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A DESCONSTRUÇÃO DO DISCURSO SOBRE TRAUMA EM DOIS FILMES DE EASTWOOD: UMA CONTRIBUIÇÃO DAS INTERVENÇÕES PSICANALÍTICAS CLÍNICO-POLÍTICAS

The deconstruction of the discourse on trauma in two Eastwood films: a contribution from clinical-political psychoanalytic interventions

RESUMO:

Como algumas produções cinematográficas contribuem ao debate sobre noções de trauma em psicanálise? Analisamos dois filmes dirigidos por Clint Eastwood, “Sobre meninos e lobos” e “Sniper americano” retomando, como método de trabalho, os conceitos de narcisismo das pequenas diferenças, trauma, fala como acontecimento, acontecimento e acontecimento-ruptura, de modo a colocar em questão os pensamentos por oposição binária e ego-referenciados, que podem reforçar estereótipos e preconceitos e que obturam a mobilidade e a transformação do acontecimento traumático em propulsão para a vida. Nossa intenção é desconstruir alguns discursos que pautam a cultura contemporânea e contribuir para intervenções psicanalíticas clínico-políticas.

Palavras-chave:
trauma; acontecimento; cinema; psicanálise; política

ABSTRACT:

How can some film productions feed the debate on the psychoanalytical notions of trauma? We analyze two films by Clint Eastwood, “Mystic River” and “American Sniper” based on the psychoanalytic view of trauma. As a working method, we resume the concepts of narcissism of minor differences, trauma, speech as an event, event and event break-up to call into question binary opposition and ego-referenced thinking that can reinforce stereotypes and prejudices that hinder the mobility and transformation of traumatic events in thrusts toward life. Our intention is to deconstruct some speeches guiding contemporary culture and to contribute to clinical-political psychoanalytic interventions.

Keywords:
trauma; event; cinema; psychoanalysis; politics

INTRODUÇÃO

Quais seriam as possíveis contribuições de algumas produções cinematográficas para o debate acerca das noções de trauma em psicanálise? Um dos desafios para se problematizar essa questão é o de que lançaremos o nosso olhar não para filmes de arte restritos a um público seleto e com pouca visibilidade na indústria cultural, mas, sim, realçaremos as narrativas cinematográficas que atraíram milhares de telespectadores, muitos dos quais aficionados por películas policiais e de guerra.

O objetivo deste artigo é o de analisar dois filmes dirigidos por Clint Eastwood, um mais antigo, intitulado “Sobre meninos e lobos” (2003SOBRE SOBRE meninos e lobos. Direção: Clint Eastwood. Produção: Clint Eastwood EUA. Warner Bros. Título original: Mystic River. Duração: 137 minutos, 2003.) no Brasil, e o recente “Sniper americano” (2015), tendo como referência o conceito psicanalítico de trauma. As duas produções são baseadas em obras literárias (LEHANE, 2012LEHANE, D. Mystic River: sobre meninos e lobos. São Paulo: Companhia das Letras , 2012.; KYLE; DEFELICE; MCEWEN, 2015KYLE, C.; DeFELICE, J.; McEWEN, S. Sniper americano: o atirador mais letal da história dos EUA. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.) e adaptadas para o cinema por dois roteiristas diferentes, sendo que o que as une é o olhar do octogenário ator e diretor Clint Eastwood. No filme “Sobre meninos e lobos”, há um acontecimento-ruptura que marca a trajetória de um homem a ponto de circunscrever sua história de vida e de estigmatizá-lo sob o olhar de um bairro periférico da cidade onde se passa a trama, ao mesmo tempo em que há marcas indeléveis em seus dois amigos adolescentes que testemunham a cena desencadeadora do ocorrido. Na película mais recente, somos incitados a acompanhar as neuroses traumáticas de guerra, contextualizadas no conflito entre os Estados Unidos da América e o Iraque, sob a perspectiva do relato autobiográfico de um atirador de elite estadunidense.

Cabe ressaltar os três temas recorrentes nesses filmes. O primeiro está relacionado ao evento do trauma que é desencadeado em decorrência de situações violentas apresentadas de formas distintas nas duas narrativas: o estupro e a guerra. O segundo tema se refere à alegoria ao lobo, sustentada pelo pensamento estruturado em oposições binárias, herói versus covarde, homens destemidos e vencedores em contraste à ideia dos homens fracos e perdedores. O terceiro tema, menos central (mas nem por isso menos relevante para o desenrolar das cenas), diz respeito ao pano de fundo dos dois filmes, que se refere a como as mulheres são apresentadas na trama, apassivadas, donas de casa e defensoras dos ideais de trabalho, família e propriedade, com pouca voz e sem produzir questionamentos; ao contrário disso, vão do silêncio mortífero a falas que reforçam o raciocínio por oposição binária que impede o diálogo entre diferentes.

De início, marcamos uma posição crítica à proliferação da utilização da concepção de trauma tal como comparece nos diagnósticos psiquiátricos. Um dos exemplos disso é o do Stress Pós-Traumático (TEPT - Transtorno do Estresse Pós-Traumático). Nessa concepção, a ênfase nos efeitos da violência despolitiza o acontecimento e reduz o sujeito à condição de vítima de violências. Assim, ficam obstadas não apenas as dimensões políticas na base dos acontecimentos violentos, como também a dimensão de escolha do sujeito diante do imponderável e a sua possibilidade de processar e retomar sua posição subjetiva e política -elementos que pensamos fundamentais nas intervenções clínica e política junto a essas pessoas (ROSA, 2015ROSA, M. D. Psicanálise, política e cultura: a clínica em face da dimensão sócio-política do sofrimento. Tese de livre docênciadefendida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. 2015.). Ou seja, estamos assinalando a dimensão sócio-política do sofrimento:

É nesse sentido que recorremos a J. Lacan para separar a violência do acontecimento da dimensão traumática do sujeito, para deslocar a questão dos efeitos do acontecimento, a fim de indicar a solução imaginária em que o sujeito reduz o acontecimento (saber) à verdade, a posteriori do acontecimento. O acontecimento violento fica configurado como sendo aquele onde a verdade e o saber coincidem univocamente, ou seja, sem separação e sem lugar ao equívoco; nele a contingência do acidente é tomada como verdade, onde se verifica um fechamento da pergunta pela causa. Lacan estabelece a diferença entre o acontecimento traumático e a dimensão do trauma como furo, como “trou”, que articula angústia e desejo, em seu tempo próprio, a posteriori. Lá onde não há relação sexual isso produz traumatismo inventamos um truque para preencher o furo (trou) no Real inventa-se o que se pode. (ROSA, 2015ROSA, M. D. Psicanálise, política e cultura: a clínica em face da dimensão sócio-política do sofrimento. Tese de livre docênciadefendida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. 2015., p.106).

