Open-access Testando o Modelo da Casa da Capacidade para o Trabalho entre profissionais do setor hospitalar

RESUMO:

Objetivo:  Testar o Modelo da Casa da Capacidade para o Trabalho, verificando a hierarquia das dimensões propostas para um grupo de trabalhadores do setor hospitalar.

Métodos:  Estudo de coorte (2009-2011) conduzido com 599 trabalhadores de um hospital na cidade de São Paulo. Foi usado um formulário com questões sobre dados sociodemográficos, estilo de vida e condições de trabalho, e as versões brasileiras da Escala Estresse no Trabalho, Desequilíbrio Esforço-Recompensa, Work-Related Activities That May Contribute To Job-Related Pain and/or Injury e Índice de Capacidade para o Trabalho (ICT). Foi realizada análise de regressão logística hierárquica: as variáveis independentes foram alocadas em níveis de acordo com as dimensões do modelo teórico para avaliar os fatores associados ao comprometimento da capacidade para o trabalho (CT).

Resultados:  As variáveis associadas ao comprometimento da CT em cada dimensão foram: (a) dimensão sociodemográfica: idade < 30 anos (p = 0,20), (b) dimensão saúde: história de acidente de trabalho (p = 0,029), (c) dimensão competência profissional: baixo nível educacional (p = 0,008), (d) dimensão valores: intensificação do excesso de comprometimento (< 0,001), e (e) dimensão trabalho: intensificação do desequilíbrio esforço-recompensa (p = 0,009) e das demandas elevadas (p = 0,040).

Conclusão:  Os resultados do estudo confirmaram as dimensões propostas para o Modelo da Casa da Capacidade para o Trabalho, indicando que ele é válido como representação de um construto multidimensional de determinação multicausal, podendo ser utilizado na gestão da CT.

Palavras-chave: Avaliação da capacidade de trabalho; Saúde do trabalhador; Trabalhadores; Carga de trabalho; Ambiente de trabalho; Pessoal de saúde

ABSTRACT:

Objective:  To test the Work Ability House model, verifying the hierarchy of proposed dimensions, among a group of hospital workers.

Methods:  A cohort study (2009-2011) was conducted with a sample of 599 workers from a hospital in the city of São Paulo. A questionnaire including sociodemographics, lifestyle and working conditions was used. The Brazilian versions of Job Stress Scale, Effort-Reward Imbalance, Work-Related Activities That May Contribute To Job-Related Pain and/or Injury, and the Work Ability Index (WAI) were also used. A hierarchical logistic regression analysis was performed: the independent variables were allocated into levels according to the dimensions of the theoretical model in order to evaluate the factors associated with work ability.

Results:  Variables associated with impairment of work ability in each dimension were as follows: (a) sociodemographics: age < 30 years (p = 0.20), (b) health: without report of occurrence of work injuries (p = 0.029), (c) professional competence: low educational level (p = 0.008), (d) values : intensified in overcommitment (p < 0.001), and (e) work: intensification of effort-reward imbalance (p = 0.009) and high demands (p = 0.040).

Conclusion:  The results confirmed the dimensions proposed for the Work Ability House model, indicating that it is valid as a representation of a multidimensional construct of multifactorial determination and can be used in the management of work ability.

Keywords: Work capacity evaluation; Occupational health; Workers; Workload; Work environment; Health personnel

INTRODUÇÃO

O conceito de capacidade para o trabalho (CT) diz respeito à capacidade que o trabalhador dispõe para desempenhar suas tarefas, capacidade esta condicionada pelas demandas do trabalho, pelo seu estado de saúde e por suas habilidades físicas e mentais1,2,3. A CT é considerada como uma medida do envelhecimento funcional1,2,3 e é tida como um indicador de saúde do trabalhador2,4. Esse conceito vem sendo expandido partindo da centralidade na saúde para modelos que integram aspectos relacionados a saúde, bem-estar, trabalho e ambiente macrossocial2,4,5.

