Resumo:
A Psicologia historicamente, ao adentrar as instituições escolares, teve uma atuação vinculada a questões individuais, de aprendizagem e de fracasso escolar. Esse contexto passa por uma transformação quando a Psicologia brasileira começa a construir uma perspectiva crítica articulada à realidade institucional. Inserido no contexto da interface Psicologia e Educação, objetiva-se problematizar o(s) lugar(es) que a Psicologia ocupa nos discursos entre atores escolares, estudantes e profissionais de Psicologia no contexto de uma pesquisa-intervenção. Esta discussão atualiza lugares historicamente constituídos na Psicologia articulada à escola, bem como propõe inovações de intervenções comprometidas com transformações do processo de subjetivação em engajamentos democráticos e participativos existentes na escola. A pesquisa é fruto de um curso de extensão de formação de jovens pesquisadores secundaristas. As ferramentas metodológicas foram grupos de discussão, diários de campo e produções coletivas de restituição. Os resultados apresentam uma dispersão nos discursos por meio de duas categorias, o lugar do suposto saber-poder: Psicologia para a escola e o lugar da Psicologia que se compõe COM escola. A primeira se encontra constituída por discursos ligados a um tradicionalismo demandado à Psicologia para lidar com os problemas de ordem individual, enquanto que a segunda atua na invenção de um fazer confabulado, em que estudantes e profissionais de Psicologia e a escola criam um campo de análise coletiva do cotidiano. Ao produzir um espaço de formação de jovens pesquisadores, ratifica-se a aposta de práxis crítica e processual, em que o profissional psi e atores escolares são conjuntamente responsáveis por produzir espaços de cuidado na escola.
Palavras-chave:
Psicologia Escolar/Educacional; Formação de Psicólogos; Escola; Secundaristas
Abstract:
Historically, when psychology entered schools, its performance was linked to individual issues, learning, and school failure. This context changes when Brazilian psychology begins to build a critical perspective articulated to institutional reality. The interface between psychology and education aims to problematize the place(s) psychology occupies in the discourses of school actors, students, and psychology professionals in a research-intervention. This discussion updates historically constituted places in psychology articulated to the school and proposes innovations of interventions committed to transformations of the subjectivation process in democratic and participatory engagements existing in the school. This research stems from an extension course to train young secondary school researchers. Its methodological tools included discussion groups, field diaries, and collective production of restitution. Results showed a dispersion in the discourses across two categories: the place of supposed knowledge-power: psychology for the school and the place of psychology that composes itself with school. The first one is constituted by discourses linked to a traditionalism demanded to psychology to address individual problems, whereas the second one acts in the invention of a confabulated doing, in which psychology students and professionals and the school create a field of collective analysis of the everyday life. The production of a space to train young researchers ratifies the bet of a critical and procedural praxis in which the psi professional and school actors are jointly responsible for producing care spaces in the school.
Keywords:
School/educational psychology; Training of Psychologists; School; High School students
Resumen:
Al inicio, la Psicología en las instituciones escolares actuaba en cuestiones individuales, de aprendizaje y fracaso escolar. Pero, esto cambió cuando la Psicología brasileña comenzó a construir una perspectiva crítica articulada a la realidad institucional. Con base en la interfaz Psicología y Educación, el objetivo de este estudio fue problematizar el lugar(es) que ocupa la Psicología en los discursos entre actores escolares, estudiantes y profesionales de la Psicología en una investigación-intervención. Esta discusión actualiza lugares históricamente constituidos en Psicología articulados a la escuela y propone innovaciones de intervenciones comprometidas con los compromisos democráticos y participativos existentes en la escuela. Esta investigación es el resultado de un curso de extensión para la formación de jóvenes investigadores de secundaria. Las herramientas metodológicas fueron los grupos de discusión, los diarios de campo y la producción colectiva de restitución. Los resultados muestran una dispersión de los discursos en dos categorías: El lugar del supuesto saber-poder: Psicología para la escuela; y el lugar de la Psicología que compone la escuela. La primera está constituida por discursos relacionados al tradicionalismo que requiere la Psicología para tratar problemas de orden individual, mientras que la segunda actúa en la invención de un hacer confabulado, donde estudiantes y profesionales de Psicología y la escuela crean un campo de análisis colectivo de la vida cotidiana. Producir un espacio de formación de jóvenes investigadores ratifica la apuesta de una praxis crítica y procesual en la cual los actores profesionales psi y los escolares son corresponsables de producir espacios de cuidado en la escuela.
Palabras clave:
Psicología Escolar/Educativa; Formación de Psicólogos; Escuela; Estudiantes de Secundaria
Introdução
O que pode ocorrer quando estudantes e profissionais oriundos da Psicologia passam a habitar o cotidiano de uma escola pública? Quais saberes e poderes historicamente constituídos acerca das práticas psi no território escolar são acionados? Que afetos são mobilizados? Essas questões, que tangenciaram nossa atividade de pesquisa-extensão em uma escola pública de Ensino Médio de Fortaleza – CE, constituem-se como foco do presente trabalho. Este tem por finalidade problematizar o(s) lugar(es) que a Psicologia ocupa nos discursos entre atores escolares, estudantes e profissionais de Psicologia no contexto de encontros de uma pesquisa-intervenção vinculada à graduação e pós graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) 1 1 A pesquisa guarda-chuva Educação, Modos de Subjetivação e Formação de Jovens Pesquisadores da Micropolítica do Cotidiano Escolar, da qual a discussão presente neste artigo faz parte, encontra-se aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará (UFC) com o parecer de aprovação N° 3.227.767. . Iniciado em 2019, o Projeto de Extensão É da Nossa Escola que Falamos, atrelado ao projeto de pesquisa intitulado Educação, Modos de Subjetivação e Formação de Jovens Pesquisadores da Micropolítica do Cotidiano Escolar, ocorreu em uma escola estadual de Fortaleza e tinha como objetivo analisar a relação entre juventude e escola pública a partir de produções discursivas que partiram dos próprios jovens secundaristas.
Ao todo ocorreram nove encontros com duração aproximada de duas horas cada um, realizados no contraturno de matrícula dos estudantes. Os encontros foram articulados por um grupo formado por cinco estudantes de graduação, cinco de mestrado e uma de doutorado em Psicologia, juntamente à professora-coordenadora do projeto, e 36 estudantes secundaristas, com o objetivo de interrogar, a partir do prisma desses estudantes, acerca dos elementos que compunham as cenas cotidianas da escola, transformando esses elementos, deste modo, em temas a serem por eles pesquisados. Para isso, lançou-se mão do referencial teórico-metodológico da Critical Participatory Action Research (CPAR) e Pesquisa-Intervenção (PI), sendo proposta uma ruptura com a visão hegemônica acerca do pesquisar, a partir da destituição da academia de seu lugar exclusivo e privilegiado de produção de saberes legítimos. Ao convocar esses alunos a assumir o papel de pesquisadores do cotidiano escolar, os pesquisadores advindos da universidade deixam de ser concebidos como os únicos ou proeminentes produtores de conhecimentos social e culturalmente validados. Alinhamo-nos, com isso, ao pensamento de Appadurai ( 2006 Appadurai, A. (2006). The right to research. Globalisation, Societies and Education, 4(2), 167-177. http://dx.doi.org/10.1080/14767720600750696
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) que apreende o ato de pesquisar como uma capacidade generalizada de sistematizar questionamentos acerca de coisas de que precisamos saber e ainda não sabemos, desconstruindo, dessa forma, a concepção da pesquisa como uma produção especializada de conhecimento.
Nesse sentido, a Pesquisa-Intervenção (PI) traz em seu bojo a lógica da construção coletiva dos dados da pesquisa, do “pesquisar COM”, fazendo com que estudantes secundaristas protagonizem a proposição dos temas a serem trabalhados e os caminhos metodológicos a serem utilizados. Desse modo, a micropolítica do cotidiano escolar foi discutida a partir dos olhares discentes e analisada pelos sete seguintes temas propostos por eles: pressão para o vestibular; gravidez na adolescência; racismo; preconceitos; saúde mental dos estudantes; desgaste acadêmico e aprendizagem. Os encontros resultaram em uma variedade de elementos que se tornaram importantes analisadores de como o saber psi é acionado no cotidiano escolar e como nós, estudantes e profissionais psi , agimos frente a estas demandas.
