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Editorial Especial: as modificações propostas para o parágrafo 30 da Declaração de Helsinque 2000 diminuirão os requisitos relacionados ao acesso aos cuidados de saúde para os voluntários de ensaios clínicos

Editorial Especial

As modificações propostas para o parágrafo 30 da Declaração de Helsinque 2000 diminuirão os requisitos relacionados ao acesso aos cuidados de saúde para os voluntários de ensaios clínicos

Dirceu B. Greco

Professor Titular, Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina. Coordenador do Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias, Presidente do Comitê de Ética em Pesquisas; Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, greco@medicina.ufmg.br

Introdução

A discussão sobre os requisitos éticos para a realização de pesquisa biomédica em países em desenvolvimento alcançou visibilidade considerável nos últimos anos (1,2,3,4). Este interesse vem sendo estimulado pela necessidade premente de pesquisa relacionada à pandemia da AIDS, pelo conseqüente aumento da pesquisa em países em desenvolvimento e pelo desequilíbrio da utilização de 90% dos gastos mundiais em pesquisa com doenças que atingem apenas 10% da população global (5). Embora algumas doenças que são pesquisadas atinjam todo o mundo (daí a inclusão de voluntários de países em desenvolvimento), é extremamente preocupante o pequeno investimento em pesquisas nas diversas doenças que afligem bilhões de pessoas, geralmente em países pobres. Além disto, apesar do progresso da ciência e tecnologia, seus benefícios raramente alcançam os países em desenvolvimento. Bilhões de pessoas ainda vivem em níveis intoleráveis de pobreza, com pouco acesso a cuidados de saúde e a eles são negados os mais básicos medicamentos (6). Assim, para que o progresso científico seja associado ao progresso moral, os padrões de cuidados de saúde (standard of care) devem ser progressivamente melhorados e os investimentos devem ser preferencialmente direcionadas ao desenvolvimento de pesquisas relevantes para as políticas de saúde e para aumentar a capacidade local dos profissionais de saúde em relação à ciência, ética e cuidados médicos.

Este preâmbulo enfatiza a importância da implementação de diretrizes éticas internacionalmente aceitas para contribuir com a melhoria da saúde para todos que delas necessitem, um dos mais grandes problemas do nosso tempo.

Ética na pesquisa internacional e a saúde global

Vale enfatizar que não há dúvida que vacinas eficazes e medicamentos mais potentes são urgentemente necessários para interromper a disseminação de várias doenças, incluindo HIV/AIDS, e a pesquisa com seres humanos será necessária para este fim. Isto pode ser confirmado pela estimativa de 16.000 novos casos de infecção pelo HIV diariamente (UNAIDS) (7) com mais de 90% destas ocorrendo no terceiro mundo, à semelhança de outras doenças, como a tuberculose, leishmaniose, malária, hanseníase e as hepatites. O que é inaceitável é que esta urgência seja utilizada como justificativa para diminuir os padrões éticos estabelecidos para os ensaios clínicos (8,9,10,11). Em particular, tem havido tentativas para enfraquecer a Declaração de Helsinque(12), há muito o paradigma para a condução de pesquisas éticas.

Deve ser aqui relembrado que embora a Declaração de Helsinque seja um documento da Associação Médica Mundial, os valores lá estabelecidos e os princípios nela contidos, não "pertencem" à AMM mas são igualmente valorizados pela comunidade mundial, incluindo as maiorias pobres e marginalizadas.

Antecedentes: Com a argumentação sofista que os países pobres não têm mesmo acesso aos tratamentos ideais (o exemplo mais comum está relacionado ao acesso a medicamentos para o tratamento da AIDS) tem havido, nos últimos cinco anos, ação concertada e contínua, para diminuir os requisitos éticos preconizados na Declaração de Helsinque (13,14). Os itens mais polêmicos são aqueles relacionados com o acesso aos cuidados de saúde e à utilização de placebo como controle do experimento.

As modificações propostas para a Declaração de Helsinque

A última modificação significativa da Declaração de Helsinque ocorreu na Assembléia Geral da Associação Médica Mundial (AMM) em 2000 (Edimburgo), onde, apesar da grande pressão norte-americana em contrário, permaneceu a restrição ao uso de placebo (item 29 - placebo só pode ser utilizado para o grupo controle quando não houver tratamento eficaz), enquanto o Parágrafo 30 (acesso dos voluntários aos cuidados de saúde) ficou assim redigido: No final do estudo, todos os pacientes participantes devem ter assegurados o acesso aos melhores métodos comprovados profiláticos, diagnósticos e terapêuticos identificados pelo estudo. Foi assim, incluída a obrigação de prover aos voluntários os melhores cuidados de saúde após a conclusão do estudo. Desta maneira, permaneceu a proibição ao duplo-standard para o tratamento, ou seja, os voluntários devem ser tratadas igualmente, independente do local de origem ou do seu nível de renda. Entretanto, esta vitória parcial vem sendo constantemente ameaçada pela contínua pressão pelo relaxamento das exigências éticas a serem aplicadas em países do mundo em desenvolvimento, exercida por agências reguladoras, patrocinadores e pesquisadores, principalmente norte-americanos.