Modelos teóricos foram propostos para explicar o processo de determinação da CT e/ou as dimensões associadas a esse construto, tais como o fundamentado no Stress-Strain Model ou o Tetraedric Model4.

Entre esses modelos, destaca-se o modelo multidimensional conhecido como Work Ability House Model (Modelo da Casa da Capacidade para o Trabalho), que considera que a CT é estruturada com base no equilíbrio entre os recursos individuais, os fatores relacionados ao trabalho e o ambiente macrossocial2,4,5. O modelo é expresso na forma de uma casa com quatro andares e um telhado inserida em um ambiente circundante. Os recursos individuais compõem as dimensões representadas nos três andares inferiores. O primeiro andar, base que sustenta o edifício, diz respeito ao estado de saúde e à capacidade funcional, incluindo os aspectos físico, mental e social. O segundo andar diz respeito à competência profissional (conhecimentos e habilidades, treinamento e aprendizagem no trabalho) e seu contínuo desenvolvimento, usados para fazer frente às demandas da vida laboral. O terceiro piso representa aspectos internos do indivíduo e que se manifestam como valores, atitudes e motivação. Esses aspectos podem ser afetados pelo ambiente externo, ou seja, pela relação entre trabalho, sociedade e vida pessoal. O último andar representa fatores vinculados ao trabalho, tais como condições de trabalho, demandas e conteúdo, organização e ambiente comunitário e gestão e supervisão: é o andar de maior peso no edifício, podendo afetar as outras dimensões, pelas quais também é sustentado. A CT também é influenciada pelo entorno do ambiente macrossocial, onde se enquadram as questões vinculadas às políticas públicas e sociais, os cuidados à saúde e à segurança ocupacional e, em especial, a estrutura e o suporte comunitário e familiar. O telhado desse edifício é a CT, resultante da interação e do equilíbrio entre as dimensões anteriores2,4,5.

Esse modelo vem sendo avaliado em estudos internacionais6,7. No Brasil, estudos sobre CT vêm sendo realizados desde a década de 1990, utilizando o Índice de Capacidade para o Trabalho (ICT) como instrumento de pesquisa3, mas há carência de estudos nacionais testando o modelo teórico em discussão. Considerando essas questões, este estudo teve como objetivo testar o modelo teórico da Casa da Capacidade para o Trabalho, verificando a hierarquia das dimensões propostas para um grupo de trabalhadores do setor hospitalar na cidade de São Paulo.

MÉTODOS

Estudo longitudinal com dois anos de seguimento (2009 a 2011) desenvolvido em um hospital privado de alta complexidade na cidade de São Paulo, Brasil. Em 2009, todos os trabalhadores ativos foram convidados a participar do estudo. Esse grupo ocupacional foi escolhido porque o trabalho hospitalar é caracterizado por demandas físicas e mentais relevantes e que estão associadas a desfechos negativos para o trabalhador, entre eles o comprometimento da CT8,9,10.

A taxa de adesão foi de 87,9% (1.226 pessoas). Dentre estas, 599 trabalhadores (48,5%) participaram em 2011, sendo as maiores parcelas oriundas do Serviço de Enfermagem (51,8%) e da Hotelaria - Higiene, Gastronomia e Internação (18,5%). As principais causas de perdas foram o desligamento da instituição (54,7%) e a não resposta ao questionário (39,7%).

Os participantes diferiram dos não participantes em termos de: sexo (57,2% das mulheres versus 40,9% dos homens, p < 0,001), setor de trabalho (maiores perdas nos setores administrativos de Planejamento e Comercial, respectivamente, com 87,1 e 81,6% de perdas, p < 0,001), idade (participantes com 35,7 anos, DP = 8,3 anos versus perdas com 34,6 anos, DP = 8,9 anos, p = 0,022) e anos de trabalho na empresa (participantes com 6,1 anos, DP = 6,5 anos versus perdas com 4,8 anos, DP = 5,8 anos, p < 0,001).

