Este artigo objetiva refletir sobre o adoecimento psíquico do sujeito no contexto do neoliberalismo, que consiste em força estruturante (Bourdieu) que age sobre a sua subjetividade, desenhando-a a partir de uma lógica empresarial, pautada pela máxima produtividade, racionalidade cartesiana e desvalorização dos afetos, de que resulta o adoecimento mental e sofrimento psíquico desse sujeito. Para tanto, apresenta-se uma experiência com a leitura literária desenvolvida coletivamente por meio do Laboratório de Leitura como proposta de intervenção desmobilizadora dessas estruturas estruturantes.
Palavras-chave:
Neoliberalismo; racionalidade cartesiana; saúde mental; literatura
Resumos
This article aims to reflect on the psychic illness of the subject in the context of neoliberalism, which is a structuring force (Bourdieu) that acts on their subjectivity, drawing it from a business logic, guided by maximum productivity, Cartesian rationality and devaluation of affections, resulting in the mental illness and psychic suffering of this subject. To this end, an experience with literary reading developed collectively via the Reading Laboratory is presented as for na intervention to demobilize these structuring structures.
Key words:
Neoliberalism; cartesian rationality; mental health; literature
Cet article reflète sur la maladie psychique du sujet dans le contexte du néolibéralisme, une force structurante (Bourdieu) qui agit sur sa subjectivité, en la tirant d’une logique d’entreprise basée sur la productivité maximale, la rationalité cartésienne et la dévalorisation des affects, ce qui entraîne la maladie mentale et la souffrance psychique de ce sujet. Pour ce faire, une expérience de lecture littéraire développée collectivement à travers le Laboratoire de lecture est présentée comme une proposition d’intervention pour démobiliser ces structures structurantes.
Mots clés:
Néolibéralisme; rationalité cartésienne; santé mentale; Littérature
Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre la enfermedad psíquica del sujeto en el contexto del neoliberalismo, que consiste en una fuerza estructurante (Bourdieu) que actúa sobre su subjetividad extrayéndola de una lógica empresarial, guiada por la máxima productividad, la racionalidad cartesiana y la desvalorización de los afectos, lo que tiene como resultado la enfermedad mental y el sufrimiento psíquico de este sujeto. Para ello, se presenta una experiencia con la lectura literaria desarrollada colectivamente mediante el Laboratorio de Lectura como propuesta de intervención desmovilizadora de estas estructuras estructurantes.
Palabras clave:
Neoliberalismo; racionalidad cartesiana; salud mental; literatura
Introdução
Para além da pandemia da Covid-19, vivemos tempos difíceis. Não faltam artigos e reportagens que observam que ela apenas evidenciou e agravou todos os tipos de precariedades relacionadas tanto à vida em comunidade (do ponto de vista político, econômico, da saúde, educação e cultura), quanto à vida dos sujeitos singulares.
Essas duas dimensões foram reconfiguradas pela lógica do capitalismo, que foi transformando profunda e incessantemente a organização da sociedade, as relações entre as nações, as trocas culturais, as negociações políticas e econômicas, enfim, todas as esferas da vida humana (Giddens, 2002Giddens, A. (2002). Modernidade e identidade. Jorge Zahar.).
O funcionamento desenvolvimentista-produtivista, traduzido em um conjunto de elementos — racionalidade, cientificismo, tecnologia e eficiência administrativa — balizou o mundo em que vivemos e forjou uma espécie de homem funcional para corresponder ao modelo de competência e eficiência que se traduza em produtividade.
Isso nos interessa, pois se funda na “consolidação do sujeito do conhecimento cartesiano, pautado na racionalidade científica que se torna hegemônica como método de produção de conhecimento” (Torre & Amarante, 2001, p. 74Torre, E. H. G., & Amarante, P. (2001). Protagonismo e subjetividade: a construção coletiva no campo da saúde mental. Ciênc. saúde coletiva, 6(1), pp. 73-85. Recuperado em 16 jan. 2021, de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232001000100006&lng=en&nrm=iso. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232001000100006.
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). É, pois, esse sujeito cindido em sua dimensão ontológica, cuja capacidade de subjetivação e de Desejo é ao mesmo tempo desvalorizada e (re)configurada a fim de que não constitua obstáculo à manutenção da produtividade, que se torna paradigma do neoliberalismo.
O objetivo deste artigo se sustenta ao nos debruçarmos sobre os sujeitos históricos que necessitam de estratégias para compreender como vivem sob dinâmicas e estruturas econômico-sociais e psicológicas que excluem, desvalorizam e hierarquizam tudo que não pertence ao cogito. A apropriação da filosofia cartesiana pela lógica capitalista em sua vertente neoliberal produz cotidianamente uma miríade de violências, dentre elas, a instauração e consequências da cisão cogito – percepção/sensações. Esse espaço polarizado e tenso que tentamos esboçar é o próprio substrato para a experiência com a Literatura.
Visando abordar, especificamente, as reverberações da Literatura na saúde mental de trabalhadores, situaremos as configurações histórica, social, filosófica e psicológica desse complexo processo de produção dessa nova chave experiencial partindo da consolidação e hegemonia da racionalidade cartesiana.
A racionalidade cartesiana
Para a compreensão da proposta cartesiana, uma obra fundamental foi Sources of the Self – The Making of the Modern Identity, de Charles Taylor. No capítulo “Descartes’s disengaged reason” encontramos as origens agostinianas do cogito e a ênfase dada ao plano reflexivo da existência humana. A razão passará a ser o centro das ações humanas. As sensações e as emoções deverão ser submetidas ao controle racional para que a moral seja a condução da vida feliz.
As bases do racionalismo cartesiano inauguram o pensamento moderno porque instauram uma linguagem científica. A ordem cósmica não é mais entendida como fruto da vontade divina, mas como resultante do mecanismo que ela representa. É, assim, Galileu o nome mais importante que, com sua mecânica, substituirá a metafísica dos filósofos antigos. A linguagem moderna será a da explanação científica. Isso alterará o próprio conhecimento que o ser humano tem de si. Conhecer as coisas, a partir de Descartes, é representá-las adequadamente. A realidade passa a ser construída a partir do discurso racional, coerente e fundamentado em evidências indubitáveis. O conhecimento de si e do mundo devem estar fundados em evidências racionais. Conhecer é ordenar. A verdade enunciada na obra cartesiana Discurso do método — “eu penso, portanto eu sou” — surge como resultado desse modo de obtenção da verdade baseado na ordenação dos pensamentos.
