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A histeria e o sexual como espetáculo: reflexões sobre psicanálise e fotografia a partir de Georges Didi-Huberman

Hysteria and the sexual as a spectacle: reflections on psychoanalysis and photography based on the work of Georges Didi-Huberman

L’hystérie et le sexuel comme spectacle: réflexions sur la psychanalyse et la photographie à partir du travail de Georges Didi-Huberman

La histeria y lo sexual como espectáculo: reflexiones sobre el psicoanálisis y la fotografia a partir del trabajo de Georges Didi-Huberman

Este artigo explora as relações entre psicanálise e fotografia a partir do Serviço Fotográfico da Salpêtrière, onde Freud realizou, em 1886, um estágio de pesquisa com Jean-Martin Charcot. À luz do trabalho de Georges Didi-Huberman, o objetivo deste artigo é mostrar de que maneira a fotografia pode se prestar a uma investigação psicanalítica. A começar pela Salpêtrière, com toda sua importância na história da psicanálise, cuja relevância fica ainda mais evidente quando a ênfase recai sobre sua célebre iconografia fotográfica.

Palavras-chave:
Psicanálise; histeria; fotografia; Salpêtrière


Resumos

This paper focuses on the relationships between psychoanalysis and photography, stemming from the Photographic Service of the Salpêtrière, where Freud did a research internship in 1886 with Jean-Martin Charcot. Drawing significantly on the work of Georges Didi-Huberman, the purpose of this paper is to show how photography might be useful to a psychoanalytic investigation – starting with Salpêtrière, with all its importance in the history of psychoanalysis, which relevance becomes particularly evident when we consider the Salpêtrière´s photographic iconography.

Key words:
Psychoanalysis; hysteria; photography; Salpêtrière

Cet article porte sur les relations entre la psychanalyse et la photographie à partir du Service de photographie de la Salpêtrière, où Freud a effectué un stage de recherche en 1886 avec Jean-Martin Charcot. À la lumière du travail de Georges Didi-Huberman, le but de cet article est de montrer comment la photographie peut se prêter à une investigation psychanalytique, en commençant par la Salpêtrière, dont l’importance pour l’histoire de la psychanalyse devient encore plus évidente lorsqu’on prend en considération sa célèbre iconographie photographique.

Mots clés:
Psychanalyse; hystérie; photographie; Salpêtrière


Este artículo explora las relaciones entre el psicoanálisis y la fotografía a partir del Servicio Fotográfico de la Salpêtrière, lugar en el que Freud realizó, en 1886, una pasantía de investigación con Jean-Martin Charcot. A la luz del trabajo de Georges Didi-Huberman, el propósito de este artículo es mostrar cómo la fotografía puede prestarse a una investigación psicoanalítica, comenzando por la Salpêtrière, con toda su importancia en la historia de psicoanálisis, cuya relevancia se hace más evidente cuando se hace hincapié en su célebre Iconografía Fotográfica.

Palabras clave:
Psicoanálisis; histeria; fotografía; Salpêtrière


Introdução

Sigmund Freud não chegou a completar 6 meses em Paris, em seu mais que comentado estágio de pesquisa com Jean-Martin Charcot, mas sua temporada na Salpêtrière, apesar de breve, foi suficientemente emblemática para inaugurar uma verdadeira tradição de estudos no campo psicanalítico. De fato, as muitas e variadas fotografias de pacientes histéricas — de cujos sintomas, como amiúde se diz, Freud pôde recolher suas primeiras (e talvez mais definitivas) impressões sobre o inconsciente — parecem fazer parte menos da história da Medicina do que da história da Psicanálise, graças ao que se tornaria o ilustre aluno do pai da neurologia moderna.

Entre os muitos trabalhos que, no inventário do campo freudiano, dedicam-se à iconografia da Salpêtrière, a tese de doutorado de Georges Didi-Huberman, publicada sob o título de Invenção da Histeria: Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière (2015), talvez seja um dos mais originais. De tanto interrogar, com Aby Warburg, Walter Benjamin ou Jacques Lacan, “o tom de certeza que impera tão frequentemente na bela disciplina da história da arte”, Didi-Huberman (2013, p. 10)Didi-Huberman, G. (2013). Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte. São Paulo, SP: Editora 34. tornou-se não só um de seus principais teóricos contemporâneos como, de resto, leitura fundamental para os que se dedicam à psicanálise.

Mas ali, na França dos anos 1970, que assistia a “uma notável efervescência do pensamento artístico voltado para as exigências do impensado, ou, mais exatamente, do inconsciente freudiano”, Didi--Huberman (2015) teve ocasião, “num pequeno café feminista da Rue Saint-Jacques”, de observar, pela primeira vez, “algumas fotografias enigmáticas de mulheres de gestos estranhos” (pp. 396-397).

Eram reproduções da célebre Iconografia Fotográfica da Salpêtrière, imagens tão “perturbadoras e até dolorosas de olhar” que Didi-Huberman (p. 397), abandonando de vez um antigo projeto sobre Francisco de Goya, resolveu tomá-las como objeto de sua investigação. Condenadas à miséria de um sofrimento invisível aos olhos de seus médicos tiradores de fotos, aquelas mulheres encontraram uma forma de “existir para outro, ao menos como espetáculo!” (p. 230).

Este breve artigo representa uma parte importante de nossa pesquisa de doutorado, desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ. Em linhas gerais, um de nossos objetivos é aproveitar o excelente material oferecido aos olhos pela fotografia de moda para investigar uma hipótese sobre a pose: artifício de um corpo olhado — vale dizer, desejado. Pois bem, se a pose responde pela própria natureza da fotografia,1 1 Como se sabe, é à pose que Roland Barthes (1984) recorre para definir a natureza da fotografia, cuja filiação à arte, acrescenta, se dá não através da pintura, e sim pela via do teatro. como então compreender, do ponto de vista da psicanálise, esse ato no corpo que registra o frágil equilíbrio de quem, oferecendo-se como objeto ao olhar do outro, resiste ao “perverso desejo de ver”? (Didi-Huberman, 2012Didi-Huberman, G. (2012). A pintura encarnada. São Paulo, SP: Escuta., p. 87). Esta é apenas uma entre tantas questões que animam nossa pesquisa de doutorado, que foi buscar no corpo — que a moda dá a ver na fruição estética de sua fotografia — os meios para investigar o que Lacan (1965-66/2018)Lacan, J. (2018). O seminário. Livro 13. O objeto da psicanálise. São Paulo, SP: Edição não comercial destinada aos membros da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. (Trabalho original publicado em 1965-66). chama de “efeitos da pulsão que se manifestam como exibição ou voyeurismo” (p. 445).