Para a PI o analisador se refere a todo dispositivo revelador de um acontecimento “. . . um momento de grupo e que permita, a partir de uma análise de decomposição do que aparecia até então como uma totalidade homogênea (uma verdade instituída), desvelar o caráter fragmentário, parcial e polifônico de toda realidade” (Paulon, 2005 Paulon, S. M. (2005). A análise de implicação com ferramenta na pesquisa-intervenção. Psicologia & Sociedade, 17(3), 18-25. https://doi.org/10.1590/S0102-71822005000300003
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, p. 24). Assim, trata-se aqui de atuar na decomposição de algumas cenas da pesquisa, fazendo emergir que lugares da Psicologia elas evocam.
Se, em outros trabalhos referentes a esta pesquisa, analisamos o cotidiano e o enfrentamento ao racismo na escola (Miranda et al., 2020a Miranda, L. L., Gonçalves, S. D.; Barros, E. E. da S.; Gonçalves, L. T. de L., & Queiroz, A. A. (2020a). Jovens pesquisadores do cotidiano escolar: uma análise do processo de pesquisa. In J. P. P. Barros, D. C. Antunes, R. P. Mello (Orgs.), Políticas de vulnerabilização social e seus efeitos: estudos do programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) (pp. 264-283). Imprensa Universitária. https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/53270
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) ou as inquietações existentes no próprio processo da PI aqui construída (Miranda et al., 2020 Miranda, L. L., Fine, M., & Torre, M. E. (2020). Possible Connections Between Intervention Research (IR-Brazil) and Critical Participatory Action Research (CPAR-USA). Trends in Psychology, 28, 1-15. https://doi.org/10.9788/s43076-019-00004-3
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), neste trabalho o foco está em problematizar, no cotidiano da própria pesquisa, o(s) lugar(es) que a Psicologia ocupa nos discursos entre atores escolares, estudantes de graduação e de pós-graduação em Psicologia, estes últimos também profissionais da área. Trata-se, então, de entrelaçar o cotidiano micropolítico de uma pesquisa em uma instituição educacional a uma trama macro, dos saberes e poderes historicamente constituídos nas práticas da Psicologia na escola.
A necessidade de discutir os lugares que a Psicologia ocupa, no contexto desta pesquisa, surgiu, portanto, a partir de falas recorrentes por parte de professores, gestores e secundaristas participantes do grupo, diante da presença dos pesquisadores universitários (psicólogas(os) e estudantes de Psicologia) na escola. Durante a pesquisa-intervenção, éramos constantemente acionadas(dos) pelas(los) jovens, professores(as) e gestores(as) para discutirmos acontecimentos que atravessaram o cotidiano escolar a partir de nosso lugar de profissionais da Psicologia, especialmente para que auxiliássemos em questões envolvendo sofrimento de cunho aparentemente individual e extra-escolar, demandas que têm uma história na constituição da Psicologia como saber nas escolas.
Logo na primeira reunião com o núcleo gestor para discussão sobre o trabalho de formação de estudantes como pesquisadores da micropolítica do cotidiano escolar, contexto em que abordamos a importância de fomentar a pesquisa entre os(as) jovens, a fim de coletivizar os desafios da escola e desenvolver uma formação cidadã, o diretor indagou à coordenadora do projeto: “Professora . . . tudo isso é muito interessante, concordo com tudo o que foi falado, mas, me desculpe, gostaria de saber, onde está a Psicologia?. . .”. Na pergunta feita pelo diretor, o intento de formar jovens pesquisadores do cotidiano escolar – proposta da pesquisa-intervenção que estávamos acordando – parecia carecer de algum elemento que a atrelasse ao campo da Psicologia.
Após um breve jogo de olhares, tentamos enunciar que trabalhar com os jovens na sua formação como pesquisadores na e da escola seria conhecer mais suas inquietações e formas de ver o seu cotidiano escolar e a si mesmos como jovens; seria trabalhar a relação entre a comunidade estudantil e a escola; seria trabalhar os modos de subjetivação que os atravessam e os constituem na micropolítica do seu cotidiano escolar. E que isso seria sim objeto e campo da Psicologia.
Na verdade, a pergunta da direção, mesmo em uma instituição reconhecida pela sua formação política e cidadã, como é o caso desta escola, em que temas sociais como racismo, relação de gênero e diversidade são fomentados na sua rotina, acaba por atualizar a separação historicamente construída entre o mundo psíquico e o contexto social (Guattari, 1990Guattari, F. (1990). As três ecologias. Papirus. ) e que também emergem no território escolar (Miranda et al., 2018 Miranda, L. L., Oliveira, P. S. N., Souza Filho, J. A., & Sousa, S. K. R. B. (2018). A relação Universidade-Escola na formação de professores: Reflexões de uma Pesquisa-Intervenção. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(2), 301-315. https://doi.org/10.1590/1982-3703005172017
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; Patto, 1984Patto, M. H. S. (1984). Psicologia e ideologia: uma introdução crítica à Psicologia Escolar. T. A. Queiroz. ; Zanella, & Mollon, 2007 Zanella, A. V., & Molon, S. I. (2007). Psicologia (em) contextos de escolarização formal: das práticas de dominação à (re)invenção da vida. Contrapontos, 7(2), 255-268. http://www.repositorio.furg.br/handle/1/1184
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).
Por isso o deslocamento do saber psi do sujeito para os modos de subjetivação é tão necessário. Enquanto o primeiro historicamente é visto como senhor de si, marcado pela unidade, interioridade psíquica e intimidade, o segundo é reconfigurado para um contexto problematizando formas de existência e estilos de vida inevitavelmente atravessados por questões de ordem política, social, econômica, ética e estética, que marcam como o sujeito se relaciona consigo mesmo, isto é, com seu modos de subjetivação (Fischer, 2012Fischer, R. M. B. (2012). Trabalhar com Foucault: arqueologia de uma paixão. Autêntica. ; Foucault, 2013Foucault, M. (2013). O sujeito e o poder. In H. Dreyfus, & P. Rabinow (Eds.), Michel Foucault: uma trajetória filosófica – para além do estruturalismo e da hemenêutica (pp. 273-295). Forense Universitária. ). Nesta perspectiva, trata-se de pensar no processo de objetificação do homem pelos saberes, entre eles a Psicologia que, historicamente, privilegiou o desvelamento do sujeito por meio de suas teorias e técnicas, supondo sua pré-existência interior (Hüning, & Guareschi, 2005Hüning, S. M., & Guareschi, N. M. E. (2005). Efeito Foucault: desacomodar a psicologia. In N. M. Guareschi, & S. M. Hüning (Orgs), Foucault e a Psicologia (pp. 107-127). Abrapso Sul. ). Ainda, ao pensar na entrada da Psicologia no campo educacional, trata-se de ponderar, em última instância, como o seu saber ajudou a classificação do sujeito “em relação a outros seres humanos e, inclusive, dividido, no interior de si mesmo” (Fischer, 2012Fischer, R. M. B. (2012). Trabalhar com Foucault: arqueologia de uma paixão. Autêntica. , p. 54).
Articulando à presente pesquisa, duas reflexões merecem ser discutidas associadas à Psicologia e ao ato de pesquisar: da pesquisa como ato restrito ao especialista/pesquisador universitário, e o lugar da Psicologia no contexto escolar como um fazer que implica ações nos modos de subjetivação individuais e coletivos que formam o território da escola. É, então, para essa segunda ponderação que direcionamos nossas discussões, a fim de apreender os possíveis lugares que a Psicologia ocupa e que podem enunciar, desse modo, os múltiplos conhecimentos em torno de seu saber-poder, em especial na sua interface com a educação.
Diante disso, deparamo-nos com o fato de que, quando estudantes e profissionais de Psicologia chegam à escola para fazer pesquisa ou qualquer outra forma de intervenção, algo é pensado a priori acerca do próprio fazer/saber da Psicologia historicamente construído. Trata-se, em razão disso, de um saber – ou um querer-saber – que se antecipa à própria apresentação dos objetivos centrais de nossa pesquisa e que acaba por nos atravessar e ajudar a compor a relação com a escola. Por outro lado, a discussão se amplia e se complexifica, uma vez que não problematizamos somente o que os agentes escolares pensam a respeito da Psicologia na escola, mas como nós, profissionais psi, desejamos ser vistos quando estamos presentes nesse espaço.