Já em 2002, a AMM incorporou uma Nota de Esclarecimento ao parágrafo 29, acrescentando situações de excepcionalidade para a utilização de placebo mesmo quando existem tratamentos eficazes, primeiro passo e risco para facilitar a realização de pesquisas em países em desenvolvimento que não seriam permitidas nos países de origem.

Para a Assembléia Geral de 2003 (Helsinque, 10 a 14 de setembro), a AMM disponibilizou no dia 13 de agosto de 2003, em sua página eletrônica (www.wma.net) proposta de Emenda e Nota de Esclarecimento para o parágrafo 30 (acesso dos voluntários aos cuidados de saúde), dando o exíguo prazo de 17 dias para manifestações relacionadas a esta. Esta Nota e Emenda, se aprovadas, facilitariam o estabelecimento de duplo standard de tratamento, ou seja, iriam permitir, em locais onde o acesso aos cuidados de saúde é precário, aos pesquisadores/patrocinadores se eximirem da responsabilidade de prover tratamento necessário para os voluntários da pesquisa, desde que explicitem a priori esta possibilidade aos voluntários. Tal mudança facilitaria o direcionamento de projetos hoje considerados não éticos nos países industrializados para os países periféricos. Além disto, praticamente anularia o parágrafo 19, que contem um dos requisitos fundamentais para a realização de pesquisa (Pesquisa médica só está justificada se houver expectativa razoável que as populações nas quais a pesquisa será desenvolvida será beneficiada pelos resultados da pesquisa).

Vale acentuar que hoje a discussão sobre acesso a cuidados de saúde já ultrapassou o terreno controlado do projeto de pesquisa e alcança situações reais de acesso para todos. Exemplos incluem o Fundo Global para HIV, Tuberculose e Malária e o Programa da OMS/UNAIDS para acesso global a tratamento anti-retroviral para pacientes com AIDS, onde a dúvida não é se todos deveriam ter acesso a este tratamento mas sim como e quando torná-la realidade. Outro exemplo é a decisão de indústrias multinacionais (Heineken e Daimler-Chrysler na África) que já garantem acesso gratuito ao tratamento anti-HIV para seus funcionários e suas famílias (15) .

Proposta brasileira: Com esta perspectiva intempestiva e indesejável de modificação da Declaração de Helsinque, a Sociedade Brasileira de Bioética, Associação Médica Brasileira, Conselho Federal de Medicina, Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e o Ministério da Saúde (representado pelo Departamento de Ciência e Tecnologia e pela Coordenação Nacional de DST/AIDS) fizeram reunião em Brasília dia 19 de agosto de 2003, para discutir este assunto. Desta reunião se originou a seguinte proposta contrária às modificações sugeridas pela AMM: adiar qualquer possível modificação da Declaração de Helsinque abrindo a discussão por tempo mais prolongado e envolvendo mais pessoas e entidades. Cancelar a nota de esclarecimento, tendo sido ainda proposto a não utilização destas notas, as quais podem aos poucos enfraquecer o documento.

A proposta brasileira foi encaminhada eletronicamente e defendida no plenário da Assembléia da Associação Médica Mundial em Helsinque. Com a presença de mais de 50 representantes das Associações Médicas de diversos países do mundo, a proposta foi apresentada no dia 10 de setembro, juntamente com as opiniões recebidas via eletrônica nos 17 dias em que ficou disponível na página eletrônica da AMM.

Com diversas intervenções dos diferentes países, alguns claramente favoráveis às modificações propostas, a posição firme e bem argumentada contra a proposta de modificação do parágrafo 30 (apresentada pelo grupo de trabalho) e favorável a mais ampla discussão do assunto, assumidas claramente pelo Brasil, Argentina e África do Sul foi colocada em votação e saiu vitoriosa.

Assim, a Assembléia Geral estabeleceu outro Grupo de Trabalho para considerar os pontos conflitantes e para preparar relatório a ser apresentado na reunião do Conselho da AMM (maio de 2004), para futura decisão na Assembléia de 2004 (que será realizada no Japão). Este grupo de trabalho ficou composto por representantes da África do Sul, Alemanha, Brasil, Estados Unidos e Reino Unido (www.wma.net).