Na análise dos dois filmes, enfatizamos que a violência afeta não apenas aquele que a sofreu, mas o laço social que a reproduz e perpetua. Por isso, falamos de acontecimento-ruptura ou acontecimento violento e não traumático. Como método de trabalho, retomaremos os conceitos de narcisismo das pequenas diferenças (FREUD, 1930/2010FREUD, S. História de uma neurose infantil (O Homem dos Lobos) (1918-1914). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras completas, 14)), trauma (ROSA; GAGLIATO, 2009ROSA, M. D.; GAGLIATO, M. Traumas, heróis e resistências e psicanalistas. In: PERDOMO, M. C.; CERRUTI, M. (orgs.). Trauma, memória e transmissão: a incidência da política na clínica psicanalítica. São Paulo: Primavera Editorial, 2009.), fala como acontecimento (FIGUEIREDO, 1993FIGUEIREDO, L. C. Fala e acontecimento em análise. Revista Percurso, n. 11. São Paulo, 1993.), acontecimento (ZIZEK, 2014ZIZEK, S. Acontecimiento. Barcelona: Sexto Piso, 2014.) e acontecimento-ruptura (CARRETEIRO, 2003CARRETEIRO, T. Acontecimento: categoria biográfica individual, familiar e histórica. In: FÉRES-CARNEIRO, T. (org.) Família e casal: arranjos e demandas contemporâneas. São Paulo: Loyola, 2003.), de modo a colocar em questão os pensamentos por oposição que podem reforçar estereótipos e preconceitos que operam de modo a obstar a mobilidade e a transformação do acontecimento traumático em propulsão para a vida. De modo geral, nossa intenção é produzir a desconstrução de alguns discursos que pautam a cultura contemporânea e contribuir para intervenções psicanalíticas clínico-políticas (ROSA, 2012ROSA, M.; POLI, M. C. Experiência e linguagem como estratégias de resistência. Psicologia e Sociedade, v. 21, 2009. Edição Especial.). Subdividimos o artigo em três temas: o evento violento, a alegoria aos lobos e o modo como as mulheres são apresentadas na trama.

PRIMEIRO TEMA: O EVENTO VIOLENTO

ACONTECIMENTOS-RUPTURA NO FILME “SOBRE MENINOS E LOBOS”

O filme tem início com três meninos brincando num bairro periférico da baixa classe média dos Estados Unidos da América numa tarde na qual as ruas estão praticamente vazias até que passa um carro com dois homens fingindo ser policiais, que abordam os adolescentes. O menino que mora mais longe é intimado a entrar no carro, com o artifício de que era necessário contar para a sua mãe o delito que estava cometendo. No momento em que foram abordados, escreviam seus nomes na calçada, pois havia parte do piso recoberta com cimento fresco. Escrevem na sequência: Jimmy (James), Sean, e apenas Dave não consegue terminar a escrita de seu nome quando é intimado a entrar no carro. Esta parece ser uma alegoria sobre as dificuldades de Dave Boyle em fazer sua inscrição social, como um prenúncio dos resquícios da violência que estava prestes a sofrer e que marcaria a trajetória de um personagem semimorto no filme.

Vinte e cinco anos após a violência sexual ter acontecido, há uma sequência de cenas que apresenta cada um dos três protagonistas já adultos, tendo como pano de fundo mais um evento violento com consequências traumáticas: o assassinato de uma jovem no mesmo bairro.

James Markum (Sean Penn) é o dono de uma loja de bebidas e há suspeitas de que pratique atividades ilegais. Está sempre acompanhado por seus dois primos e comparsas para as atividades ilegais e para ameaçar aqueles que tentam atravancar o seu caminho. Ocupa o lugar de liderança nas imediações do bairro - assim como na infância junto aos dois amigos -, é destemido e considerado um rei por sua esposa, em detrimento das outras pessoas enxergadas como fracas. O rei fraqueja momentaneamente quando descobre que sua filha de dezenove anos foi assassinada de forma violenta no parque da cidade. As cenas são explícitas ao mostrarem o corpo ensanguentado da moça e o desespero do pai ao confirmar a notícia da morte da filha. Ele vai travar uma investigação paralela à da polícia, junto com os dois primos, com vistas a encontrar o assassino a ponto de matar o homem errado. A filha morta é fruto do seu primeiro casamento. É viúvo e pai de mais duas filhas da segunda união com Annabeth Markum (Laura Linney).

Sean Devine é o investigador policial; já subiu na carreira e ocupa o posto de sargento. Kevin Bacon incorpora bem o homem de bem e boa praça, apresentado como o responsável por investigar o assassinato da filha adolescente de seu amigo de infância. É pressionado tanto para que resolva logo o enigma do crime, quanto pelo fato de que seu outro amigo de infância é um dos suspeitos. É casado e acaba de ter uma filha que misteriosamente não convive com ele, pois não há referências na trama sobre os motivos de sua esposa estar morando em outra cidade.

Dave Boyle (Tim Robins) não tem trabalho fixo, não aparecem cenas de seu trabalho, e é definido como subempregado por um dos investigadores policiais. É um personagem que apresenta um estranhamento na própria postura: é um ser angustiado, cujo olhar, quase sempre direcionado para o chão, não se fixa em seus interlocutores, e seus ombros estão sempre caídos, como que não suportando o peso da vida. Parece estar encarcerado em um estado melancólico. Os espectadores sabem que Dave sofreu abuso físico e sexual, é o perfil do homem traumatizado, porém não há informações sobre o que se passou em sua vida no hiato de vinte e cinco anos entre o abuso sexual e o crime que choca o bairro periférico da cidade. Dave é um sujeito silenciado por seu sofrimento e se aproxima da observação realizada por Rosa: um silêncio mortífero e uma apatia diante da vida são características dos sujeitos que passaram por eventos traumáticos. “Observo nessa suspensão temporária, às vezes da vida inteira, mas temporária e não estrutural, um modo de resguardo do sujeito ante a posição de resto na estrutura social. Uma proteção necessária para a sobrevivência psíquica, uma espera, uma esperança” (ROSA, 2002ROSA, M. D. Uma escuta psicanalítica das vidas secas. Revista texturas. São Paulo, ano 2, n. 2, 2002, p.42-47., p. 45).