Essa forma de reconhecer a Psicologia que emerge como interrogação na fala do diretor, em especial ao que cabe às suas práticas na escola, pode estar associada a alguns fatores, sendo um deles a própria construção histórica da relação entre Psicologia e Educação. A partir do final do século XIX, principalmente, quando se afirma como ciência, a educação passa a ser o primeiro campo de aplicação da Psicologia e, no Brasil, essa relação se constituiu com base em diferentes enquadres, tais como os modelos: psicométrico, clínico, preventivo e compensatório (Lima, 2005 Lima, A. O. M. N. de. (2005) Breve histórico da Psicologia Escolar no Brasil. Psicologia Argumento, 23(42), 17-23. https://periodicos.pucpr.br/psicologiaargumento/article/view/19637
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). Todos esses referenciais de atuação, no entanto, cumpriam funções muito direcionadas ao diagnóstico e intervenção nos sujeitos tidos como dissidentes. Eram práticas individualizantes e medicalizantes, alheias ao cotidiano escolar, às relações institucionais e às questões sociais. Foi principalmente a partir da década de 80 que os próprios profissionais de Psicologia começaram a contestar sua atuação nas escolas, área emergente na época. Marco das discussões que levaram a essa problematização foi a publicação da obra Psicologia e ideologia: uma introdução crítica à Psicologia Escolar de Maria Helena Souza Patto ( 1984Patto, M. H. S. (1984). Psicologia e ideologia: uma introdução crítica à Psicologia Escolar. T. A. Queiroz. ). Lançando um olhar crítico à atuação nas escolas, o livro problematizou as heranças de um modelo estritamente psicométrico nas pesquisas de Psicologia Educacional e a transposição do consultório psicológico individual como prática hegemônica nas escolas.
Este giro da Psicologia Educacional/Escolar provocado, também, por outros autores (Barbosa, & Marinho-Araujo, 2010 Barbosa, R. M., & Marinho-Araújo, C. M. (2010). Psicologia escolar no Brasil: considerações e reflexões históricas. Estudos de Psicologia (Campinas), 27(3), 393402. https://doi.org/10.1590/S0103-166X2010000300011
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; Lima, 2005 Lima, A. O. M. N. de. (2005) Breve histórico da Psicologia Escolar no Brasil. Psicologia Argumento, 23(42), 17-23. https://periodicos.pucpr.br/psicologiaargumento/article/view/19637
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; Machado, 2014 Machado, A. M. (2014). Exercer a postura crítica: desafios no estágio em Psicologia Escolar. Psicologia: ciência e profissão, 34(3), 761-773. https://doi.org/10.1590/1982-3703001112013
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; Patto, 1984Patto, M. H. S. (1984). Psicologia e ideologia: uma introdução crítica à Psicologia Escolar. T. A. Queiroz. ; Tada, Sápia, & Lima, 2010 Tada, I. N. C., Sápia, I. P., & Lima, V. A. A. (2010). Psicologia Escolar em Rondônia: formação e práticas. Psicologia Escolar e Educacional, 14(2), 333-340. https://doi.org/10.1590/S1413-85572010000200015
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; Zanella & Molon, 2007 Zanella, A. V., & Molon, S. I. (2007). Psicologia (em) contextos de escolarização formal: das práticas de dominação à (re)invenção da vida. Contrapontos, 7(2), 255-268. http://www.repositorio.furg.br/handle/1/1184
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; Veronese & Machado, 2022 Veronese, L. A. A., & Machado, A. M. (2022). O pensamento institucionalista e a psicologia escolar: desassossegando as lógicas do cotidiano. Psicologia Escolar e Educacional, 26, 1-8. http://dx.doi.org/10.1590/2175-35392021208740
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) foi imbuído de uma prática mais institucional no cotidiano escolar. Essas práticas, também chamadas de críticas, buscam intervenções que provocam e desacomodam o que está naturalizado, a exemplo do aluno-problema, provocando atuações mais atravessadas pelos tensionamentos sociais e historicamente constituidos, inclusive do próprio saber psi , em seus efeitos institucionais. (Veronese & Machado, 2022 Veronese, L. A. A., & Machado, A. M. (2022). O pensamento institucionalista e a psicologia escolar: desassossegando as lógicas do cotidiano. Psicologia Escolar e Educacional, 26, 1-8. http://dx.doi.org/10.1590/2175-35392021208740
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)
Assim, as produções que servem como parâmetros para uma atuação mais crítica, que afirmam e defendem o compromisso ético-político-social da Psicologia na e com a Educação, são, portanto, relativamente recentes e instituintes na atuação psi . No âmbito do Sistema Conselhos de Psicologia, essa orientação está presente no documento denominado “Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) na Educação Básica”, que teve a primeira edição lançada em 2013, e, em 2019, passou por revisão e nova publicação. Esse documento é apresentado “como um importante instrumento para as (os) psicólogas(os) demarcarem seus compromissos ético-políticos com a garantia de direitos e enfrentamentos às injustiças sociais. . . ” (Conselho Federal de Psicologia, 2019 Conselho Federal de Psicologia. (2019). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na educação básica. Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/08/EducacaoBASICA_web.pdf
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, p. 9).
No entanto, parece que a atuação da Psicologia nas escolas ainda permanece nebulosa. Uma busca no portal de periódicos CAPES, sobre a compreensão de estudantes da educação básica a respeito da atuação da Psicologia Escolar, resulta em poucos achados, com apenas dois que tratam especificamente de estudantes, ambos do Ensino Fundamental, sendo um artigo sobre a realidade de uma escola pública e o outro de uma instituição privada.
Estudo realizado por Sant’Ana, Euzébios Filho, Lacerda Junior e Guzzo ( 2009 Sant’Ana, I. M., Euzébios Filho, A., Lacerda Junior, F., & Guzzo, R. S. L. (2009). Psicólogo e escola: a compreensão de estudantes do ensino fundamental sobre esta relação. Psicologia Escolar e Educacional, 13(1), 29-36. https://doi.org/10.1590/S1413-85572009000100004
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), a respeito da compreensão de estudantes do ensino fundamental sobre a atuação do psicólogo de uma escola pública em Campinas (SP), apresenta diferentes opiniões de acordo com a idade dos alunos, mas que se alinham no aspecto de valorização do papel desse profissional, ao mesmo tempo em que se evidencia pouco conhecimento sobre o que, de fato, o psicólogo faz na escola, embora a equipe já atuasse na instituição desde 3 anos anteriores ao estudo em questão. O segmento do Ensino Fundamental II, que agrupa estudantes na faixa etária de 11 a 14 anos, intervalo mais próximo dos estudantes com quem trabalhamos na pesquisa, apresentou a avaliação positiva da atuação da Psicologia sem, no entanto, descrever funções específicas do profissional. As respostas de 46% dos participantes foram categorizadas com a tipificação “orienta, ajuda e conversa” (p. 33), o que aponta para uma compreensão mais tradicional sobre as possibilidades de atuação da Psicologia escolar. No entanto, as autoras do artigo também identificam uma visão mais institucional nas respostas, como, por exemplo, o fato de os estudantes considerarem que o psicólogo deve fornecer auxílio a toda a equipe escolar, bem como desenvolver atividades extracurriculares e “participar de conselhos” (p. 34).
O outro manuscrito, de Carvalho e Souza ( 2012 Carvalho, I. S. C., & Souza, M. V. M. (2012). A representação social de alunos de escolas da rede particular de ensino acerca do papel do psicólogo escolar. Trabalhos em Linguística Aplicada, 51(1), 235-244. https://doi.org/10.1590/S0103-18132012000100012
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), menciona o artigo de Sant’Ana, Euzébios Filho, Lacerda Junior e Guzzo ( 2009 Sant’Ana, I. M., Euzébios Filho, A., Lacerda Junior, F., & Guzzo, R. S. L. (2009). Psicólogo e escola: a compreensão de estudantes do ensino fundamental sobre esta relação. Psicologia Escolar e Educacional, 13(1), 29-36. https://doi.org/10.1590/S1413-85572009000100004
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) e destaca a escassez de pesquisas de âmbito nacional que foquem a temática. As autoras consideram como “distorcida” a visão dos nove estudantes do Ensino Fundamental II de três escolas particulares do município de Itabuna (SP), que participaram do estudo a respeito da atuação do psicólogo escolar e destacam que 100% dos entrevistados caracterizam o psicólogo como “solucionador de problemas” (p. 241).
