Resumos
Introdução: O estudo descreve uma amostra de usuários de droga injetável (UDI) que buscam atendimento na cidade de Porto Alegre, a fim de conhecer melhor os métodos de exposição ao vírus HIV, gerando hipóteses para estudos futuros e diretrizes para programas preventivos. Métodos: Foram entrevistados 142 UDI, utilizando uma entrevista estruturada para levantamento de fatores de risco. Foram analisadas características demográficas e das relações sexuais, utilizando-se como desfechos de interesse o status sorológico e as características do uso de drogas, tais como freqüência e tipo de droga utilizada. Resultados: 97% dos indivíduos havia injetado cocaína (8,6 dias do mês, 9,3 vezes por dia) e usado álcool e maconha no mês prévio à entrevista; apenas 44 apresentavam testes HIV (54,5% soropositivos). Quase 90% haviam recebido aconselhamento para HIV, porém a mudança de condutas aconteceu somente numa parcela dos casos, sem informação adequada sobre limpeza de seringas; 53% dos indivíduos relataram compartilhamento de equipamento prévio à coleta de dados, utilizando 16,2 vezes a mesma seringa. Os entrevistados eram sexualmente ativos e predominantemente heterossexuais, com uma média de sete relações por mês; 44% não usou camisinha nas relações sexuais e 48% afirmou ter utilizado pelo menos álcool antes ou durante as relações. Conclusões: Os achados sugerem que o aconselhamento é importante para modificar hábitos dos UDI mas não contempla necessidades de usuários recreacionais. A limpeza de seringas é infreqüente, talvez produto da pouca informação sobre práticas de risco. Os UDI são sexualmente ativos, heterossexuais e na maioria têm poucos parceiros, o que pode justificar o baixo uso de preservativos nessa amostra. É possível que o uso freqüente de drogas antes ou durante as relações contribua para tal fato.
Aids; HIV; Abuso de drogas
Introduction: This paper presents data on a sample of inner city injection drug users (IDUs) who sought drug abuse treatment in the city of Porto Alegre, aiming at learning the routes of HIV transmission, generating hypotheses for future studies, and developing guidelines for prevention/intervention programs targeting this population. Methods: Using a structured questionnaire, 142 IDUs were interviewed about their drug use and sexual risk behaviors. Whenever possible, participants were also given referrals for HIV serologic testing. Data on demographic characteristics, sexual behaviors, drug use patterns and HIV serostatus were analyzed, focusing the drug use frequency and drug type and HIV infection rate. Results: Of all participants, 97% reported injecting cocaine (8.6 days per month, 9.3 times per day) and alcohol and marijuana use in the month prior to interview. Of the 44 participants who were tested for HIV, 54.5% were seropositive. Almost 90% of the sample reported having previously received Aids prevention information or risk reduction materials, but behavior changes occurred in only a small proportion of them. In addition, few had received adequate information on proper needle/syringe cleaning. 53% reported having shared injection material, and on average used the same material 16.2 times before discarding it. The sample participants were sexually active, predominantly heterosexual, having sex on average 7 times per month. 44% reported no use of condoms during intercourse, and 48% reported consuming at least alcohol immediately before or during sex. Conclusions: HIV risk behaviors are frequent in the population of inner city injection users, and HIV infection rate is extremely high. Needle cleaning is not a common, maybe because they lack access to information about risky practices. In addition, condom use is rare because they have few partners and frequently use drugs before or during sex, which may interfere with risk reduction. HIV prevention counseling is urgently needed to reduce the risky behaviors of IDUs in Porto Alegre, but it must be tailored to take into account the different needs of both occasional and chronic drug injection users.
Aids; HIV; Drug abuse
Estudo sobre as características de usuários de drogas injetáveis que buscam atendimento em Porto Alegre, RS
A study on the characteristics of intravenous drug users who seek treatment in the city of Porto Alegre, Brazil
Flavio Pechansky, James A Inciardi, Hilary Surratt, Ana Flávia BS Lima, Félix P Kessler, Mauro Soibelman e Vânia Hirakata
Departamento de Psiquiatria da FAMED/UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil. Center for Drug and Alcohol Studies da University of Delaware, Delaware, EUA
Resumo
Introdução: O estudo descreve uma amostra de usuários de droga injetável (UDI) que buscam atendimento na cidade de Porto Alegre, a fim de conhecer melhor os métodos de exposição ao vírus HIV, gerando hipóteses para estudos futuros e diretrizes para programas preventivos.
Métodos: Foram entrevistados 142 UDI, utilizando uma entrevista estruturada para levantamento de fatores de risco. Foram analisadas características demográficas e das relações sexuais, utilizando-se como desfechos de interesse o status sorológico e as características do uso de drogas, tais como freqüência e tipo de droga utilizada.
Resultados: 97% dos indivíduos havia injetado cocaína (8,6 dias do mês, 9,3 vezes por dia) e usado álcool e maconha no mês prévio à entrevista; apenas 44 apresentavam testes HIV (54,5% soropositivos). Quase 90% haviam recebido aconselhamento para HIV, porém a mudança de condutas aconteceu somente numa parcela dos casos, sem informação adequada sobre limpeza de seringas; 53% dos indivíduos relataram compartilhamento de equipamento prévio à coleta de dados, utilizando 16,2 vezes a mesma seringa. Os entrevistados eram sexualmente ativos e predominantemente heterossexuais, com uma média de sete relações por mês; 44% não usou camisinha nas relações sexuais e 48% afirmou ter utilizado pelo menos álcool antes ou durante as relações.