A coincidência é a de que, na mesma noite em que a filha de James é assassinada, Dave chega em casa com as mãos ensanguentadas. Sua mulher, que o surpreende na porta de entrada, escuta como justificativa o fato de que ele precisou matar um suposto assaltante que o abordara. O inusitado é sua inocência, pois, para cada pessoa que pergunta sobre o machucado na sua mão, ele inventa uma estória mirabolante e diferente sobre o ocorrido, o que aumenta as desconfianças sobre ser uma presa fácil e frágil. Boyle vai-se configurando na trama como o principal suspeito pelo crime errado, o que é traduzido pela fala preconceituosa de um dos policiais: “Boyle se encaixa bem no perfil. Branco, uns 35 anos, subempregado, sofrera abuso sexual quando menino. Por esses fatos já deveria estar na cadeia” (EASTWOOD, 2003SNIPER SNIPER americano. Direção: Clint Eastwood. Produção: Bradley Cooper et al. EUA. Warner Bros. Título original: American Sniper. Duração: 132 min, 2015.).

A beleza desse filme está na forma como se conta a história e em como ele é montado: os três personagens têm o mesmo peso na trama e são sempre apresentados em cenas sequenciais no desenrolar da narrativa que se estrutura em dois - ou três - acontecimentos-ruptura. Carreteiro (2003CARRETEIRO, T. Acontecimento: categoria biográfica individual, familiar e histórica. In: FÉRES-CARNEIRO, T. (org.) Família e casal: arranjos e demandas contemporâneas. São Paulo: Loyola, 2003.) afirma que a experiência é feita de um conjunto de acontecimentos que podem se desenvolver numa determinada constelação temporal; já a ideia de ruptura representa o momento de mudança em uma história de vida, pois se refere a um evento que produz disjunções na trama das significações e rotinas e se apresenta como destroçamento de mundo, estando relacionado à pré-figuração da morte. Para a autora: “O acontecimento que causa impacto na existência traz em si uma potência disruptiva. Cabe ao sujeito (ou sujeitos), que o vive, na relação que ele terá com o contexto que o cerca (familiar, institucional, político, econômico etc.) criar formas de enfrentar e recriar dimensões de existência a partir do seu advento” (CARRETEIRO, 2003CARRETEIRO, T. Acontecimento: categoria biográfica individual, familiar e histórica. In: FÉRES-CARNEIRO, T. (org.) Família e casal: arranjos e demandas contemporâneas. São Paulo: Loyola, 2003., p.268).

O primeiro acontecimento-ruptura no filme é a violência sexual. Em alguns momentos na trama, os personagens têm lampejos de consciência ao reconhecerem o fato de que o que aconteceu com um deles, atingiu os outros dois. “E se fosse eu que tivesse entrado naquele carro?” (EASTWOOD, 2003SNIPER SNIPER americano. Direção: Clint Eastwood. Produção: Bradley Cooper et al. EUA. Warner Bros. Título original: American Sniper. Duração: 132 min, 2015.), são frases recorrentes no desenrolar da narrativa fílmica.

O segundo acontecimento-ruptura o assassinato violento da filha de James Markum reaviva em cada um dos personagens, como num tempo a posteriori, a violência sofrida na infância. É a segunda cena, vinte e cinco anos depois, que possibilita a rememoração do evento ocorrido no passado. A referência ao a posteriori - como a possibilidade de compreender, poder falar sobre o ocorrido e elaborar o evento traumático, somente algum tempo depois - aparece no filme de forma explícita, com ênfase nos efeitos desse inconsciente atemporal na vida de Dave. Para Roudinesco e Plon, o a posteriori é um termo introduzido por Freud “[...] para designar um processo de reorganização ou reinscrição pelo qual os acontecimentos traumáticos adquirem significação para o sujeito apenas num contexto histórico e subjetivo posterior, que lhes confere uma nova significação” (ROUDINESCO; PLON, 1998ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988., p. 32).

Em “História de uma neurose infantil (‘O Homem dos Lobos’)”, FREUD (1918-[1914)]/2010FREUD, S. História de uma neurose infantil (O Homem dos Lobos) (1918-1914). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras completas, 14)) nos alerta sobre as várias fases temporais de elaboração de um trauma e sobre os efeitos de um tempo a posteriori do evento traumático. No filme, no momento do primeiro acontecimento-ruptura, o menino Dave não tinha recursos físicos e simbólicos para reagir à violência, mas é o segundo acontecimento, a morte da filha do amigo da infância, que produz a rememoração da primeira cena: o abuso sexual sofrido por uma criança. Porém, os expectadores são surpreendidos quando, no final do filme, descobrimos que há um terceiro acontecimento-ruptura na vida de Dave, pois ficamos sabendo que quem ele matou, na verdade, foi um pedófilo que estava em atividades suspeitas com um garoto no carro à noite. Duas cenas que ocorrem vinte e cinco anos depois. O evento traumático e seus efeitos para Dave estão construídos em três fases temporais: primeiro, ele sofre o abuso sexual, depois mata um pedófilo e, por último, toma conhecimento de que, na mesma noite, uma vizinha morre em situação de violência extrema. Esses três tempos fazem com que ele recorde e, finalmente, possa falar para a esposa e o filho, utilizando as referências à figura do lobo como alegoria para se aproximar da possibilidade de dizer de adultos que abusam sexualmente de crianças.