Mas tudo isso diz respeito a um trabalho em andamento.2 2 O leitor interessado nesse assunto encontrará algumas dessas reflexões em Greggio (2018). Em todo caso, uma pesquisa que pretendesse reunir Fotografia e Psicanálise sob o mesmo arco reflexivo, não poderia partir de outro lugar senão do departamento fotográfico da Salpêtrière, elevado à dignidade de um serviço hospitalar por um discurso que, tão cioso dos méritos indiciais da fotografia quanto ignorante de seus efeitos expressivos, acabava por reproduzir os sintomas que pretendia eliminar.3 3 A referência aqui é o trabalho de André Rouillé (2009), para quem boa parte da história da fotografia pode ser contada através da tensão entre seus méritos documentais (ou utilitários) e expressivos (ou artísticos). Aliás, convém observar ainda que à margem do texto, um pormenor histórico bem interessante: em fins do século XIX, no momento em que a fotografia ganhava terreno na Medicina e na Ciência, a fotogravura levava a Moda para as páginas das revistas. Para Claudio Marra (2008), ao introduzir “a fotografia na indústria cultural”, a fotogravura transferiu para “uma dimensão ampliada, de massa, aquelas possibilidades que a fotografia exercia em pequena escala nas práticas cotidianas”, um “dispositivo operacional indispensável para o desenvolvimento da moda” (p. 72).

À luz da vasta documentação reunida por Didi-Huberman (2015)Didi-Huberman, G. (2015). Invenção da histeria: Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto., o objetivo deste artigo é mostrar de que maneira a fotografia pode se prestar a uma investigação psicanalítica. A começar pela Salpêtrière, com toda sua importância na história da psicanálise, cuja relevância fica ainda mais evidente quando a ênfase recai sobre sua célebre iconografia fotográfica: imagens, enfim, consagradas menos à documentação da histeria — grande enigma da medicina daquela época e, a rigor, de todos os tempos — do que à expressão do verdadeiro mistério manifesto no sofrimento inaudito daquelas mulheres, repetido e encenado às raias do espetáculo.

E lá estava Augustine: paciente que, de acordo com os registros médicos, era a histérica ideal. Com suas poses e atitudes passionais, ditosamente oferecidas àqueles médicos tiradores de fotos, além do notável cuidado que ela dedicava à toalete, à arrumação do cabelo e às fitas com as quais adorava se enfeitar: tudo nela, registram os prontuários, anunciava a histeria.

Charcot, um visuel

No obituário que dedicou à Charcot poucos dias depois de sua morte, Freud (1893/1996b)Freud, S. (1996b). Charcot. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. III). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1893). observa que ele “não era um homem dado a reflexões excessivas, um pensador” (pp. 21-22), observação que, se não diminui em nada o peso de toda admiração que o aluno genuinamente tinha pelo mestre, situa, como veremos, o problema da iconografia fotográfica da Salpêtrière (e da histeria, portanto) numa perspectiva absolutamente original.

É que Charcot, segue Freud (1893/1996b)Freud, S. (1996b). Charcot. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. III). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1893)., tinha “natureza de artista”, ou, “como ele mesmo dizia, era um visuel, um homem que vê” (pp. 21-22). De “posse de uma espécie de museu patológico vivo” (Charcot, 1893Charcot, J-M. (1893). Leçons sur le maladies du système nerveux. In Oeuvres complètes (Vol. III). Paris, FR: Progrès Médical & Lecroisnier & Babé., pp. 3-4),4 4 Com exceção do trabalho de Georget (1837), todas citações às fontes primárias que aparecem no texto foram recolhidas junto ao livro de Didi-Huberman (2015). Referimo-nos aos trabalhos de Richer (1885), Charcot (1893; 1888-1889), Londe (1896) e Claretie (1903), além dos três volumes da Iconografia Fotográfica da Salpêtrière, publicados sem indicação de autoria. Como o objetivo do nosso artigo é ambientar o leitor nos documentos médicos da época, optamos por manter o maior número possível de citações às fontes primárias referidas anteriormente. No entanto, para evitar a inserção desnecessária de elementos que atrapalhem a fruição do texto — e tendo advertido o leitor quanto à sua origem —, as citações às fontes primárias serão feitas diretamente. As referências aos três volumes da Iconografia Fotográfica da Salpêtrière serão indicadas pela sigla I.P.S., como é hábito neste tipo de publicação, seguidas do respectivo volume (v. I, v. II, v. III). construído em um prédio onde curiosamente funcionava uma antiga fábrica de pólvora, Charcot foi não só o nome mais importante da medicina de seu tempo, como também a figura central do processo que, naquela altura, elevou a fotografia à “dignidade de um serviço hospitalar” (Didi-Huberman, 2015, p. 71).

É verdade que, mais ou menos na mesma época e quase por toda a Europa,5 5 O uso da fotografia pela medicina também chegou ao Brasil, ainda que com diferenças importantes em relação ao caso europeu; a esse respeito, ver: Silva (2014). as “fotografias da desrazão” começaram a se misturar ao saber psiquiátrico, com toda a sorte de alienados tendo de se oferecer à objetiva de seus médicos (Didi-Huberman, 2015, p. 67). No entanto, na Salpêtrière, “grande fábrica de imagens” da loucura, a fotografia psiquiátrica, mais do que “metódica e quase teorizada”, tornou-se “realmente canônica” (Didi--Huberman, p. 69). A “chapa fotográfica é a verdadeira retina do cientista”, dizia Albert Londe (1896, p. 546), que, ao longo dos anos 1880, dirigiu o serviço fotográfico da Salpêtrière, a quem devemos a mais completa iconografia da histeria de que se tem notícia.