Conclusões: Os achados sugerem que o aconselhamento é importante para modificar hábitos dos UDI mas não contempla necessidades de usuários recreacionais. A limpeza de seringas é infreqüente, talvez produto da pouca informação sobre práticas de risco. Os UDI são sexualmente ativos, heterossexuais e na maioria têm poucos parceiros, o que pode justificar o baixo uso de preservativos nessa amostra. É possível que o uso freqüente de drogas antes ou durante as relações contribua para tal fato.
Descritores
Aids. HIV. Abuso de drogas.
Abstract
Introduction: This paper presents data on a sample of inner city injection drug users (IDUs) who sought drug abuse treatment in the city of Porto Alegre, aiming at learning the routes of HIV transmission, generating hypotheses for future studies, and developing guidelines for prevention/intervention programs targeting this population.
Methods: Using a structured questionnaire, 142 IDUs were interviewed about their drug use and sexual risk behaviors. Whenever possible, participants were also given referrals for HIV serologic testing. Data on demographic characteristics, sexual behaviors, drug use patterns and HIV serostatus were analyzed, focusing the drug use frequency and drug type and HIV infection rate.
Results: Of all participants, 97% reported injecting cocaine (8.6 days per month, 9.3 times per day) and alcohol and marijuana use in the month prior to interview. Of the 44 participants who were tested for HIV, 54.5% were seropositive. Almost 90% of the sample reported having previously received Aids prevention information or risk reduction materials, but behavior changes occurred in only a small proportion of them. In addition, few had received adequate information on proper needle/syringe cleaning. 53% reported having shared injection material, and on average used the same material 16.2 times before discarding it. The sample participants were sexually active, predominantly heterosexual, having sex on average 7 times per month. 44% reported no use of condoms during intercourse, and 48% reported consuming at least alcohol immediately before or during sex.
Conclusions: HIV risk behaviors are frequent in the population of inner city injection users, and HIV infection rate is extremely high. Needle cleaning is not a common, maybe because they lack access to information about risky practices. In addition, condom use is rare because they have few partners and frequently use drugs before or during sex, which may interfere with risk reduction. HIV prevention counseling is urgently needed to reduce the risky behaviors of IDUs in Porto Alegre, but it must be tailored to take into account the different needs of both occasional and chronic drug injection users.
Keywords
Aids. HIV. Drug abuse.
Introdução
A epidemia da Aids e a transmissão do HIV são atualmente as questões de saúde pública que mais provocam impacto no nível do indivíduo, seja no seu aspecto físico, emocional ou social. A epidemia revela a necessidade de mudanças de comportamento nas relações entre os sujeitos, que repercutem em circunstâncias sociais de grupo, assim como em modificações na percepção de temas que até então eram considerados tabus. Nesse sentido, a continuidade do avanço da Aids na população se dá também porque, mesmo que campanhas e atitudes preventivas de massa sejam desenvolvidas com o máximo de esforço e preparação técnica, esta é mais uma das epidemias cuja responsabilidade principal está na mudança de uma prática individual, implicando em aprendizado por reforço e sucessivas adaptações, sendo intensamente delineada pelos aspectos socioculturais ¾ crenças, juízo de valores e hierarquia social. Portanto, além de movimentar atitudes de massa em direção à prevenção da infecção pelo HIV, é importante salientar que toda uma linha de ação preventiva se plasma no nível das eventuais barreiras existentes no sujeito para modificar comportamentos em direção à sua saúde e à saúde de sua comunidade, as quais podem eventualmente ser modificadas através de processos sociais dirigidos adequadamente, conforme sugerem Des Jarlais et al,1,2 dentre outros.3,4
Dentro desse contexto encontra-se um grupo particularmente exposto à Aids: os usuários de drogas injetáveis (UDI). Há uma preocupação crescente com este grupo em relação à infecção pelo HIV, uma vez que estes indivíduos ¾ particularmente usuários dependentes com grande intensidade de uso ¾ freqüentemente se apresentam expostos a várias situações de risco, habitualmente de forma simultânea.5-10 Um exemplo desta condição é a grande intensidade dos sintomas de abstinência dessas substâncias, tornando o UDI um elemento barato e disponível para favores sexuais em troca da manutenção de seu uso de drogas, o que faz dessas circunstâncias focos de grande intensidade para a disseminação da infecção, por associarem sexo sem proteção ao uso compartilhado de drogas. É razoavelmente comum nessa população o uso de seringas potencialmente contaminadas, e é rara a limpeza das seringas e das agulhas utilizadas para injeção, levando não somente à infecção pelo HIV como também a infecções de vários tipos.11-14 Alguns dados da literatura fornecidos por grupos de pesquisa especificamente voltados para essa questão auxiliam a compreensão da magnitude desse problema, como por exemplo os achados do WHO Collaborative Study Group que, ao analisar dados de 13 centros colaboradores da OMS (dois no Brasil), num total de 6.390 UDI, encontrou que aproximadamente 25% dos usuários relatavam injeção/compartilhamento de seringas ou outro equipamento de injeção de forma diária ou semanal. A taxa geral de soroprevalência encontrada em todos os estudos foi de 22%, sendo que dos 85 UDI entrevistados em Santos, SP, a taxa geral de prevalência foi de 60%. No que compete ao tipo específico de droga envolvido com a transmissão do HIV, apesar de relatos etnográficos mencionarem o crack como a droga emergente em determinadas camadas populacionais ¾ particularmente nas comunidades pobres e moradores de rua em São Paulo,15,16 o uso de drogas endovenosas ainda é claramente o que mais se associa à transmissão do HIV. Um estudo realizado por Dunn et al revelou um alto índice de comportamentos de risco para a transmissão do HIV entre usuários de cocaína injetável: 68% já havia pedido uma seringa usada emprestada; 64% já tinha emprestado a sua seringa para alguém; 78% compartilhou colheres e 88% compartilhou a água.17,18
Segundo Kalichman,19 até o início da década de 90 o uso de drogas injetáveis era pouco estudado; conforme Lima et al20 relatavam na época, a taxa de soroprevalência em 123 indivíduos usuários de cocaína injetável era de 34%, identificando três circunstâncias de risco associadas a uma alta taxa de soropositividade: mais do que cinco anos de injeção de drogas; ter mantido contato homossexual masculino nos últimos cinco anos e não ter tomado condutas deliberadamente protetoras sobre Aids.