O método cartesiano visa objetivar o processo do conhecimento. Para isso, o mundo e os corpos devem ser definidos como “res extensa”; o pensamento, por outro lado, deve ser concebido como “res cogitans”. Essa objetivação postula a superioridade da definição racional em relação aos experimentos sensitivos, o que implica lançar o olhar cético sobre todos os modos sensitivos de conhecimento. Em suma, os sentidos nos enganam: somente a razão operada segundo as regras do método pode conduzir o homem ao verdadeiro conhecimento. A dualidade das substâncias, extensão e pensamento, todavia, são “reunidas” por Descartes. Essa reunião, contudo, é uma operação construtiva do pensamento, visível como poder de autocontrole e domínio da razão sobre as paixões.
A moral cartesiana solicita a autarquia, o governo de si. Se a razão é o fator que instaura a homogeneidade no mundo das incertezas passionais, quando o homem assume sua luz natural como norteadora de sua vida, as paixões são dominadas e transformadas em forças construtivas. Nesse sentido, a mesma visão de ordenamento do Cosmos que vemos em Galileu aplica-se ao plano moral. O que vale para a física vale para os hábitos. Se conhecer é ordenar, esta ordenação é o princípio moral da felicidade. As paixões surgem como falsas opiniões que conduzem ao erro e ao sofrimento. No caso da ação moral, controlar é direcionar o funcionamento do mecanismo para seu fim último: o domínio da natureza.
A moral cartesiana toca, portanto, explicitamente no problema das paixões. Tais sentimentos não são vistos por Descartes como intrinsecamente prejudiciais. Ao contrário, elas podem ser úteis. Uma das mais importantes é a admiração, a outra é o amor. Mas o desequilíbrio na manifestação dessas emoções pode se transformar em inveja ou ciúme. Como vimos, a questão central reside no reto manejo desses sentimentos, evitando os excessos.
Taylor (2001)Taylor, C. (2001). Sources of the Self – The Making of the Modern Identity. Harvard University Press. afirma: “a ética do controle racional, que encontra suas fontes no senso de dignidade e autoestima, interioriza o espírito da ética da honra” (p. 152), a qual está associada aos elementos de força e vitalidade. As “grandes almas” demonstram um raciocínio tão potente que podem controlar as mais violentas paixões. As mais baixas e vulgares, ao contrário, deixam-se conduzir pelas paixões. Para Descartes, a força de vontade para se fazer o que julga o melhor é a maior de todas as virtudes. Uma alma potente luta contra as paixões com suas próprias armas. Elas são os “julgamentos firmes e determinados relativos ao conhecimento do bem e do mal” (p. 153). No sentido cartesiano, a dignidade humana estaria assentada na virtude da generosidade. Ela seria “um remédio contra os desregramentos das paixões” (p. 153). Essa visão das paixões sugere certo distanciamento do mundo, um “desengajamento”. Os impulsos corpóreos e as vicissitudes seriam enfrentados com a instrumentalização da razão.
A racionalidade cartesiana caracteriza-se, assim, por sua essência “procedimental” de padrões que constroem a ordem na ciência e na vida. Ou seja, ser racional significa pensar de acordo com certos cânones e ser uma propriedade interna do pensamento subjetivo. Essa será uma das características do pensamento moderno: o que eu “adquiro no cogito, e em cada passo sucessivo na cadeia das percepções claras e distintas, é exatamente esse tipo de certeza que eu posso gerar por conta própria seguindo o método correto” (Taylor, 2001, p. 156Taylor, C. (2001). Sources of the Self – The Making of the Modern Identity. Harvard University Press.). Apenas a alma comandada pela razão configuraria a superioridade das condutas humanas. Diante dessa dualidade:
O máximo que pode fazer a vontade, enquanto essa emoção está em vigor, é não consentir em seus efeitos e reter muitos dos movimentos aos quais ela dispõe o corpo. Por exemplo, se a cólera faz levantar a mão para bater, a vontade pode comumente retê-la. (Descartes, 1979, p. 234Descartes, R. (1979). As paixões da alma. Abril Cultural.)
Verificamos, assim, dois aspectos da filosofia de Descartes insistentemente retomados pela tradição. O primeiro é conceber os sentimentos, as emoções e as percepções como parte de um mecanismo, sendo o corpo representado como uma estrutura maquínica de reação aos estímulos. O segundo é a diferenciação entre o racional e o irracional como critério para as ações e para a própria vida humana. Esses dois aspectos são acompanhados por um terceiro: o reducionismo, que centrou na atividade controladora da razão a verdade de todas as ações humanas.
Os que têm, por natureza, forte pendor para as emoções da alegria e da compaixão, ou do medo, ou da cólera, não podem impedir-se de desmaiar, ou de chorar, ou de tremer, ou de ter o sangue todo agitado como se tivessem febre, quando a sua fantasia é fortemente tocada pelo objeto de alguma dessas paixões. Mas o que se pode sempre fazer em tal ocasião, e que eu julgo poder apresentar aqui como o remédio mais geral e o mais fácil de praticar contra todos os excessos das paixões, é, sempre que se sinta o sangue assim agitado, ficar advertido e lembrar-se de que tudo quanto se apresenta à imaginação tende a enganar a alma e a fazer com que as razões empregadas em persuadir o objeto de sua paixão lhe pareçam muito mais fortes do que são, e as que servem para dissuadir muito mais fracas. (p. 303)
A racionalidade defendida como remédio para todos os excessos foi colonizada. O discurso capitalista e neoliberal se sustentaram nas proposições cartesianas e provocaram dissonâncias e agenciamentos particularmente graves em se tratando do sofrimento psíquico na atualidade.
Neoliberalismo, adoecimento e sofrimento psíquico
O neoliberalismo não deve ser entendido apenas como modelo socio-econômico, mas também como “gestor do sofrimento psíquico” que se impôs na contemporaneidade em razão da natureza disciplinar de seu discurso. Ele é constituído por categorias morais e psicológicas tomadas como pressupostos silenciosos de ações econômicas, que não se fundamentam somente em sua eficácia econômica, mas em sua “pretensa justeza moral na realização social da liberdade” (Safatle et al., 2021, p. 9Safatle, V., Silva Junior, N., & Dunker, C. (Orgs.) (2021). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Autêntica.).
Quando a liberdade se transmuta “na noção liberal de liberdade como propriedade de si”, evidencia-se a forma de gestão psíquica, de produção de subjetividades com padrões de ação e de sofrimento. Não por acaso, a ascensão do neoliberalismo nos anos 1970 foi seguida pela reformulação do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III), indicando relações profundas entre as ações da “engenharia social do neoliberalismo e a reconstrução de estruturas categoriais clínicas”, sobretudo através da substituição da clínica tradicional pela lógica medicamentosa e exploração farmacológica a fim de potencializar, ou de não cessar, a produtividade do sujeito-trabalhador (Safatle et al. 2021, p. 10Safatle, V., Silva Junior, N., & Dunker, C. (Orgs.) (2021). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Autêntica.).