Sob os olhos atentos de Charcot, “grande diretor teatral dos sintomas”, a histeria, e junto com ela a histérica, foi submetida a todo o tipo de observação e prova científica, e também às mais engenhosas soluções clínicas (Didi-Huberman, 2015, p. 45). Com efeito, depois da Salpêtrière e com a participação decisiva de Charcot, a histeria fez sua entrada no saber psiquiátrico como “objeto nosológico puro”, suficientemente diferenciado “em especial da epilepsia e de todas as outras alienações mentais”, levando consigo não só suas alegadas causas hereditárias, movimentos ilógicos (clownismo), poses plásticas e atitudes passionais como também, inevitavelmente, um ostensivo elemento sexual difícil de acomodar na ciência da época (Didi-Huberman, 2015, p. 40).

Mais do que um museu patológico vivo, onde “os vazios que se [formavam] com o tempo, nesta ou naquela categoria [de doentes], [eram] rapidamente preenchidos” (Charcot, 1893Charcot, J-M. (1893). Leçons sur le maladies du système nerveux. In Oeuvres complètes (Vol. III). Paris, FR: Progrès Médical & Lecroisnier & Babé., pp. 3-4), atrás daquelas muralhas, observou Jules Claretie, em 1903, “vive, fervilha e se arrasta, ao mesmo tempo, toda uma população especial: pessoas idosas, mulheres pobres, repousantes que esperam a morte nos bancos, dementes que berram seu furor ou choram sua tristeza no pátio das agitadas ou na solidão da cela”. Uma verdadeira “città dolorosa”, cujos muros pareciam “haver conservado, em sua vetustez solene, o caráter majestoso de um bairro do tempo de Luis XIV, esquecido na Paris dos bondes elétricos” (Claretie, 1903Claretie, J. (1903). Charcot, le consolateur. In Les Annales politiques et littéraires, XXI(1056)., pp. 179-180).

A Salpêtrière era, conclui Claretie (1903)Claretie, J. (1903). Charcot, le consolateur. In Les Annales politiques et littéraires, XXI(1056)., “uma Versalhes da dor” (pp. 179-180), ou, como prefere Didi-Huberman (2015)Didi-Huberman, G. (2015). Invenção da histeria: Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto., “a cidade das mulheres incuráveis”, que, em 1873, distribuía por suas alas, corredores e pátios 4.383 “vadias, mendigas, mulheres caducas, velhas fiandeiras, epiléticas, mulheres na infância, inocentes aleijadas e disformes”, além de “moças incorrigíveis” (p. 33). Entre elas Augustine, que ingressou na Salpêtrière pouco antes de completar 16 anos.

Nas mãos de seus médicos-fotógrafos, especialmente Paul Richer e Désiré-Magloire Bourneville, Augustine se tornará a histérica ideal do museu patológico vivo erguido no coração de Paris, “aquela, dentre as nossas doentes, em quem as poses plásticas ou atitudes passionais têm mais regularidade” (Didi-Huberman, 2015, p. 229).

Mais interessante, contudo, é notar (palavras de Bourneville) que, para além das poses ou atitudes passionais de Augustine, “tudo nela” anunciava a histeria:

O cuidado que ela dedica a sua toalete; a arrumação do cabelo, as fitas com que ela adora se enfeitar. Essa necessidade de adornos é tão viva que, quando ela está num ataque, caso se produza uma remissão, ela a aproveita para prender uma fita na camisola; isso a distrai, lhe dá prazer. Quando fico entediada, diz, é só eu dar um nó vermelho e ficar olhando para ele. (I.P.S., 1878I.P.S. (1878). Iconographie photographique de la Salpêtrière. Paris, FR: Progrès Médical & Delahaie & Lecroisnier, v. II., v. II, p. 168)

“É escusado dizer”, conclui Bourneville (I.P.S., 1878I.P.S. (1878). Iconographie photographique de la Salpêtrière. Paris, FR: Progrès Médical & Delahaie & Lecroisnier, v. II., v. II), “que a visão dos homens lhe é agradável, que ela gosta de se mostrar e que se ocu- pem dela” (p. 168), e é claro que não deve ter faltado, da parte do médico, empenho em ocupar-se de sua histérica ideal. Mas o sofrimento de Augustine também era feito de palavras, as quais, ainda que prontamente silenciadas por “um saber psiquiátrico movido pela paixão dramatúrgica”, não deixaram de fazer sua entrada justamente ali onde, diante da “espetacular desordem corpo- ral da crise”, o médico literalmente não sabia o que dizer (Didi-Huberman, 2015, pp. 195, 398).

Certa vez, “dirigindo-se a um dos assistentes, ela se inclinou bruscamente para ele e disse: Beije-me… Dê-me! Dê-me… Olhe, tome a minha…” (I.P.S., 1876-1877I.P.S. (1876-1877). Iconographie photographique de la Salpêtrière. Paris, FR: Progrès Médical & Delahaie & Lecroisnier, v. I., v. I, pp. 70-71). Tudo isso, muito provavelmente, diante do olhar aguçado de um Bourneville que, todavia, “hesitava em tomar notas e escrevia, no lugar das palavras de Augustine, suas reticências” (Didi--Huberman, 2015, p. 224).

Histérica ideal, Augustine também era dada a “pavores e ódios de homens”; “pavores sexuais” devidamente “não iconografados”, os quais eram com frequência acompanhados por “ataques de êxtase” (Didi-Huberman, 2015, p. 199). A descrição claudicante de Paul Richer talvez seja um dos documentos epistemológicos mais emblemáticos da época:

Apelos, orações, talvez: mãos postas elevando-se […]. Orações, súplicas, talvez luto. Mas não. Súplica amorosa […] É evidente. O apelo se dirigia a um homem! “X. faz psiu, psiu; fica meio sentada, vê um amante imaginário a quem chama […]. Ele atende, X. se deita, colocando-se do lado esquerdo da cama e mostrando o espaço vazio que deixou para ele no leito. Fecha os olhos, sua fisionomia denota a posse, o desejo saciado; os braços se cruzam, como se ela estreitasse junto ao peito o amante dos sonhos. Às vezes se observam leves movimentos de embalo; outras vezes, ela aperta o travesseiro. Em seguida, pequenas queixas, sorrisos, movimentos de bacia; palavras de desejo ou de encorajamento. Ao cabo de menos de um minuto — sabemos que tudo ocorre depressa nos sonhos —, X. se levanta, senta-se, olha pra cima, une as mãos como suplicante e diz em tom choroso: Não queres mais? De novo… [encore]! (I.P.S., 1878I.P.S. (1878). Iconographie photographique de la Salpêtrière. Paris, FR: Progrès Médical & Delahaie & Lecroisnier, v. II., v, II, pp. 162-163)

