá. Mas, no meu tempo… Hoje já tem mercado aqui, mas de primeiro era de matar, porque era de pé, pensa que tinha transporte? Trabalhava até sexta-feira, chegava da roça, tirava aquela roupinha, lavava, botava em cima do fogo, pra ver se enxugava pra ir pra feira, quando era 4h da madrugada, já fazia aquela fila de rebanho pra ir esperar o fazendeiro vir, pra pagar o dia de serviço pra gente comprar farinha e feijão, e uns pedacinhos de carne. Não tinha história de arroz, macarrão, ou essas comidas boas que têm hoje não, que todo mundo pode comprar, porque hoje tem uma bolsa renda, aí melhorou. (Aroeira)
Os diálogos com Aroeira expressam a participação de lutas políticas por direitos, demonstrando que os recursos de resistência e pertencimento tiveram início em sua geração, a qual passou por dificuldades de acesso a serviços básicos - estudo, trabalho, moradia, alimentação etc. - e que, por estar à margem social, experimentou seus processos de humilhação e invisibilidade social, acarretando a construção de laços coletivos pelos tensionamentos políticos que reverberassem no acesso ao reconhecimento e políticas públicas.
Percebe-se que a geração das(os) idosas(os) desempenhou um papel fortíssimo na elaboração e identificação dos saberes ancestrais, dos processos de transmissão e articulação dos conhecimentos e memórias coletivas, produzindo lutas que se estabilizaram, garantindo que as gerações futuras pudessem resistir às adversidades políticas e sociais, conforme se reflete na fala de Ipê: “Ter ancestralidade de afrodescendentes, pessoas que sofreram muito, mas que lutaram muito para serem livres, isso sim é meu orgulho”. Valentim e Trindade (2011Valentim, R. P. F. & Trindade, Z. (2011). Modernidade e comunidades tradicionais: memória, identidade e transmissão em território quilombola. Psicologia Política, 11(22), 295-308.) afirmam em seu estudo que o modo de relação com a identidade quilombola varia de acordo com as posições geracionais, sendo que cada geração apresentava uma compreensão e modo de atuação frente a identidade quilombola vivida no território investigado.
De acordo com Mannhein (1993Mannhein, K. (1993). El problema de las geraciones. Revista Española de Investigaciones Sociológicas , 62, 193-242.), os processos de transformações geracionais, não são produções naturais lineares, ligadas à idade, mas se fazem como fenômeno político, o qual se insere no plano de relações sociais entre os variados grupos, que vão sendo formados pelas condições históricas, políticas e econômicas de cada território.
Assim, as pessoas de mais idade na comunidade desempenham o papel de transmitir as memórias dessas lutas, dos aspectos culturais e das articulações de saberes do campo. Com isso, é possível compreender que os roteiros traçados na geração seguinte expressam elaborações constantes sobre o que é “ser quilombola”, como apresentada na fala de Ipê:
Assim, a questão é, a pessoa antes sendo mais jovem, a pessoa não entende, num para pra pensar a quantidade de formas de preconceito que você sofre e você leva numa boa. Por exemplo, nós aqui somos do Cajá, aí uma pessoa diz “Olha a nega preta do Cajá”, aquilo ali machuca. Quando dizem: “Olhem os negros onde vão passando ali.” São diversas formas de preconceito, por cor, ou até por religião mesmo. (Ipê)
Em seguida, ela complementa: “Quando eu vejo uma cena de alguém sofrendo, você espera a pessoa tomar uma atitude, porque as leis estão para isso e racismo dá cadeia. Não é fácil, às vezes, a gente deixa passar, mas é bom tomar uma atitude”. Quando questionada sobre os motivos que a fazem ou levam outras moradoras(es) a deixar passar essa situação, Ipê responde: “. . . às vezes, pela idade, às vezes, pela educação. Quando você passa por coisas várias vezes, você de certa forma acaba até se acostumando com aquilo. Na verdade, a gente não se acostuma, mas está no cotidiano da gente”. Os relatos de Ipê trazem alguns conjuntos de análise, de modo que desvelam a passagem dessa geração e os afetos levantados. Podemos estabelecer duas considerações: 1) Duplo vínculo com a identidade quilombola e 2) Alteridade de gênero.