Telles et al,21 ao analisarem um pool de 727 casos de três estudos transversais combinados, encontraram uma taxa geral de soropositividade entre UDI na faixa de 25%. Segundo os autores, apesar de haver uma diminuição da taxa de exposição a risco no que tange ao uso compartilhado de droga injetável, não houve tendência à diminuição no que compete a sexo mais seguro por parte dos indivíduos estudados, indicando ser o comportamento sexual mais difícil de ser modificado do que os comportamentos relativos ao uso de drogas injetáveis, estando claramente um dependente do outro.
Há dados que sugerem que a maioria dos UDI não usa camisinha durante as relações sexuais, com taxas entre 48% e 53%.6,7 Nos EUA, o uso de drogas injetáveis tem sido associado a aproximadamente um terço dos casos cumulativos de Aids.8 Além disso, mais da metade dos casos de transmissão heterosexual naquele país envolve um usuário de droga injetável,6-8 assim como mais da metade dos casos de transmissão perinatal tem ocorrido em mulheres usuárias de drogas injetáveis ou que possuem parceiros UDI.8,9 Em relação ao surgimento de novos casos, nos EUA, acredita-se que pelo menos metade deles ocorram entre usuários de drogas injetáveis.
No Brasil, atingiu-se em 1997 um patamar de aproximadamente 3.000 casos novos de Aids causados exclusivamente pelo uso de drogas injetáveis, com um total acumulado de aproximadamente 23.000 casos notificados quando este estudo foi desenvolvido.22 Um pouco mais da metade dos casos (55%) de UDI eram de adultos jovens menores de 30 anos, e quase 80% dos casos tinham até 34 anos de idade, o que corrobora os dados do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/Aids,23 que demonstram um alastramento da epidemia nas camadas mais jovens da população adulta, sob todas as formas de contágio.
Apesar dos achados descritos na literatura, ainda dispomos de pouquíssima informação que seja suficiente para conhecer os comportamentos característicos deste grupo específico e que vão além da expressão de uma alta taxa de soropositividade. O presente estudo tem como objetivo descrever uma amostra de usuários de drogas injetáveis que buscam tratamento ou a realização do teste anti-HIV em centros de referência em Porto Alegre, no intuito de proporcionar um melhor entendimento de como essas pessoas se expõem ao HIV em nosso meio, possibilitando a criação de programas preventivos mais específicos e efetivos para essa população.