Êxtases, pavores sexuais, súplicas amorosas e também “incessantes delírios de estupro” (Didi-Huberman, 2015, p. 223):

Porco! Porco! Vou contar ao papai… porco! Que você é pesado! Você está me machucando. O C. disse que ia me matar… O que ele me mostrou, eu não sabia o que aquilo queria dizer… Ele abriu minhas pernas… Eu não sabia que era um bicho que ia me morder. (I.P.S., 1878I.P.S. (1878). Iconographie photographique de la Salpêtrière. Paris, FR: Progrès Médical & Delahaie & Lecroisnier, v. II., v, II, pp. 139,161)

Ora, Bourneville preferia não entrar em alguns detalhes, como os sonhos e pavores de sua histérica ideal, mas não pôde ignorar o fato de que, aos 13 anos, Augustine havia sido estuprada, em casa, pelo patrão e amante de sua mãe:

C., depois de lhe encher os olhos com toda sorte de promessas, de lhe oferecer vestidos bonitos etc., ao ver que ela não queria ceder, ameaçou-a com uma navalha; aproveitando-se de seu pavor, obrigou-a a tomar licor, despiu-a, jogou-a na cama e teve relações completas. No dia seguinte, L. não se sentia muito bem; havia perdido um pouco de sangue, sentia dor na região genital e não conseguia andar. No outro dia, ela desceu e, como se recusasse a dar um beijo em C., como era de costume, e tendo empalidecido completamente ao vê-lo, a sra. C. desconfiou. Durante a refeição, C. não parou de lhe lançar olhares ameaçadores, para lhe impor silêncio. Prosseguindo o mal-estar da menina, acreditou-se que se tratava do primeiro surgimento das regras. L. voltou para a casa dos pais. Vomitava, sentia dores na barriga. Um médico foi chamado e, sem nenhum exame, também acreditou na chegada da primeira menstruação. Dias depois, deitada em seu quarto, L. sentiu medo ao ver os olhos verdes de um gato que a olhava; soltou gritos, a mãe foi vê-la e a encontrou terrivelmente assustada e sangrando pelo nariz. Depois eclodiram os ataques... (I.P.S., 1878I.P.S. (1878). Iconographie photographique de la Salpêtrière. Paris, FR: Progrès Médical & Delahaie & Lecroisnier, v. II., v, II, pp. 126-127)

O estupro entrou para os registros médicos de Augustine como “informações complementares” (Didi-Huberman, 2015, p. 219).

Uma clínica das informações complementares

Diante das palavras de Augustine, amiúde reveladas no então chamado delírio terminal, a quarta fase do ataque — aquela durante a qual, as histéricas falando sem parar, “tentava-se deter o ataque por todos os meios” —, Bourneville deve ter ficado atormentado com a pergunta: é ou não é verdade? E é claro que o médico, interrogando este e aquele parente, correu para confirmar a veracidade do fato (Didi-Huberman, 2015, p. 169).

Como se sabe, Freud também perdeu alguns anos nessa pista.6 6 “Freud não chegou facilmente à sua concepção sobre a fantasia […]. É preciso salientar de início que a emergência mesma do conceito de inconsciente está ligada à demonstração, por Freud, da ação inconsciente da fantasia. Freud permaneceu durante muito tempo preso à teoria da sedução e do trauma relatados por suas pacientes histéricas, já que lhe faltava a concepção da fantasia. Quando essa concepção lhe ocorreu, um passo essencial foi dado no sentido de indicar a dimensão do inconsciente. Esse momento produziu uma reviravolta profunda na elaboração freudiana, uma vez que Freud pôde se deslocar da concepção do trauma sexual para a do sexo traumático. Lacan valorizou muito especialmente esse momento da obra freudiana e falou da noção de trauma como contingência” (Jorge, 2010, p. 241; grifos do autor). Em 1893, ele já sabia que “os histéricos sofrem principalmente de reminiscências”. Contudo, naquela altura, Freud (1893/1996, p. 43) ainda não dispunha de meios para acomodar às suas primeiras cogitações sobre o inconsciente aquilo que a clínica insistia em dizer sobre a etiologia sexual das neuroses, como demonstram os passos teóricos documentados em textos como “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (1896/1996c)Freud, S. (1996c). Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. I). Rio de Janeiro, RJ: Imago.(Trabalho original publicado em 1896). e “A etiologia da histeria” (1896/1996d)Freud, S. (1996d). A etiologia da histeria. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. III). Rio de Janeiro, RJ: Imago.(Trabalho original publicado em 1896). — os quais, em 1906, Freud (1906/1996f, p. 260)Freud, S. (1996f). Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. VII). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1906). qualifica de “pequenas publicações provisórias”.

No dia 21 de setembro de 1897, uma carta a Wilhelm Fliess registra o abandono da teoria da sedução; evento que, nas palavras de Freud (1906/1996f, p. 261)Freud, S. (1996f). Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. VII). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1906)., corrigiu o mais importante de seus erros iniciais, colocando-o no caminho que, alguns anos mais tarde, o levaria à teorização da fantasia inconsciente.7 7 A esse respeito, ver Jorge (1988, pp. 11-24). “Não acredito mais em minha neurótica”, registra a célebre correspondência. Estou “seguro de que não há indicações de realidade no inconsciente, de modo que não se pode distinguir entre a verdade e a ficção que foram catexizadas pelo afeto”; do contrário, “a incidência da perversão teria que ser incomensuravelmente mais frequente do que a histeria dela resultante” (Masson, 1986Masson, J. M. (Org.) (1986). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess, 1887-1904. Rio de Janeiro, RJ: Imago., pp. 265-266).

