RESUMO
Objetivo: este texto foi escrito como um ensaio tal qual proposto por Adorno e atravessado por premissas da hermenêutica crítica e filosófica. Nele, somos norteados por um incômodo fundamental: A quem serve a pesquisa em Administração?
Provocações: tomamos como base a reflexão sobre as diferenças discursivas e sociais entre o campo acadêmico e o mundo de significação dos praticantes da Administração, para perceber o quanto contraditório se tornam nossas práticas e estruturas institucionalizadas de comunicação na medida em que elas não atendem ao objetivo fundamental da ciência, qual seja, a transformação da realidade na qual se debruça.
Conclusões: o hermetismo de nossa área não é um problema sem solução, basta ver que em outros campos a aplicabilidade do conhecimento científico acontece. É preciso que a nossa comunidade acorde para isso, antes que a sociedade se dê conta de que, da forma como está, somos dispensáveis.
Palavras-chave: pesquisa em administração; comunidade acadêmica; administradores praticantes; comunicação acadêmica
ABSTRACT
Objective: this paper was written as an essay in a proposition from Adorno, as well as a text influenced by critical and Philosophical hermeneutic. It presents a fundamental question that we have rehearsed: Who is Management research for?
Provocations: we take as a basis the reflection on the discursive and social differences between the academic field and the world of meaning of management practitioners, to realize how contradictory our practices and institutionalized structures of communication become, as they do not meet the fundamental objective of science, that is, the transformation of the reality in which it focuses.
Conclusions: the hermeticism of our area is not an unsolvable problem, it is enough to see that in other fields the applicability of scientific knowledge happens. Our community needs to wake up to this, before society realizes that, as it is, we are expendable.
Keywords: management research; academic community; managers; academic communication
INTRODUÇÃO
A pensata que segue foi articulada a partir de um incômodo que julgamos merecer ser trazido ao debate na comunidade acadêmica de Administração. Esse percurso interpretativo formaliza na linguagem uma angústia que só faz sentido se for compartilhada, tendo em conta que nós, os autores deste texto, nos constituímos e fazemos parte dessa mesma comunidade para qual o texto é endereçado. Desse modo, nos implicamos na própria crítica e buscamos, no debate com os pares, abrindo espaço para nossa própria mobilização: Afinal, a quem serve a pesquisa em Administração?
Com a intenção de responder a essa pergunta, circulam há certo tempo muitos textos acadêmicos publicados, que endereçam a essa problemática diferentes argumentos, tais como a necessidade de uma relação complementar entre a teoria e a prática na área de Administração (Van de Ven, 1989) ou a negação desta dicotomia (Bispo, 2021), a falta de diálogo e conexão comunicativa entre as pesquisas da área com os praticantes e problemas reais locais (Lazzarini, 2017), a impossibilidade de neutralidade das Ciências Sociais e o impacto do conhecimento científico ‘neutro’ na sociedade (Alperstedt & Andion, 2017), a importação de saberes sem reflexividade ao contexto local e seu caráter inócuo (Bertero et al., 1999), o impacto nocivo de uma subserviência ao contexto internacional (Alcadipani, 2017), especialmente tendo em conta a necessidade de solução aos problemas locais (Bertero et al., 1999; Goulart & Carvalho, 2008; Lazzarini, 2017), e o impacto social de um saber acadêmico de configuração interdisciplinar que se constitui a partir de um pluralismo epistemológico e paradigmático (Bispo, 2022), o que lhe dá condições políticas de integrar-se mais estreitamente com os problemas da sociedade (Alperstedt & Andion, 2017). Estas são algumas das posições neste debate sobre o papel do conhecimento acadêmico-científico da Administração.
Mesmo reconhecendo o valor de tais esforços - especialmente no que se refere à denúncia e combate ao produtivismo e sua motivação endógena (Alcadipani, 2011; Alperstedt & Andion, 2017; Godoi & Xavier, 2012) -, muitas vezes, os argumentos e a linguagem utilizados por tais textos são tão especializados que estes se tornam inteligíveis apenas para os membros versados na pesquisa de Administração. Isso porque, a partir de nosso jogo comunicativo, construímos um dialeto próprio, uma retórica acadêmica articulada e tecnicamente (re)produzida para convencer apenas nosso grupo de referência (Matitz & Vizeu, 2012), ou seja, os acadêmicos. Note-se que a maioria dos journals considerados como sendo de boa reputação para essa comunidade e que supostamente abarcam visibilidade que promove avanço no conhecimento pelo debate não são orientadores das práticas de gestão nas organizações, especialmente em se tratando de revistas com pouco interesse em demandas da localidade (Lazzarini, 2017); mesmo em estudos de gestão onde se visa à ‘mudança social’, tal intenção torna-se retórica na medida em que esses textos não são escritos de forma a (re)orientar os praticantes da realidade estudada, tendo em vista que sua erudição e argumentação teórica complexa atende prioritariamente ao interesse performativo da comunidade, de forma a garantir o êxito da publicação nos canais acadêmicos (Vizeu, 2015). Na verdade, esse problema parece ser maior e mais grave do que uma simples questão de interesses pragmáticos da burocracia acadêmica.