A coleta de dados foi feita por meio de um instrumento autoaplicável. A primeira parte do instrumento continha questões sobre características sociodemográficas, do estilo de vida e funcionais. A segunda parte foi a versão curta da Escala Estresse no Trabalho (Job Stress Scale - JSS)11, baseada no modelo demanda-controle. A JSS avalia o desgaste decorrente dos estressores do ambiente psicossocial do trabalho11. A terceira parte foi o Questionário Desequilíbrio Esforço-Recompensa (Effort-Reward Imbalance Questionnaire - ERI)12, cujas variáveis (esforço, recompensa excesso de comprometimento) também avaliam estressores do ambiente psicossocial do trabalho. A quarta parte foi o questionário Atividades Relacionadas ao Trabalho que Podem Contribuir para Dor e/ou Lesão (Work-Related Activities That May Contribute To Job-Related Pain and/or Injury - WRAPI)13. A última parte foi o ICT (Work Ability Index - WAI)1,3, usado para mensurar a variável de interesse deste estudo - CT. Todos os questionários foram validados para uso no Brasil1,3,11,12,13.

Os resultados do alfa de Cronbach, usado para avaliar a confiabilidade dos questionários no início do seguimento, foram: ICT = 0,69; demanda = 0,69; controle = 0,57; suporte social = 0,82; esforço = 0,74; recompensa = 0,83; excesso de comprometimento = 0,75; WRAPI = 0,92. Considerando a complexidade dos fenômenos a serem avaliados e sua importância para o entendimento do construto em análise8, optamos por manter as dimensões que apresentaram resultados do alfa < 0,70.

As variáveis de estudo foram selecionadas e alocadas em grupo segundo as dimensões (ou andares) do Modelo da Casa da Capacidade para o Trabalho:

  • • características sociodemográficas e individuais: sexo, idade, estado conjugal, renda familiar, responsabilidade por crianças menores;

  • • saúde e capacidade funcional: consumo de álcool, tabagismo, estado nutricional (a partir do índice de massa corporal), prática regular de atividade física, história recente de acidente de trabalho;

  • • competências profissionais: escolaridade, idade de ingresso na força de trabalho, anos de trabalho na empresa, anos de trabalho na profissão, cargo;

  • • valores: excesso de comprometimento (escore de 6 a 24 pontos);

  • • características relativas ao trabalho: setor de trabalho, turno de trabalho, jornada de trabalho (somatória do hospital, do segundo emprego e de atividades domésticas), violência no trabalho (escore de 7 a 21 pontos), demandas no trabalho (escore de 5 a 20 pontos), controle no trabalho (escore de 6 a 24 pontos), suporte social no trabalho (escore de 6 a 24 pontos), desequilíbrio entre esforços e recompensas (escore de 0,17 a 5,00 pontos), WRAPI (escore de 0 a 150 pontos);

  • • capacidade para o trabalho: ICT, que disponibiliza um escore de 7 a 49 pontos.

As variáveis independentes foram mensuradas no início do seguimento (2009). Exceção foram as variáveis relativas aos estressores do trabalho e ao ICT, avaliadas no início e no final do seguimento. Para cada uma dessas variáveis foi calculada a diferença entre os escores inicial e final, fornecendo nova variável categorizada em "sem alteração", "piora" ou "melhora". Essas variáveis posteriormente foram dicotomizadas para realização da modelagem logística. Os pontos de corte foram arbitrados de acordo com a distribuição das frequências observadas, dado que, até o momento, não foram encontradas referências na literatura.

Foi feita análise descritiva por meio de médias, medianas, desvios padrão e valores mínimo e máximo, para as variáveis quantitativas, e proporções, para as variáveis categóricas. As associações entre as variáveis independentes e a CT foram avaliadas por meio do teste do χ2. O modelo teórico da Casa da Capacidade para o Trabalho foi testado por meio de análise de regressão logística múltipla hierárquica, com os níveis de hierarquia previstos. Dentro de cada nível, a modelagem foi realizada passo a passo. O sexo foi mantido como variável de controle. A medida de risco foi o odds ratio (OR) e em todas as análises as associações foram consideradas significantes quando p < 0,05.