Em “Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses”, de 1906, Freud (1906/1996f)Freud, S. (1996f). Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. VII). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1906).comenta esse momento decisivo de sua elaboração teórica:

O material escasso dessa ocasião me havia trazido, por força do acaso, um número desproporcionalmente grande de casos em que a sedução por algum adulto ou por crianças mais velhas desempenhara o papel principal na história infantil do paciente. Superestimei a frequência desses acontecimentos (aliás impossíveis de pôr em dúvida), ainda mais que, naquele tempo, não era capaz de estabelecer com segurança a distinção entre as ilusões de memória dos histéricos sobre sua infância e os vestígios de eventos reais. (p. 260)

Portanto, quanto a esse problema colocado pela fala do paciente, a ideia de lembrança encobridora, desenvolvida por Freud em 1899Freud, S. (1996e). Lembranças encobridoras. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. III). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1899)., foi fundamental. Deckerinnerung, ou souvenir-écran — lembrança-tela: “um engodo da memória”, uma lembrança que é, significativamente, solidária ao esquecimento; uma imagem desconcertante, cujo objetivo é, justamente, fazer esquecer. Mais do que emergir, observa Didi-Huberman (2105, p. 220), é uma imagem que se forma, “o que também quer dizer que modifica formas”, preservando, naquilo que “ela esconde”, o que “tende a ser fornecido por uma expressão verbal” (Freud, 1899/1996fFreud, S. (1996f). Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. VII). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1906)., p. 301).8 8 Com efeito, a imagem “permanece a testemunha privilegiada de algo que no inconsciente deve ser articulado” — no inconsciente que, não sendo “o primordial nem o instintivo, conhece apenas os elementos do significante”. Cf. Lacan (1956-57/1995, pp. 121-122) e Lacan (1957/1998, p. 526).

Enfim, “seja essa imagem verdadeira, seja falsa, o problema já não está aí: trata-se de um problema de verdade, não de veracidade”. Entretidos com suas “descrições clínicas e cheios dos problemas taxonômicos” colocados pela medicina da época, Charcot e os seus jamais poderiam dar ao relato do estupro, ou a qualquer palavra saída da boca de Augustine, o caráter de verdade (Didi-Huberman, 2015, pp. 220, 199).

O que, naturalmente, não impediu que reinasse, aqui e ali, certa “perplexidade”, como observa Didi-Huberman (2015, p. 215).

Certa mulher deu o mais corriqueiro dos tapas em seu filho pequeno, e eis que ficou totalmente paralisada; por quê? Seria possível chamar de trauma uma coisa insignificante, ou algo que por pouco não tinha acontecido, ou mesmo algo que estava apenas na imaginação das histéricas? (Charcot, 1888-1889Charcot, J-M. (1888-1889). Leçons du mardi à la Salpêtrière. Policlinique 1888--1889. Paris, FR: Progrès Médical & Lecroisnier & Babé., p. 111)

Em outras palavras, “a frequente discrepância entre os efeitos e a causa traumática”, tão evidente quanto difícil de acomodar à ciência da época, levou Charcot a considerar o acontecimento traumático, quando muito, “como um simples agente provocador da histeria, e, no limite, uma informação complementar (Didi-Huberman, 2015, p. 199). Conforme o gosto da época e o horizonte intelectual de quem clinicava, a causa determinante continuava a ser moral, hereditária, biológica ou religiosa.

Ora, “essa mesma discrepância, essa desproporção” tão frequente entre um trauma muitas vezes banal e a severidade de seus efeitos, foi justamente isso o que “manteve Freud perto da histeria” (Didi-Huberman, 2015, p. 215), levando-o, ainda em 1888, a uma conclusão no mínimo desconfortável para o médico que ele começava a deixar de ser: “nas suas paralisias e em outras manifestações, a histeria se comporta como se a anatomia não existisse, ou como se não tivesse conhecimento desta” (Freud, 1888-1903/1996aFreud, S. (1996a). Algumas considerações para o estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. I). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1888-1903)., p. 212).

De fato, para Geneviève, outra histérica a cujo sofrimento inaudito certamente devemos a descoberta do inconsciente, a anatomia parecia servir a propósitos alheios ao imaginário científico que orientava a prática de seus médicos:

Certo amante de Geneviève morreu; ela fugiu por uma janela e, durante a madrugada, tentou exumar o corpo; teve uma crise no próprio cemitério; ficou parecendo um cadáver; um ano depois, o amante voltou como uma aparição e, no dizer de Bourneville, eles mantém relações sexuais repetidas, nas quais ela garante sentir-se como outrora; fica toda suada e com as partes genitais úmidas. Geneviève veio a alucinar um aborto, mas o sangue foi abundante, realmente abundante. (I.P.S., 1876-1877I.P.S. (1876-1877). Iconographie photographique de la Salpêtrière. Paris, FR: Progrès Médical & Delahaie & Lecroisnier, v. I., v. I, p. 151)

Observador desorientado naquele museu patológico vivo, Freud levaria algumas décadas para avançar em sua teoria, mas talvez não seja exagero dizer que ali, na cidade das mulheres incuráveis, na Versalhes da dor, já havia observado (ouvido?) o suficiente para supor que, sob o sintoma histérico (fenômeno clínico aparente) escondia-se, na verdade, toda uma clínica ainda por fazer: a clínica da fantasia inconsciente,9 9 A esse respeito, ver Jorge (2010). baseada no texto inaudito de um sofrimento verdadeiro que, de tanto se repetir como espetáculo fictício, foi encontrar nos ouvidos de Freud seu encaminhamento originário.

Com o tempo, com o avançar de sua clínica e o incansável trabalho de reelaboração de seus achados teóricos, Freud pôde dar “ao evento visual do sintoma toda a sua complexidade, todas as suas tensões”, todos os “fundos falsos” daquele espetáculo voluptuoso e desconcertante que ocultava sua “verdadeira desdita” (Didi-Huberman, 2015, pp. 398, 230).

Conversões que percorriam, com ditosa complacência, todo o perímetro do grande arco histérico; pavores e súplicas, ostensivamente sexuais e amorosos, repentinamente interrompidos (ou concluídos) por êxtases perturbadores que amiúde forçavam Bourneville a “convocar as grandes místicas cristãs para explicar, descrever e justificar […] a reunião do escândalo e da beleza nos êxtases histéricos” (Didi-Huberman, 2015, p. 200).