Métodos
Realizou-se um estudo transversal, em que foram entrevistados indivíduos com idade acima de 12 e abaixo de 70 anos, de ambos os gêneros, oriundos de quatro centros de referência para atendimento de problemas relacionados ao uso de drogas ou para a realização do teste anti-HIV: o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), o Ambulatório da Cruz Vermelha Internacional e os Centros de Orientação e Apoio Sorológico (COAS) estadual e municipal. Utilizou-se um processo de amostragem por conveniência. Todos os indivíduos que buscaram atendimento no HCPA durante o período de coleta foram selecionados. Na Cruz Vermelha e COAS foram definidos alguns dias de acordo com a disponibilidade dos coletadores e, nesses dias, todos os sujeitos eram convidados a participar do estudo. A coleta de dados foi efetuada no período de setembro de 1995 a abril de 1997. Tal procedimento gerou uma amostra de 695 usuários de drogas, que responderam a um questionário denominado CRA ¾ Comportamento de Risco para Aids, já previamente adaptado para o português.24,25 O CRA foi distribuído para todos os clientes que referiram algum uso de drogas durante um primeiro contato. Por ser um instrumento auto-aplicável, aqueles que tinham dificuldade de entender as perguntas eram auxiliados pelo entrevistador. Uma resposta positiva à pergunta sobre uso de drogas injetáveis nos seis meses prévios à consulta elegia os candidatos para participarem do presente estudo. Após o processo de consentimento informado, os participantes respondiam ao questionário RBA ¾ Risk Behaviour Assessment, desenvolvido pelo National Institute on Drug Abuse, dos EUA, e adaptado para uso no Brasil por Inciardi.21 Esse instrumento é composto de 80 perguntas, sendo aplicado por um profissional treinado, em entrevistas cuja duração média é de 60 minutos. O RBA avalia detalhadamente comportamentos de risco para infecção pelo HIV em usuários de drogas injetáveis, sendo composto por seções que investigam características demográficas, o uso de drogas nos últimos 30 dias e nas 48 horas anteriores à entrevista, atividade sexual, sexo em troca de dinheiro e/ou drogas, estado de saúde do paciente, trabalho e rendimentos. Sempre que possível, os indivíduos eram encaminhados ao HCPA para coleta de sangue para sorologia para Aids. Além disso, foram feitos todos os esforços para obter o resultado da sorologia dos entrevistados quando não era possível coletar seu sangue, encaminhando-os a um local de coleta (HCPA). Muitos casos não compareceram ao HCPA para coleta de sangue, ocasionando perdas substanciais quanto a essa variável. Em alguns casos, o entrevistado dizia-se sabedor de seu status HIV. Entretanto, somente foram considerados válidos os testes HIV realizados pelo grupo de pesquisa ou obtidos através de fontes confiáveis e que pudessem ser potencialmente conferidas.
Os critérios de exclusão eram: incapacidade de compreensão das questões na coleta de dados, não ter utilizado droga injetável nos últimos seis meses, não ser voluntário ao estudo e apresentar algum transtorno psiquiátrico que impedisse a aplicação dos questionários. São apresentadas estatísticas descritivas de algumas variáveis demográficas, utilizando-se vários desfechos de interesse, tais como o status sorológico e características do uso de drogas dos entrevistados, como freqüência de uso e tipo de droga utilizada. Quando indicado, diferenças entre proporções ou entre médias foram analisadas através dos testes qui-quadrado ou t de Student, respectivamente. Os dados foram submetidos a análise estatística utilizando o programa EPI-Info, e o nível de significância utilizado foi de 5%. Todos os entrevistados foram submetidos ao processo de consentimento informado para o início da entrevista, tendo assinado e mantido uma cópia do consentimento consigo. O projeto de pesquisa teve aprovação da comissão de ética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, onde se situa o centro de pesquisa.
Resultados
Características demográficas
Do total de 695 indivíduos avaliados, 142 (20,4%) eram usuários de drogas injetáveis, sendo que a partir de agora essa será a amostra analisada. A maioria dos casos era proveniente da Cruz Vermelha (49%) e do HCPA (30%); os COAS contribuíram com 21% dos indivíduos entrevistados. A idade variou entre 12 e 48 anos, com uma média de 27,4 (+/- 7,2) anos. A maioria dos indivíduos era branca, correspondendo a 72% da amostra; a quase totalidade dos casos era de homens (89%). Dez entrevistados se consideravam indigentes, de acordo com a entrevista. Quanto ao grau de instrução, a maioria (64%) havia concluído até o 1o grau, e apenas 7% possuia nível universitário. Dos 142 índividuos, 39% eram desempregados. Dos que possuíam emprego, a maioria (56%) obtinha seu rendimento através de trabalho pago ou salário. No entanto, 51% da amostra relatava viver com o auxílio financeiro de familiares ou amigos, e 29% vivia através da economia informal, como comércio de produtos. Somente 9% dos índividuos entrevistados desempenhava algum tipo de atividade considerada ilegal, e havia apenas dois relatos de prostituição como forma de sustento.
Tratamentos prévios
Da amostra, 59% já havia realizado algum tipo de tratamento, correspondendo a 60% dos homens e 50% das mulheres, e em 61% do total de casos o tratamento havia sido ambulatorial. Em 74% o tratamento foi em regime de internação.
Teste anti-HIV
Dos pacientes, 34% nunca havia realizado teste anti-HIV antes da entrevista para o estudo. Dos 93 indivíduos que já haviam realizado o teste previamente à coleta de dados, 40 (43%) relataram que já haviam sido informados sobre sua soropositividade pelo HIV e nove (10%) já haviam sido informados que estavam com Aids. Quanto à possibilidade de vir a ser infectado pelo vírus da Aids, 20% acreditavam que não possuíam chance de infecção, 52% pensavam ter uma chance razoável (expressa no questionário como entre 25% a 50% de chance) e 14% acreditavam ter alta chance (75% de chance de se contaminar pela Aids). Somente em 44 casos da amostra (31%) obteve-se resultados sobre soropositividade. Destes, 24 (54,5%) eram soropositivos. As análises comparativas entre os indivíduos que realizaram o teste e aqueles que não o fizeram, referentes a comportamentos de risco e dados demográficos, não demonstraram diferenças estatisticamente significativas.