O Projeto de Pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, sob o protocolo 257.518. O projeto obedeceu aos princípios da Declaração de Helsinki previstos pela Associação Médica Mundial (AMM). A participação dos trabalhadores foi voluntária, mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e os resultados individuais tratados com confidencialidade.

RESULTADOS

Em 2009, a média do escore do ICT foi de 43,0 pontos (DP = 4,0); em 2011, foi de 42,5 pontos (DP = 4,7). A mudança no escore do ICT do início para o final do seguimento foi, em média, de -0,5 pontos (DP = 4,6), representando discreta piora.

A Tabela 1 apresenta a análise descritiva das variáveis representando as características sociodemográficas, bem como as dimensões da saúde e das competências profissionais. As maiores proporções de participantes foram de mulheres (72,6%), casados(as)/com companheiro(a) (50,1%) e com renda familiar mensal superior a 5 salários mínimos (51,6%). A média etária foi de 36,7 anos (DP = 8,3), sendo que 73,1% tinham idade a partir de 30 anos (73,1%). Quanto às características da condição de saúde, 91,3% relataram consumo esporádico de bebidas alcoólicas, 90,8% não eram tabagistas, 54,9% eram eutróficos, 36,9% informaram prática regular de atividade física, e a maioria negou história recente de acidente de trabalho (88,1%). Para as variáveis consideradas representativas das competências profissionais, observou-se que 94,2% tinham ao menos o ensino médio incompleto, e a maioria (69,8%) tinha, no mínimo, 6 anos de atuação na profissão. As maiores proporções eram de técnicos de Enfermagem (29,2%), administrativos especializados (17,0%), enfermeiras (16,9%) e auxiliares ou assistentes de diferentes setores (15,0%).

Tabela 1:
Estatística descritiva das variáveis sociodemográficas, saúde e competências profissionais, segundo a mudança na capacidade para o trabalho, hospital privado, São Paulo, 2009 - 2011.

A Tabela 2 apresenta as variáveis representando as dimensões valores e trabalho. Ao longo do seguimento 31,4% dos trabalhadores relataram percepção de piora no excesso de comprometimento. No início do seguimento (2009), a média do excesso de comprometimento foi de 12,3 pontos (DP = 3,1) em um escore de 6,0 a 24,0 pontos. A Tabela 2 mostra que os participantes se concentraram nos serviços de Enfermagem (51,8%) e de Hotelaria (18,5%). A distribuição quanto ao turno de trabalho foi relativamente homogênea, 64,8% dos trabalhadores não consideraram estar expostos a situações de violência no trabalho e 41,7% negaram alteração na carga horária de trabalho semanal ao longo do período de observação.

Tabela 2:
Estatística descritiva das variáveis dos valores pessoais e do trabalho, segundo a mudança na capacidade para o trabalho, hospital privado, São Paulo, 2009 - 2011.

Em 2009, a média do escore de demandas do trabalho foi de 14,1 pontos (DP = 2,3) e 32,7% relataram piora ao longo do seguimento. A média do escore do controle sobre o trabalho foi de 17,8 pontos (DP = 2,4) e 22,5% relataram piora. A média do escore do suporte social foi de 20,7 pontos (DP = 2,8) e 35,2% relataram piora. A média do escore ERI foi de 0,42 pontos (DP = 0,18) e 36,2% reportaram piora. A média do WRAPI foi de 57,5 pontos (DP = 34,6) e 34,2% relataram piora.

As Tabelas 1 e 2 mostram ainda as variáveis que estiveram significativamente associadas ao comprometimento da CT nas análises univariadas: faixa etária (p = 0,10), relato de acidente de trabalho (p = 0,032), todas as variáveis da competência profissional, excesso de comprometimento (p < 0,001), demandas do trabalho (p = 0,010), desequilíbrio esforço-recompensa (p < 0,001), suporte social (0,002) e WRAPI (p = 0,004).