Nesse quadro, a ideia de “gestor” do sofrimento psíquico ganha importância. Enquanto para os liberais clássicos, descendentes de Bentham e Mill, o sofrimento do sujeito era um problema que atrapalhava a produção e obstaculizava o desenvolvimento da felicidade, a forma de vida neoliberal descobriu ser possível tirar proveito do próprio sofrimento, extraindo o máximo de trabalho com o mínimo risco jurídico, exigindo o máximo de engajamento com o mínimo de fidelização da empresa.
É nesse sentido que os autores defendem que o neoliberalismo não consiste tão somente em uma teoria sobre economia, mas constitui uma forma de vida definida por uma política que articula moral e psicologia ao propor um modelo de individualização baseado no modelo de empresa: a análise de risco, o cálculo de decisões e a administração de si pressupõem uma psicologia implícita (p. 11).
Isso implica, portanto, considerar o neoliberalismo uma episteme, no sentido foucaultiano da História da sexualidade, ou seja, “como uma matriz de produção de discursos que atravessa diferentes dimensões da cultura”; discursos esses que são incorporados e veiculados por dispositivos e instituições e, desse modo, “incluirá, para Foucault, a questão dos modos de subjetivação, isto é, discursos e práticas de socialização, pelos quais um ser humano pode se transformar em sujeito” (p. 77; grifos nossos).
Nesse contexto, mudanças nos usos da linguagem, como a narrativização, nomeação, metaforização ou alegorização, possuem força de determinação da vida psíquica em sua integralidade. Ao analisar as relações profundas que o neoliberalismo estabelece entre economia e psicologia como modo de gestão do sofrimento psíquico, Safatle, Silva Junior e Dunker fornecem elementos para pensarmos o neoliberalismo como um “campo”, na acepção de Bourdieu (1980)Bourdieu, P. (1980). Le sens pratique. Les Éditions de Minuit. e, como a Literatura, mediada pelo Laboratório de Leitura, poderia constituir um instrumento capaz de certo destensionamento da forma de vida neoliberal. A Literatura cria, pois, um campo simbólico próprio de constituição e reconstituição do Humano em suas mais sublimes transcendências e mais execráveis misérias. Ela faz ecoar as dimensões do singular, do íntimo, do comum e do universal. Seu compromisso não é o cogito, mas o silêncio de realidades inexistentes, impensáveis. Ao reverberar universos impossíveis, as relações de poder e as lógicas estruturantes do real se defrontam com dissonâncias. A dissonância, a fragmentação, as emoções, o incômodo, a violência que fingimos estar no devido lugar pode ser fratura de onde brotem afetos, percepções e então novos pensamentos e reverberações.
Assim, é na potência dessa forma especial de discurso e de linguagem, que é a Literatura, que se ancora a nossa reflexão, bem como na metodologia do Laboratório de Leitura, que promove de forma contundente a conexão afetiva dos leitores com a obra, levando-nos a crer que essa abordagem agregue importância em intervenções de promoção da saúde mental.
Formas de vida
Há no neoliberalismo um profundo trabalho de design psicológico, isto é, de internalização de predisposições psicológicas visando à produção de um tipo de relação do sujeito consigo mesmo, com o outro e com o mundo, orientada por diretrizes empresariais de performance, de investimento, de rentabilidade, de posicionamento, generalizada para todos os meandros da vida: a empresa nasce no coração e na mente dos indivíduos (Safatle et al., 2021, p. 30Safatle, V., Silva Junior, N., & Dunker, C. (Orgs.) (2021). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Autêntica.).
Tal internalização mostra a potência, não apenas de uma teoria do conhecimento ou moral, como vimos em Descartes, mas constitutiva das práticas e dos modos de ação e reconhecimento do sujeito em relação a si mesmo e no mundo.
Não é por acaso que se contam histórias sobre grandes empresários que “desbravaram” territórios impregnados de letargia e marasmo, impondo corajosamente o gosto do risco e da inovação como se imbuídos de uma aura “sagrada” a cumprir um “destino” de redenção moral da sociedade. Eis o novo “heroi” da modernidade.
Esse ideal empresarial de si foi o resultado psíquico necessário da estratégia neoliberal de “formalização da sociedade com base no modelo da empresa” (Foucault, 2010, p. 222Foucault, M. (2010). La naissance de la biopolitique. Seuil.), lógica essa que foi usada como espécie de “tribunal econômico” contra o poder público, visto ser fundamental que a lógica de mercado e seus valores sejam disseminados em todas as esferas da política social e de instituições públicas, de modo que não constituam instâncias de contestação.
A generalização da forma-empresa trouxe a autocompreensão dos indivíduos como “empresários de si mesmos”, aplicando à dimensão pessoal e afetiva o modelo de investimentos e retorno de “capitais”.
Além disso, o trabalho de vigilância e controle foi internalizado, o que se traduz em permanente autoavaliação e avaliação do outro a partir de critérios derivados do mundo corporativo. Essa redução total da dimensão das relações subjetivas e intersubjetivas a uma racionalidade de análise econômico-administrativa, a um “cálculo racional” dos custos e benefícios das relações humanas, possibilitou uma outra “relação” entre governo, indivíduo e modos de governabilidade psiquicamente mais enraizados (Safatle et al., 2021, p. 31Safatle, V., Silva Junior, N., & Dunker, C. (Orgs.) (2021). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Autêntica.). Percebe-se, assim, a força estruturante do neoliberalismo, na qual estamos todos, inescapavelmente, enredados.
As pessoas não se tornaram “apenas” “empresárias de si mesmas”, essa organização social se transformou em fundamento para uma nova definição de normalidade psicológica. Então, tudo que contrariasse essa “nova ordem” era concebido como algum tipo de patologia: patologizar a crítica era mais um “passo” desse processo.
O mundo foi, assim, torneado para servir à maquinaria neoliberal, cujo aparato transformou a própria matéria do humano através de dimensões de violência até então desconhecidas. Vive-se uma dinâmica fundada na ausência de solidariedade, no cinismo da competição que não o é de fato, pois se desenvolve sob contínua flexibilização de normas, corrupção, exploração de desfavorecidos, destruição ambiental e objetivo monopolista, visto que o neoliberalismo precisa se consolidar em um contexto em que o medo do outro constitua o afeto central e a exploração colonial seja a regra.
É nesse sentido que, ao entender os modelos socioeconômicos como modelos de governo e gestão social de subjetividades, nos propusemos a inseri-los na noção de “campo” (Bourdieu, 1980Bourdieu, P. (1980). Le sens pratique. Les Éditions de Minuit.), visto que não podem ser compreendidos ou elucidados sem se levar em conta a sua capacidade de instauração de comportamentos e modos subjetivos de autorregulação, isto é, uma psicologia que lhes é inerente (Safatle et al., 2021, p. 33Safatle, V., Silva Junior, N., & Dunker, C. (Orgs.) (2021). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Autêntica.).