O discurso social inerente ao filme avança quando propõe a ideia de que um trauma é vivido de modo singular, mas atinge todos que estão a sua volta. Há retrocessos também quando, no final do filme, Dave é assassinado por James, que acredita estar matando o responsável pela morte da sua filha. Equívoco explicitado só no final. Dave morre injustamente e confirma que, nessa sociedade, aqueles considerados como restos são presas fáceis para os reis e heróis que alcançaram o topo da cadeia alimentar no capitalismo selvagem. Mais do que isso, um trauma que não é elaborado coletivamente tende a se perpetuar de modo a repetir assassinatos, preconceitos e violências na sequência de uma história que se movimenta sem sair do lugar. Parece que o filme confirma a formulação freudiana de que: “[...] esses traumas são, a um só tempo, específicos de uma determinada situação e reveladores, em cada indivíduo, de uma história que lhe é peculiar” (ROUDINESCO; PLON, 1998ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988., p. 538).

O filme tem seu final com os poderes de James mais reforçados e, se ele já era apresentado como o líder dos garotos no início do filme, após o primeiro acontecimento-ruptura (que só observou e imaginou), transforma-se em um líder controlador e destemido no bairro de sua cidade. No segundo acontecimento-ruptura em sua vida, a dor e o luto pela perda da filha se transformam em ódio que se traveste numa busca irrefreada por encontrar e se vingar do assassino.

Sean se transforma no policial boa praça em busca da verdade: ele encontra o responsável pela morte da adolescente e se cala ao não prender um dos seus amigos de infância que matou, injustamente, o outro.

Dave se transforma em um morto-vivo e morre como um cachorro: agachado no chão e assumindo um crime que não cometeu. Mas resta um tempo para dizer algo para James: “Às vezes eu acho que foi você quem entrou naquele carro e não eu” (EASTWOOD, 2003SNIPER SNIPER americano. Direção: Clint Eastwood. Produção: Bradley Cooper et al. EUA. Warner Bros. Título original: American Sniper. Duração: 132 min, 2015.).

Fala importante para refletirmos sobre o fato de que a violência física atingiu um dos meninos, mas todos os três e seus descendentes foram marcados pelos acontecimentos-ruptura. Isso nos faz pensar que o trauma é coletivo pelo lastro que deixa nos laços sociais que são construídos após o evento violento. Assim, a existência de sujeitos traumatizados só é possível se considerarmos um acontecimento-ruptura que só se dá no encontro com o outro no laço social. Nesses termos, se o trauma é coletivo e se manifesta na singularidade do sujeito, há que se pensar também nas implicações dessa afirmativa: a importância da elaboração coletiva do trauma (ROSA; BERTA; ALENCAR, 2010ROSA, M. D.; BERTA, S. L.;ALENCAR, S. L. de S. () A elaboração coletiva do trauma: a clínica do traumático. Escrita e Psicanálise II. 1. ed. Curitiba: CRV, v.1, 2010, p. 1525.). Não há indícios de elaboração coletiva do trauma no filme.

Se não há a elaboração coletiva do evento violento, ou das marcas e rastros dos traumas na subjetividade, haverá sempre uma tendência à repetição do mesmo; no caso, a violência extrema, em configurações diferentes. As contradições entre o não dito e o dito nos modos de transmissão do legado cultural e familiar, a produção de raciocínio por oposições binárias, a proliferação do preconceito e da intolerância ao diferente acabam por reforçar o narcisismo das pequenas diferenças (FREUD, 1930/2010FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2010. (Obras completas, 18)) e as dificuldades em conviver com o estranhamente familiar (FREUD, 1919/2010FREUD, S. O inquietante (1919). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2010. (Obras completas, 14)).

No filme, há referências à repetição por meio de duas cenas praticamente idênticas: uma delas está no início da narrativa e é quando o garoto Dave já está sendo levado no banco traseiro do carro, com os dois adultos nos bancos da frente, e olha para trás em um pedido mudo de socorro. A segunda cena se refere ao personagem Dave, já adulto, sendo levado para um bar pelos dois capangas de James, cujo clima é de ameaça, e que culminará em sua morte. Nos dois casos, é a mesma pessoa que olha para trás totalmente desamparada e demonstra a atemporalidade do inconsciente: entre o menino e o homem existem continuidades rememoradas por cadeias de significantes. Daí a importância das palavras de Freud resgatadas por Andre: “rememore em vez de repetir! (ANDRE, 2008ANDRE, J. O acontecimento e a temporalidade: o après-coup no tratamento. Psicanálise e Cultura, São Paulo, n. 31(47), 2008, p. 139-167.)”. Ou nas palavras de Benjamin (2012BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8ª ediçãorevista. São Paulo: Brasiliense, 2012.) sobre a (im)possibilidade de compartilhar a experiência, pois é importante que cada sujeito transmita o seu legado cultural para os seus contemporâneos (ROSA; POLI, 2009ROSA, M.; POLI, M. C. Experiência e linguagem como estratégias de resistência. Psicologia e Sociedade, v. 21, 2009. Edição Especial.).

É nesse sentido que consideramos o filme “Sobre Meninos e Lobos” mais rico e complexo do que “Sniper Americano” sob a perspectiva de se estudar o trauma, pois tanto pela estória quanto pela montagem das cenas, há a confirmação de que todos estão envolvidos no acontecimento violento.

A neurose traumática de guerra no filme “Sniper Americano”

Nesse filme, a neurose de guerra está circunscrita ao relato autobiográfico de um atirador de elite estadunidense. Assim, podemos dizer do nosso herói solitário o mesmo que dizia Benjamim sobre como voltavam os soldados da primeira guerra mundial: “[...] os combatentes voltavam silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis e não mais ricos” (BENJAMIM, 2012BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8ª ediçãorevista. São Paulo: Brasiliense, 2012., p. 124).

