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Função canino desempenhada pelo pré-molar

Canine function performed by the premolar

Resumos

A extração do canino permanente suscita indignação de muitos ortodontistas ortodoxos cuja opinião oscila da ambivalência à condenação radical, devido principalmente à crença do perverso déficit funcional resultante, mas também atrelada à preocupação do efeito estético no sorriso. Essa última, sim, preocupação maior do leigo, que vê a Ortodontia principalmente como um exercício estético. Sem trair as convicções certamente legítimas, os objetivos oclusais de um tratamento ortodôntico visam conciliar estética, função e saúde periodontal, com ou sem caninos. O presente artigo ilustra a possibilidade de trocar o canino pelo primeiro pré-molar num tratamento ortodôntico conduzido com extração de dentes. Essa situação, que enfrenta resistência por parte de ambos, ortodontistas e pacientes, elimina o dente canino sem, no entanto, eliminar a função da cúspide canina na desoclusão lateral, isolada ou em grupo, o que sela harmonia com os conceitos funcionais da escola gnatológica.

Má oclusão; Extrações atípicas; Extração de caninos permanentes; Canino permanente superior


Extraction of the permanent canine surprises many traditional orthodontists who believe that negative functional and unaesthetic results may arise from the procedure. Although esthetics is the major concern of layperson people, the occlusal aims of the orthodontic treatment are esthetics, occlusal function and periodontal health, with or without canines. The current paper describes the possibility of extracting the canine instead of the premolar in an orthodontic treatment with teeth extraction. In such a situation, which is not easily accepted by orthodontists and patients, the canine is eliminated but not its cusp function in lateral mandibular movements, thus maintaining the gnathologic functional concepts.

Malocclusion; Tooth extractions; Permanent dentition


ARTIGO INÉDITO

Função canino desempenhada pelo pré-molar

Canine function performed by the premolar

Omar Gabriel da Silva FilhoI; Paula Martinelli CarvalhoII; Leopoldino Capelozza FilhoIII; Roberta Martinelli CarvalhoIV

IOrtodontista do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (HRAC-USP), Bauru-SP

IIAluna do Curso de Especialização em Ortodontia pela Profis (Sociedade de Promoção Social do Fissurado Lábio-Palatal), Bauru-SP

IIIOrtodontista do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (HRAC-USP), Bauru-SP

IVCirurgiã Bucomaxilofacial do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (HRAC-USP), Bauru-SP

Endereço de correspondência Endereço de correspondência Omar Gabriel da Silva Filho Rua Silvio Marchione, 3-20 - CEP: 17043-900 – Bauru/SP E-mail: ortoface@travelnet.com.br

RESUMO

A extração do canino permanente suscita indignação de muitos ortodontistas ortodoxos cuja opinião oscila da ambivalência à condenação radical, devido principalmente à crença do perverso déficit funcional resultante, mas também atrelada à preocupação do efeito estético no sorriso. Essa última, sim, preocupação maior do leigo, que vê a Ortodontia principalmente como um exercício estético. Sem trair as convicções certamente legítimas, os objetivos oclusais de um tratamento ortodôntico visam conciliar estética, função e saúde periodontal, com ou sem caninos. O presente artigo ilustra a possibilidade de trocar o canino pelo primeiro pré-molar num tratamento ortodôntico conduzido com extração de dentes. Essa situação, que enfrenta resistência por parte de ambos, ortodontistas e pacientes, elimina o dente canino sem, no entanto, eliminar a função da cúspide canina na desoclusão lateral, isolada ou em grupo, o que sela harmonia com os conceitos funcionais da escola gnatológica.

Palavras-chave: Má oclusão. Extrações atípicas. Extração de caninos permanentes. Canino permanente superior.

ABSTRACT

Extraction of the permanent canine surprises many traditional orthodontists who believe that negative functional and unaesthetic results may arise from the procedure. Although esthetics is the major concern of layperson people, the occlusal aims of the orthodontic treatment are esthetics, occlusal function and periodontal health, with or without canines. The current paper describes the possibility of extracting the canine instead of the premolar in an orthodontic treatment with teeth extraction. In such a situation, which is not easily accepted by orthodontists and patients, the canine is eliminated but not its cusp function in lateral mandibular movements, thus maintaining the gnathologic functional concepts.

Key words: Malocclusion. Tooth extractions. Permanent dentition.