Esse contexto será pano de fundo para refletirmos sobre uma intervenção que realizamos com uma equipe de saúde durante a pandemia de Covid-19.
A Literatura e o Laboratório de Leitura
Embora, “tecnicamente” esteja correto dizermos que ler consiste em uma atividade psíquica, essa definição está longe de refletir a sua dimensão e potência, porque diz respeito à psykhé de cada leitor: “ler faz reviver a atividade psíquica, o pensamento e a narração interior”, o que, associada ao narrar, “completa essa operação resultando em profunda consciência de si, em plenitude interior, em ‘refazimento’” (Petit, 2019, p. 61Petit, M. (2019). Ler o mundo: Experiências de transmissão cultural nos dias de hoje. (Julia Vidile, Trad.). Editora 34.). Ao narrarmos a nossa conexão com a obra, promovemos o cerzimento das nossas partes cindidas.
O alto nível de adoecimento psíquico-social que se tem verificado na população ativa, trabalhadora, prova justamente o inverso da lógica neoliberal: investir somente em formação técnica e profissional, retirando-lhe precisamente o que desenvolve e potencializa a sua humanidade, isto é, o “desenvolvimento das capacidades emocionais, imaginativas e narrativas” (p. 10), que só as Artes e a Literatura podem proporcionar, não torna esses trabalhadores mais competitivos no mercado mundial, ao contrário, ou os torna mais limitados ou, pior, leva-os ao adoecimento (Nacaguma, Gallian & Ruiz, 2020Nacaguma, S.; Gallian, D. & Ruiz, R. (2021). Literatura e humanização na universidade: uma proposta de formação. Revista Eletrônica de Educação, 15, 1-18, e4413075, jan./dez. 2021.).
Por que Literatura? Porque somos linguagem, somos constituídos pela linguagem, pela narrativa. Apenas nós perguntamos “Por quê?” Somente nós, seres humanos, entre todos os animais, sabemos que nascemos e que vamos morrer. E temos a intuição do que é “uma vida inteira”. Porque apenas nós percebemos a nossa vida como uma trajetória dotada de sentido (significação e direção). “Um arco que vai do nascimento à morte”. Ou seja, apenas nós percebemos a nossa existência como uma narrativa (Houston, 2010, p. 18). Razão pela qual a Literatura é capaz de reavivar a nossa interioridade, impulsionar o pensamento prismático (Teixeira, 2001Teixeira Coelho, J. (2001). A cultura como experiência. In R. J. Ribeiro (Org.), Humanidades: um novo curso na USP (pp. 65-101). Edusp.), “relançar uma atividade de construção de sentido, suscitar trocas” (Petit, 2010, p. 11Petit, M. (2010). A arte de ler ou como resistir à adversidade. (Tradução de Arthur Bueno e Camila Boldrini, Trad.; 2ª ed.). Editora 34.), como a experiência descrita e analisada a seguir nos mostra.
O Laboratório de Leitura do conto “Legião Estrangeira”, de Clarice Lispector
O Laboratório de Leitura é uma metodologia de mediação de leitura literária surgida na Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) como proposta de humanização na saúde. Em razão disso, na Unifesp foi batizada de Laboratório de Humanidades, sendo oferecido, desde 2003, como disciplina da graduação e da pós-graduação para estudantes da área da saúde.
No laboratório, a leitura de cada obra perfaz um ciclo, que compreende três aspectos: o afetivo, o reflexivo e o volitivo. Essas dimensões correspondem, respectivamente, aos três momentos que compõem o ciclo de leitura: 1) Histórias de Leitura, 2) Itinerário de Discussão, 3) Histórias de Convivência. Cada encontro perdura 90 minutos.
A seguir apresentamos a metodologia por meio da transcrição de um ciclo que integra uma experiência iniciada em abril de 2020 (em vigor até hoje, setembro de 2023). Em pleno caos da pandemia da Covid-19, a proposição do Laboratório para profissionais atuantes em um hospital de São Paulo teve o objetivo de oferecer um espaço de cuidado para trabalhadores expostos a um risco ainda não dimensionado.
As Histórias de Leitura são o momento fundamental da metodologia, que pode ser sintetizado na seguinte pergunta: “O que a obra leu em mim?”
Essa questão dá início ao desvelamento da obra literária em suas ressonâncias mais prosaicas e singulares. Trata-se de um movimento duplo: o participante identifica na obra — personagens, linguagem, enredo — elementos que o remetem a memórias banais, perdidas nas brumas do tempo, algo entre o puro afeto e o testemunho de um si mesmo vivido. Nesse trajeto, é comum a conexão afetiva intensa, de aproximação ou diferença com a obra. Ao mesmo tempo, essa percepção o leva a uma espécie de ciranda: ao indagar a obra, recai em si mesmo, ao perceber-se, volta para o texto. Nesse processo, “o sentir e o pensar implicam-se de forma indissociável” indicando uma integralidade diferencial entre leitor, obra e experiência humana.
No conto “A legião estrangeira”, de Clarice Lispector, uma narradora-personagem adulta se encontra com um pintinho e uma garotinha, Ofélia. A escrita descomunal de Lispector nos arrasta para as fraturas e transformações de cada personagem diante da vulnerabilidade e do surgimento de algo que poderíamos chamar Desejo.
Três elementos marcaram as falas dos participantes nesse ciclo: como a leitura do conto os remeteu 1) à lembrança de própria infância, às relações com os animais de estimação e à experiência fundamental do aprendizado do Amor; 2) à maternidade ou à relação pais/filhos e 3) à vulnerabilidade da criança e do adulto.
CA1 1 Os participantes deste laboratório de leitura serão referidos apenas por duas letras a fim de garantir seu anonimato e, também, distingui-los. , a primeira a falar, relata que a leitura do conto a remeteu à sua infância na fazenda e que rememorou um fato do qual não se lembrava até então:
“Esse conto eu gosto muito, reli bastante, me percebi criança, muito diferente da Ofélia. (...). Quando eu era bem pequena, eu encontrei um tatu. Passei o dia todo com o tatu. Lavei. Eu queria guardar o tatu. Fiz um cercado e coloquei o tatu. Tinha uns 8, 7 anos, mas ele fez um buraco [riu], lógico, e saiu. Eu cheguei lá no dia seguinte e só tinha o buraco. Eu fiquei arrasada! Eu lembrei quando Ofélia saiu correndo depois de matar o pintinho. Gostou tanto, tanto, que matou o pintinho. Apertou.”