Aconselhamento para Aids
Algum tipo de informação ou recursos (preservativo, água sanitária, etc.) para prevenção do HIV foi dada a 87,3% da amostra nos 30 dias anteriores à entrevista. O impacto percebido pelos entrevistados sobre esse tipo de aconselhamento na freqüência de condutas consideradas de risco foi o de 58% de redução no total de uso de drogas EV, 41% de redução no número de parceiros sexuais, 40% de redução de compartilhamento de seringas ou agulhas, 32% de aumento no uso de preservativos, 13% de aumento na limpeza de seringas e 12% de mudança em alguma prática sexual visando sexo mais seguro.
Cabe salientar que quando questionado se a pessoa já havia recebido alguma informação sobre Aids ao longo da vida, e não restrito ao período dos últimos 30 dias, 55,6% haviam recebido algum tipo de aconselhamento. Destes, 88,3% mudaram alguma atitude de risco, concomitante com o aconselhamento, havendo diferença significativa estatisticamente (p<0,01), com sujeitos que haviam reduzido suas práticas de risco, porém sem utilizar-se de um aconselhamento (68,8% dos casos). Somente 42% dos indivíduos receberam algum aconselhamento envolvendo o uso de drogas, sendo que em pelo menos 94% dos casos não houve nenhum tipo de informação quanto à limpeza de seringas com água sanitária, distribuição de seringas e agulhas limpas ou quanto ao encaminhamento dos indivíduos para algum programa de troca de seringas (somente quatro pacientes receberam água sánitária para limpar seringas e três receberam agulhas limpas) nos 30 dias anteriores à entrevista. No entanto, quanto à distribuição ou a informações quanto a formas de prevenção de riscos sexuais, como uso de camisinha, pelo menos 54,7% dos casos receberam algum tipo de intervenção.
Uso de drogas na vida e nos 30 dias prévios à entrevista
A Tabela 1 resume os achados principais referentes ao uso de drogas na vida e nos 30 dias prévios à coleta. Nesta amostra, as substâncias mais utilizadas foram a cocaína, o álcool e a maconha, sendo que mais de 97% da amostra tinha usado ao menos uma vez na vida uma dessas três substâncias. Em relação à idade com que os indivíduos da amostra relataram ter usado as substâncias pela primeira vez, observou-se que o álcool aparece como a substância de início mais precoce ¾ 12 (+/- 3,3) anos, em média ¾, seguida pelo uso de maconha, com uma média de idade de 14,3 (+/- 2,2) anos. A metadona também apresentou uma média de início de uso precoce ¾ 16 anos, embora correspondesse a apenas dois casos ¾ e muito possivelmente por indicação médica. A maioria das outras substâncias teve como idade de início de uso ao redor dos 18-20 anos de idade, salientando-se o uso de anfetaminas com uma média de 16,9 (+/- 4) anos e cocaína, com média de idade de início de 20,6 (+/- 6,6) anos.
Os dados abaixo se referem ao uso nos 30 dias prévios à coleta de dados. Dos entrevistados, 105 (73,9%) afirmaram ter feito uso de drogas injetáveis. Esse subgrupo foi composto por 95 homens e 9 mulheres. Não houve diferença estatisticamente significativa no uso de cocaína injetável no que se refere a sexo, renda e escolaridade. Por outro lado, houve diferença no uso de cocaína na forma aspirada entre homens e mulheres, com esta última categoria preferindo essa forma de consumo (p<0,043). O número médio de dias em que os indivíduos usaram cocaína mostrou-se particularmente alto tanto na forma injetada (8,6 dias no mês, com um número médio de 9,3 vezes a cada dia) quanto na aspirada (4,0 dias/mês, com um número médio de 10 vezes a cada dia).
Compartilhamento de agulhas e seringas
Cem pessoas responderam sobre o compartilhamento de seringas. Os resultados principais demonstram que 47% dos entrevistados afirmaram nunca ter compartilhado agulhas e seringas. Vinte por cento compartilhou nos 30 dias prévios à coleta, 4% compartilhou entre 31 a 90 dias da coleta, e 29% compartilhou entre 91 dias a três anos anteriores à entrevista.
A média de vezes em que uma agulha e seringa compartilhada foi usada foi 16,2 vezes (variando de 1 a 160 vezes). Apesar do número de reutilizações de seringas por parte das mulheres ser até 13 vezes maior do que o dos homens, o pequeno número de usuárias do sexo feminino nesta comparação (apenas quatro) não permite a análise da significância deste achado.
Limpeza de agulhas e seringas
Apenas treze entrevistados relataram práticas de limpeza em alguma ocasião no mês prévio à coleta. Oito pacientes utilizaram somente água; 4 pacientes: água oxigenada e água; 2 pacientes água e água sanitária; 2 pacientes água fervida e 2 pacientes mencionaram outro método de limpeza.
Quanto à origem das agulhas e seringas compartilhadas, os equipamentos de injeção haviam sido utilizados anteriormente por amigos em 86% dos 22 casos com relato de compartilhamento nos 30 dias prévios à coleta.
Atividade sexual
Dos 142 indivíduos da amostra, 76% (n=108) informaram ter mantido relações sexuais no mês prévio à coleta. Destes, 94 eram homens heterossexuais, 10 mulheres heterossexuais e 4 homens bissexuais, com média de sete relações nesse período. A maioria (68%) teve relação com apenas um parceiro sexual, com alguns poucos casos tendo tido quatro ou mais parceiros. Grande parte (79%) não teve parceiro que utilizava drogas, sendo que entre as mulheres 50% teve parceiros sexuais que usavam drogas, comparado com 7,9% no grupo masculino (p<0,03). A quase totalidade das relações foi do tipo vaginal, com uso de preservativos na maioria dos casos.