Ambos os estudos sinalizam a necessidade de haver mais informações sobre o papel do psicólogo na escola. Para Sant’Ana, Euzébios Filho, Lacerda Junior e Guzzo ( 2009 Sant’Ana, I. M., Euzébios Filho, A., Lacerda Junior, F., & Guzzo, R. S. L. (2009). Psicólogo e escola: a compreensão de estudantes do ensino fundamental sobre esta relação. Psicologia Escolar e Educacional, 13(1), 29-36. https://doi.org/10.1590/S1413-85572009000100004
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) “torna-se necessária uma maior divulgação a respeito da prática profissional, focalizando também a perspectiva de prevenção, que vai além da visão remediativa de intervenção psicológica” (p. 35). Nas palavras de Carvalho e Souza ( 2012 Carvalho, I. S. C., & Souza, M. V. M. (2012). A representação social de alunos de escolas da rede particular de ensino acerca do papel do psicólogo escolar. Trabalhos em Linguística Aplicada, 51(1), 235-244. https://doi.org/10.1590/S0103-18132012000100012
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): “cabe ao profissional de psicologia escolar empreender esforços no sentido de confirmar o seu campo de atuação de forma bem delimitada, a fim de ser reconhecido em sua função específica dentro da instituição escolar” (p. 243). Mesmo após décadas de questionamentos do saber-poder psi no território escolar ainda permanece, no chão da escola, uma expectativa de solucionador de problemas individuais, a partir de uma perspectiva clínico-terapêutica. Voltando ao lócus da pesquisa, outro fator que pode estar relacionado ao questionamento do diretor sobre a atuação da Psicologia é o fato de não haver psicólogas(os) no cotidiano da escola, realidade diferente das pesquisas acima mencionadas. A situação de Fortaleza e do Ceará é semelhante à da maioria dos municípios e estados brasileiros, onde há profissionais na rede, mas não com atuação constante na escola. Atualmente, são pouco mais de 70 psicólogas(os) educacionais contratadas(os) pela Secretaria de Educação (SEDUC) que atendem a rede estadual do Ceará, que tem 746 Escolas de Ensino Médio (SEDUC, 2022 Secretaria da Educação do Estado do Ceará. (2022). Página Inicial. SEDUC. https://www.seduc.ce.gov.br/
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; Paulino, 2019 Paulino, N. (2019, 3 de dezembro). 70% dos estudantes no Ceará defendem psicólogos na escola. Diário do Nordeste. https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/70-dos-estudantes-no-ceara-defendem-psicologos-na-escola-1.2182207
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). Já em Fortaleza, desde 2020 são 12 Psicólogas(os) que atendem a 608 escolas de Ensino Infantil e Fundamental, responsabilidade do município por meio da Secretaria Municipal de Educação (SME) (Prefeitura de Fortaleza, 2021 Prefeitura de Fortaleza. (2021, 12 de fevereiro). Prefeitura de Fortaleza oferta serviço de psicologia escolar na rede de ensino. Fortaleza Prefeitura – Educação. https://intranet.sme.fortaleza.ce.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6113:prefeitura-de-fortaleza-oferta-servico-de-psicologia-escolar-na-rede-de-ensino&catid=79&Itemid=509
https://intranet.sme.fortaleza.ce.gov.br...
). Ao questionar “onde está a Psicologia em nossa proposta”, o diretor parece evocar a própria ausência desse campo de saber no cotidiano escolar.
Diante do exposto nesta seção, traçaremos neste artigo uma discussão guiada pela questão-problema: no contexto de realização de pesquisas com a escola, quais os lugares que a Psicologia tem ocupado nos discursos entre atores escolares, estudantes e profissionais de psicologia. Essa questão se torna relevante para o campo de estudos entre psicologia e educação por colocar em pauta, no contexto da recém aprovação da Lei n° 13.935, que dispõe sobre a prestação de serviços de Psicologia e de Serviço Social nas redes públicas de Educação Básica ( 2019 Lei n° 13.935, de 11 de dezembro de 2019. (2019, 11 de dezembro). Dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas de educação básica. Presidência da República. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/%5C_ato2019-2022/2019/Lei/L13935.htm
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), como vem se constituindo a percepção do papel de psicólogas(os) que atuam em ambientes escolares, tanto por parte da comunidade escolar, quanto por parte de pesquisadores(as) universitários(as) do campo da Psicologia. Portanto, conforme discutiremos a seguir, a fala do diretor, bem como outras cenas vivenciadas, são analisadoras tanto da construção histórica das práticas em Psicologia na Educação, como aquelas engendradas em contextos mais recentes, que acabaram por atravessar e constituir esse processo de pesquisa-extensão realizada COM a escola. Como contribuição para a interface Psicologia e Educação, ratifica-se a aposta de uma atuação crítica e processual, onde o profissional psi e atores escolares são co-responsáveis por produzir espaços de cuidado na escola.
Método
Este artigo parte de um recorte de dados construídos em uma pesquisa que se alinha ao arcabouço ético-teórico-metodológico da Pesquisa-intrevenção (PI) e da Critical Participatory Action Research (CPAR). Articulando-se, então, à PI, partimos de um campo que se afasta da ideia de neutralidade, em que pesquisadores adentram comunidades em busca de uma exclusiva coleta de dados para, ao contrário, nos aproximarmos de uma pesquisa implicada, em que não se separa sujeito e objeto, mas se propõe uma relação entre pesquisadores e sujeitos do campo de investigação, que permita uma elaboração conjunta dos processos de pesquisa (Aguiar, & Rocha, 2007 Aguiar, K. F., & Rocha, M. L. da. (2007). Micropolítica e o exercício da pesquisa-intervenção: referenciais e dispositivos em análise. Psicologia: ciência e profissão, 27(4), 648-663. https://doi.org/10.1590/S1414-98932007000400007
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). Dessa forma, esta é uma pesquisa participativa em que pesquisar é intervir, ou seja, em que a pesquisa é um ato político e um espaço de desnaturalização do campo e de construção conjunta de dados com seus(as) partícipes, acerca de uma temática de investigação (Rocha, & Aguiar, 2003 Rocha, M. L., & Aguiar, K. F. (2003). Pesquisa-intervenção e a produção de novas análises. Psicologia: ciência e profissão, 23(4), 64-73. https://doi.org/10.1590/S1414-98932003000400010
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).
De forma correlata, a CPAR concebe a pesquisa como uma construção coletiva entre os pesquisadores da universidade e os pesquisadores da comunidade, sendo ambos produtores de conhecimento, rompendo com a noção da universidade como detentora do saber e das formas de produzi-lo (Torre et al., 2018Torre, M. E., Stoudt, B. G., Manoff, E., & Fine, M. (2018). Critical participatory action research on state violence: bearing wit(h)ness across fault lines of power, privilege, and dispossession. In N. K. Denzin & Y. S. Lincoln (Eds.), The SAGE handbook of qualitative research (pp. 492–515). SAGE. ). Por isso, a comunidade não é considerada, como em metodologias “tradicionais” de pesquisa, um objeto a ser investigado, mas como co-partícipe, como compositora do ato de pesquisar, em que o objetivo consiste em uma análise coletiva de questões que atravessam a comunidade, visando uma ciência efetivamente pública (Miranda, Fine, & Torre, 2020b Miranda, L. L., Lavor Filho, T. L., Souza Filho, J. A. de, Gonçalves, S. D.; Bezerra, T. A., & Feitosa, G. L. (2020b). “Como quebrar os padrões sociais?”: o racismo no cotidiano de jovens pesquisadores. Psicologia: ciência e profissão, 40(spe), 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003230089
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).
Portanto, assumindo este ethos para a construção da pesquisa participante que narramos neste estudo, os objetivos principais deste processo foram problematizar a relação juventude e escola com base na produção discursiva dos próprios jovens, e analisar a construção de uma pesquisa com jovens de escola pública, em que estes(as) sejam pesquisadores desse processo. Para tal, a pesquisa foi realizada em conjunto com secundaristas de uma escola pública de ensino médio localizada na região central de Fortaleza – CE, com corpo estudantil de mais de 2000 alunos(as). O território escolar em que habitamos é conhecido pelo engajamento político da comunidade escolar em relação à educação pública e pelo grande número de aprovação e ingresso no ensino superior, sobretudo nas universidades públicas. Para nós, pesquisadores universitários, essa caracterização da escola também é um analisador importante em nosso processo de pesquisa.