A primeira consideração remete a questões expressas na fala de Ipê, que expõem contrapontos em assumir a identidade quilombola, visto que acolhê-la enquanto potência de transformação e de afirmação de pertencimento desembocará em enfrentamento às desordens históricas, políticas, econômicas e sociais que invisibilizam cultura, saberes e modos de ser afrodiaspóricos, dentro das estruturas sociais, conduzindo a processos de humilhação social, desde a negação de direitos até jogos de relações de poder marcados por práticas de racismo e sexualização do corpo da mulher negra.
À vista disso, reconhecer-se enquanto sujeito quilombola, em parte, evidencia o direito ao acesso à terra e ao território, assim como a possibilidade de pertencimento na perspectiva de construção de identidade política, como passar por situações de discriminação étnico-racial e de gênero, criando, assim, um duplo vínculo no que concerne às identidades negras rurais. Conforme apontam Costa e Scarcelli (2016Costa, E. S., & Scarcelli, I. R. (2016). Psicologia, política pública para a população quilombola e racismo. Psicologia USP, 27(2), 357-366. https://doi.org/10.1590/0103-656420130051
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
), silenciar a negritude pode significar negar a humilhação social em situações de discriminação social, mesmo que esta persista inegável em seus efeitos. Ainda de acordo com os autores, o processo de reconhecimento e titulação é acompanhado por longos interrogatórios que recortam os modos de vida de acordo com as políticas de identidade definidas pelo Estado Nacional.
Quanto às narrativas apresentadas, Ipê traça uma trajetória de luta pelo reconhecimento quilombola e assim gera o desencadeamento de alteridades de gênero, transpondo estigmas e roteiros pré-definidos socialmente. Em seu itinerário, Ipê pôde participar da construção de alguns projetos na comunidade, tendo integrado a primeira formação do grupo de dança “Dandara”, junto a outras jovens, de sorte, por meio da dança, a traçar elaborações sobre o corpo negro e a expressar a cultura dos quilombos.
A alteridade de gênero e geração de Ipê, expressa pela luta dessas mulheres, permite que elas reconheçam suas diferenças com respeito a grupos e setores sociais e, em consequência, lancem mão da construção da identidade política como possibilidade de afirmação de pertencimento, constituição de ações coletivas, estabelecimento de laços e processos de transformações comunitárias, promovendo a emergência de modos de ser e existir das comunidades quilombolas, enquanto sujeitos coletivos e individuais, imersos em suas elaborações subjetivas singulares.
A geração de Ipê enfrentará processos de reflexão e ressignificação sobre a identidade quilombola, mergulhando em aspectos sobre a estrutura social do racismo e como ela atinge as comunidades quilombolas, influenciando seus modos de produções identitárias. Assim, desencadeará a implementação de projetos na comunidade e espaços de diálogos, para que essas elaborações sejam refletidas e busquem ações combativas. Conforme aponta Crenshaw (2002Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, 10(1), 171-188. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
), as experiências das mulheres racializadas como negras são, frequentemente, ignoradas por não fazerem parte das experiências dos grupos dominantes. Ademais, as hierarquias étnico-raciais assumem distintas modalizações nos territórios, sendo um risco incorrer numa universalização que perde de vista as singularidades.
Ao passo que a geração de idosas(os) traçou processos de construção das narrativas de memórias da comunidade, dando início ao desenvolvimento de afirmações políticas na luta pelo direito à terra e ao território, a geração de adultas(os) buscou delimitar suas produções identitárias, mesmo que esse lugar levasse tanto a elaborações de pertencimento como também à passagem por situações de preconceitos étnico-raciais, instaurando, em meio a essas adversidades, alteridades que lhes possibilitassem transgredir a ordem social hegemônica. A chegada da nova geração, evidencia um fio de ligação ancestral das anteriores, considerando a transmissão de memórias, a formação de vínculos e vivências coletivas. Diante do racismo presente na estrutura da sociedade e dos preconceitos e experiências de discriminação, os quais vão sendo consolidados nas vidas das jovens, na negação de seus direitos e interdições dos seus corpos e falas, a nova geração experimenta novos processos de enfrentamento.
Na fala de Caroá, ela destaca que, “. . . aqui na comunidade, quando a gente vê alguém sofrendo preconceito, a gente defende, a gente não baixa a cabeça, sabe? A gente se impõe e fala”. Dessa maneira, enfatiza um diferente modo de se posicionar em face das adversidades sofridas pela população negra quilombola; ora, na geração anterior, esperava-se que houvesse mais um posicionamento da liderança ou das(os) mais velhas(os) - conforme as falas de Ipê -; em contraponto, a nova geração resgata sua voz e afirma sua potência coletiva de enfrentamento comunitário, impondo-se, divergindo e resistindo a práticas de racismo.