INTRODUÇÃO

A finalidade do tratamento ortodôntico inclui estética, função e saúde periodontal. Para alcançar esses objetivos, não raro torna-se necessário eliminar massa dentária, mediante extração de dentes. Devido a sua posição anatômica estratégica entre o bloco anterior, geralmente problema, e os blocos posteriores, via de regra ancoragens, convencionou-se que os primeiros pré-molares representam os dentes de escolha. E, desde que reinventado por um dos grandes ortodontistas do século 20, Charles Tweed20, têm sido os dentes mais extraídos na prática ortodôntica nas últimas décadas6,10. As razões para a extração consagrada dos primeiros pré-molares sustentam-se nas seguintes premissas: 1) não compromete a estética do sorriso na finalização ortodôntica; 2) está próxima do problema. Normalmente o problema ortodôntico concentra-se na região anterior dos arcos dentários, representado pelo apinhamento e/ou protrusão dentária; 3) tem dimensões suficientes para zerar a discrepância encontrada na má oclusão; 4) quando realizada antes da irrupção dos caninos permanentes, nos casos de um programa de extrações seriadas, favorece o trajeto irruptivo dos caninos que acabam irrompendo na direção do pré-molar extraído15 e 5) finalmente, favorece a irrupção dos segundos molares com dificuldade irruptiva devido à limitação do espaço retromolar. A extração de pré-molares é tão clássica que a opção por qualquer outro dente ganha conotação de extração atípica, na disciplina ortodôntica. E dentro das extrações atípicas, a que mais estranha é a de caninos, mencionada na literatura apenas como experiência isolada3,9,13,14,16.

O canino é um dente essencial do ponto de vista estético e funcional. Quanto ao aspecto funcional, a importância dos caninos foi salientada pela escola gnatológica, ao definir o conceito da "oclusão mutuamente protegida". A escola gnatológica defende o princípio de que nos movimentos de lateralidade os caninos devem desocluir todos os demais dentes, tanto do lado de trabalho como do lado de balanceio. Vem daí o paradigma ideológico da desoclusão pelos caninos – conceito funcional de referência contemporânea também na Ortodontia. Porém, em condições especiais, o dente canino pode deixar de exercer a função canino, ou pela mudança de posição no arco dentário ou pela sua extração. A substituição da função canino pelo pré-molar pode ser concebida sem hesitação e sem estranheza quando, por exemplo, o canino mesializado substitui o incisivo lateral superior. Isso ocorre em situações de agenesia dos incisivos laterais superiores5,19,21, espontaneamente, muitas vezes, ou em situações de extração dos incisivos laterais por anomalia de forma2, simétrica ou assimetricamente. Como se vê, a mesialização dos caninos é bem aceita e parece não oferecer prejuízo periodontal em longo prazo8, o que desmistifica a ausência do dente canino na função canino.

Já a extração de caninos, vista com medo e suspeição, via de regra está atrelada a sua ectopia. Vale assinalar que a impacção dos caninos superiores ocorre entre 1,5 e 2,2% da população4,18, sendo mais freqüente por palatino e no gênero feminino. Dentre os possíveis tratamentos propostos, incluindo o tracionamento ortodôntico14 e o reposicionamento cirúrgico ou autotransplante1,7,11,12, aventa-se a extração14, levando-se em consideração o impacto iatrogênico inerente. O bom senso determina que, diante de perímetro de arco suficiente, a extração do canino impactado está indicada quando a posição do mesmo tem prognóstico ruim ou quando o tracionamento põe em risco os dentes adjacentes. Nas discrepâncias dente-osso soa incoerência a extração de pré-molares para providenciar o espaço para o subseqüente tracionamento do canino.

Numa amostra inglesa de 44 pacientes com caninos superiores impactados, aproximadamente a metade dos caninos (51,1%) teve indicação de extração. As informações radiográficas que influenciaram a decisão para tracionar ou extrair caninos permanentes superiores ectópicos foram a posição vestíbulo-lingual da coroa, com caninos posicionados na linha do rebordo alveolar ou por vestibular com maior chance de extração, e a angulação do canino em relação à linha média (quanto maior a angulação maior a indicação para extração ao invés do tracionamento)17.