Em relações sexuais do tipo vaginal, 44% dos que tiveram relações no mês prévio à coleta (98 casos) referiram que não usaram camisinha. Não houve diferença significativa de uso de camisinha entre homens e mulheres, porém a idade influenciou o seu uso em relações anais: os indivíduos mais velhos (85% dos que tinham mais de 30 anos) usaram mais camisinha nesse tipo de relação dos que os mais jovens (25% dos que tinham menos de 20 anos).
O uso de drogas associado ao ato sexual está descrito na Tabela 2. Viu-se que quase metade (48,6%) dos entrevistados que haviam utilizado alguma droga nesta circunstância utilizou álcool pelo menos uma vez no útimo mês, antes ou durante a relação sexual. Constatou-se ainda que as pessoas que utilizaram drogas, principalmente maconha e cocaína, anterior ou concomitantemente ao ato sexual, tiveram mais relações do tipo anal (p<0,017) do que aqueles que não usaram.
Do total de indivíduos entrevistados, 69 homens (50,4%) haviam fornecido dinheiro alguma vez na vida em troca de sexo; 24 homens e 5 mulheres (20,6% ao todo) haviam feito sexo para obter dinheiro; 29 homens (20,6%) haviam fornecido drogas em troca de sexo e 13 homens e 4 mulheres (12% ao todo) haviam feito sexo com o objetivo de obter drogas.
Discussão
Sorologia para Aids
Como já mencionado anteriormente, procurou-se conhecer o status sorológico dos UDI mesmo não sendo este o principal objetivo do estudo. Ainda que a perda de casos seja tão grande que não permita a análise adequada dos achados no que compete a esta variável, é importante salientar que metade dos testes HIV sobre os quais os autores obtiveram os resultados eram positivos. Mesmo considerando potenciais aspectos de confusão, tais como o fato de serem os UDI soropositivos mais potencialmente necessitados de conhecer seu status HIV, e portanto virem a realizar o teste, uma estimativa conservadora sobre a freqüência mais baixa do desfecho (imaginando-se por exemplo que todos os UDI que não procuraram testagem fossem soronegativos) ainda nos forneceriam uma taxa de soropositividade bem acima da população em geral (24 soropositivos/142 UDI=16,9%), o que justifica reafirmar a alta taxa de soropositividade existente nesse tipo específico de usuário de drogas.
Aconselhamento sobre o HIV
Nosso estudo demonstrou que as pessoas que receberam algum tipo de aconselhamento ao longo da vida em relação à Aids em 88% das circunstâncias reduziram alguma atitude de risco, concomitante com esta intervenção, e este achado é corroborado por Surratt,26 que descreve que uma intervenção padronizada utilizada no Rio de Janeiro foi eficaz em diminuir o risco de infecção pelo HIV em UDI e homossexuais de baixa renda, por diminuir o número de dias de uso de cocaína/mês e aumentar a freqüência de uso de preservativos. Outros estudos com características ao menos similares apontam para a mesma direção, evidenciando que receber algum tipo de intervenção ou tratamento está associado com uma menor incidência de comportamentos de risco.5,13,14 No entanto, a duração do tratamento, assim como intervenções mais freqüentes, não parecem interferir nos comportamentos,5,7,13 o que nos sugere considerar que talvez o mais importante seja a "qualidade" e não a "duração" dessa intervenção. O presente estudo também evidencia que algumas atitudes potenciais de risco (redução do uso de drogas endovenosas, compartilhamento de seringas, redução de parceiros sexuais) são descritas como mais facilmente modificáveis após aconselhamento do que outras ¾ uso de preservativos, limpeza de equipamentos de injeção, ou mesmo mudança de práticas sexuais.