O herói é Chris Kyle (Bradley Cooper) e o filme começa com ele, o atirador mais letal em ação, na posição de combate, deitado de barriga para baixo em um colchão velho no último andar de um prédio; tem um rifle na mão com vistas a proteger a tropa de soldados dos EUA em atividades em terras iraquianas. Na sequência das imagens, uma mãe que - vestida com vestes muçulmanas e com a cabeça coberta por um lenço preto - está sob a mira do nosso herói. Ela entrega uma granada a uma criança, também com vestes muçulmanas, que segue em direção aos soldados e a um caminhão tanque. O atirador mata a criança e logo após a suposta mãe - que acabara de retirar a granada do corpo do filho e pretendia dar continuidade ao ataque suicida. Corte para a cena em que Kyle, na infância, é treinado pelo pai para atirar e matar um animal, fato pelo qual recebe elogios por sua mira e destreza ao atingir o bicho com um único tiro. Corte para a cena da igreja, na qual a família assiste ao sermão sobre as perseguições sofridas pelo apóstolo Paulo, que acreditava e lutava por uma causa. Corte para a cena da família na qual há a transmissão cultural do pai para os dois filhos, concernente à temática dos lobos. Antes de adentrarmos a discussão sobre a alegoria aos lobos, cabe ressaltar alguns pontos.

O filme pode reforçar preconceitos ao iniciar com o som da chamada para a reza dos muçulmanos. As percepções do Oriente como o excêntrico, o tradicional e o não avançado são reforçadas explícita e implicitamente no filme. O exemplo mais cabal da explicitação desse preconceito está na fala do atirador que acompanha a triste figura do nosso herói “O cheiro da poeira daqui é igual ao cheiro de cocô de cachorro” , que, para o expectador, parece se espraiar por todos os lugares nas imagens produzidas pelo diretor.

Como dito anteriormente, o roteiro do filme é baseado na autobiografia de Kyle, um pacato cowboy que gostava de competir em rodeios, mas que atende ao chamado para a guerra quando assiste pela televisão a derrocada das duas torres gêmeas nos EUA, em 11 de setembro de 2001. Quando ainda está em treinamento como atirador de elite, conhece Taya (Sienna Miller), apaixona-se e, no dia da festa de seu casamento, é convocado para a guerra. A convivência do casal é marcada por idas e vindas do marido para a guerra e Taya percebe as transformações em seu comportamento: cada vez mais quieto, mais ensimesmado e mais arredio. Nosso herói sofre de neurose traumática de guerra, mas não fala disso para ninguém; se falasse, não seria considerado herói dentro dos estereótipos presentes na cultura ocidental. Para Rosa e Gagliato, o sujeito é nomeado assim porque tem um ideal e é capaz de morrer por uma causa. Porém, para os autores:

[...] o lugar dos ideais pode, no entanto, dirigir o sujeito ao pior [...]. Para, Zizek (2006ZIZEK, S.; GLYN, D. Arriscar o impossível: conversas com Zizek. São Paulo: Martins Fontes, 2006.) [...] o herói assume plenamente a função suja e obscena do poder [...]. Age por si, sem antecipar consequências. Revela as duas faces da “ideologia” espontânea da globalização contemporânea: de um lado, o pragmatismo utilitário e ocidental e, de outro, o fatalismo oriental. (ROSA; GAGLIATO, 2009ROSA, M.; POLI, M. C. Experiência e linguagem como estratégias de resistência. Psicologia e Sociedade, v. 21, 2009. Edição Especial., p. 10).

No caso de Kyle, seu pragmatismo utilitário é reforçado por um forte componente nacionalista e religioso, pois este precisa proteger os seus compatriotas, o que já vai sendo explicitado desde os primeiros planos-sequência do filme. A dimensão política dos elementos componentes dessa guerra reduzida a bons e maus perde-se, e perde-se o sujeito em meio à constatação do fracasso de seus ideais de justiça frente ao real da guerra mortífera.

SEGUNDO TEMA: OS LOBOS

A ALEGORIA AOS LOBOS NO FILME SNIPER AMERICANO

Em “Sniper Americano” os homens são divididos em três tipos generalizáveis, estanques e sem complexidades e contradições - o que reforça o pensamento estruturado em oposições binárias. O pai, sentado à cabeceira da mesa em horário da refeição, em tom autoritário próprio aos sermões religiosos, narra aquilo que pretende transmitir explicitamente para seus dois filhos. Segue o monólogo do pai.

Há três tipos de pessoas no mundo. Carneiros, lobos e pastores. Alguns preferem acreditar que não existe mal nesse mundo. E se o mal chegasse à sua porta, não saberiam se proteger. Esses são os carneiros. E aí, temos os predadores. Usam a violência para vitimar os fracos. São os lobos. Aí, temos aqueles que são abençoados com o dom da agressão e protegem o rebanho. Esses homens são a raça rara que vive para enfrentar o lobo. São os cães pastores. Não estamos criando carneiros nessa família. E vou bater em vocês se virarem lobos. Mas protegemos os nossos. Se alguém quiser brigar com você ou intimidar seu irmão, você tem a minha permissão para revidar. (EASTWOOD, 2015SNIPER SNIPER americano. Direção: Clint Eastwood. Produção: Bradley Cooper et al. EUA. Warner Bros. Título original: American Sniper. Duração: 132 min, 2015.).

Durante todo o filme, nosso herói parece ter se identificado com o que foi dito explicitamente e que é transmitido pelo pai. Incorpora em suas ações a obrigação e a missão de proteger seu irmão mais novo e, por tabela, todos os cordeiros e desprotegidos que estiverem à sua volta. Incorpora a figura dos cães pastores e faz isso todo o tempo, a ponto de correr o risco de perder sua família, pois sua mulher, nos breves momentos em que está ao seu lado, choraminga e ameaça deixá-lo todas as vezes que tem que voltar para a guerra. Porém, é após o retorno definitivo do marido da guerra que há uma cena que parece exacerbar a sensibilidade de Taya: ela surpreende o marido em frente à tela da televisão desligada, quieto e quase hipnotizado pelas imagens que só existiam em sua cabeça, ao telespectador ficando o som dos tiroteios nas trincheiras e das bombas de uma guerra sem fim. Nosso herói está fisicamente longe dos campos de batalha, já é um veterano de guerra, mas é todo o seu funcionamento psíquico que ainda está nas trincheiras.