Utilizamos um curso de extensão de formação de jovens pesquisadores como dispositivo de elaboração coletiva de pesquisas de diferentes temáticas com a escola, a partir dos interesses de pesquisas elegidas por jovens secundaristas, produzindo com estes(as) todas as etapas da pesquisa, da escolha do tema à análise dos dados e divulgação dos resultados. O curso contou com a participação de 36 estudantes do 2° ano do ensino médio, entre duas turmas, uma pela manhã e outra pela tarde, cada uma com carga horária de 30 horas divididas em nove encontros presenciais. O curso ocorreu durante o primeiro semestre de 2019, além dos secundaristas participaram estudantes de graduação, pós-graduação (mestrado e doutorado) e uma docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Todos os encontros foram gravados e transcritos, a fim de constituir material de análise.
Durante os encontros do curso foram vivenciados espaços formativos sobre o que significa pesquisar e a necessidade de democratização da pesquisa, construção do tema, elaboração da pergunta de partida, definição dos objetivos, estudos acerca das possibilidades de delineamento qualitativo, quantitativo e misto de pesquisa, bem como o uso de diferentes instrumentos e técnicas de pesquisa. Por último, também foram discutidas formas de restituição dos resultados das investigações feitas com o território escolar.
A construção do objeto a ser investigado, bem como a escolha dos títulos de suas pesquisas, estavam atravessados pelo fato de sermos um grupo de estudantes e profissionais da Psicologia, considerando que desde o início de nossos encontros falava-se abertamente que nossa relação com o campo da Psicologia os ajudaria a entender/compreender esses temas. Foram produzidas as pesquisas: 1) “O hoje afetando o amanhã” sobre gravidez na adolescência; 2) “Como as opiniões antagônicas afetam a relação dos estudantes, podendo resultar no preconceito”, abordou conflitos no cotidiano escolar; 3) “A pressão no pré-vestibular” questionou os tensionamentos advindos da escola e família e de si próprios; 4) “Como quebrar os padrões sociais?” sobre racismo na escola. Os três temas seguintes enfatizaram aprendizagem, sentimentos e conflitos psicológicos ocorridos durante o Ensino Médio: 5) “Construindo meu eu na vida escolar”; 6) “O desgaste de um adolescente durante a sua vida acadêmica”; e 7) “A saúde mental dos jovens” (Referência suprimida para a Revisão às Cegas).
Movidos pelos agenciamentos do campo, dos sujeitos e do problema de pesquisa (Lavor Filho, 2020 Lavor Filho, T. L. de. (2020). Spray nas mãos, afetos nos muros: cartografia de inter(in)venções do graffiti no cotidiano de jovens inventores [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Ceará]. Repositório Institucional da UFC. https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/51347
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), fazemos uma problematização de nossa atuação em Psicologia com o espaço escolar, tomando esse “lugar psi ” como analisador do processo de investigação. Essa discussão ocupa a nossa análise de implicação como grupo de pesquisa, isso é, a “. . . análise do impacto que as cenas vividas/observadas têm sobre a história do pesquisador e sobre o sistema de poder que legitima o instituído, incluindo aí o próprio lugar de saber e estatuto de poder do ‘perito-pesquisador’” (Paulon, 2005 Paulon, S. M. (2005). A análise de implicação com ferramenta na pesquisa-intervenção. Psicologia & Sociedade, 17(3), 18-25. https://doi.org/10.1590/S0102-71822005000300003
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, p. 23). Nesta pesquisa, os(as) secundaristas, ao serem interpelados(as) para uma criação coletiva de uma pesquisa sobre o cotidiano escolar, eram atravessados(das) pelo fato de sermos um grupo oriundo da Psicologia e havia a expectativa de que com o nosso saber iríamos ajudá-los(as).
Todos os 7 grupos foram convidados a estudar mais sobre os temas escolhidos e ao final resolveram, como método, utilizar formulário on-line aplicado. Passado o período de elaboração das pesquisas, de participação da comunidade escolar por meio dos formulários produzidos (ao todo foram 340 respondentes), de análise dos dados por pesquisadores secundaristas e da universidade, e dos encontros de restituição, isso é, de análise do processo e da divulgação dos dados de pesquisa de forma coletiva entre diversos atores da comunidade escolar (Aguiar & Rocha, 2007 Aguiar, K. F., & Rocha, M. L. da. (2007). Micropolítica e o exercício da pesquisa-intervenção: referenciais e dispositivos em análise. Psicologia: ciência e profissão, 27(4), 648-663. https://doi.org/10.1590/S1414-98932007000400007
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) – que participaram direta ou indiretamente da construção das pesquisas – seguimos, pesquisadores universitários, para o momento de análise do conteúdo transcrito e dos diários de campo. Já nas primeiras leituras das transcrições, acabamos por incluir o analisador “Lugar da Psicologia”, que se refere ao modo como esta, como campo de saber-poder, aparece ao longo da investigação. É, então, com as cenas em destaque desse analisador que construímos a discussão aqui presente.
Diante disso, vale ressaltar que, do início da pactuação com a escola para a realização do projeto e ao longo de todo o curso, a Psicologia foi acionada, discutida, questionada e reivindicada no cotidiano escolar. Desde nossas aproximações iniciais, para além do encontro já mencionado na seção anterior com a direção da escola, nos corredores e conversas informais, chamava a atenção sermos do campo psi , o que acabou se confirmando pelo interesse de estudantes que se inscreveram desejosos em cursar Psicologia, conforme será melhor aprofundado nas seções seguintes.
Resultados
Como forma de narrar nossos resultados de pesquisa, optamos por enunciar algumas cenas analisadoras com um tempo cronológico linear. Destacamos que, apesar dessa tentativa de sistematização, as reverberações do fazer pesquisa torcem a linearidade do tempo, ou seja, são forjadas em outras temporalidades. Utilizamo-nos dessa estratégia a fim de analisarmos como fomos interpelados por “este suposto lugar da Psicologia”, desde nosso primeiro contato com o campo, enunciado já na primeira parte do presente texto.
Após um período de aproximação com o cotidiano da escola, seja pela participação dos eventos letivos, como a Semana Cultural, quanto por nossa estratégia de divulgação de nossos trabalhos de pesquisa-extensão, ganhamos um nome que já prenunciava muito da nossa posição: éramos, na escola, o “grupo da Psicologia”. Especialmente na passagem pelas salas de aula, para apresentação do curso, chamava a atenção dos alunos e das alunas o nosso local de fala e de origem: a Psicologia, materializada em seus estudantes e profissionais, que foi corroborado no primeiro encontro do curso. Nele, pedimos para que, em duplas, falassem o nome, uma curiosidade em relação a si mesmo, e quais foram os interesses de suas inscrições no curso de formação de jovens pesquisadores do cotidiano escolar. Ao exporem seus motivos de se inscreverem, muitos afirmaram que era para estar mais perto, conhecer “A Psicologia”, seja por vislumbrar como curso superior, seja como forma de autoconhecimento:
E a curiosidade é que a colega logo no começo disse que queria fazer Psicologia. Eu perguntei para ela: “Por que ela quer fazer Psicologia?”, . . . porque ela se vê atendendo no consultório, porque ela gosta de conversar, gosta de ouvir . Ela disse que sempre quis, desde criança que ela quis fazer Psicologia e que agora ela está inclusive com um psicólogo que está ajudando ela na orientação profissional
(Fala transcrita da pesquisadora autora [ocultado para a revisão às cegas], Primeiro encontro. Grifo Nosso).
A estudante está com expectativa de conhecer a Psicologia. Ela ficou sabendo que a gente é da Psicologia, e aí ela teve vontade de conhecer mais sobre a Psicologia e o que é que a gente pode fazer . . . . Ela também tá pretendendo, com a expectativa de conhecer e interagir mais com as pessoas, aumentar a sociabilidade
(Fala transcrita de uma pesquisadora-universitária, Primeiro encontro).