“Diante dos olhos”, anotou Bourneville, Geneviève “mantinha inin-terruptamente o objeto invisível de seu amor. Contemplava-o, escutava-o; vivia sob o encanto de uma visão perpétua que a fazia gozar com seu celeste esposo” (I.P.S., 1878I.P.S. (1878). Iconographie photographique de la Salpêtrière. Paris, FR: Progrès Médical & Delahaie & Lecroisnier, v. II., v. II, p. 220).

Ora, se é verdade que o amor é uma das formas que o sujeito encontra, quando tem a fortuna a seu favor, de suturar, por meio da palavra, aquilo que o real consagrou a uma disjunção irremediável, não é difícil supor quem era, de fato, o fantasma que arrastava suas correntes pela cidade das mulheres incuráveis.

Algazarra de bordel

Museu patológico vivo, Versalhes da dor. “O maior asilo da França [era] um asilo de mulheres”, ou melhor, “de todo o rebotalho feminino”. Ali, segundo Didi-Huberman (2015, pp. 33, 235) reinava uma “verdadeira algazarra de bordel, com todas as mulheres misturadas, proferindo interjeições ao interno de plantão ou de passagem, esfalfando-se em interpelações crassas, fazendo strip-teases” ou dirigindo-lhes “grosseiras solicitações carnais” (I.P.S., 1876-1877I.P.S. (1876-1877). Iconographie photographique de la Salpêtrière. Paris, FR: Progrès Médical & Delahaie & Lecroisnier, v. I., v. I, pp. 70-71).

A coisa era de tal modo ostensiva que Charcot, mesmo informalmente, teria de reconhecer que, de uma maneira ou de outra, o que parecia estar em jogo era “sempre a coisa genital, sempre… sempre… sempre”. Testemunha acidental da prosa entre Charcot e Brouardel, Freud (1914/1996g, p. 24)Freud, S. (1996g). A história do movimento psicanalítico. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XIV). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1914). não poderia ter ficado menos que “paralisado de assombro” […]. Mas se ele sabe disso, por que não diz nunca?” (p. 24).

Mais do que dada a ver, alguma coisa ali precisava ser dita, inquietação que fez com que Freud, pouco a pouco, abandonasse sua curiosidade médica em benefício do que mais tarde seria chamado de escuta analítica. Afinal, o que estava tão evidente quanto silenciado naquela algazarra de bordel era o fato de que um desejo era “representado, posto em cena” e, apesar de condenado à miséria, podia “existir aos olhos de todos” (Didi-Huberman, 2015, p. 237).

Num caso que observei [não estou longe de pensar, aliás, que Freud esteja falando de uma observação feita na época de sua temporada em Paris], a doente apertava o vestido contra o corpo com uma das mãos (como uma mulher), enquanto, com a outra, tentava arrancá-lo (como um homem). Essa simultaneidade contraditória condiciona, em grande parte, o que há de incompreensível numa situação tão plasticamente representada no ataque, e por isso mesmo se presta perfeitamente à dissimulação da fantasia inconsciente que está em ação.10 10 Optamos por reproduzir esse caso, conhecido do leitor de Freud, da maneira como ele foi citado por Didi-Huberman (2015, p. 398) justamente para não perder o espirituoso comentário que o autor faz entre colchetes. Em Freud, o caso é mencionado em “Fantasias histéricas e suas relações com a bissexualidade” e em “Algumas observações gerais sobre os ataques histéricos”, ambos publicados em 1908.

Se à histérica sói repetir, para deleite e surpresa de “exploradores do útero” ou “inquisidores do encéfalo” (Didi-Huberman, 2015, p. 108), as pala- vras ditadas pelo mestre de plantão, também na Salpêtrière a cisão entre a sin- tomatologia exagerada e artificial e a verdade silenciada daquelas mulheres encontrava seus meios de não se inscrever. Em um raciocínio semelhante ao que Freud desenvolve em “A cabeça de medusa” (1922)Freud, S. (1996h). A cabeça de medusa. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XVIII). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1922)., breve ensaio no qual ele vê na pletora de serpentes a representação pelo avesso da falta fálica, Didi--Huberman (2015) chega a dizer que toda aquela “gesticulação não passava da ostentação de uma falta”, ou melhor, “da falta por excelência: a relação sexual, sempre tentada, sempre contraditoriamente representada em mil e uma atitudes passionais”: mil e uma maneiras de repetir o “nada da relação tentada” (pp. 347-348).

Um mestre pelo beiço

Mas, afinal, o que invocava, da parte de quem se oferecia ao saber médico como objeto, toda aquela “gesticulação convertida em deboche” e, “no limite do escândalo”, sempre “transformada em espetáculo”? (Didi--Huberman, 2015, pp. 230-231). A hipótese de Georges Didi-Huberman é de que, nos corredores da cidade das mulheres incuráveis, a fotografia foi providencial. E a hipótese é certeira, pois, efetivamente, a Versalhes da dor “distribuía suas pobres almas carregadas por círculos mais ou menos apavorantes — entre os quais o Serviço das Histéricas, com seu lado ‘experimental’, era uma espécie de anexo do Purgatório” (p. 234).

Sob o risco de serem alojadas no “setor duríssimo das simples alienadas ditas incuráveis”, aquelas mulheres precisavam dar mostras, “e com certa regularidade, de seu caráter histérico ortodoxo (amor pelas cores, leviandade, êxtases eróticos)”. Em outras palavras, “ou você me seduz”, dando provas de sua histeria, “ou eu a considero Incurável, e nesse caso, para sempre, você não será mais exibida, mas escondida no escuro” (Didi--Huberman, 2015, p. 234). Espetáculo fictício no lugar do texto, sempre silenciado, de um sofrimento verdadeiro; “única parte suportável de sua infelicidade: existir para outro, ao menos como espetáculo” (p. 230).

Posição difícil de sustentar, sem dúvida, essa de equilibrar-se entre a vedete — palavra em que se encontra “o ver, de vedere, e também o velar, de veletta” — e o objeto do desejo de saber de seu mestre. “Evento ambíguo”, conclui Didi-Huberman (2015, pp. 230-231), marcado por “uma nudez cruel, da qual nunca se soube o que fazer”, até que Freud, escutando o último fôlego de uma voz silenciada — que, não obstante, não cessava de gritar no real do corpo — colocasse as palavras para trabalhar.