Segundo Freud, a neurose traumática de guerra se trata de um conflito egoico: “O conflito é entre o velho ego pacífico e o seu novo ego bélico, e torna-se agudo tão logo o ego pacífico compreende o perigo que corre de perder a vida devido à temeridade do seu recém-formado e parasítico duplo” (FREUD, 1919/1974FREUD, S. Introdução a psicanálise e as neuroses de guerra (1919). Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago (1974). (Obras completas, 17), p. 261). E é essa imagem que leva a prestimosa esposa a convencer o marido a procurar um psiquiatra em um hospital de veteranos de guerra. O médico, ao interpelar Kyle sobre as 160 mortes de soldados e civis das quais é autor, recebe como resposta a afirmação de que ele precisava proteger o seu país do inimigo. Esta fala está ceifada de um misto de fundamentalismo religioso e nacionalismo exacerbado. A estratégia do psiquiatra é convidá-lo a participar das atividades que coordena junto aos outros veteranos de guerra. O curioso aqui é que a vida imita a arte, pois a repetição dos crimes se perpetua: Kyle não morre no fronte, mas, sim, em decorrência do tiro intencional de um veterano de guerra.

Nesse filme, o raciocínio por oposição binária está presente: os bons estão no seu país e são os estadunidenses, os homens ruins e que personificam o mal estão no Iraque. O início de tudo é confundido e generalizado na figura do ataque sofrido na colisão premeditada dos aviões às torres gêmeas; nenhuma referência é feita sobre o histórico das guerras anteriores que teria culminado no ataque e as outras violências que o sucederam. A vida de um atirador de elite vale mais do que a vida de um soldado raso, e frases ditas reiteradamente no filme reforçam a estrutura de uma sociedade hierarquizada que valoriza os fortes e transforma em desejo e resto a vida dos homens considerados fracos e frágeis em determinados contextos. Nosso herói, o cão pastor, protege os cidadãos estadunidenses - os cordeiros - dos iraquianos que, por tabela, junto a todos os muçulmanos, são generalizados como os lobos. O raciocínio é direto e confirma como ainda os homens não conseguiram construir um discurso social que supere as dicotomias e o pensamento por oposição binária. Freud (1930/2010FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2010. (Obras completas, 18)) tocou nessa dimensão das dificuldades de conviver com o diferente em seu conceito de narcisismo das pequenas diferenças. Para Fuks, esse conceito está relacionado à: “[...] dimensão agressiva do sujeito frente a uma pequena diferença, que provoca angústia. Diferença ex-tima: o horror ao que é mais íntimo e que, tomado pelo eu como um objeto externo, constitui-se em objeto do ódio na segregação e no extermínio” (FUKS, 2007, p. 66).

A ALEGORIA AOS LOBOS NO FILME “SOBRE MENINOS E LOBOS”

O roteiro do filme “Sobre Meninos e Lobos” destoa desse raciocínio binário na construção do personagem Dave, que emite em sua fala toda a complexidade de um sujeito frente ao acontecimento violento: a confusão entre as imagens dos estupradores e da experiência do menino, a sensação de ser um morto-vivo e de ter perdido toda a sua humanidade em decorrência da violência sofrida. Mas, apesar do conteúdo sem sentido, fora da lógica cotidiana, o personagem Dave tenta transmitir seu legado para o filho e esforça-se por construir algum espaço de compartilhamento da experiência com sua esposa. E é nesse contexto que a referência à figura do lobo aparece em duas sequências do filme.

Na primeira cena, Celeste chega tarde em casa, justifica-se dizendo que estava ajudando a família de James que está em luto e que precisou sair para espairecer. O marido, Dave Boyle, lê a demora da mulher como uma suspeita não dita e tergiversa dizendo que estava assistindo um filme de vampiros na televisão e dando início a uma fala desconexa.

Os vampiros. São mortos-vivos, mas talvez haja alguma coisa de bonito nisso. Talvez um dia você acorde e nem se lembre mais de como é ser gente. E aí, tudo bem. De vampiros. De lobisomens. “Henry e George”. Nunca contei para ninguém. Era o nome deles. Eram os lobos, e Dave era o menino que fugiu dos lobos. Levaram-me para um passeio de quatro dias. Enfiaram-me em um velho porão sujo, apenas com um saco de dormir. E eles se esbaldaram. E ninguém apareceu para ajudar Dave. Dave teve que fingir que aquilo era com outra pessoa. Não sei quem saiu daquele porão, mas certamente não foi Dave. Dave está morto! (EASTWOOD, 2003FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2010. (Obras completas, 18)).

A esposa diz “Mas isso foi há tanto tempo” e se mostra assustada ao vê-lo chorar e dar gargalhadas ao mesmo tempo, o que vai potencializar sua quase certeza de que o marido é o autor do crime violento da jovem vizinha.

A segunda sequência que faz referência aos lobos diz respeito à transmissão possível de pai para filho (ROSA, 2001). Trata-se de uma conversa de Dave com o filho ao pé da cama, aparentemente uma cena rotineira de conversa e contação de histórias para que a criança adormeça. Mas o conteúdo é nonsense e parece que a criança é a única que escuta o que o pai consegue transmitir e compartilhar da cena traumática.

Porque às vezes o homem não era absolutamente um homem. Ele era o menino. O menino que havia escapado dos lobos. Um animal das trevas. Invisível. Silencioso. Vivendo num mundo que os outros nunca viam. Um mundo de vagalumes que só podiam ser vistos por breves instantes, pelo canto dos olhos... e desaparecia quando se virava a cabeça em sua direção... Só tenho que botar a cabeça no lugar e o menino vai voltar para a sua floresta, para os seus vaga-lumes. (EASTWOOD, 2003FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2010. (Obras completas, 18)).

Agamben (2008AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008.) e Levi (1988LEVI, P. É isso um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.) falam dos muçulmanos, nome dado às pessoas que povoavam os campos de concentração e que atingiam os limites de sobrevivência. O personagem Dave retoma essa alegoria. Também é um morto-vivo e é, ao mesmo tempo, um lobisomem e uma criança abusada sexualmente que morre momentaneamente sem ter palavras e recursos simbólicos para compartilhar o excesso de sua dor. Aqui, poderíamos afirmar que Dave se aproxima da fala como acontecimento, pois: “Esta é a fala que acontece ao falante e o coloca à escuta, a que nomeia o enigma e o coloca à justa distância, a distância justa para ser algo”. Pois, ainda segundo Figueiredo:

A palavra reinante acontece ao falante, abrindo para ele como para o ouvinte o horizonte da visibilidade em que os fenômenos se mostram como sendo isto ou aquilo. Mas ao mesmo tempo soa como estranha; é dessa palavra indisponível e por isso liberta das tarefas de representação, comunicação e expressão que se pode fazer uma experiência. A rigor, diante desta palavra outra só o lugar do ouvinte está desocupado, pois o do falante é ocupado pela fala ela mesma. (FIGUEIREDO, 1993FIGUEIREDO, L. C. Fala e acontecimento em análise. Revista Percurso, n. 11. São Paulo, 1993., p. 49).