Como motor das reflexões aqui enunciadas, nos inspiramos nas concepções de entendimento e interação comunicativa tal qual definidas pela hermenêutica crítica de Ricœur (1999) e filosófica de Gadamer (2002). Portanto, assumimos o pressuposto de que a experiência humana é edificada na linguagem, o que nos leva a argumentar sobre o problema de comunicação entre o campo acadêmico e o campo dos praticantes da Administração.
REFLETINDO SOBRE A COMUNICAÇÃO ACADÊMICA
Essa forma de se comunicar entre membros da comunidade, caracterizada por muitas citações de autores renomados ou eruditos (‘citacionismo’) ou por complexas tramas conceituais para formulação de princípios gerais (‘conceitualismo’), faz com que um acadêmico versado tenha grandes chances de emplacar textos de impacto dentro da própria academia. Contudo, esta forma produz textos que nem sempre são significantes para os praticantes da gestão. Com a profissionalização da escrita de artigos, esse problema se intensifica, já que o método científico disputa espaço com o método da boa escrita acadêmica, valorada principalmente pela sua capacidade de cumprir os formalismos, a estrutura clássica refletida nos templates de submissão e que moldam (senão deformam) a linguagem dos praticantes. O dialeto das publicações é um reflexo do léxico especializado do campo acadêmico (Matitz & Vizeu, 2012).
Essa linguagem instituída não será incômoda se não levarmos em conta que a Ciência da Administração deveria, efetivamente, comunicar-se com praticantes de gestão e outros membros de organizações - e não apenas se enclausurar como um saber compreendido exclusivamente entre os membros da comunidade de pesquisa. Se nosso discurso deve influenciar a transformação da realidade administrativa e organizacional na direção de um destino diferente para a sociedade, temos falhado. E não é por falta de evidências ou pela incapacidade de identificarmos problemas que precisam ser solucionados. Em nossas pesquisas críticas, para mencionar apenas um exemplo, alertamos sobre vários problemas, tais como o adoecimento de trabalhadores, os controles subjetivos, as violências de gênero, o impacto das ações empresariais no meio ambiente, entre tantos outros temas presentes nas sessões dos eventos acadêmicos de Administração. Mas até que ponto essas denúncias, traduzidas a partir de análises teórica e metodologicamente profundas, são, de fato, úteis para quem necessita? Se oferecermos esses textos aos sujeitos retratados nas pesquisas, eles serão capazes de compreendê-los e de se sensibilizar?
A linguagem acadêmica é algo que exige habilidade de manuseio. Não é à toa que cada vez mais somos persuadidos no meio acadêmico com cursos livres prometendo técnicas de produção de artigos, a despeito de qualquer compromisso com soluções ou respostas para problemas de gestão. É assim que se ampliam as oficinas para publicar, os encontros de PDW (Paper Development Workshop) onde os editores de prestígio ‘ensinam’ o caminho para o sucesso da publicação. Apontamos alguns elementos deste percurso, nem sempre mencionados em tais programas de desenvolvimento, mas que são efetivos para esse intento: (1) cite autores, teorias e referências de agrado dos avaliadores e corpo editorial; (2) adote a estrutura e estética legitimada pela academia; e (3) assuma os pressupostos epistemológicos da corrente acadêmica predominante no journal alvo da submissão (veja quem é o editor e qual sua afiliação acadêmica). Não se nota em tais orientações sistemáticas de escrita a intenção de promover a articulação do texto com quem poderá se servir do conhecimento sobre a prática da administração que se propõe apresentar no paper. Isso porque ele não foi escrito para quem pratica; ele foi escrito para consumo próprio da academia; ele foi escrito e devidamente formatado para que o autor tenha um bom trânsito no mundo acadêmico, o que tem por consequência tornar o texto um artefato que se manterá isolado dentro desse mundo.