A Tabela 3 apresenta os resultados da análise múltipla hierarquizada. Entre as variáveis sociodemográficas, a faixa etária permaneceu na modelagem (OR = 0,64; p = 0,020). Na dimensão saúde/capacidade funcional, a história anterior de acidente no trabalho permaneceu associada ao comprometimento da CT (OR = 0,43; p = 0,029). Na dimensão da competência profissional, a escolaridade permaneceu na modelagem (OR = 0,27; p = 0,008). O excesso de comprometimento, representando a dimensão valores, permaneceu associado à piora na CT (OR = 2,11; p < 0,001). Na dimensão trabalho, as variáveis associadas à alteração na CT foram o desequilíbrio esforço-recompensa (OR = 1,72; p = 0,009) e as demandas no trabalho (OR = 1,77; p = 0,040). As variáveis das dimensões valores e trabalho foram as que apresentaram as maiores chances para piora da CT, mesmo após ajuste pelas demais variáveis. O sexo foi mantido na modelagem como variável de controle.

Tabela 3:
Determinantes da capacidade para o trabalho, identificados por meio da análise de regressão logística hierarquizada, hospital privado, São Paulo, 2009 - 2011.

DISCUSSÃO

Os resultados deste estudo confirmam a Casa da Capacidade para o Trabalho como modelo multidimensional, em que características do indivíduo, do trabalho e do ambiente circundante atuam na determinação da CT. Neste estudo, os fatores que estiveram associados a alterações na CT foram a faixa etária, a história anterior de acidente de trabalho, os anos de trabalho na profissão, o nível de escolaridade, o excesso de comprometimento, o desequilíbrio entre esforços e recompensas no trabalho e as demandas no trabalho. As análises foram ajustadas pelas variáveis de cada dimensão analisada (características sociodemográficas, saúde, competência profissional, valores e trabalho) na modelagem hierárquica. Também em conformidade com o modelo teórico, a dimensão do trabalho foi aquela com os resultados mais elevados de risco para comprometimento da CT, com a variável relativa aos valores (excesso de comprometimento).

No primeiro bloco analisado foram incluídas as variáveis relacionadas às características sociodemográficas. Essas variáveis não compõem os quatro andares da estrutura central da Casa, mas fazem parte do ambiente circundante à Casa5. O modelo teórico enfatiza que os fatores circundantes à Casa influenciam a CT, embora de maneira menos direta do que os andares que compõem sua estrutura central5. Somente a faixa etária permaneceu associada ao comprometimento da CT, sendo que esses resultados não significam que o entorno social não seja importante para a CT. Eles apenas mostram que, neste estudo, foram pouco relevantes. Em parte isso se deve ao fato de que foram incluídas apenas variáveis demográficas e da estrutura familiar, sem inclusão de aspectos mais amplos do ambiente macrossocial. A idade mais elevada (≥ 30 anos) mostrou ser fator protetor para a CT. Embora o efeito do envelhecimento cronológico em relação ao envelhecimento funcional esteja consistentemente demonstrado2,5, esse efeito nem sempre é linear ou está presente, podendo ser mediado pelo nível de conhecimento, experiência, habilidade e vínculo ao emprego que trabalhadores com mais idade tendem a apresentar9,14. Outro aspecto é a possibilidade do efeito do trabalhador sadio, em que permanecem ativos aqueles que mantiveram melhores condições de higidez.