Em conclusão: ensaios de fase III (eficácia) com novos medicamentos ou com vacinas são necessários e devem ser realizados onde seja assegurado acesso aos melhores métodos diagnósticos e terapêuticos comprovados. Esta decisão será mais segura e eticamente perfeita e, se no fim do ensaio ficar definido o valor do que foi testado, aí sim deverá haver pressão internacional para que este produto esteja disponível (e acessível) para utilização em outros países. A urgência, portanto, não é só para pesquisar melhores métodos preventivos, medicamentos e vacinas mais eficazes mas principalmente para que estes estejam disponíveis para todos que deles necessitem. Além disto, se não houvesse limitações econômicas a disponibilização dos melhores métodos diagnósticos e terapêuticos seria o padrão mundial. A pressão por modificações tanto nas Diretrizes do CIOMS quanto na Declaração de Helsinque é econômica e não tem sustentação ética ou científica.

Em relação ao uso de placebo, apesar de ter sido mantido o texto da Declaração de Helsinque de 1996, a pressão principalmente da indústria farmacêutica e de agências reguladoras norte-americanas teve papel significativo na recente "flexibilização" adotada pela AMM (2002), facilitando sua utilização mesmo quando existe intervenção eficaz. Existe risco real que esta "flexibilização" será expandida e mal utilizada principalmente em países/populações vulneráveis, tornando imprescindível a manutenção da união dos cientistas, ativistas e toda a sociedade para evitar sejam diminuídas as exigências éticas atualmente definidas na Declaração de Helsinque.

Em síntese, não haverá expectativa de participação igualitária em pesquisa nem na distribuição justa de seu benefícios se não houver acesso universal a cuidados de saúde de boa qualidade, normas éticas justas e internacionalmente respeitadas, além de educação e controle social. Para reverter a situação atual será necessária intensa modificação na ordem mundial para que seja alcançada a equidade esperada e distribuição justa de recursos, o que certamente diminuirá a vulnerabilidade de todos os atores envolvidos.

Infelizmente a disparidade em saúde não será solucionada apenas por normas e diretrizes que regulam a pesquisa e o pesquisador mas, se as pessoas são tratadas como iguais na pesquisa envolvendo seres humanos aqui a justiça poderá ser aplicada e poderá servir de ponta de lança para o objetivo maior da equidade.

Desta maneira, ter a certeza que a equidade será respeitada na pesquisa clínica pode ser um passo significativo em direção a reverter a injustiça atual na alocação de recursos para a saúde e pode contribuir ainda para fortalecer (empoderar) as pessoas (voluntários, pesquisadores e a sociedade civil) fazendo-as conhecer seus direitos como cidadãos e lutar por eles. Se esta igualdade não for possível de ser alcançada nem no ambiente tão bem controlado dos ensaios clínicos, como iremos fazer para que isto ocorra no mundo real?

Referências

1. Nuremberg Code r R. Uses and abuses of Tuskegee. Science 1999; 284: 919-21.

3. Edsall G. Experiments at Willowbrook. Lancet 1971; 2(7715): 95.

4. Angell M. The ethics of clinical research in the third world. N Engl J Med 1997; 337: 847-9.

5. Benatar SR. Global disparities in health and human rights. American Journal of Public Health 1998; 88: 295-300.

6. Marmoth M. Inequalities in health. NEJM 2001; 345(2): 134-6.

7. UNAIDS - disponível em http://www.unaids.org

8. Greco DB. Revising the Declaration of Helsinki: Ethics vs. economics or the fallacy of urgency. Can HIV/AIDS Pol Law Rev 2000; 5(4): 98-101.

9. Lurie P, Wolfe SM. Unethical trials of interventions to reduce perinatal transmission of HIV in developing countries. NEJM 1997; 337: 1003-5.

10. Schüklenk U. Unethical perinatal HIV transmission trials establish bad precedent. Bioethics 1998; 12(4): 312-9.

11. Brennan TA. Proposed revision of the Declaration of Helsinki: will they weaken the ethical principles underlying human research? Bull Med Eth 1999; 150: 24-8.

12. World Medical Association Declaration of Helsinki, Somerset West, South Africa, 1996; Edinburgh, Scotland 2000. disponível em http://www.wma.net.

13. Levine RJ The need to revise the Declaration of Helsinki. Bull Med Eth 1999; 150: 29-33.

14. Dismantling the Helsinki Declaration - Editorial - CMAJ 2003; 169(10): 997.

15. Gahimbaza L, Van Der Borgh S, Ngendakumana F. Costs and benefits of antiretroviral therapy in the private sector: the experience of Brarudi, Burundi. Antiviral Ther 2203; 8(Suppl.1): S187.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2003
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