Mas já sabemos que resta pouco tempo de vida para Dave depois de ter exercitado a palavra acontecimento, porém cabe aqui uma esperança: a de que o filho o tenha escutado no limiar, aquele espaço entre o sono e a vigília, e possa resistir à violência e à compulsão à repetição que é inerente aos processos traumáticos que não puderem ser compartilhados. Desesperançada é Celeste que não conseguiu escutar e produziu o elo que faltava para incriminar e levar o próprio marido à morte.

O TERCEIRO TEMA: COMO AS MULHERES SÃO APRESENTADAS NA TRAMA

O LUGAR RESERVADO ÀS MULHERES NO FILME “SOBRE MENINOS E LOBOS”

Annabeth Markum é a segunda esposa de James. É segura de si e é a dona de casa exemplar que cuida com esmero das duas filhas. Não há referências à sua profissão, e é ela quem emite a sentença final do filme: o mundo é dividido entre fracos e heróis. Diz que Jimmy é um rei para suas filhas, protetor da família, e não pode se deixar contaminar pelas pessoas fracas que rodeiam o casal, entre elas, Celeste e Dave. E, num lampejo de consciência crítica e de reflexão, na qual James compartilha com sua mulher a informação de ter matado o homem errado, é sua prestimosa esposa que o dissuade de falar sobre sua responsabilidade pelo assassinato. Essa figura feminina é uma forte representante de um pensamento por oposição binária, pois compara seu homem a um rei que protege suas filhas, pelo menos as duas que restaram, e o plano-sequência é encerrado com a frase fatal: “O pai delas é um rei. Todo mundo é fraco, menos nós”. No final do filme, o núcleo familiar está ironicamente protegido, a despeito de tanta violência que assola o mundo.

A filha de Sean Devine acaba de nascer, mas está longe dele porque sua esposa saiu de casa quando ainda estava grávida. Não há maiores informações sobre porque e como sua esposa abandonou o lar, mas ela liga para ele uma vez por dia apenas para compartilhar um silêncio mortífero. O rosto da atriz não aparece na tela, apenas lábios trêmulos que se aproximam do fone. Aos espectadores resta o estranhamento diante das ligações silenciosas e do monólogo de Sean buscando qualquer som. Ou seja, uma mulher sem rosto e sem voz.

Já Celeste Boyle está assustada com o comportamento do próprio marido, e tem medo de encarar o fato de que ele tenha assassinado a jovem do bairro. A esposa aparenta insegurança e passividade diante da vida, tem uma fala trêmula e amedrontada e, em determinado momento da trama, ao invés de tentar compreender o que o marido diz, suportar o sofrimento indizível do mesmo, não só suspeita dele como irá delatá-lo para o perigoso e traiçoeiro James. A personagem Celeste escolhe como interlocutor o homem forte do bairro que pode ouvi-la e até ameaçar a vida do seu companheiro. Não quer oferecer sua escuta para aquilo que não compreende ou para aquilo que não tem recurso simbólico, momentâneo, para sua expressão. O insuportável na fala de Dave é o que insiste da nossa finitude, fraqueza e incapacidade de lidar com aquilo que é estranhamente familiar: a fragmentação do Eu diante das intempestividades da vida. Há aqui a oposição entre os homens fracos e fortes, desejos e reis, aqueles que merecem morrer e aqueles que conquistam a eternidade.

O LUGAR DA MULHER NO FILME “SNIPER AMERICANO”

O pensamento por oposição binária também é reforçado pelo discurso social que dá sustentação ao filme “Sniper Americano”, que se reflete na família pequeno-burguesa cuja mulher choraminga à espera do marido e cuida da casa e das crianças. Aqui, também não há referências à possível profissão de Taya: é uma mulher dentro dos padrões estéticos de beleza e isso basta. O homem é o provedor que vai para a guerra; parece não haver espaços nem no âmbito privado para suas fraquezas e isso também parece bastar. O espectador é convidado a perceber esse sofrimento por meio dos sobressaltos a que o personagem é acometido ao ser surpreendido por sons inusitados do cotidiano; mas, aparentemente, nosso herói solitário permanece impassível. Solitário, pois sua jovem esposa não parece ter escuta para as atrocidades da guerra. Ele é o pai de um casal de crianças que tenta responder às necessidades familiares quando está em seu país, e enfrenta os homens-lobos, os lobisomens, no Iraque. Aqui, mais uma vez, podemos retomar o sonho que se torna realidade de Primo Levi (2004LEVI, P. Os afogados e os sobreviventes. São Paulo: Paz e Terra, 2004.; 2010LEVI, P. A trégua. São Paulo: Companhia das Letras , 2010.) e de muitos dos que viveram as atrocidades de um campo de concentração: quando conseguiam falar sobre o que viveram às pessoas em geral e aos seus familiares, eles simplesmente viravam as costas e iam cuidar dos seus afazeres cotidianos.

O que seria oferecer uma escuta que dá sustentação ao sofrimento e finitude do outro? Como poderíamos problematizar o discurso por oposição binária, que coloca as emoções e a passividade como atributos das mulheres e a razão e a atividade como atributos dos homens?