Uso de drogas injetáveis e compartilhamento de equipamentos de injeção
Os dados do presente trabalho sugerem que o uso recente de cocaína injetável nesta amostra foi alto, equivalendo a 83% dos casos. Em um grupo cuja taxa de compartilhamento de seringas e agulhas parece ser uma prática comum (53% dos usuários compartilharam aparelhos pelo menos uma vez nos últimos três anos e 20% nos 30 dias prévios à coleta), confirma-se a percepção da intensidade de risco a que um UDI se expõe em sua prática de uso de drogas, particularmente no que compete à transmissão do HIV.12 Apesar de alguns autores13,14 observarem uma dramática diminuição nas práticas inseguras de injeção por parte dos UDI em resposta às intervenções preventivas, isto ainda não pôde ser demonstrado em nosso meio: os indivíduos que usaram cocaína injetável no mês prévio à coleta injetavam a droga freqüentemente, e nos que compartilhavam seringas e agulhas, os aparelhos foram utilizados em média 16 vezes. Além disso, as práticas de limpeza de aparelhos ainda são muito precárias, sendo que somente dois sujeitos da amostra descreveram práticas de limpeza que poderiam ser consideradas adequadas aos padrões de prevenção da transmissão do HIV. Estes achados evidenciam que em nosso sistema de saúde ainda não há uma estrutura adequada ao desenvolvimento de intervenções preventivas para a questão do HIV em UDI, ou no mínimo que esta estrutura ainda não abordou de forma eficaz a questão da transmissão por via injetável. Um fato que corrobora a impressão dos autores é o de que 94% dos indivíduos estudados não haviam recebido qualquer tipo de informação quanto à prevenção de riscos com o uso de drogas e, para a maioria dos casos, esta não era a primeira circunstância de contato com um centro de saúde; nas circunstâncias em que esta questão surgia nos aconselhamentos, geralmente era para encaminhamento para tratamento e, raramente, para a discussão de técnicas mais seguras para o uso de substâncias injetáveis, dentro de um modelo de redução de danos. Isto é confirmado por Dunn e Laranjeira, que comentam que os programas de trocas de seringas tiveram dificuldades para serem introduzidos no Brasil. Além disso, esses autores assinalam que os programas para tratamento para uso de drogas têm sido passivos em relação à prevenção do HIV, esperando que estes procurem algum tipo de auxílio.10,17
Os resultados do presente estudo demonstram que além do compartilhamento a reutilização de seringas é uma prática comum adotada por esta amostra. Os autores acreditam que o custo e a dificuldade de acesso a seringas e agulhas gratuitas em programas de redução de danos possa ser um dos fatores que contribuem para tal prática, além das características associadas ao próprio uso de cocaína. Por ser uma droga de meia-vida curta e que portanto gera a necessidade de utilizações repetidas, é provável que um usuário de cocaína injetável tenha que injetar-se muitas vezes ao longo do dia, todos os dias. Estimando-se um custo de R$ 0,50 por cada seringa e uma média conservadora de dez injeções por dia, sem contar o custo da droga em si, estaríamos considerando um custo mensal da ordem de R$ 150,00 (R$ 0,50 x 10 injeções x 30 dias) apenas com seringas, o que certamente justificaria a tentativa de utilizar seringas mais de uma vez (ao contrário da noção típica de seringa "descartável") ou compartilhar seringas já utilizadas, em particular quando já sob efeito de cocaína e portanto com grande compulsão e pouca crítica sobre as conseqüências potenciais de infecção.27 A literatura sugere também que o local de uso influencia as práticas de injeção: o uso em residências próprias propicia práticas mais higiêncas do que em locais utilizados somente para o uso das drogas ("shooting galleries" ou "bretes").28 Uma provável explicação para esse fenômeno seria o fato de que na verdade os usuários freqüentes e os esporádicos podem ser a expressão de grupos com características distintas: um grupo de usuários eventuais de drogas injetáveis, que em função do uso não sistemático não teriam tanta preocupação com limpeza de seringas, sendo menos atentos aos riscos relacionados ao uso compartilhado de drogas, e um grupo de usuários sistemáticos (diários), mais atento às questões relativas à manutenção de seringas novas e à evitação do compartilhamento devido ao risco maior de infecção. Por essa razão, os programas e campanhas de cunho preventivo e educacional deveriam também estar voltados ao usuário ocasional, ao invés de se destinarem quase que exclusivamente ao usuário sistemático (dependente). Uma analogia pode ser feita com relação ao uso de preservativos. É muito provável que uma profissional de sexo tenha um maior interesse no uso de preservativos ¾ mesmo que isso signifique dificuldades na negociação de sexo com seus clientes ¾ do que indivíduos que ocasionalmente se envolvem em circunstâncias de relacionamento sexual não planejado.
Comportamento sexual
No presente estudo, 76% dos sujeitos descreveram relações sexuais no mês prévio à coleta. No que compete a situações sexuais que envolvem risco, estas parecem ser diferentes entre homens e mulheres: segundo os achados do presente estudo, houve um maior número de parceiros sexuais que usam drogas (injetáveis ou não) entre as mulheres. Neste sentido, mulheres que injetam drogas e que também têm relações com UDI teriam o que se pode chamar de risco duplo: apresentam um maior risco para infecção do HIV, através do seu próprio consumo e também pelas práticas sexuais com parceiros de risco.8 Cabe salientar que algumas mulheres apresentam prejuízos em suas habilidades sociais e de relacionamento interpessoal que dificultam a negociação de práticas seguras.8,9,11 Um diagnóstico sobre a percepção das mulheres sobre seus comportamentos de risco seria com certeza fundamental, uma vez que comportamentos de risco auto-inflingidos (uma conduta "suicida" perante o HIV) seriam tratados sob um formato mais psicológico ou psiquiátrico, enquanto que comportamentos de risco gerados pelo desconhecimento teriam necessariamente que sofrer uma abordagem baseada em aprendizado e informação para a saúde.
Quanto à utilização de medidas mais seguras para prevenção de riscos sexuais, como o uso de preservativos, 44% das pessoas não o utilizaram em relações do tipo vaginal, no mês prévio à entrevista. Deve-se salientar que o uso de drogas associado às relações sexuais ocorreu em quase metade dos entrevistados, o que nos leva a pensar que este comportamento dificulta a capacidade do índividuo de utilizar medidas preventivas, uma vez que ocorre um prejuízo na manutenção do juízo crítico e, conseqüentemente, na capacidade de tomar decisões, elementos que são fundamentais no que compete à utilização de métodos de proteção contra a infecção pelo HIV. Segundo Watkins et al,4 o uso de drogas endovenosas pelo parceiro é um preditor negativo de uso de preservativos. Por outro lado, o conhecimento de um resultado positivo para HIV parece ser um preditor positivo para o uso de preservativo, uma vez que estes UDI conseqüentemente passam a adotar comportamentos sexuais mais seguros.