Os primeiros encontros foram dedicados ao levantamento das temáticas que os(as) interessavam e, respectivamente, quais seriam suas questões de pesquisa. Muitos dos temas eram relacionados com temáticas como autocontrole/inteligência emocional, depressão, pressão familiar e escolar, sexualidade, déficit na aprendizagem e saúde mental, temas por eles e elas visto como “próprios da Psicologia”: “ Porque quando a gente escolhe falar de saúde mental, a gente escolhe por uma razão. Não necessariamente porque eu tenha vivenciado a depressão, mas porque isso me toca de alguma maneira ” (Fala transcrita de um pesquisador-secundarista, Terceiro encontro). Nesses contextos, as discussões relacionavam problemas específicos a serem lidados com a ajuda da Psicologia e das psicólogas(os):
Visto que, no ambiente escolar, as pessoas necessitam de um apoio psicológico , escolhemos esse tema visando como a escola pode ajudar os alunos quanto a inúmeras situações que enfrentam ou enfrentarão. Com base nisso, abaixo estão listados alguns pontos que gostaríamos de enfatizar: o autocontrole, o conceito e a definiç ã o de inteligência . . . Inclusive, isso vai ser tratado no livro de Augusto Cury, que é um autor que vai falar que a gente tem uma definição de inteligência como um conceito racional
(Fala transcrita de uma pesquisadora-secundarista, Terceiro encontro. Grifo nosso).
A formação dos sete grupos de pesquisa traziam inquietações de diferentes questões da tessitura escolar, tais como: pressão pelo ingresso no ensino superior, questões étnico-raciais, vicissitudes da construção da sexualidade e identidade juvenis. Todas foram moduladas pelos alunos e alunas como problemas, e suas respectivas consequências “no psicológico” dos(as) estudantes da escola.
Os resultados das sete pesquisas realizadas pelos(as) secundaristas, por meio de formulário on-line aplicado, evidenciaram questões ditas psicológicas, sob a ótica de sofrimento individual. Entre os resultados, os estudantes trouxeram queixas de depressão e ansiedade como problemas a serem cuidados pela escola. Havíamos acordado previamente com os(as) secundaristas que, em todas as pesquisas, deveria haver uma questão com sugestão para a escola lidar com as dificuldades que envolviam cada tema envolvido. As respostas descritivas apontaram para a necessidade de profissionais de Psicologia para lidar com a questão da saúde mental, ou mesmo o quanto este poderia ajudar no fortalecimento e desenvolvimento dos alunos: “Deveria haver mais projetos como este”; “palestras com psicólogos sobre o assunto”; “ter mais conversa com a Psicologia”, “contratar um psicólogo para cá”, foram algumas das respostas.
Após discussão coletiva com cada equipe dos resultados que mais o chamavam atenção e, buscando fomentar o engajamento das pesquisas dos estudantes com a comunidade escolar, planejamos com os pesquisadores secundaristas uma apresentação pública dos resultados das pesquisas, como forma de restituição. Segundo Lourau ( 1993Lourau, R. (1993). Análise Institucional e práticas de pesquisa. UERJ. ), a restituição é um dispositivo socioanalítico e vista não como uma informação simples, mas como um importante espaço para pensar o lugar ocupado pelos pesquisadores, sejam universitários ou secundaristas. Dessa forma, os(as) secundaristas planejaram uma encenação, como forma de restituir distintas análises que pudessem aglutinar os diferentes grupos de pesquisa. Como alegoria ao Teatro do Oprimido (Boal, 2019Boal, A. (2019). Teatro do Oprimido: e outras poéticas políticas. Editora 34. ), que estimula à discussão e a problematização de questões do cotidiano, por meio de encenações, sem que a comunidade necessariamente saiba que se trata de interpretação e passa a participar, uma das estudantes secundaristas-pesquisadora, vestida com um jaleco branco, vestimenta escolhida pela própria aluna, apresentou-se como psicóloga para o público composto por estudantes representantes de turma, questionando quais os problemas e questões que estariam ocorrendo no cotidiano dos alunos. Conforme planejado, pesquisadores-secundaristas começaram a falar, encenando os resultados levantados pelos questionários.
Aos poucos, alguns representantes de turma, crendo serem relatos protagonizados por seus pares e não uma encenação com base em depoimentos trazidos nas pesquisas, compartilharam suas angústias vivenciadas no cotidiano. A “psicóloga” tentou motivá-los e acolhê-los e, saindo de seu personagem, explicou a dinâmica, trazendo que muitas das falas eram resultados das pesquisas realizadas. Iniciou-se, então, uma discussão sobre os atravessamentos da micropolítica do cotidiano escolar na saúde mental dos estudantes, diante, sobretudo, da pressão de passar no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), em que o analisador “calendário na parede da escola”, que fazia a contagem regressiva para o exame, ganhou destaque. Nesse instante, a professora que havia levado os representantes de turma e que, até então, permanecera em posição de escuta, defendeu a existência do calendário, pois cada um deveria lidar com a sua própria ansiedade, e este era necessário para o dia do ENEM. Em sua fala, defendeu a importância daquela escola pública preparar para o ENEM, colocando o “filho do trabalhador” na Universidade. Naquele momento, posições institucionais distintas puderam falar e se ouvir, tensionando o próprio chão da escola.
Mesmo que as marcas históricas da Psicologia na instituição escolar acabem por mobilizar ou intensificar questões atreladas a um sofrimento individual e interiorizado, desvinculado seja de questões de ordem macro – políticas, sociais, históricas – seja micro, isto é, do próprio cotidiano institucional, cabia também a nós, profissionais psi , trazer estes marcadores. Durante o curso também fomos demandados, seja pelo núcleo gestor, seja por professores, para lidar com o sofrimento psíquico de alguns estudantes. Telefonemas da coordenação para saber se poderíamos ajudar aluna que tinha marcas de automutilação, entrada inesperada de professor durante o curso para nos dizer que deveríamos convocar um determinado estudante para estar naquele espaço, pois ele sim “estava precisando”, foram cenas por nós vivenciadas. Ambas evocam um lugar que a escola acha ser o da Psicologia, do tratamento/ajuda ao sofrimento individual. Por outro lado, o ethos da pesquisa-intervenção nos convoca a acolher o inesperado. Ademais, as possibilidades de um trabalho de caráter institucional no território escolar nos incitam a provocar os agentes escolares e a nós mesmos a nos implicarmos no processo. Ao invés de dizer que uma escuta individualizada escaparia ao nosso trabalho na escola, procuramos trabalhar a potência dessas demandas. Assim, realizamos um trabalho de escuta e produção coletiva de estratégias de acolhimento e de cuidado tanto da coordenação, quanto dos professores.
Discussões
As cenas acima descritas formam duas categorias que nos ajudam a problematizar o(s) lugar(es) que a Psicologia ocupou no percurso da presente pesquisa-extensão, articulados aos saberes-poderes constituídos da relação Psicologia-Educação.
O lugar de suposto saber-poder: Psicologia para a escola
Historicamente, as práticas psi na escola se relacionaram a um modelo médico-clínico de atuação, com fins de orientar, classificar, diagnosticar e tratar questões reduzidas ao âmbito individual, negligenciando uma série de aspectos psicossociais do cotidiano escolar. Nesse sentido, a escola como instituição, seus métodos, procedimentos e finalidades eram esvaziados de crítica ou postos em segundo plano, enquanto os problemas de aprendizagem e qualquer comportamento fora da norma eram situados no próprio aluno, visto como empecilho para a continuidade do processo escolar, com fins de medicalização da vida escolar. Importado dos atendimentos em consultórios particulares individuais, esse modelo se tratava, em suma, de uma clínica dentro da escola, mediante a qual se tinha como objeto de trabalho desajustamentos ou adoecimentos psicológicos, que prescindiam de um método terapêutico, com a finalidade de readequar ou modelar seus integrantes para as normas e expectativas da vida social (Patto, 1984Patto, M. H. S. (1984). Psicologia e ideologia: uma introdução crítica à Psicologia Escolar. T. A. Queiroz. ; Guzzo, Mezzalira, Moreira, Tizzei, & Silva Neto, 2010 Guzzo, R. S. L., Mezzalira, A. S. C., Moreira, A. P. G., Tizzei, R. P., & Silva Neto, W. M. F. (2010). Psicologia e Educação no Brasil: uma visão da história e possibilidades nessa relação. Psicologia: teoria e pesquisa, 26(spe), 131-141. https://doi.org/10.1590/S0102-37722010000500012
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).