A sedução, e Didi-Huberman (2015, pp. 234-235) não hesita em cha- má-la pelo nome, era parte do jogo:11 11 Ou “uma espécie de fantasia masoquista, conforme seu traço demonstrativo (fazer-se ver sofrer) e conforme seu caráter eminente de pacto, e também de convivência”. Didi-Huberman (2015) diz ainda que “a fabricação das imagens de histéricas na Salpêtrière” obedeceu à “temporalidade simultânea de uma dialética de estrutura histérica (o corpo para a imagem e a imagem para o amor) e de estrutura perversa (o corpo para a imagem e a imagem para o saber)” (pp. 235, 384). de um lado, confirmava e tranquilizava “cada vez mais os médicos quanto ao seu conceito de histeria”; de outro, permitia à histérica, como de hábito, “levar o mestre pelo beiço” — isto é, magnetizar, manter debaixo de seu governo (Azevedo, 2016Azevedo, F. F. dos S. (2016). Dicionário analógico da língua portuguesa. Rio de Janeiro, RJ: Lexicon. p. 348). Com balbúrdias e espasmos frequentemente seguidos de “crises barulhentas de riso e expressão de grande alegria” (Georget, 1837, p. 160), ela não só exigia “sustentar o desejo do outro” como também submetia-lhe ao domínio do seu: chacota infernal, algazarra de bordel, verdadeiro reinado do não saber sobre o saber (Didi-Huberman, 2015, p. 232).

Ora, como poderiam Bourneville, Charcot e Regnard não adorá-la, a histérica, como ídolo de toda a sua ciência? Como, de sua parte, ela poderia não entregar-se à sua existência de espetáculo, “estúpida, talvez, mas deslumbrante, encantadora, retendo os destinos e as vontades presos a seus olhares”? (Didi-Huberman, 2015, p. 233).

Mais do que um capítulo da história da psiquiatria, a Salpêtrière talvez seja o evento epistemológico decisivo dessa época em que, silenciado por um saber viciado em saber tudo e sempre da mesma maneira, o sujeito pronuncia, uma a uma, as palavras ditadas pelo mestre. É, igualmente, um capítulo da história da arte justamente porque é o capítulo inicial da psicanálise: um corpo que goza exibindo a si mesmo como espetáculo, objeto de todo o desejo de saber de seu mestre, mas à espera de alguém que pudesse, restituindo o domínio das palavras, colocá-las para trabalhar.

Foi assim que, na cidade das mulheres incuráveis, “a histeria já não devia mais parar de se agravar, cada vez mais demonstrativa, carregada nas tintas, sempre mais submetida a roteiros” dos quais não escapavam até mesmo algumas “mulheres contratadas como simples serventes”, que, num par de semanas, tornavam-se “histéricas” (Didi-Huberman, 2015, pp. 235, 389).

E é exatamente assim que, sempre que houver, por virtude de “uma escalada experimental”, alguém que acredite “tudo poder fazer, desfazer e refazer com os corpos que lhe [são] entregues”, é justamente aí que a histeria não vai deixar de se repetir, operando, hoje como no século XIX,12 12 A coisa pode ficar realmente interessante se, oportunamente, for possível abordar as relações entre histeria e ciência além das fronteiras da analogia. A princípio, as semelhanças com o caso da Salpêtrière parecem mais que suficientes; como observa Didi-Huberman (2015, p. 380), vez ou outra, era “preciso ‘salvar a histeria’, ou seja, discriminá-la do desejo, a fim de que ela existisse para a ciência, do mesmo modo que um físico já poderia atribuir-se o dever de ‘salvar os fenômenos’”. as grandes revoluções que o mundo conheceu (Didi-Huberman, 2015, p. 387).

Quanto à Bourneville, não que ele se sentisse muito implicado na tarefa, mas ele até tentou relatar alguns sonhos de Augustine: “sonhos pavorosos”, muitas vezes; noutras, sonhos tão singelos quanto notáveis, como o de sair da Salpêtrière para assistir “a uma peça teatral em que representassem uma revolução” (Didi-Huberman, 2015, p. 193).

Já Augustine, que de vez em quando “pulava janelas, trepava em árvores e nos telhados da Salpêtrière […], com total desprezo pelo perigo, bem como pelo decoro (ficava com a camisola toda desarrumada, quase a desnudando)”, ela mesma encarregou-se de pôr fim à sua existência de histérica ideal: “disfarçou-se de homem (que ironia), e assim fugiu” do Museu patológico vivo (Didi-Huberman, 2015, pp. 385-386).