A partir dessa fala, o tema da experiência da criança com o desejo se coloca e, como veremos nas seguintes, vai se desenvolver até o final do laboratório. Em seguida, outra participante, mobilizada pela primeira, relata:
GL – “Na minha infância há uma lista imensa de assassinatos [risos]”. Ela relatou que ela e os irmãos juntavam garrafas de vidro para trocarem por pintinho e que todos morreram [ri]: “pintinho, peixe de feira, viveiro, coelho da índia, tartaruga”... “A gente fazia com os bichos o que faziam com a gente: lavar, apertar, cobrir...”.
Essa segunda participante, retoma a primeira fala e a redimensiona, ampliando os “lugares de fala” e destaca a dimensão do cuidado como elemento fundamental no exercício e no aprendizado do amor e da alteridade.
Em seguida, a mediadora chama a atenção para um trecho em que a narradora diz “sorríamos desamparados” diante do pinto que piava, referindo-se à reação da família da narradora. A mediadora observa que a alegria também desampara, vulnerabiliza.
A participante, HE, emenda: “O desamparo da alegria é a angústia de que algo vai acabar. Será que eu posso desfrutar? Vai acabar. Eu me emocionei...
[Mas] É um amor que não ouve o outro... Querer que o pintinho fosse feliz só por ser a nossa alegria. (...). Lembro da minha avó, que ouvia as conquistas dos outros como se ela tivesse que ser a alegria dos outros”.
Tocada, SU se dirige à HE:
“O que você falou foi muito muito muito forte. (...) a leitura de hoje teve um impacto emocional muito forte pra mim... E aí a questão que mais mexe comigo é a da fragilidade e da vulnerabilidade, acho que nesse conto, o pintinho pra mim (...) parece a criança diante do adulto, e o adulto sem saber direito diante dessa fragilidade e vulnerabilidade, um pouco constrangido, não sei, querendo proteger mas não sabendo direito como fazer (...) Fico pensando o tempo todo na nossa relação com a fragilidade e a vulnerabilidade, [como] isso também faz com que a gente tenha que lidar com as nossas fragilidades e vulnerabilidades. Porque aí ela mistura, né?” (grifos nossos).
Depois percebemos que a sua fala não dizia respeito apenas ao conto, ela o conecta com o contexto do seu trabalho naquele momento:
“E aí pras vivências, eu não... eu tô... GL tá sabida, a gente tá muito tomada por um caso do hospital essa semana... que tem sido muito forte, tô especialmente tomada que eu nem tô conseguindo ir lá pra minha infância... tô tomada por uma vivência dessa semana, bem recente, dessas últimas duas semanas, exatamente dessa situação de uma criança extremamente vulnerável nessa posição e a gente querendo (suspira) cuidar dessa criança... para além de um lugar...”
Vale notar a hesitação no seu discurso, o que pode expressar a sua própria vulnerabilidade, pois ela não consegue completar a sentença que inicia: “eu não... eu tô...”. Ela parece precisar de um apoio e o busca introduzindo outra participante em sua fala, uma colega de trabalho que, portanto, conhece a gravidade do caso: “GL tá sabida, a gente tá muito tomada por um caso do hospital essa semana”. O “Eu” que não conseguiu completar a sentença ganha reforço com “a gente”.
Por fim, ela menciona uma criança no hospital que se encontra em uma situação de “extrema vulnerabilidade”... mas ela não consegue relatar o caso, ela suspira:
“(...) não sei, tem alguma coisa aí que nessa hora da vulnerabilidade parece que só outra criança pode compreender, como os filhos de Clarice2 2 Na verdade, ela se refere à narradora-personagem. disseram: por que você não é mãe dele? Por que você já não cuida desse pinto? Não deixa esse pintinho ciscando aí à toa morrendo de medo e tão frágil, pega logo no colo faz alguma coisa e aí essa urgência foi outra criança que pôde reconhecer esse medo do pintinho, essa vulnerabilidade, a fragilidade, e dizer assim vai, pega, faz alguma coisa.”
Embora a “sua criança” reconhecesse a urgência, “vai, pega, faz alguma coisa”, o “lugar” em que a participante adulta se encontra não lhe permite responder a essa urgência, restando-lhe a “resignação constrangida”:
“(...) e na posição de adulto a gente pensa... eu gostei muito dessa palavra, uma “resignação constrangida”, a gente reconhece, mas traz um constrangimento. Eu adorei essa frase, nem sei dizer por... o quanto eu gostei, mas é uma resignação constrangida diante da vulnerabilidade acho que provoca isso no adulto também.
Percebemos, assim, que a sua reflexão sobre vulnerabilidade e fragilidade da criança e do adulto diz respeito, possivelmente, também à sua relação com essa criança, a “mistura”.
A colega de trabalho evocada responde ao seu “chamado”:
“(...) a gente tá com uma criança que sofreu maus-tratos, um bebê de 20 dias que tá todo quebrado... Então é isso que foi muito muito duro essa semana. Mas voltando para o conto (suspira), eu entrei para o prazer da leitura e saí do hospital ontem à noite, eu li porque eu precisava ler, eu precisava ir para um universo diferente... apesar de encontrar um pintinho [sorri].
Em seguida, CA pede a palavra:
“Ia falar do silêncio quando ela nasce como criança e lê o trecho: ‘diante do meu silêncio estava se dando o processo, eu só podia servir a ela como silêncio’. É a capacidade de estar só na presença de alguém, lembrei do Winnicott.”
SU – “eu também queria pensar esse trecho, (...) é a capacidade dela de acompanhar (...) ela permite essa passagem difícil, dolorosa, para que Ofélia assuma o desejo de querer ver o pintinho.”
CA pede a palavra: “O conto me remeteu à criança que fui. Uma criança muito em contato com a morte. Morte na fazenda era natural, tinha um matadouro...
GL – “Essa história da morte natural na fazenda tem todo um discurso em que a morte cabe, mas a do pintinho na cozinha é diferente... (...) a morte desse pintinho é mais importante do que a sua existência... é tudo bicho que serve pra gente aprender a amar e a morrer (...) talvez, do começo da possibilidade de uma alteridade possível, antes de uma alteridade possível a gente tem de aprender esse amor, essa morte, essa impermanência... (grifos nossos).
A fragilidade da vida que evoca a morte é relacionada à potência/impotência do amor, ou seja, como o afã de Ofélia, a potência de seu desejo, mata o pintinho. É o amor ainda desajeitado; o amor exige uma experiência, um aprendizado, conclui o grupo, encerrando o primeiro encontro.
No segundo, o tema da fragilidade e da vulnerabilidade permanece, mas a morte é associada a esses elementos com mais proeminência. A morte do pintinho é interpretada como a fragilidade da vida e, ao mesmo tempo, é resgatada aquela ideia de “resignação constrangida” do adulto diante da morte do pintinho e a sua dificuldade e mal-estar em não ter meios de explicar à criança que “é assim mesmo”, como expressa GL:
“As coisas são assim mesmo”... quantas e quantas vezes essa sensação de vergonha, o filho se espantar e a gente dizer é assim... Pra quê o pinto? Por que os ossinhos cobertos de pena? A gente sabe que ele vai morrer, o pintinho sabe, mas as crianças não sabem e eles têm que sustentar. Que duro ensinar isso!”