CASO CLÍNICO

A paciente, do gênero feminino, chegou para diagnóstico e tratamento ortodôntico com 9 anos e 6 meses de idade, no final do segundo período transitório da dentadura mista. A análise facial revelou discrepância esquelética vertical, caracterizando a face longa (Fig. 1). A análise facial frontal denunciou excesso vertical característico da face longa: padrão dolicofacial acompanhado de ausência de selamento labial passivo, com exposição excessiva dos incisivos superiores (Fig. 1A). A análise facial de perfil acrescentou ao diagnóstico frontal a deficiência mandibular, atribuída à sua rotação horária (Fig. 1B). A única maneira previsível de correção da face longa envolvia cirurgia ortognática, com impacção da maxila, osteotomia sagital bilateral para rotação anti-horária da mandíbula e provável mentoplastia sagital. O tratamento sem cirurgia ortognática não contra-indica o tratamento ortodôntico, mas limita o mesmo à correção da posição dos dentes, mantendo o padrão de face longa. A opção da paciente foi por uma camuflagem ortodôntica.



Quanto ao padrão dentário (Fig. 1, 2), a paciente apresentava uma má oclusão compatível com o padrão facial, ou seja, uma má oclusão de Classe II, divisão 1. A relação de Classe II era total do lado direito e ½ do lado esquerdo, com apinhamento anterior inferior e, principalmente, superior, e desvio das linhas médias, superior para o lado direito e inferior para o lado esquerdo. Em síntese, a paciente era portadora de uma má oclusão Classe II, divisão 1, num padrão de face longa, com deficiência mandibular. O diagnóstico radiográfico (Fig. 3) não continha informações que pudessem influenciar o planejamento e o prognóstico de tratamento.



O planejamento ortodôntico previa uma mecanoterapia com a extração de 4 dentes. A particularidade que definiu a extração dos dentes superiores foi a posição do dente 13 (Fig. 1C, 2A), alto no rebordo alveolar, na direção do dente 12, o que subverteu a indicação acadêmica para extrações típicas e simétricas dos primeiros pré-molares para extração dos dentes 13 e 24. Ao dente 14, mantido em seu lugar no rebordo alveolar, coube substituir o canino. No arco dentário inferior a definição pelos segundos pré-molares baseou-se no tratamento compensatório, preservando a vestibularização original dos incisivos inferiores, e na deficiência do espaço retromolar. A extração dos segundos pré-molares inferiores foi indicada com a intenção de favorecer a irrupção plena dos segundos molares inferiores. Assim, os quatro dentes com indicação para extração foram: 13, 24, 35 e 45.

A mecanoterapia consistiu na instalação de ancoragem superior com o 3D (Fig. 4A) imediatamente antes da extração dos dentes 13 e 24.


Após a extração dos dentes superiores (Fig. 4B, C , D ), iniciou-se a mecanoterapia propriamente dita, com o nivelamento superior simultaneamente à retração inicial do dente 23 (Fig. 4E, 4F). No arco dentário inferior não foi aplicada ancoragem, já que era conveniente a mesialização dos molares inferiores para favorecer a irrupção dos segundos molares. Após a extração dos segundos pré-molares iniciou-se a mecanoterapia com a retração inicial dos dentes 34, 44, 33 e 43, para evitar a protrusão dos incisivos inferiores. A perda de ancoragem dos molares inferiores foi acompanhada pela irrupção dos segundos molares bem posicionados no rebordo alveolar. A radiografia panorâmica final (Fig. 7D) mostra os quatro segundos molares permanentes alcançando o plano oclusal.








Após o fechamento dos espaços das extrações, as fotografias da figura 5A, 5B e 5C mostram o ponto de contato entre os incisivos laterais superiores com o primeiro pré-molar do lado direito e com o canino do lado esquerdo. A figura 5D mostra o ponto de contato dos primeiros molares com os primeiros pré-molares inferiores. Ao final, a eficácia do planejamento pode ser comprovada sob dois ângulos: função oclusal e estética. Quanto à função oclusal, a cúspide do dente 14 substitui a contento a função da cúspide do canino, fazendo jus à hipótese esboçada no título do presente trabalho. A função de canino foi transferida para a cúspide vestibular do primeiro pré-molar adjacente. As figuras 5E e 5F fazem um paralelo da função de desoclusão lateral, do lado direito pelo primeiro pré-molar e do lado esquerdo pelo canino. Quanto à estética, a visão lateral da oclusão ao final do tratamento chega a confundir o olhar mais atento. Assim, as duas preocupações da finalização foram contempladas: a função de desoclusão pela cúspide vestibular do primeiro pré-molar e a estética do sorriso, dando sustentação ao planejamento elaborado.