Essa ótica desresponsabilizou ou descredibilizou os atores da comunidade escolar envolvidos no processo educativo e reduziu, em uma lógica linear e causal, a causa do fracasso escolar ao próprio aluno (Oliveira-Menegotto & Fontoura, 2015 Oliveira-Menegotto, L. M., & Fontoura, G. P. (2015). Escola e psicologia: uma história de encontros e desencontros. Psicologia Escolar e Educacional, 19(2), 377-385. https://doi.org/10.1590/2175-3539/2015/0192869
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). Dessa forma, a Psicologia garantiu um certo lugar na instituição escolar, fora da sala de aula, como dispositivo dotado de autoridade científica que respondia a determinadas demandas da escola e garantia seu “pleno funcionamento”, um lugar alienado do processo pedagógico (Antunes, 2008 Antunes, M. A. M. (2008). Psicologia Escolar e Educacional: história, compromissos e perspectivas. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, 12(2), 469-475. https://www.scielo.br/j/pee/a/kgkH3QxCXKNNvxpbgPwL8Sj/?format=pdf⟨=pt
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).
Para Martinez ( 2010 Martinez, A. M. (2010). O que pode fazer o psicólogo na escola?. Em aberto, 23(83), 39-56. https://doi.org/10.24109/2176-6673.emaberto.23i83.%25p
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), esse lugar predominante, em que as práticas clínico-terapêuticas ocuparam as atividades iniciais da formação do psicólogo escolar no Brasil, acabaram por alimentar uma representação hegemônica do trabalho e da função do psicólogo na escola. A autora discute os impactos do modelo clínico tradicional na expectativa da comunidade escolar sobre o trabalho da(o) Psicóloga(o) na escola, resumindo-o a atividades como atendimento individual, diagnóstico e orientação de pais e professores sobre como lidar com o “aluno-problema”, o que contribuiu para uma chancela direta do imaginário de que o especialista psi é o único responsável pelo trato das diversas queixas escolares (Barbosa, & Souza, 2012 Barbosa, D. R., & Souza, M. P. R. de. (2012). Psicologia educacional ou escolar? Eis a questão. Psicologia Escolar e Educacional, 16(1), 163–173. https://doi.org/10.1590/S1413-85572012000100018
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). O jaleco branco, vestido pela aluna para “representar” uma psicóloga, muitas vezes é incorporado por nós mesmos em nossa atuação, quando assumimos um lugar de especialista que deve tratar não apenas alunos, mas professores e a escola como um todo.
Para Antunes ( 2008 Antunes, M. A. M. (2008). Psicologia Escolar e Educacional: história, compromissos e perspectivas. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, 12(2), 469-475. https://www.scielo.br/j/pee/a/kgkH3QxCXKNNvxpbgPwL8Sj/?format=pdf⟨=pt
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), as práticas emergentes da perspectiva mais crítica de atuação da Psicologia Escolar encontram barreiras justamente na expectativa cristalizada dos gestores em relação ao modelo clínico de atuação, o que reduz o lugar da Psicologia a um dispositivo estranho às práticas escolares, que cumpre uma função específica de “curar” alunos desajustados e devolvê-los “sem problemas” à escola.
Por vezes, essa relação se atualizou no trabalho realizado com a escola. À medida que nos colocamos como pesquisadores da universidade pública, uma posição de poder – um lugar de pesquisador-perito dentro do espaço escolar – nos foi outorgada. Dessa posição, toda uma série de saberes e práticas instituídas foram vinculadas às nossas atividades, de tal forma que, quando não correspondemos a essa expectativa, essa posição é questionada: “Onde está a Psicologia aí?”. Por outro lado, a partir do momento em que ocupamos um espaço na instituição, nos foi posto um “rótulo” que (d)enuncia um certo lugar específico, que nos marca como grupo inserido no cotidiano daquela escola: “Grupo da Psicologia”. Supostamente, esse grupo psi deveria fazer uma escuta individualizada para saber os problemas de cada um(a), ligada à saúde mental, esta, por sua vez, vista como condição interna que caberia à Psicologia, com o seu saber, acessar e tratar. O trabalho coletivo, demandado como forma de palestra, também supõe um lugar de saber, onde os demais devem apenas ouvir ou, no máximo, tirar suas dúvidas com o profissional psi especialista.
Não se trata de desacreditar da demanda de sofrimento que atravessa a instituição escolar, mas sim de provocar o seu deslocamento para um campo investigativo coletivo, em suas implcações múltiplas e heterogêneas. Daí a necessidade de discutir a segunda categoria.
O lugar da Psicologia que se compõe COM escola
Construir uma discussão sobre os lugares que a Psicologia vem ocupando dentro das instituições escolares nos remete a persistir em críticas sobre as práticas e posições a serem desconstruídas do consultório clínico na escola, especialmente as expectativas de outros profissionais ansiosos pelo diagnóstico e seu tratamento da saúde mental. O que nos levou a analisar o nosso lugar na pesquisa, entre as demandas que nos foram feitas e os projetos que articulamos, buscando uma dialética entre os instituídos e instituinte, para uma crítica de reverberações de nossas implicações nas políticas da pesquisa (Romagnoli, 2014 Romagnoli, R. C. (2014). O conceito de implicação e a pesquisa-intervenção institucionalista. Psicologia & Sociedade, 26(1), 44-52. https://doi.org/10.1590/S0102-71822014000100006
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).
A questão, talvez, seja refletir sobre quais práticas psi no campo educacional nos deixamos atravessar e produzimos. Construímos uma atuação institucional, COM a escola, que acolhe e trabalha os modos de subjetivação que atravessam e constituem o território escolar? Para tal, devemos reconhecer a tessitura escolar como um território micropolítico, composta por diferentes atores e processos, que viabilizam construção de práticas críticas que mobilizem a produção de subjetividades engajadas com a construção de sociabilidades salutares, democráticas e participativas (Miranda et al., 2016 Miranda, L. L., Oliveira, E. N. P., Shioga, J. E. M., & Rodrigues, D. C. (2016). Pesquisando com jovens na escola: desafios da pesquisa-intervenção em dois contextos escolares. Psicologia Escolar e Educacional, 20(2), 245-254. https://doi.org/10.1590/2175-353920150202958
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; Miranda et al., 2018 Miranda, L. L., Oliveira, P. S. N., Souza Filho, J. A., & Sousa, S. K. R. B. (2018). A relação Universidade-Escola na formação de professores: Reflexões de uma Pesquisa-Intervenção. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(2), 301-315. https://doi.org/10.1590/1982-3703005172017
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). Também devemos apostar que as demandas e processos que atravessam o cotidiano escolar apresentam questões que exigem dos psicólogos saberes e fazeres dinâmicos e capilares, capazes de mobilizar experiências e construções significativas de subjetividades imanentes.
A partir de nossas experiências (Miranda et al 2016 Miranda, L. L., Oliveira, E. N. P., Shioga, J. E. M., & Rodrigues, D. C. (2016). Pesquisando com jovens na escola: desafios da pesquisa-intervenção em dois contextos escolares. Psicologia Escolar e Educacional, 20(2), 245-254. https://doi.org/10.1590/2175-353920150202958
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; Miranda et al, 2018 Miranda, L. L., Oliveira, P. S. N., Souza Filho, J. A., & Sousa, S. K. R. B. (2018). A relação Universidade-Escola na formação de professores: Reflexões de uma Pesquisa-Intervenção. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(2), 301-315. https://doi.org/10.1590/1982-3703005172017
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; Miranda et al 2020 Miranda, L. L., Fine, M., & Torre, M. E. (2020). Possible Connections Between Intervention Research (IR-Brazil) and Critical Participatory Action Research (CPAR-USA). Trends in Psychology, 28, 1-15. https://doi.org/10.9788/s43076-019-00004-3
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), temos reconhecido a potencialidade construtiva de intervenções COM os atores escolares, em uma proximidade em que aprendizagens se fazem reciprocamente junto de transformações conjuntas. Como pesquisadores e profissionais de psicologia nosso projeto de atuação se faz pelo compromisso de desenvolvimento democrático e inclusivo com a comunidade escolar. Ou seja, um trabalho em que o engajamento institucional se afasta de uma função instrumental de cumprimento de técnicas e protocolos, para uma coparticipação e corresponsabilidade das diferentes produções e configurações de subjetividades que atravessam a dinâmica escolar. Compromisso semelhante dos trabalhos desenvolvidos por Machado ( 2014 Machado, A. M. (2014). Exercer a postura crítica: desafios no estágio em Psicologia Escolar. Psicologia: ciência e profissão, 34(3), 761-773. https://doi.org/10.1590/1982-3703001112013
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), quando discute que a relação construída na escola não pode ser baseada no julgamento da conduta do outro, “pois nos coloca fora do campo das relações institucionais” (p. 766). A posição do outro, tanto quanto a nossa, foi historicamente produzida. Julgar o outro, julgar a escola, nos coloca fora do campo dessas relações: “como se não estivéssemos produzindo aquilo que analisamos, como se sempre houvesse algo anterior às relações. No entanto, cada acontecimento é efeito de um complexo campo de forças, e nossas ideias não apenas falam desse campo, elas o constituem, são forças”. Acolher e, ao mesmo tempo, produzir desvios nas demandas que nos chegam no território escolar, priorizando um trabalho e análise eminentemente coletiva, um fazer COM a escola é um desafio que devemos enfrentar.