No presente estudo, os achados sugerem que o uso recente de drogas, particularmente o consumo de substâncias psicoativas na forma injetável, desempenha um papel importante na disseminação do HIV. Esta prática é no momento responsável por 35% dos casos de infecção em homens e 11,6% das mulheres no Rio Grande do Sul.29 É certo que mais de 90% dos casos de uso de droga injetável se dão entre usuários de cocaína, que por sua vez costumam apresentar comportamentos de risco importantes para a transmissão do vírus, conforme já evidenciado por outros estudos.9 Há estudos que sugerem a possibilidade de que a cocaína por si só provoque um aumento das taxas de comportamentos de risco quando comparada a outras drogas de uso injetável,16 em particular pelo efeito da própria droga sobre a sexualidade, especialmente na sua forma fumada.27
Comentários finais
É importante citar algumas limitações naturais a este tipo de estudo e que, com certeza, restringem os achados.
Em primeiro lugar, foram entrevistados apenas usuários que buscavam algum tipo de aconselhamento, teste ou tratamento em centros específicos. Isto compromete a generalização dos dados para os usuários de drogas injetáveis em geral, pois uma grande parcela desta população não procura qualquer tipo de auxílio.30,31 Um estudo realizado por Carrol e Rounsaville30 demonstrou semelhanças na gravidade do uso de cocaína e de transtornos psiquiátricos entre essas duas populações, apesar de que os que buscavam tratamento apresentavam menos uso de várias substâncias e menos problemas criminais.
A avaliação dos comportamentos de risco das mulheres também ficou prejudicada em função do seu número reduzido no estudo (11%) e não se pode afirmar que essa parcela seja proporcionalmente representativa entre usuários de drogas injetáveis em POA. Outro fator que compromete a generalização do estudo é a utilização da amostragem baseada em um modelo de conveniência e não amostragem aleatória que pudesse representar a população de usuários de drogas da cidade de Porto Alegre. Os motivos desta escolha são os problemas logísticos típicos de estudos desta natureza, como o número de entrevistadores, número de voluntários e acesso aos centros de coleta de dados. Sabe-se que esta não é uma população facilmente identificável em seu meio natural, sendo extremamente difícil a informação fidedigna a respeito do uso de drogas em estudos que usem o modelo clássico de entrevista domiciliar (inquérito de base populacional), ou mesmo se valham da demanda natural de serviços de saúde, no nível de assistência primária. Usuários de droga ¾ em particular os UDI ¾ se mostram extremamente resistentes às técnicas convencionais de pesquisa de base epidemiológica clássica, sendo portanto obrigatória a adaptação dos métodos convencionais ao que é possível naquela população, mesmo tendo-se em mente as inevitáveis perdas causadas por este fato.
Apesar de terem sido utilizados todos os esforços e recursos disponíveis, houve grande dificuldade de obtenção dos testes anti-HIV em uma grande fração da amostra, causada principalmente pela não realização do mesmo após o aconselhamento em alguns locais de coleta que foram inicialmente utilizados. Contudo, os dados obtidos sugerem que os comportamentos de risco para a transmissão do HIV entre os usuários de drogas injetáveis no nosso meio são freqüentes e devem ser investigados cuidadosamente. No presente estudo, quando houve compartilhamento de material, isto ocorreu geralmente entre amigos. Este fato vem confirmar a importância da abordagem da rede social do índividuo, assim como a adoção de medidas preventivas neste tipo de agrupamento específico: o de usuários que buscam locais comuns para utilizar drogas. Os resultados sugerem também que as intervenções descritas pelos sujeitos ainda são muito precárias, principalmente quanto à comunicação e à abordagem do usuário de droga. É mandatória e urgente a criação de programas focalizados em informações quanto à limpeza de seringas e não compartilhamento de instrumentos, assim como quanto ao uso adequado e sistemático de preservativos masculinos e femininos. Mais ainda, parece fundamental que esses temas sejam abordados dentro de um contexto sociocultural específico do UDI, que parece ser único quando comparado ao de outros usuários de drogas ou mesmo de sujeitos expostos a situações de risco que não envolvam a transmissão do vírus por via endovenosa.
Agradecimentos
Os autores agradecem a Cláudia Maciel Szobot e Alayde Pilla Barcellos pelos valiosos comentários e auxílio quando da confecção do primeiro manuscrito deste artigo.
Correspondência:
Flavio Pechansky
Rua Itaqui 89/103
90460-140 Porto Alegre, RS, Brasil
Tel./fax: (0xx51) 330-1845
E-mail: fpechans@conex.com.br
Última versão recebida em 31/8/2000. Aceito em 7/9/2000.
Estudo desenvolvido a partir de uma doação da University of Delaware.
Conflito de interesses inexistente.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Dez 2000 -
Data do Fascículo
Dez 2000
Histórico
-
Recebido
31 Ago 2000 -
Aceito
07 Set 2000