O último encontro compreendeu a discussão ainda e as Histórias de Convivência. Morte, nascimento e renascimento serão os elementos centrais nesse dia.
A primeira a falar destaca o impacto da releitura. Ela compara o nascimento de Ofélia, que corresponde ao nascimento do seu desejo, com o trabalho que ela desenvolve em seu consultório, “ajudando crianças a nascerem”. Em seguida, volta para o conto e se enleva com a descrição do processo de constituição do desejo na menina. Retoma o “assim mesmo”, que “permaneceu nela a semana toda” e, agora, quem está sem nenhuma “rede de proteção” é Ofélia, comenta:
“A 2ª parte de onde você [dirigindo-se à mediadora] fez o corte... Ahh nossa, me pegou o 1º parágrafo em que ela vai descrevendo parte por parte do que está acontecendo dentro da criança...”. Lê em voz alta o trecho: “os olhos se angustiavam e o resto do corpo não estava podendo fazer”. Comenta: “Tem uma briga física, né? Uma luta interna, física, uma batalha. É tão bonito ver o corpo se fazendo presente” [GL fala sorrindo, gesticula rodando as mãos em concha como se simulasse essa metamorfose no giro da mão]. Continua:
“É mais do que metamorfose, algo se constitui, se materializa. E que depois ela chama de desejo. E tinha de ser assim ‘por nada’, outra coisa que eu acho brilhante [vira o rosto de lado e fecha os olhos em sinal de enlevo]. Não é uma metamorfose por alguma coisa, é por nada. É o desejo na sua essência verdadeira... Eu fiquei com aquela coisa do ‘É assim’, que me doeu a semana inteira e do ‘vale a pena’”? (grifos nossos).
Contrapondo-se, outro participante interpreta o final:
RE – “O final é pessimista, não é neutro. Há algo de amargo. É um esforço. A parte que me assusta um pouco no final é assim... Ofélia não voltou. Esse não voltou não acho que é só assim material, físico, cresceu e foi ser princesa hindu no deserto (no deserto é uma palavra forte para mim), ou seja, foi assumir um papel já pré-definido, e paciência... ela vai representar o papel. É a prisão do papel. Eu particularmente termino o conto com sensação de o quão fácil é o escorregar da vida nascente, rapidinho a gente soterra ela em rotina, em fórmulas e métodos. E se a gente peneirar esses momentos, vamos ver o quão raro e excepcionais eles são. Eles definem a sua vida. Quão fácil é escorregar para a clausura, para a morte, para o deserto” (grifos nossos).
A mediadora relê para o grupo o trecho: “os olhos de Ofélia faiscavam o pinto”. RE recita uma frase de Willian Blake: [no mundo da escuridão] “um só pensamento te guia por toda vida”. A vida é a sombra, o deserto, mas, em momentos raríssimos, como esse vivido por Ofélia, podemos ter a faísca, essa luz relampejada, que pode nos guiar por toda a vida.
No final do laboratório, os participantes compartilharam as suas Histórias de Convivência: O que eu estou levando deste conto? Da convivência com a obra e com o grupo?
HE – “Depois dessa ginástica que fizemos aqui, eu já nem sei mais o que sou eu e o que é o texto. Mas desde a primeira leitura eu acho que é o universo da mulher.
SA – [Dirigindo-se a HE], tudo que você falou sobre mãe e filha eu passei a semana envolvida. Eu embarquei nisso. Você insistiu várias vezes numa pergunta, se nesse processo de ser filha, se não precisava de outra mulher que não a mãe, que a narradora fez aqui. (...) Ter uma filha é diferente de ter um filho. Causa fascínio e horror, fascínio de si ver a mesma (da coisa que se repete) e o horror de ver isso. Que é tanto pra mãe quanto pra filha, ambas se horrorizam. Ter outra mulher ajuda muito porque quebra esse fascínio e a possibilidade de aprisionamento. É o que eu levo.
O último participante, cônscio do “fechamento” do laboratório, realiza essa “tarefa” de forma paradigmática:
“A gente está num momento de muita dor. Tenho a impressão de que a única forma de sobrevivência é se, de vez em quando, acende a faísca, que não acende por muito tempo: a experiência do sublime é muito fugaz. Conectando com o conto, ‘Você está destinada a ser princesa hindu’. É muito difícil se desconectar do papel... mas é nesses momentos fugazes, efêmeros, que eu acho que a coisa se rompe. Foi fugaz a experiência de Ofélia, mas vai iluminar pra ela esses anos de princesa hindu que ela vai ter que enfrentar até achar outro papel. O conto traz a delicadeza de um momento tão efêmero e tão sutil e, puxa, quanto tempo até aparecer outra luz! Queria agradecer. Levo a valorização desses momentos, o presente dos 5 minutos que te iluminam. Foi o que me ficou dessa interação.”
O Laboratório, ao mesmo tempo em que abre a experiência de leitura, de discussão e de trocas, organiza e conduz o processo sem coibir nenhuma forma de expressão ou interpretação da obra pelos participantes. Essa dinâmica possibilita aos integrantes olharem para a obra, para a discussão e para o conteúdo afetivo que emergiu na leitura, desde a sua fase solitária até a leitura compartilhada, articulando todas essas experiências e criando um lugar para elas (Petit, 2019Petit, M. (2019). Ler o mundo: Experiências de transmissão cultural nos dias de hoje. (Julia Vidile, Trad.). Editora 34.).
Quando nos conectamos à obra por meio de nossos afetos, trazendo-os à luz, nos “misturamos” com a obra —, eu já nem sei mais o que sou eu e o que é o texto — e também nos misturamos com as histórias, afetos e ideias dos outros, tudo se “mistura” numa dinâmica em que dar espaço ao discurso do outro é estruturante.
O Laboratório de leitura à luz dos conceitos de campo e habitus de Pierre Bourdieu
As noções de “campo” e de habitus constituem conceitos-chave na teoria sociofilosófica de Bourdieu (1990)Bourdieu, P. (1990). Coisas ditas. Brasiliense.. Seu esforço concentrou-se em buscar tramas lógicas que evidenciassem uma estrutura subjacente ao social, tramas que existem e agem sobre os indivíduos independentemente de sua consciência ou vontade. Em certa medida, ele acompanha a tradição de Saussure e Lévi-Strauss, mas difere deles ao defender que estruturas, práticas e representações se constituem continuamente, isto é, são dinâmicas e não fixas (Bourdieu, 1987, citado em Thiry-Cherques, 2006, p. 28Thiry-Cherques, H. R. (2006). Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Revista de Administração Pública, 40(1), 27-56. DOI: 10.1590/S0034-76122006000100003. Recuperado em 15 set. 2022, de: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/6803.