Em um momento posterior, Caroá reitera a importância de manter esse repasse de memórias, de afetos e resistências, a fim de poder formar as novas gerações: “Sinto que precisamos formar mais as crianças da comunidade e não ficar numa luta mais de mulheres. Só que aí eu busco fazer minha parte e sempre estar ajudando no que for preciso e assim nós mulheres vamos nos unindo”.
Nesse trecho, ela expõe tanto a necessidade de renegociar os enfrentamentos de luta, partindo para uma luta coletiva, não sendo essa frente levada apenas por mulheres, quanto de investir firmemente na formação das crianças, podendo construir espaços fortalecidos e unidos, na luta por direito à terra e seus modos de existência, preservando suas raízes culturais, sociais e políticas.
Percebe-se que, nos espaços coletivos, o investimento de energias e ações deve ser feito de forma comunitária - e é por esse meio que a nova geração procura seguir. Caroá assinala: “A comunidade é unida. Quando uma pessoa precisa de ajuda, ou quando a comunidade precisa conquistar algo, nos ajudamos”. É mediante essa união que vai sendo delineada a identidade política nas gerações mais jovens, e, de maneira geral, no histórico das mulheres do Cajá dos Negros, constituída a partir de um lugar afetivo de pertencimento e resistência, resultando em transformações pessoais e comunitárias. Miranda (2018Miranda, S. (2018) Quilombos e Educação: identidades em disputa. Educar em revista, 34(69), 193-207. https://doi.org/10.1590/0104-4060.57234
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
, p. 198) pontua que cada comunidade quilombola é “única na forma como articula e negocia aspectos históricos, territoriais e culturais numa lógica de resistência à própria dissolução”.
A geração de jovens acessa uma realidade mais fortalecida, a qual foi alicerçada pelas gerações anteriores, que se articularam para conquistar o reconhecimento do Incra, para arquitetar suas narrativas desenvolvendo processos mnemônicos de transmissão e afirmação ancestral e, junto a isso, por meio da resistência política (Oliveira R. M. & Oliveira R. J., 2019Oliveira, R. M. S., & Oliveira, R. J. (2019). Psicologia e saúde mental: educação quilombola no Recôncavo da Bahia. In R. M. S. Oliveira (Org.). Quilombos: Saúde Mental, Psicologias e Outras visões (pp. 37-80). EDUFRB.) acessar políticas públicas que visam amenizar realidades históricas de marginalização social dos grupos negros rurais. Com isso, as jovens passam a ter uma educação de melhor qualidade, começam a acessar a universidade - mesmo que ainda de forma tímida - e elaboram formas de enfrentamento e de reivindicação de suas vivências e direitos, rompendo interdições e transformando a realidade social que as cerca, de forma micro e macrossocial.
A análise das diferenças geracionais entre as mulheres da comunidade permitiu compreender que, na geração mais idosa, vai ocorrer a busca pelo reconhecimento do quilombo, um mergulho de aprofundamento histórico sobre suas raízes e seus modos de existência ancestrais os quais ensejassem o resgate de memórias, a transmissão de conhecimentos e o acesso à terra. E, nesse círculo, surge a aliança de mulheres para os processos de alteridade, construindo os primeiros passos de uma identidade política que fundamentasse elaborações de reconhecimento, pertencimento e transformação.
Na geração seguinte, após um processo de luta, quando a comunidade se reconhecia como quilombola e passava pelo processo de reconhecimento do Incra, começam a ser desenvolvidos espaços de afirmação cultural: o grupo de dança “Dandara” é um desses alicerces, dando início a um espaço de fortalecimento de jovens negras, as quais puderam transmitir suas marcas e vivências transmigradas para além do seu quilombo, revelando ao público externo suas afetividades, corporeidades e memórias.
A geração das jovens vai conseguindo acessar lugares anteriormente impensáveis, como a universidade. As políticas públicas auxiliarão as(os) jovens a ingressar em espaços de formação, viabilizando que retornem à comunidade e coloquem suas aprendizagens em prática. Em acréscimo, percebe-se que a maneira de se comportar em situações de constrangimento sobre sua raça, etnia ou gênero será diferente, pois a identidade política, como afirmam Fernandes, Galindo e Parra-Valencia (2019Fernandes, S. L., & Santos, A. O. (2019). Itinerários Terapêuticos e Formas de Cuidado em um Quilombo do Agreste Alagoano [número especial]. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 38-52. https://doi.org/10.1590/1982-3703003176272
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
), firmará reconhecimento e orgulho, engajando-as(os) em processos de enfrentamento político e social.