O custo biológico da mecanoterapia não diferiu do esperado. A reabsorção radicular constatada nas radiografias periapicais seriadas dos incisivos superiores (Fig. 6) não ultrapassa a remodelação apical rotineira. Os modelos finais (Fig. 7) mostram a relação intra-arco e interarcos devolvida à normalidade. As excursões mandibulares, em particular o lado direito exercendo a função de balanceio, não obrigaram o desgaste da cúspide palatina do primeiro pré-molar superior convocado para ocupar o lugar e executar a função do canino. Esse ajuste oclusal fica na dependência da interferência oferecida no lado de balanceio.

Ao final do tratamento, a mudança foi exclusivamente dentária, como se observa pela telerradiografia final (Fig. 8). O padrão de face longa foi mantido, o que era previsível já que se optou pelo tratamento compensatório, regularizando os dentes dentro do padrão esquelético existente.


DISCUSSÃO

As metas do tratamento ortodôntico abrangem estética, função oclusal, saúde periodontal e, finalmente, estabilidade em longo prazo. A busca desses objetivos, não raro, impõe a redução da massa dentária. A extração de dentes que não sejam os pré-molares remete imediatamente ao tópico da Ortodontia qualificado como "extrações atípicas". Seria desnecessário arrematar que nenhuma delas é mais perturbadora ou adquire dimensão mais complexa do que a extração de canino. Explicável por fugir da tradição acadêmica e, sobretudo, pela suposta agressão aos princípios funcionais e estéticos arraigados entre os odontólogos.

O presente artigo de divulgação exemplifica a correção de uma má oclusão Classe II, acompanhada de apinhamento anterior superior e inferior, conduzida com extrações assimétricas e atípicas. As fotografias da figura 4 sublinham a opção pela extração do canino superior do lado direito, juntamente com a extração do primeiro pré-molar do lado esquerdo. À semelhança de outras publicações3,9,13,14,16 essa atitude contribui para o exercício da desmistificação da extração do dente canino com finalidade ortodôntica. O planejamento da extração do 13 baseou-se no argumento da antevisão da condição periodontal que poderia acompanhar o referido canino. A posição vertical, mais alta que o canino contra-lateral, poderia resultar em alturas diferentes de coroa clínica entre os dois caninos superiores, sendo mais alta a do lado direito, com impacto estético negativo no sorriso pós-tratamento.

De quebra, a extração do canino no caso clínico apresentado preservou o primeiro pré-molar já na sua posição final, desde a documentação inicial. A simplificação mecânica, fato óbvio, como se deduz pela comparação da documentação inicial com as figuras 5A, B e C, demonstrando na relação intra-arco pós-extração a proximidade instantânea entre os dentes 14 e 12, eliminando o estágio de retração inicial de caninos, é um fator a ser considerado, muito embora não o mais importante.

Os modelos finais exibem características interarcos (Fig. 7A, B, C) e intra-arco (Fig. 7E, F) de normalidade, com semelhança e simetria entre os dentes 14 e 23, o que contribui para a estética do sorriso. Além do aspecto estético, a função canino foi preservada, como demonstra a figura 5E. A altura de cúspide do canino superior, maior que a dos demais dentes superiores, em regra é responsável pela desoclusão lateral pelo canino, no lado de trabalho. A substituição do canino pelo pré-molar, com cúspide vestibular menos pronunciada, termina por devolver a desoclusão lateral em grupo. No presente caso clínico, a desoclusão lateral foi mantida pela cúspide do primeiro pré-molar. Isso significa dizer "extrair o canino sem abolir a função canino".Quanto à função canino ser substituída pelo primeiro pré-molar, isso parece não acarretar problema periodontal em longo prazo8. A oclusão final comprova que nem as metas estéticas e tão pouco as funcionais foram transgredidas com a extração do canino.

CONCLUSÃO

Indicada sob medida, ou seja, sobre pressupostos lógicos, a extração de canino representa uma alternativa viável na prática ortodôntica. Pressupõe consciência estética e funcional, visando uma finalização previsível com menor custo biológico.

Enviado em: janeiro de 2004

Revisado e aceito: março de 2004

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    • Publicação nesta coleção
      13 Jul 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2006
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