Mesmo quando a demanda nos chega de forma individual: atender aquela aluna que se automutila; trabalhar o autocontrole de estudantes, e/ou quando chega como forma de transmissão de conhecimento: dar palestras para os alunos, propor dinâmicas de motivação, é possível mobilizar as forças heterogêneas que atravessam essas demandas, implicando diversos atores escolares e nos implecando, também. No primeiro caso, fizemos uma escuta da coordenação que cotidianamente vinha se deparando com casos de sofrimento psiquico de estudantes e pensamos algumas estratégias institucionais de como atuar. No segundo, ao invés de palestras, as restituições realizaram uma troca em que os agentes escolares, alunos e professores, puderam se escutar, tencionando situações do cotidiano, no caso, o calendário do ENEM na dinâmica institucional.
Considerações finais
Nas escolas pulsam vidas que clamam por espaços de escuta e vazão para que possam eclodir. Pulsam desejos, recolhidos e abafados em razão das normas e ameaças de punição frequentes, que podem contribuir para a transformação daquele lugar que aprisiona em lugar de invenção. Práticas psi podem ser grandes parceiras nesse movimento se atentas estiverem ao que ali pulsa, às possibilidades de criação e (re)invenção dos espaços, das regras, das formas de ser, de falar e silenciar que, acolhidas e desnaturalizadas, podem vir a ser transformadas, assim como os modos de ser e estar ali cristalizados (Zanella, & Molon, 2007 Zanella, A. V., & Molon, S. I. (2007). Psicologia (em) contextos de escolarização formal: das práticas de dominação à (re)invenção da vida. Contrapontos, 7(2), 255-268. http://www.repositorio.furg.br/handle/1/1184
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, p. 264).
As cenas aqui evocadas acerca do(s) lugar(es) que a Psicologia ocupa(m) nos discursos entre atores escolares, estudantes de psicologia e psicólogas(os), no contexto de encontros de uma pesquisa-intervenção, parecem estar atravessadas(os) pela própria história da entrada da Psicologia nas escolas no Brasil. Demandas de cunho individual, atentas ao ajustamento e à medicalização da saúde mental; ajuda em forma de palestra ou de consultoria para resolver problemas de bullying, estresse pré-Enem e de caráter motivacional; foram aqui narrados como emblemas de uma pesquisa que acabam por evocar formas de (re)apresentação da atuação da Psicologia na escola.
Encontramo-nos no meio de um entrecruzamento de diversas linhas de poder, desejo e enunciação do fazer Psicologia no território escolar. Por um lado, a partir dos ordenamentos micropolíticos da escola, somos interpeladas(dos), primeiramente, com a expectativa de assumirmos o lugar da especialista psicóloga(o) como profissional para lidar com as questões/problemas/adequações da ordem do psicológico dos seus atores, muitas vezes visto como apartado de questões sociais, políticas, econômicas, culturais e históricas, caracterizados como “O lugar de suposto saber-poder: Psicologia para a escola”. Por outro, acompanhamos e procuramos produzir novas linhas nas construções e inovações de intervenções da Psicologia escolar/educacional, comprometida com a transformações do processo de subjetivação em engajamentos institucionais democráticos e participativos, conforme discutido na categoria: “O lugar da Psicologia que se compõe COM escola”.
As cenas narradas parecem atualizar tanto “as velhas expectativas” de caráter tecnicista, que por anos foram dominantes nas práticas psi no cotidiano escolar, como colocam a possibilidade de acolhimento da demanda, do olhar do outro sobre nós, para produzir uma dobra, em que a comunidade escolar, incluindo nós, nos coloca implicados em modificá-la e caracterizá-la pela sua práxis política.
Especialmente, poderíamos inferir que a práticas psi na escola tanto podem atualizar sua tecnologias de disciplinarização e controle – hoje inscritas na gramática biomédica e regulações de uma saúde mental a partir da medicalização – quanto podem procurar reconstruir suas técnicas e métodos, implicando uma atenção ético-política para com sua ações. Sejam elas inovadoras ou mesmo tradicionais técnicas, para as quais cabem as mesmas questões: quais, e como são, as produções de nossas ações para construção de uma escolarização democrática e crítica?
Recentemente, no contexto da aprovação da Lei n° 13.935, o documento “Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) na Educação Básica” (Conselho Federal de Psicologia, 2019 Conselho Federal de Psicologia. (2019). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na educação básica. Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/08/EducacaoBASICA_web.pdf
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) traz algumas atribuições do trabalho de psicólogas(os) nas escolas. Estão descritos tópicos relacionados à promoção de políticas públicas, elaboração de planos político-pedagógicos, formação de professores, promoção de processos de escolarização e aprendizagem, inclusão, enfrentamento a preconceito e violência, entre outros. Acreditamos que a realização dessas e outras ações devem ter como ambiência maior a contribuição de nossas práticas com as possibilidades de criação e (re)invenção dos espaço escolar, conforme a epígrafe de Zanella e Molon ( 2007 Zanella, A. V., & Molon, S. I. (2007). Psicologia (em) contextos de escolarização formal: das práticas de dominação à (re)invenção da vida. Contrapontos, 7(2), 255-268. http://www.repositorio.furg.br/handle/1/1184
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), mas também com a implicação do próprio profissional psi, colocando-nos como um dos agentes que compõem as forças e potências com/no território escolar. Nesse sentido, assumimos responsabilidade nos lugares em que ocupamos em nossas práticas nas escolas.
Por fim, acreditamos que estar na escola por meio do ethos da pesquisa-intervenção e da CPAR, produzindo um campo de enunciação coletiva por meio de pesquisas que provoquem um estranhamento do que é cotidiano na escola, aproxima a pensar o campo de possibilidade da atuação da psicologia no território escolar.
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A pesquisa guarda-chuva Educação, Modos de Subjetivação e Formação de Jovens Pesquisadores da Micropolítica do Cotidiano Escolar, da qual a discussão presente neste artigo faz parte, encontra-se aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará (UFC) com o parecer de aprovação N° 3.227.767.
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Como citar
Miranda, L. L., Lavor Filho, T. L., Souza Filho, J. A., Soares, M. R. N., Gonçalves, L. T. L., Fontenele, L. Q., Silva, P. F. J., & Miranda, L. M. F. (2024). Cenas e fabulações da Psicologia em pesquisa-intervenção com secundaristas e universitários. Psicologia: Ciência e Profissão , 44 , 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003265760 -
How to cite
Miranda, L. L., Lavor Filho, T. L., Souza Filho, J. A., Soares, M. R. N., Gonçalves, L. T. L., Fontenele, L. Q., Silva, P. F. J., & Miranda, L. M. F. (2024). Scenes/fabrications of psychology in research-intervention with university students and schoolchildren. Psicologia: Ciência e Profissão , 44 , 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003265760 -
Cómo citar
Miranda, L. L., Lavor Filho, T. L., Souza Filho, J. A., Soares, M. R. N., Gonçalves, L. T. L., Fontenele, L. Q., Silva, P. F. J., & Miranda, L. M. F. (2024). Escenas y fabulaciones de la Psicología en la investigación-intervención con universitarios y estudiantes de la secundaria. Psicologia: Ciência e Profissão , 44 , 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003265760
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
07 Jul 2022 -
Aceito
07 Mar 2023 -
Revisado
29 Jan 2023