Com isso, identificamos que as diferentes gerações puderam se movimentar em espaços diversos, constituídos por meio das necessidades e possibilidades apresentadas no cotidiano, contudo, essas elaborações foram possíveis mediante processos de subjetivação diferenciados por posições geracionais que fundamentaram vínculos comunitários os quais levaram à formação de identidades políticas construtoras de posturas e ações pela luta aos direitos no quilombo.
Considerações Finais
Discorrer sobre experiências cotidianas negras quilombolas implica em visualizar o quilombo como um espaço de força e resistência, em que se emergem produções de saberes contra-hegemônicos, elaborados por meio de vivências transmigradas e processos de transmissão de memórias, criando narrativas, vínculos, afetos políticos e ações de resistência ao sistema construído de maneira estruturalmente racista e patriarcal.
Assim, a pesquisa permitiu observar que o espaço de produção de lutas cotidianas, no Cajá dos Negros, dirigidas por mulheres, levou à construção de identidades políticas firmadas mediante trajetórias geracionais. Percebeu-se que a primeira geração recorreu à formação de narrativas e transmissão de memórias para resgatar sua construção comunitária, a fim de, assim, poder indagar sobre seus direitos enquanto quilombolas, dando início às discussões identitárias negras.
A geração posterior, com base no estabelecimento de diálogos cotidianamente mais fortalecidos, devido aos laços que foram sendo instituídos e firmados, traz a emergência de reflexões sobre o duplo vínculo ao assumir-se enquanto quilombola - afirmação ancestral e de orgulho, porém, devido à estrutura social fundamentada e regida pela supremacia branca, significa vivenciar contextos de discriminação racial e de gênero -, como também ao investir em discussões nessas produções subjetivas de ordem individual e coletiva, possibilita a emergência de alteridades ou, ainda, de dupla alteridade (raça e gênero). A última geração participante, constituída por jovens negras, se articula no desenvolvimento de posturas de enfrentamento, colocando-se perante situações de humilhações, produzindo formas de romper com práticas racistas, tendo como base o envolvimento comunitário e suas raízes de existência.
O estudo visibilizou vivências de enfrentamento que floriram diante da construção de vínculos estabelecidos por mulheres negras de diversas gerações do quilombo. Cada geração apresenta as adversidades enfrentadas por assumir-se enquanto quilombola, além de evidenciar as trajetórias de resistência que foram desenvolvidas, elaborando alteridades capazes de propiciar produções subjetivas de afirmação coletiva, pertencimento e transformação.
As narrativas apresentadas inferem assegurar que a dupla alteridade - raça e gênero - que elas carregam cria marcas em seus corpos, todavia, no decorrer de suas vidas, elas são ressignificadas e outras começam a surgir: marcas de luta política, do contato com a terra, do cuidado comunitário, dos saberes aprendidos e transmitidos; ou, ainda, marcas transmigradas que permanecem em seus corpos como resistência ancestral, a política e a história de mulheres que lutaram e lutam para existir.
Referências
- Almeida, A. W. (1996). Quilombos: sematologia face a novas identidades. In Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos. Frechal: terra de preto, quilombo reconhecido como reserva extrativista (pp. 11-19). SMDDH.
- Arruti, J. M. (2006). Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Edusc.
- Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Edições 70.
- Carvalho, H., Galindo, D., Lopes, M., Fernandes, S., & Valencia, L. P. (2019). Pomba-giras: contribuições para afrocentrar a Psicologia. Quaderns de Psicologia, 21(2), e1466. https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1466
» https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1466 - Costa, E. S. (2012). Racismo, política pública e modos de subjetivação em um quilombo do Vale do Ribeira [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca digital de teses e dissertações da USP. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-13082012-104304/publico/costa_do.pdf
» https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-13082012-104304/publico/costa_do.pdf - Costa, E. S., & Scarcelli, I. R. (2016). Psicologia, política pública para a população quilombola e racismo. Psicologia USP, 27(2), 357-366. https://doi.org/10.1590/0103-656420130051
» https://doi.org/https://doi.org/10.1590/0103-656420130051 - Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, 10(1), 171-188. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011
» https://doi.org/https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011 - Fernandes, D. A. (2016). O gênero negro: apontamentos sobre gênero, feminismo e negritude. Revista Estudos Feministas, 24(3), 691-713. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2016v24n3p691
» https://doi.org/https://doi.org/10.1590/1806-9584-2016v24n3p691 - Fernandes, S. L., & Santos, A. O. (2016). Itinerários terapêuticos de mulheres quilombolas de Alagoas, Brasil. Interfaces Brasil/Canadá, 16(2), 137-153.