Na estrutura central da Casa estão os recursos individuais, englobando saúde e capacidade funcional, competência profissional e valores4,5. O segundo bloco analisado incluiu a dimensão da saúde/capacidade funcional. Esta dimensão compõe o primeiro andar da Casa, base que sustenta o edifício, pois é o recurso do trabalhador mais claramente relacionado à CT4,5,6. Nesta dimensão, a história anterior de acidente de trabalho apareceu como fator protetor contra o comprometimento da CT. Esse resultado deve ser interpretado com cautela. Acidentes de trabalho geram incapacidades temporárias ou permanentes, podendo comprometer a capacidade funcional dos trabalhadores15. As maiores ocorrências de acidentes de trabalho entre profissionais da área de saúde estão relacionadas aos distúrbios musculoesqueléticos e aos ferimentos perfurocortantes em mãos16,17. As lesões musculoesqueléticas podem gerar incapacidade prolongada ou definitiva, e nos acidentes perfurocortantes há risco para transmissão de doenças infectocontagiosas e alterações emocionais e comportamentais16,17. O efeito do trabalhador sadio pode ter alijado aqueles que sofreram lesões de maior gravidade, com retorno daqueles em melhores condições de higidez.

O terceiro bloco analisado incluiu variáveis representativas do segundo andar da Casa, que diz respeito à competência profissional. Nesta dimensão, os trabalhadores com maior nível de escolaridade apresentaram menor comprometimento da CT. Um estudo com trabalhadores finlandeses mostrou que um em três trabalhadores de menor escolaridade tinha comprometimento da CT, enquanto essa relação era menor do que um para aqueles com maior escolaridade18,19. Essas diferenças devem ser interpretadas do ponto de vista da condição socioeconômica que a educação reflete, traduzida em termos econômicos, ocupacionais, sociais, condições de saúde e especialização profissional19.

O bloco analisado na sequência incluiu variáveis representando o terceiro andar da Casa. Este andar diz respeito aos aspectos internos do indivíduo, manifestados na forma de valores. Os valores foram retratados pode meio do excesso de comprometimento. O excesso de comprometimento é definido como um padrão motivacional individual de busca excessiva pela realização e pelo alto desempenho no trabalho, que pode ser intensificado pelas pressões existentes no ambiente de trabalho, tornando esses trabalhadores mais susceptíveis à exaustão e ao estresse adaptativo20. Neste estudo, os indivíduos com intensificação do excesso de comprometimento apresentaram maior comprometimento da CT do que os demais trabalhadores, independentemente das demais variáveis. Essa associação é identificada em outros estudos9,21.

No último bloco analisado foram incluídas as variáveis representativas do trabalho. O trabalho, com as características e os recursos individuais, compõe a estrutura da Casa4,5. Ele é considerado como o andar mais amplo e de maior peso, podendo afetar os demais. Se as cargas decorrentes do trabalho forem desproporcionais aos recursos individuais, ocorrerá comprometimento da CT4,5. Na dimensão do trabalho, as variáveis associadas ao comprometimento da CT foram a intensificação no desequilíbrio entre esforços e recompensas e a intensificação na exposição às demandas no trabalho. O contexto social e organizacional do trabalho representado pelo ERI é apontado como um preditor para a CT, até mais do que outros estressores estudados9,22, inclusive com valor preditivo para abandono precoce da profissão na Enfermagem8. O modelo ERI é estruturado sobre a concepção de reciprocidade social, na qual o desequilíbrio entre os esforços envidados e as recompensas obtidas pode gerar emoções negativas com propensão à ativação neuroendócrina e autonômica, situações que, se mantidas, podem desencadear efeitos adversos sobre a saúde20. Intervenções nesses aspectos contribuem para reduzir a carga do estresse, com efeitos favoráveis para a saúde e a CT10. As associações entre percepções de piora nas exposições às demandas psicossociais do trabalho e comprometimento da CT refletem o fato de que quanto mais intensas e frequentes são as demandas do trabalho, maiores são os riscos à saúde e à CT20,23, inclusive entre trabalhadores do setor saúde8,10.