À GUISA DE CONCLUSÃO

CRÍTICA AO DISCURSO SOCIAL DAS PRODUÇÕES CINEMATOGRÁFICAS COMO CONTRIBUIÇÃO DAS INTERVENÇÕES PSICANALÍTICAS CLÍNICO-POLÍTICAS

Consideramos aqui o cinema como um discurso social, e o cineasta Clint Eastwood não só como renomado artista, mas como um diretor que escolhe estórias e roteiros que podem contribuir para um tipo de transmissão da cultura. Levantamos a hipótese de que nos dois filmes aqui em foco, dirigidos pelo mesmo diretor, há duas noções de trauma. Na película “Sobre Meninos e Lobos”, o trauma é coletivo e se manifesta na singularidade do sofrimento de quem sofreu determinada violência. Trata-se de ressaltar o que há de psicanalítico no tratamento desse roteiro; há historicização dos laços sociais que compõem o acontecimento violento, e que deixa uma brecha para que o espectador possa refletir sobre a importância da elaboração coletiva do trauma (ROSA; BERTA; ALENCAR, 2010ROSA, M. D.; BERTA, S. L.;ALENCAR, S. L. de S. () A elaboração coletiva do trauma: a clínica do traumático. Escrita e Psicanálise II. 1. ed. Curitiba: CRV, v.1, 2010, p. 1525.).

Já a noção de trauma presente no filme “Sniper Americano” é estereotipada: reforça o senso comum, retirando a responsabilidade de todos que compõem uma cultura que incita o ódio ao alimentar os nacionalismos e os discursos maniqueístas que dividem os supostos homens fracos dos fortes, que estão em franco enfrentamento nas guerras urbanas e internacionais. Colocar em xeque a elaboração coletiva do trauma e não individualizar o sofrimento é um modo de conter discursos que explícita e implicitamente perpetuam a transmissão das moções de morte. Assim, a comparação entre os dois filmes nos ajuda a desconstruir algumas narrativas da cultura contemporânea sobre o trauma que não só contribuem para encarcerar o sujeito em sua solidão e seu desamparo, mas também reforçam ideologias calcadas em estereótipos e preconceitos que operam de modo a obstar a mobilidade e a transformação do acontecimento traumático em propulsão para a vida.

Portanto, despender nosso tempo e energia para descontruir alguns elementos discursivos dos ditos cinemas comerciais que pertencem à cinematografia contemporânea é também contribuir com intervenções psicanalíticas clínico-políticas, pois diz respeito às possibilidades e necessidades do nosso tempo (AGAMBEN, 2009AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.) que se sustentam em determinados discursos sociais estruturados em oposições binárias. É possível afirmar que esse tipo de discurso está articulado a uma lógica pautada pela alienação do Eu em relação ao desejo, que se sustenta no modelo de exclusão da singularidade e é incitado pela moral social generalista, a-histórica e dessubjetivada. Baseado na antinomia entre o Eu e o outro, não historiciza o acontecimento e o sujeito não se implica, seja com seus atos seja com os do outro. Esses discursos precisam ser desconstruídos, em vez de reforçados, para que se abram frestas no campo simbólico contemporâneo. Rosa escreve sobre as especificidades das intervenções psicanalíticas clínico-políticas:

As especificidades dessa prática nos remetem a articulações em dois âmbitos: junto ao sujeito e junto às instituições e discursos sociais. O enredamento nos processos de constituição e de destituição do sujeito ao discurso ideológico pode ser elucidado tanto diretamente na abordagem clínica estrito senso, que encontra seus limites nestes contextos, como pela intervenção no plano discursivo e pela via da historização dos laços sociais em dados grupos sociais. As intervenções nesses casos visam criar condições de alterações do campo simbólico - subjetivo, social e político. (ROSA, 2012ROSA, M. D. Psicanálise implicada: vicissitudes das práticas clínico políticas. Psicanálise: Invenção e Intervenção. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa). n. 41-42, 2012., p. 31).

Portanto, oferecemos um método de trabalho neste texto - ora escrito para ser compartilhado com possíveis leitores - que é o de tomar o cinema, mais especificamente dois filmes contemporâneos, como discurso social que transmite explícita e implicitamente valores e ideologias próprias do momento histórico e do contexto cultural nos quais foram produzidos, e, assim, perpetua algo que extrapola o presente, é agarrado por forças do passado e arrastado para o futuro. Como num tempo a posteriori, podemos dizer que só é possível refletir sobre o que foi feito neste artigo com o passar do tempo e na criação de um modo de produzir um caminho que dialogue com as intervenções psicanalíticas clínico-políticas. Pois, segundo Figueiredo:

[...] o acontecimento divide o mundo entre antes e depois, velho mundo e novo mundo. [...]. Trata-se do trânsito da irrupção de um inominável ao a posteriori do sentido. [..] O trânsito deixa a presença em suspenso [...] é o acontecimento como “trânsito que deixa em suspenso”, que angustia. (FIGUEIREDO, 1993FIGUEIREDO, L. C. Fala e acontecimento em análise. Revista Percurso, n. 11. São Paulo, 1993., p. 47).

Para Zizek (2014ZIZEK, S. Acontecimiento. Barcelona: Sexto Piso, 2014.), um acontecimento pode estar relacionado com uma intensa experiência com uma obra de arte. No nosso caso, o filme de 2003 de Clint Eastwood causou-nos uma experiência estética quando o assistimos à época de sua divulgação no Brasil. Passados doze anos, somos convidadas a revê-lo a partir de uma palestra de Márcio Gagliato1 1 Políticas de Saúde mental e suporte psicossocial: experiência em Gaza. Palestra apresentada no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, março de 2015. , que apresentava os trabalhos psicossociais que o psicólogo desenvolve em zonas de conflito e de guerra. Na ocasião, e sob o impacto de sua palestra, o que ficou foi o fato de que precisamos urgentemente superar os binarismos e nos esforçarmos para a convivência e o diálogo entre os diferentes. Junto a isso, ele estava muito preocupado com os efeitos perversos de um filme como “Sniper Americano”, que poderia fomentar a exaltação aos heróis assassinos de guerra. Ao assistir ao filme, confirmamos os temores de Gagliato e, mais ainda, chamou-nos a atenção a referência aos lobos nos dois filmes. Assim, em um tempo a posteriori, podemos dizer que assistir a palestra e as duas produções cinematográficas foi um acontecimento que produziu em nós uma ruptura e um desassossego que precisavam ser elaborados através da arte da escrita. Mais do que isso, produziu em nós a necessidade de quebrar o silêncio e, assim, discutir as condições materiais e culturais que perpetuam a violência.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Políticas de Saúde mental e suporte psicossocial: experiência em Gaza. Palestra apresentada no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, março de 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2017
  • Aceito
    05 Jan 2018
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