- Fernandes, S. L., & Santos, A. O. (2019). Itinerários Terapêuticos e Formas de Cuidado em um Quilombo do Agreste Alagoano [número especial]. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 38-52. https://doi.org/10.1590/1982-3703003176272
» https://doi.org/https://doi.org/10.1590/1982-3703003176272 - Fernandes, S. L.; Galindo, D. C. G., & Parra Valencia, L. (2020). Identidade quilombola: atuações no cotidiano de mulheres quilombolas no agreste de alagoas. Psicologia em estudo, 25, e45031. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v25i0.45031
» https://doi.org/https://doi.org/10.4025/psicolestud.v25i0.45031 - Ferrara, J. A. (2019). Diálogos entre Colonialidade e Gênero. Revista Estudos Feministas , 27(2), e54394. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v27n254394
» https://doi.org/https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v27n254394 - Guedes, A. C. B, & Salgado, M. S. (2017). Mulheres quilombolas: breves considerações sobre gênero, raça e geração no quilombo de Santa Rita da Barreira. In Anais, XI Encontro Regional Nordeste de História Oral (pp. 1-15). Universidade Federal do Ceará. http://www.nordeste2017.historiaoral.org.br/resources/anais/7/1493986755_ARQUIVO_Artigoencontrohistoriaoral.pdf
» http://www.nordeste2017.historiaoral.org.br/resources/anais/7/1493986755_ARQUIVO_Artigoencontrohistoriaoral.pdf - Hooks, B. (1995). Intelectuais negras. Revista Estudos Feministas , Florianópolis, 3(2), 464-476.
- Leite, I. B. (2000). Os quilombos no Brasil: Questões conceituais e normativas. Etnográfica, 4(2), 333-354. https://doi.org/10.4000/etnografica.2769
» https://doi.org/https://doi.org/10.4000/etnografica - Mannhein, K. (1993). El problema de las geraciones. Revista Española de Investigaciones Sociológicas , 62, 193-242.
- Miranda, S. (2018) Quilombos e Educação: identidades em disputa. Educar em revista, 34(69), 193-207. https://doi.org/10.1590/0104-4060.57234
» https://doi.org/https://doi.org/10.1590/0104-4060.57234 - Nascimento, A. (1980). O Quilombismo. Vozes.
- Nascimento, B. (2006). Kilombo e memória comunitária: um estudo de caso. In A. Ratts (Org.). Eu sou atlântica: sobre trajetória de vida de Beatriz Nascimento (pp. 111-116). Imprensa Oficial.
- Oliveira, R. M. S., & Oliveira, R. J. (2019). Psicologia e saúde mental: educação quilombola no Recôncavo da Bahia. In R. M. S. Oliveira (Org.). Quilombos: Saúde Mental, Psicologias e Outras visões (pp. 37-80). EDUFRB.
- Prado, M. A., Campici, C. P. F., & Pimenta, S. D. (2004). Identidade coletiva e política na trajetória de organização das trabalhadoras rurais de Minas Gerais: para uma psicologia política das ações coletivas. Psicologia em Revista, 10(16), 298-317.
- Santos, A. O. (2016). A psicologia na compreensão da identidade étnico-racial do negro no Brasil. CEAD/UFF.
- Schucman, L. V. (2010). Racismo e antirracismo: a categoria raça em questão. Psicologia política, 10(19), 41-55.
- Souza, P. B., & Araújo, K. A. (2014). A mulher quilombola: da invisibilidade à necessidade por novas perspectivas sociais e econômicas.. In J. T. Esteves, J. L. A. Barbosa, & P. R. L Falcão. Direitos, gênero e movimentos sociais II (pp. 163-182). Conpedi.
- Valentim, R. P. F. & Trindade, Z. (2011). Modernidade e comunidades tradicionais: memória, identidade e transmissão em território quilombola. Psicologia Política, 11(22), 295-308.
- Veiga, L. M. (2019). Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. [número especial]. Fractal: Revista de Psicologia, 31, 244-248. https://doi.org/10.22409/1984-0292/v31i_esp/29000
» https://doi.org/https://doi.org/10.22409/1984-0292/v31i_esp/29000
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Dez 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
03 Jul 2020 -
Aceito
19 Jul 2021