  • 1
    Como se sabe, é à pose que Roland Barthes (1984)Barthes, R. (1984). A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. recorre para definir a natureza da fotografia, cuja filiação à arte, acrescenta, se dá não através da pintura, e sim pela via do teatro.
  • 2
    O leitor interessado nesse assunto encontrará algumas dessas reflexões em Greggio (2018)Greggio, T. (2018). La pose et la couleur même de l’être regardé d’un corps: l’exhibitionnisme dans deux photographies de Helmut Newton. Revue Insistance, 13, 103-119..
  • 3
    A referência aqui é o trabalho de André Rouillé (2009)Rouillé, A. (2009). A fotografia: entre o documento e a arte contemporânea: entre documento e arte contemporânea. São Paulo, SP: Editora Senac, para quem boa parte da história da fotografia pode ser contada através da tensão entre seus méritos documentais (ou utilitários) e expressivos (ou artísticos). Aliás, convém observar ainda que à margem do texto, um pormenor histórico bem interessante: em fins do século XIX, no momento em que a fotografia ganhava terreno na Medicina e na Ciência, a fotogravura levava a Moda para as páginas das revistas. Para Claudio Marra (2008)Marra, C. (2008). Nas sombras de um sonho: história e linguagens da fotografia de moda. São Paulo, SP: Editora Senac., ao introduzir “a fotografia na indústria cultural”, a fotogravura transferiu para “uma dimensão ampliada, de massa, aquelas possibilidades que a fotografia exercia em pequena escala nas práticas cotidianas”, um “dispositivo operacional indispensável para o desenvolvimento da moda” (p. 72).
  • 4
    Com exceção do trabalho de Georget (1837)Georget, E-J. (1837). Hystérie: Dictionnaire de médecine (1821-1828) (Vol. XI). Paris, FR: Bichet., todas citações às fontes primárias que aparecem no texto foram recolhidas junto ao livro de Didi-Huberman (2015)Didi-Huberman, G. (2015). Invenção da histeria: Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto.. Referimo-nos aos trabalhos de Richer (1885)Richer, A. P. (1885). Études cliniques sur la grande hystérie ou hystéro-épilepsie.Paris, FR: Delahale & Lecroisnier., Charcot (1893Charcot, J-M. (1893). Leçons sur le maladies du système nerveux. In Oeuvres complètes (Vol. III). Paris, FR: Progrès Médical & Lecroisnier & Babé.; 1888-1889)Charcot, J-M. (1888-1889). Leçons du mardi à la Salpêtrière. Policlinique 1888--1889. Paris, FR: Progrès Médical & Lecroisnier & Babé., Londe (1896)Londe, A. (1896). La photographie moderne. Traité pratique de la photographie et de ses applications à l’industrie et à la science. Paris, FR: Masson. e Claretie (1903)Claretie, J. (1903). Charcot, le consolateur. In Les Annales politiques et littéraires, XXI(1056)., além dos três volumes da Iconografia Fotográfica da Salpêtrière, publicados sem indicação de autoria. Como o objetivo do nosso artigo é ambientar o leitor nos documentos médicos da época, optamos por manter o maior número possível de citações às fontes primárias referidas anteriormente. No entanto, para evitar a inserção desnecessária de elementos que atrapalhem a fruição do texto — e tendo advertido o leitor quanto à sua origem —, as citações às fontes primárias serão feitas diretamente. As referências aos três volumes da Iconografia Fotográfica da Salpêtrière serão indicadas pela sigla I.P.S., como é hábito neste tipo de publicação, seguidas do respectivo volume (v. I, v. II, v. III).
  • 5
    O uso da fotografia pela medicina também chegou ao Brasil, ainda que com diferenças importantes em relação ao caso europeu; a esse respeito, ver: Silva (2014)Silva, J. R. (2014, maio-ago). Fotografia e ciência: a utopia da imagem objetiva e seus usos nas ciências e na medicina. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 9(2), 343-360. Recuperado em 10 jun. 2020 de: <https://www.scielo.br/pdf/bgoeldi/v9n2/a06v9n2.pdf>.
    https://www.scielo.br/pdf/bgoeldi/v9n2/a...
    .
  • 6
    “Freud não chegou facilmente à sua concepção sobre a fantasia […]. É preciso salientar de início que a emergência mesma do conceito de inconsciente está ligada à demonstração, por Freud, da ação inconsciente da fantasia. Freud permaneceu durante muito tempo preso à teoria da sedução e do trauma relatados por suas pacientes histéricas, já que lhe faltava a concepção da fantasia. Quando essa concepção lhe ocorreu, um passo essencial foi dado no sentido de indicar a dimensão do inconsciente. Esse momento produziu uma reviravolta profunda na elaboração freudiana, uma vez que Freud pôde se deslocar da concepção do trauma sexual para a do sexo traumático. Lacan valorizou muito especialmente esse momento da obra freudiana e falou da noção de trauma como contingência” (Jorge, 2010, p. 241; grifos do autor).
  • 7
    A esse respeito, ver Jorge (1988, pp. 11-24)Jorge, M. A. C. (1988). Sexo e discurso em Freud e Lacan. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar..
  • 8
    Com efeito, a imagem “permanece a testemunha privilegiada de algo que no inconsciente deve ser articulado” — no inconsciente que, não sendo “o primordial nem o instintivo, conhece apenas os elementos do significante”. Cf. Lacan (1956-57/1995, pp. 121-122)Lacan, J. (1995). O seminário. Livro 4. A relação de objeto. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1956-57). e Lacan (1957/1998, p. 526)Lacan, J. (1998). A instância da letra no inconsciente. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1957)..
  • 9
    A esse respeito, ver Jorge (2010)Jorge, M. A. C. (2010). Fundamentos da psicanálise: de Freud a Lacan, vol. 2: A clínica da fantasia. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
  • 10
    Optamos por reproduzir esse caso, conhecido do leitor de Freud, da maneira como ele foi citado por Didi-Huberman (2015, p. 398) justamente para não perder o espirituoso comentário que o autor faz entre colchetes. Em Freud, o caso é mencionado em “Fantasias histéricas e suas relações com a bissexualidade” e em “Algumas observações gerais sobre os ataques histéricos”, ambos publicados em 1908.
  • 11
    Ou “uma espécie de fantasia masoquista, conforme seu traço demonstrativo (fazer-se ver sofrer) e conforme seu caráter eminente de pacto, e também de convivência”. Didi-Huberman (2015)Didi-Huberman, G. (2015). Invenção da histeria: Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. diz ainda que “a fabricação das imagens de histéricas na Salpêtrière” obedeceu à “temporalidade simultânea de uma dialética de estrutura histérica (o corpo para a imagem e a imagem para o amor) e de estrutura perversa (o corpo para a imagem e a imagem para o saber)” (pp. 235, 384).
  • 12
    A coisa pode ficar realmente interessante se, oportunamente, for possível abordar as relações entre histeria e ciência além das fronteiras da analogia. A princípio, as semelhanças com o caso da Salpêtrière parecem mais que suficientes; como observa Didi-Huberman (2015, p. 380), vez ou outra, era “preciso ‘salvar a histeria’, ou seja, discriminá-la do desejo, a fim de que ela existisse para a ciência, do mesmo modo que um físico já poderia atribuir-se o dever de ‘salvar os fenômenos’”.

Referências

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    » https://www.scielo.br/pdf/bgoeldi/v9n2/a06v9n2.pdf
Editora/Editor: Profa. Dra. Cristiana Facchinetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Set 2021

Histórico

  • Recebido
    7 Maio 2020
  • Revisado
    30 Jun 2020
  • Aceito
    11 Ago 2020
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