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).
Segundo Bourdieu, as relações e interações sociais obedecem a um esquema sistêmico, isto é, a dinâmica social se dá no interior do que ele denominou “campo”, cujos agentes, que correspondem tanto a indivíduos quanto a grupos, têm disposições específicas, as quais ele denominou habitus.
O campo é delimitado por valores ou formas de capital, que lhe dão sustentação. Cada campo tem a sua dinâmica social, regida por embates entre os agentes que buscam manter ou alterar as relações de força e a distribuição de formas de capital. Nesse embate, os agentes usam de estratégias não conscientes, constituídas tanto pelo habitus individual quanto dos grupos envolvidos. Em cada campo, o habitus é o conceito que indica as posições dos indivíduos e dos grupos, e o conjunto de posições que, por sua vez, determina o campo (p. 31). Eis a estrutura sistêmica.
Para Bourdieu, o sujeito não apenas está inserido nessa estrutura, ele consiste também em força estruturante do próprio campo (Bourdieu, 1980, p. 70Bourdieu, P. (1980). Le sens pratique. Les Éditions de Minuit.). O dinamismo da estrutura é tanto produto como produtor de ações, tanto condicionado como condicionante. O campo é resultado da profunda conexão entre as “estruturas mentais” dos agentes sociais e as estruturas objetivas (o “mundo dos objetos”) que são constituídas por esses mesmos agentes (Thiry-Cherques, 2006, p. 35Thiry-Cherques, H. R. (2006). Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Revista de Administração Pública, 40(1), 27-56. DOI: 10.1590/S0034-76122006000100003. Recuperado em 15 set. 2022, de: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/6803.
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).
As estruturas mentais instituem as estruturas objetivas (o mundo dos objetos), uma vez que elas só podem ser inteligíveis quando pensadas. Contudo, estabelece-se entre elas uma relação de mútua e permanente reciprocidade, constituindo, desse modo, um sistema autogenerativo e autocondicionado (o habitus), que busca incessantemente o seu reequilíbrio, a sua regeneração e a sua reprodução.
Tal estruturalismo se funda na ideia de estruturas sincrônicas e inconscientes, mas históricas (como a do campo) e contextuais e geradoras (como a do habitus) em que a percepção individual ou do grupo, sua forma de pensar e conduta são constituídas a partir do perceptível, pensável e julgado razoável na perspectiva do campo em que se inscrevem (Bourdieu, 1996, pp. 217Bourdieu, P. (1996). Razões práticas: sobre a teoria da ação. Papirus. e segs.). Por exemplo, diz ele que o trabalhador, seja ele um operário, um burocrata ou um pianista, não pode se conduzir, improvisar ou criar livremente. Ele é sujeito da estrutura estruturada do campo, dos seus códigos e preceitos. Mas, dentro de limites, de restrições inculcadas e aceitas, a sua conduta, e criação são livres: conformam a estrutura estruturante do habitus (Thiry-Cherques, 2006, p. 32Thiry-Cherques, H. R. (2006). Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Revista de Administração Pública, 40(1), 27-56. DOI: 10.1590/S0034-76122006000100003. Recuperado em 15 set. 2022, de: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/6803.
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;, grifos nossos).
A teoria do habitus e a teoria do campo se entrelaçam: o habitus é o meio, e o campo é resultado do habitus (Vandenberghe, 1999, p. 61 como citado em Thiry-Cherques, p. 32). Assim, no que se refere à dimensão subjetiva, ainda que Bourdieu a exclua da sua teoria estruturalista sobre os condicionamentos filosófico-sociais, ele acaba por não poder deixar de mencionar “o sentir” no conceito de habitus. Isso porque, toda sua formulação teórica sempre se deu a partir de, e em consonância com, a experiência empírica, o que significa que, embora ele se abstenha de incluí-la em suas teorizações, a dimensão subjetiva do agente social não é imperceptível e passível de ser ignorada.
Considerando-se a Literatura e, especificamente, o Laboratório de leitura, acreditamos que a metodologia tenha potência para distensionar habitus já constituídos ou para abrir novos conjuntos de disposições, espécie de habitus, na medida em que 1) toda obra literária constitui em si um campo e 2) a dinâmica de compartilhamento da experiência da leitura literária estabelecida pela metodologia do laboratório institui entre o sujeito e a obra e entre os sujeitos integrantes do grupo um novo conjunto de disposições, que não se perde na temporalidade do encontro, mas continua reverberando no(s) participante(s), como veremos na transcrição de um ciclo, e se revela na pergunta que organiza o terceiro momento da metodologia: “O que estou levando dessa obra e desse encontro?”. É nesse sentido que entendemos que o laboratório pode instituir uma espécie de habitus no “interior” do grande “campo neoliberalismo”. Isso porque o laboratório conduz o participante a um movimento duplo, tanto em perspectiva vertical — ao mergulho em si —, quanto horizontal — na relação com o mundo “dos objetos” e com os outros. Na relação dialógica que o sujeito estabelece com o “mundo dos objetos”, insere-se a sua relação também singular (vertical e horizontal) com a obra literária, a qual, por sua vez, tem seu campo e habitus próprios e cuja singularidade consiste em mobilizar no participante do Laboratório a fabulação de si e de sua própria vida em perspectiva dialógica com a obra (Petit, 2019Petit, M. (2019). Ler o mundo: Experiências de transmissão cultural nos dias de hoje. (Julia Vidile, Trad.). Editora 34.). É, pois, nesse processo que se faz possível um passo na direção da saúde mental comentada por Gondar (2012)Gondar, J. (2012). Ferenczi como pensador político. Cad. psicanal. [online]. 34(27), 193-210. ISSN 1413-6295. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1413-62952012000200011&script=sci_abstract
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: “pensar o que se sente e sentir o que se pensa”, de onde resultam novas perspectivas sobre si na sua relação com o outro e com o mundo.
Para Bourdieu, não somente a política e o Ensino, mas igualmente a Arte, a Literatura, todas as expressões artísticas, também têm seu campo e seu habitus; nada “escapa” à constituição de estruturas estruturantes. No entanto, as expressões artísticas, materializadas em “objetos artísticos”, em razão do trabalho específico com a linguagem, mobilizam sentidos e “efeitos” que fazem deslizar, de modo a “desestabilizar”, as diversas estruturas estruturantes a que estamos todos submetidos. É nesse deslizar desestabilizador das estruturas que o laboratório se institui como uma outra/nova disposição, em movimento único (“reverso/inverso/transverso”), derivado da combinação do que é próprio da Literatura com a metodologia do laboratório de leitura, que “recoloca” no campo, sob uma perspectiva fundamental, a dimensão afetiva do sujeito.