Conforme nos indica a abordagem filosófica que nos inspira, a linguagem é um presente compulsório. Se não entramos nela, sequer conseguimos ser. É na linguagem e pela linguagem que somos e nos tornamos capazes de reconhecer quem também é (Gadamer, 2002). É na linguagem que somos capazes de nos reconhecer como sendo acadêmicos e é também pela linguagem que reconhecemos quem também pertence ao nosso grupo. Ou seja, é na linguagem que nos reconhecemos como comunidade acadêmica e é na linguagem que podemos ser sociedade. Entretanto, enquanto grupo integrado a uma sociedade, a nossa comunidade da Ciência da Administração deveria se sustentar com uma função muito própria, a de fazer avançar o conhecimento que esteja implicado com a prática à qual se refere (Dewey, 1927). No entanto, nossos laços identitários têm se estabelecido de tal forma que conseguimos existir à parte do entorno; conseguimos sobreviver enquanto comunidade de pesquisa de forma bastante autônoma, sem nos conectar ou mesmo nos justificar como necessários entre aqueles que exercem a prática objeto de nossa pesquisa (a Administração). Dentre possíveis motivos, destacamos os mecanismos de circulação dos saberes construídos nessa comunidade.
OS RITUALISMOS DA COMUNICAÇÃO NO MUNDO ACADÊMICO
Como toda comunidade tem seus rituais, as comunidades científicas também os têm. É uma condição para ser comunidade. A academia possui uma linguagem própria, símbolos e rituais de sacralização próprios, entre outros elementos que fazem com que ela se baste. Ao constituirmo-nos dentro do campo, nos enclausuramos nas regras que ordenam as relações dos membros da mesma ‘paróquia’, o que nos leva a refinados mecanismos de legitimação, para os quais temos até método: escrever artigos que nos mantenham empregados, que garantam a boa avaliação dos nossos programas de stricto sensu e que nos garantam a possibilidade de manter nossas agendas e grupos de pesquisas.
Tudo isso é legítimo e necessário, mas tem nos desviado de nossa finalidade de existência enquanto comunidade - produzir conhecimento relevante para a sociedade e, particularmente, para os praticantes da Administração. Isso nos faz direcionar nossos esforços para retroalimentar os próprios critérios da burocracia acadêmica, que se molda cada vez mais para desenvolver métricas de impacto na academia, não necessariamente na sociedade e na comunidade de praticantes e interessados. Que sejamos redundantes para não sermos mal compreendidos: para atender aos nossos rituais e nossos sistemas endógenos de legitimação, escamoteamos nossa função social, ou seja, ser úteis para os praticantes do nosso objeto de estudo. Talvez com as recentes métricas de avaliação de programas de pós-graduação no Brasil, onde a ideia de ‘impacto’ começa a se descolar do resultado no jogo da comunicação acadêmica em favor de impacto social, seja mais fácil argumentar sobre essa necessidade de se conectar com maior efetividade com as demandas da sociedade. Contudo, esse movimento institucional ainda enfrenta grande resistência por membros da comunidade que veem nessa mudança um prejuízo de seus esquemas de produção já estabelecidos.
Nossa crítica é sobre a forma com que a comunidade científica de Administração tem se estabelecido, ou seja, como finalidade em si mesma. Uma boa forma de perceber essa contradição é a partir de uma prática editorial que tem se tornado cada vez mais comum no país. Os escritos precisam circular em idioma estrangeiro, senão sequer são elegíveis para alguns periódicos ou tampouco serão considerados como sendo dignos de premiações. É assim que, ano a ano, é crescente o número de textos em inglês em congressos no Brasil, apresentados em inglês por brasileiros e para brasileiros (Alcadipani, 2017). Talvez, se a intenção dessa comunidade acadêmica fosse orientar praticantes que falam inglês, estaria tudo certo; mas no Brasil, 5% das pessoas se situam no idioma inglês, e menos que 1% é fluente (British Council, 2014).
Ademais, para melhorar as chances de aprovação e circulação, os escritos tendem a ser elaborados com critérios que atendam exclusivamente à visão dos pareceristas, nem sempre convergente com as necessidades e os sentidos construídos pelos praticantes. O poder dos avaliadores é de tal dimensão que os pareceres se incorporam no próprio argumento para garantir sua aprovação. Não seria demais dizer que essa subserviência é tão grande que o correto deveria ser que alguns avaliadores assinassem o texto como coautores, tamanha é a influência dos seus pareceres na versão final publicada no periódico acadêmico. Essa hegemonia do avaliador e de seus gostos sobre a publicação do conhecimento produzido pelo pesquisador de Administração, alimentada pela máxima do publish or perish, induz a um círculo vicioso (dado que os avaliadores também são autores) que cria uma cultura linguística cada vez mais hermética e que privilegia os interesses e formalismos de quem avalia. É assim que, em nossa comunidade, não faltam performances comunicacionais para impressionar acadêmicos, da mesma forma que há pouca sensibilidade para comunicar-nos com quem deveríamos ter o compromisso ético de fazê-lo, os praticantes.