Estudos com diferentes metodologias confirmam o referencial teórico do Modelo da Casa da Capacidade para o Trabalho6,7,23 e têm resultados convergentes com este atual estudo. Estudo de uma amostra populacional de trabalhadores finlandeses evidenciou que as dimensões trabalho e saúde foram as que apresentaram maior poder de explicação dos resultados da CT6. Valores, competências e entorno comunitário também estiveram associados à CT6, confirmando a estrutura complexa do modelo. Um estudo avaliando professores finlandeses identificou que as variáveis das diferentes dimensões da Casa estiveram associadas à CT: uso de medicações, índice de massa corporal, percentual de gordura corporal, capacidade aeróbica, força muscular, estresse, esgotamento no trabalho, motivação, organização do trabalho e comunidade de trabalho24. Em uma revisão sistemática, os autores ressaltaram a natureza multifatorial do construto, após identificarem uma variedade de fatores associados ao comprometimento da CT: falta de tempo livre para atividades físicas, ­comprometimento da capacidade musculoesquelética, envelhecimento cronológico, obesidade, demandas mentais e físicas elevadas, falta de autonomia e ambiente físico de trabalho precário23.

O comprometimento da CT tem valor preditivo para desfechos negativos para trabalhadores, instituições e sociedade, decorrentes de absenteísmo, queda da produtividade, adoecimento, abandono precoce da profissão e mortalidade, inclusive no setor saúde2,10,18,23. O conhecimento dos determinantes da CT permite subsidiar políticas institucionais e públicas visando promover a saúde e o bem-estar no trabalho, proteger e recuperar a CT e favorecer a empregabilidade2,5,10,18,23. Um modelo teórico válido para o entendimento dos determinantes da CT representa um recurso útil na gestão da saúde do trabalhador, aplicável no planejamento, no desenvolvimento e na avaliação de ações de intervenção voltadas ao indivíduo e ao coletivo do trabalho4,5,24.

O desenho longitudinal deste estudo permite estabelecer causalidade nas relações observadas e confirmar o modelo teórico testado. Entretanto, algumas limitações devem ser apontadas. A primeira é a taxa de resposta observada (48,5%). No período de duração do estudo (3 anos) houve uma importante rotatividade dos trabalhadores, sendo que as perdas amostrais foram decorrentes principalmente de demissões (54,7%). Elevadas taxas de rotatividade são comumente observadas no setor hospitalar, em especial na Enfermagem25, isso porque o trabalho hospitalar é caracterizado por demandas físicas e mentais relevantes decorrentes do objeto de trabalho (que envolve saúde e vida humana), do ambiente físico, dos processos e da organização do trabalho frequentemente desfavoráveis, das relações interpessoais e de trabalho conflitantes e de restritas formas de reconhecimento8,25. Outra limitação foi a restrição de variáveis analisadas em cada dimensão da Casa, em função da estrutura da coorte, com impossibilidade de avaliação de algumas medidas, tais como aspectos objetivos de capacidade funcional ou do ambiente macrossocial. Por fim, o estudo foi realizado em um grupo laboral específico. Apesar das limitações, a validade externa pode ser estendida para instituições com semelhantes características de condições e organização do trabalho.

CONCLUSÃO

Concluindo, os resultados do estudo confirmaram as dimensões propostas para o Modelo da Casa da Capacidade para o Trabalho para trabalhadores do setor hospitalar estudados, evidenciando que esse modelo é válido como representação da CT como um construto multidimensional de determinação multicausal. Estes resultados têm implicações para políticas públicas e institucionais, pois o modelo testado representa um subsídio útil no planejamento, no desenvolvimento e na avaliação de ações voltadas à promoção e à recuperação da CT. Mais pesquisas abordando outros grupos laborais são bem-vindas.

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  • Fonte de financiamento: O Hospital Samaritano de São Paulo deu suporte para o desenvolvimento do estudo por meio do uso de equipamentos e materiais (computadores, impressos e salas de reunião) e disponibilizou recursos humanos para auxiliar na coleta e digitação dos dados. A instituição também proveu recursos para participação em congressos sobre o tema de estudo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2014
  • Aceito
    05 Maio 2015
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