Um bebê de 20 dias de vida não traz sua narrativa em palavras, mas no corpo. A equipe multidisciplinar desse hospital que o recebeu e cuidou da urgência de seu corpo e de sua fragilidade certamente fragilizou-se também. É disso que tratam as falas das duas participantes. Todos temos nossos mundos internos, uma vida privada, uma família, uma história de vida, que não “ficam em casa”, mas entram no hospital sob o jaleco do médico, do enfermeiro, do psicólogo, do fisioterapeuta, de todos que cuidam. E há nesse processo, também, uma “mistura”, inegável e inevitável.
Ricardo Piglia (2004)Piglia, R. (2004). Formas breves. (José Marcos Mariani de Macedo, Trad.). Companhia das Letras., em seu livro Formas breves, desenvolve um estudo sobre o conto e afirma: “o conto é um relato que encerra um relato secreto” (p. 91), isto é, a estratégia narrativa é colocada à serviço dessa narrativa cifrada, à semelhança da teoria do iceberg de Hemingway, segundo a qual há uma narrativa “aparente”, como a ponta do iceberg, que encerra uma outra história não contada: “o mais importante nunca se conta” (p. 91). Assim, o que ouvimos da médica sobre a relação entre o caso do bebê e o pintinho do conto de Clarice é apenas a ponta do iceberg, a parte aparente da sua narrativa. Há toda uma história submersa que não foi e nem poderia ser narrada para o grupo: “O que acontece num hospital, fica no hospital. É inenarrável!”
Certamente, deve ter havido outras analogias entre esses dois “personagens” que não poderiam ser reveladas, não apenas por questões éticas, mas pela existência do indizível. Saber ou não saber todo o conteúdo, se é que isso é possível, não é o cerne da questão, o aspecto fundamental é que os encontros do Laboratório constituíram um “lugar” para acolher e servir de escuta, inclusive do que não foi dito, mas estava presente no sujeito, na sua integralidade.
Houve, assim, um conto para onde ir depois do hospital: “eu precisava ir para o conto e sair do hospital” (...) “embora eu tenha encontrado um pintinho”. A associação dessa outra participante entre a vulnerabilidade do pintinho no conto e a do bebê do hospital também foi imediata. Nem sempre os leitores exteriorizam suas associações, sobretudo as de caráter íntimo, no entanto elas se fazem internamente e isso é o mais importante destacar. Mesmo que nenhuma das duas participantes tivesse compartilhado com o grupo essa associação entre o pintinho e o bebê, ao falarem e refletirem sobre o pintinho, dando vazão a seus sentimentos e pensamentos sobre a personagem Ofélia, elas estariam igualmente “lidando” com suas emoções e conflitos diante do caso.
Do mesmo modo como não é possível deixar o que somos em casa, não é possível deixar tudo que ocorre no hospital, no hospital. Mas para onde levar? Nesse laboratório pôde-se dar um “lugar” àquilo que não se pode narrar.
Considerações finais
Para além da pandemia da Covid-19, do “pós-pandemia”, vivemos tempos difíceis: a “sociedade do cansaço”, do burnout e do boreout, e tantos outros transtornos. De que estratégias dispomos?
Bourdieu buscou desvelar os mecanismos de dominação, de produção de ideias e da gênese das ações. A sua convicção foi a de que as ideias, sejam epistemológicas, filosóficas, científicas ou artísticas, são tributárias de suas condições de produção. Nesse sentido, entendemos o cartesianismo e o neoliberalismo como dois grandes sistemas estruturantes e prevalentes no pensamento e na produção de subjetividades na atualidade.
Ainda que Bourdieu afirmasse que o sentido das condutas pessoais não pertence ao sujeito, mas ao sistema de relações nas quais e pelas quais essas ações se realizam (Bourdieau, 1990, p. 32Bourdieu, P. (1990). Coisas ditas. Brasiliense.), ainda que a sua epistemologia implique a “objetivação do sujeito objetivizante” (Bonnewitz, 2002, p. 5 como citado em Thiry-Cherques, p. 48), visto que, para ele, não se deve compreender a ação social a partir da subjetividade, isso não significa que a dimensão subjetiva não seja elemento relevante. Embora Bourdieu exclua a participação da dimensão subjetiva do processo de constituição do campo, das estruturas estruturantes e do habitus; ora, se o campo deriva da imbricação entre as estruturas mentais dos sujeitos e o mundo dos objetos, efetivamente a dimensão subjetiva desses agentes não é passível de ser arbitrariamente excluída, pois é inerente à estrutura mental do sujeito. É nesse aspecto, precisamente, que reside a relevância do laboratório de leitura, na medida em que consiste em uma experiência integralizadora do sujeito, cindido em sua dimensão ontológica.
Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. (Lispector, 1998, p. 7Lispector, C. (2020). Legião estrangeira. Edição comemorativa. Rocco.; grifos nossos)
Trata-se de um trecho do conto “Felicidade clandestina”, de Clarice Lispector. Quando o coração começa a pensar? Essa pergunta me ocorreu enquanto eu coordenava outro ciclo do Laboratório de Leitura com esse mesmo grupo de profissionais da área da saúde.
Considerando a metáfora do coração como sede dos afetos, podemos nos perguntar: como ela integra o processo de construção do sentido? Como o coração pensa? E qual é a importância de tudo disso? Este artigo buscou responder, em parte, a essas perguntas.
É, pois, nesse sentido, que a metodologia do Laboratório de leitura, ao promover no leitor a possibilidade de “pensar o que se sente e sentir o que se pensa” (Gondar, 2012Gondar, J. (2012). Ferenczi como pensador político. Cad. psicanal. [online]. 34(27), 193-210. ISSN 1413-6295. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1413-62952012000200011&script=sci_abstract
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), pode constituir uma estratégia de reconstituição da integralidade da pessoa e, nesse sentido, de promoção da saúde mental. Por meio da Literatura resgatam-se e reconstroem-se lugares e perspectivas, (r) estabelecendo um “novo” lugar para o sujeito na roda da vida.
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Este artigo é resultado parcial do projeto de pós-doutoramento intitulado Humanização em Saúde – Afeto e Representação na construção de sentido: literatura e Saúde Mental, e integra o projeto temático Humanidades, narrativas e humanização em saúde: fase 3 (Fapesp), sob supervisão de Dante Gallian.
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Os participantes deste laboratório de leitura serão referidos apenas por duas letras a fim de garantir seu anonimato e, também, distingui-los.
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Na verdade, ela se refere à narradora-personagem.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Jun 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
23 Nov 2022 -
Revisado
16 Set 2023 -
Aceito
10 Dez 2023