EFEITOS DO HERMETISMO DA COMUNICAÇÃO ACADÊMICA
A despeito de toda crítica que vem sendo feita à lógica do produtivismo acadêmico (Alcadipani, 2011; Alperstedt & Andion, 2017; Godoi & Xavier, 2012), chamamos aqui a atenção para um ponto que não vem sendo notado, a do malabarismo do léxico especializado que resulta em uma performance comunicativa que cada vez mais se refina e que, por isso mesmo, se distancia da realidade pensada. A escrita acadêmica adquire uma forma própria, de difícil compreensão para quem não é versado no uso verbal de teorias, conceitos abstratos, fórmulas e metodologias sofisticadas. A especialização comunicativa é de tal ordem que membros da mesma comunidade de Administração não adotam as mesmas regras de linguagem! É comum vermos textos publicados em seções de um subcampo da Administração que seriam rejeitados se tivessem sido avaliados por outro subcampo dessa área de especialidade.
Como efeito, nosso campo tem formado pesquisadores especializados em journals com grande impacto no estrangeiro, que identificam problemas sociais brasileiros para serem explorados à luz de categorias analíticas relevantes para os pesquisadores de países do Norte Atlântico, mas que resvalam na capacidade de traduzir esses saberes para os membros das organizações daqui (Lazzarini, 2017). Isso cria um paradoxo: moldamos nosso texto para atender aos ditames da produção intelectual internacional e dificultamos que as organizações locais e regionais acessem as análises sobre elas próprias de forma inteligível para os horizontes interpretativos dos seus praticantes (incluindo-se os participantes diretos das pesquisas!). De forma crua, podemos dizer que nos valemos da realidade administrativa e organizacional de nosso contexto apenas como fontes de dados para nosso consumo.
Uma objeção que poderia ser feita é a de que a transformação social buscada pela academia brasileira de Administração ocorre pela formação do estudante de pós-graduação (Bispo & Davel, 2021). Contudo, considerando que o indivíduo acessa a linguagem que é capaz de significar baseando-se nas suas próprias referências de vida, os alunos que desejam ingressar no campo de pesquisa em Administração passam a assumir para si os significados presentes nas comunidades de ciência, caracterizadas pela escrita codificada e léxico inacessível ao público em geral. Passa a ser um critério de ‘boa performance’ para esses neófitos ‘escrever difícil’ - pelo menos, para os não versados. Além disso, para essa elite intelectual, tem-se como estratégia retórica criticar o conhecimento efetivamente aprendido pelos praticantes como sendo de ordem ingênua, pobre, errática, insuficiente, sem mover um dedo para que o conhecimento científico chegue a eles - uma questão de esforço de tradução.
Com a profissionalização cada vez maior da atividade de pesquisa nesse campo, os acadêmicos passam a escrever seus relatos de pesquisa a partir dos parâmetros associados à boa performance nos canais de comunicação acadêmica. A questão central é que a estrutura de avaliação por trás dos journals torna-se cada vez mais endógena ao campo. Quem avalia o que é um bom trabalho são os próprios membros da comunidade científica, e seus critérios são aqueles que eles próprios reproduzem em suas práticas de escrita. A partir deste ponto, não importa mais o que se diz e quais os efeitos no mundo prático daquilo que se diz nos textos; importa tão somente a forma e os recursos discursivos que agradam os pares, principalmente aqueles que se encontram no topo da escala do sucesso acadêmico. Editores e membros de corpo editorial de journals de excelência, coordenadores e representantes de área de órgãos de fomento, até mesmo membros de banca de seleção para professores de stricto sensu, são aqueles que se destacam nesta corrida aos melhores journals e pontos de publicação no sistema. Não é coincidência que esses atores são os mesmos que controlam os recursos no campo, as oportunidades de crescimento e a construção de reputação.
Essa condição leva a uma característica interessante da prosa acadêmica. Para dar conta da competitividade entre os pares, foi preciso trazer maior complexidade ao léxico especializado do campo da Administração. A competitividade amplia os aspectos da erudição de linguagem e significação, para que somente aqueles mais bem preparados neste caminho de formação tenham condições de acessar os processos de avaliação mais seletivos. Especialmente nos últimos anos e com cada vez maior influência do arcabouço teórico das Ciências Sociais e da Filosofia, temos um conjunto complexo de autores densos, metodologias sofisticadas, conceitos abstratos de difícil compreensão, utilizados como moeda de troca para legitimar o texto acadêmico, permitindo que ele avance no processo de publicação.
Isso não quer dizer que acreditamos que tais referências acadêmicas devam ser banidas do pensamento administrativo. Concordamos com a premissa de que a realidade complexa das organizações precisa ser tomada por teorias capazes de dar conta desta complexidade, o que pode justificar maior presença de outros campos acadêmicos como norteadores do pensamento administrativo. Contudo, ao sofrer essa influência, deixamos de lado aquilo que nos instituiu na origem: a conexão com o universo social que nos é referência de estudo. Pela autonomia - inclusive, financeira - do sistema que suporta a carreira acadêmica em Administração, estamos mais preocupados em atender aos parâmetros do processo de legitimação endógeno dos pares do que com o impacto de nossos escritos e ideias no mundo de praticantes. Neste sentido, não é uma questão menor o fato de que os journals de maior prestígio são também aqueles que são menos (para não dizer nunca) lidos pelos não acadêmicos. Sua linguagem é hermética e ininteligível para quem é de fora. Seus argumentos são postos apenas para agradar aos avaliadores e seus critérios do que é a boa pesquisa. E tais critérios não se restringem ao melhor argumento (no sentido habermasiano da argumentação racional), mas sim ao cumprimento de fórmulas consideradas necessárias para o aceite em determinado periódico da área.
Somente quem é versado em todas as etapas de formação da carreira acadêmica é capaz de acessar plenamente o texto acadêmico. Isso quer dizer que os papers publicados nos journals de maior prestígio são ininteligíveis para quem não passou pelo rito do doutorado. Cada vez mais, ouve-se que o mestrado é uma espécie de iniciação à prática acadêmica; somente os doutores ou doutorandos irão, de fato, ter condições de realizar a boa pesquisa acadêmica (por boa pesquisa acadêmica, entenda-se ‘publicar bons papers’). Isso faz com que até mesmo a conexão natural entre os pesquisadores da Administração com os futuros praticantes seja comprometida. Alunos de cursos do nível de graduação - a maioria, futuros praticantes - não conseguem acessar o pensamento acadêmico de alto nível. E uma parcela considerável de professores-pesquisadores que também atuam na formação profissional de administradores não se importa; dos poucos alunos que eventualmente compreenderão seus textos, irão ser selecionar futuros ingressantes dos cursos de mestrado e doutorado, garantindo a perpetuação do perfil acadêmico desinteressado na linguagem e significados dos praticantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Será que este problema do hermetismo da comunicação acadêmica afeta outros campos de pesquisa aplicada a áreas específicas da sociedade? Se compararmos a pesquisa em Administração a outros campos, não saímos sem incômodos. Por exemplo, a Medicina consegue orientar a prática clínica, e esses praticantes que são preparados em sua formação no léxico dos pesquisadores têm condições de acompanhar os avanços descritos nas publicações de sua área. Outro exemplo é o das Engenharias, que desenvolvem estudos e pesquisas capazes de influenciar seus praticantes para novas técnicas e/ou tecnologias que norteiam o futuro das práticas.
Por fim, nem mesmo as escolas de humanidades deixam de cumprir, com certo pragmatismo, a orientação da prática de seus profissionais, vide as áreas de Economia e de Educação. E a Ciência da Administração, de que forma tem efetivamente participado da vida dos praticantes, além da diplomação que tem funções muito próprias na burocracia das carreiras? Mesmo considerando o argumento de que o profissional de administração é pouco afeto a leituras mais densas, não deixamos de considerar a responsabilidade da área de pesquisa em Administração de refletir sobre a necessidade de implicar-se na prática, mesmo que seja se posicionando criticamente sobre a qualidade da formação em Administração no país, algo que, aliás, é um problema em parte relacionado à comunidade, na medida em que o pesquisador em Administração no Brasil também é professor.
Afinal, para quem escrevemos? Essa pergunta torna-se fundamental e deve ser posta no centro da comunicação acadêmica como uma prática possível para transformação da sociedade a partir da prática da Administração. Assim sendo, o que é certo é que, por conta dos problemas de uma espécie de ‘política linguística’ da área, a maioria no campo acadêmico não escreve para quem deveria escrever. E se os praticantes de administração se derem conta de que podem exercer sua prática sem nossa custosa estrutura endógena de pesquisa?
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Classificação JEL:
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Jan 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
23 Nov 2021 -
Revisado
11 Jul 2022 -
Aceito
12 Jul 2022