Entrevista
Eduardo Subirats por Silvia Carcamo
Há quase trinta anos, o filósofo e ensaísta Eduardo Subirats, nascido em Barcelona em 1947, vem desenvolvendo uma teoria crítica da cultura na qual se integram visões da ética, da estética e da política. Contra la razón destructiva e Figuras de la conciencia desdichada, livros do fim da década de 1970, já são manifestações plenas da "crítica radical" proposta pelo autor.
A notável ressonância da sua obra a partir da segunda metade dos anos 1980 e 1990 se deve, em parte, às suas intervenções críticas nas polêmicas sobre vanguardas e cultura pós-moderna que agitaram o mundo intelectual da época. Sobre esses assuntos, foram publicados no Brasil Da vanguarda ao pós-moderno (1985), Paisagens de solidão (1987) e Vanguarda, mídia, metrópoles (1993). Conhecimentos verdadeiramente eruditos das vanguardas internacionais conjugados com a experiência latino-americana particularmente a brasileira permitiram a Subirats um distanciamento em relação ao olhar eurocêntrico para valorizar a contribuição da América Latina à civilização moderna. Em A penúltima visão do Paraíso. Ensaios sobre memória e globalização (2001) seu livro mais recente lançado no Brasil , notamos o resgate da memória como traço marcante das melhores manifestações da modernidade latino-americana. E é precisamente a memória que nos leva a outro núcleo das reflexões de Subirats: a crítica ao colonialismo e aos projetos de dominação que propõem o despojo das culturas como estratégia de destruição dos povos. Nesse sentido, poderemos encontrar em El continente vacío (1994), seu ensaio sobre a dominação colonial na América, o germe de Memoria y exilio, livro publicado no fim de 2003 e sobre o qual conversamos com o autor. Subirats, que atuou em várias universidades do mundo, é atualmente professor e pesquisador da Universidade de Nova Iorque. A entrevista a seguir foi realizada em 24 de outubro de 2004.
Silvia Carcamo Em Memoria y exilio, livro publicado pela editora Losada no fim de 2003, você apresenta um juízo condenatório da conquista da América, mas, além disso, confere atualidade à violência da conquista. Como deve ser pensada essa violência no contexto da globalização? Você estabeleceria alguma diferença entre aquela violência inicial e o extermínio de culturas da nossa época?
Eduardo Subirats Em Memoria y exilio e, antes desse livro, em El continente vacío, tratei de reconstruir os discursos constitutivos do processo colonizador da América: discursos teológicos da conversão e "depressão" do índio, formulados programaticamente pela Igreja romana em seu papel de "Mãe de Impérios". Mas também discursos jurídicos e tecnocientíficos construídos a partir daquele modelo teológico fundamental. Essa "razão colonial", originada histórica e discursivamente na teologia da Guerra santa e da conversão forçada, é a matriz do colonialismo ilustrado e moderno. Um nexo que os estudos pós-coloniais norte-americanos negam sistematicamente. Para citar um exemplo importante, a Instauratio magna da ciência empírico-crítica de Bacon é uma instituição tão poderosa quanto a Propaganda Fide da Igreja romana, que suplantou na definição dos imperialismos tecnocientíficos modernos. Enfim, em ambos os ensaios, deixo clara a continuidade histórica entre o colonialismo arcaico e teocrático espanhol, o colonialismo ilustrado inglês e o colonialismo pós-colonial contemporâneo.
Isso significa um juízo condenatório? De forma alguma! É preciso adotar uma atitude intelectual firme contra as práticas militares do colonialismo hoje na Colômbia ou no Iraque como continuação das práticas de ontem (esse é o tema do livro coletivo América latina y la Guerra global, que acabo de lançar no México), e é preciso recusar as estratégias acadêmicas do pós-colonialismo norte-americano que vêm afastando sistematicamente a atenção dos aspectos constitutivos do colonialismo hispânico e da atualidade crucial desse problema nos dias de hoje, em benefício de inconsistentes teorias das representações e reciclagens semióticas que reproduzem a velha teoria missionária da mestiçagem nos slogans do hibridismo.
Silvia Carcamo O tema da memória ocupou o centro dos debates das últimas décadas na América Latina. Você se refere a uma "memória negada, exilada" nas culturas hispânicas. Que efeitos esta negação produziu?
Eduardo Subirats Distingo dois momentos. Em El continente vacío, refiro-me às estratégias de destruição de memórias, línguas e objetos artísticos sistematicamente programadas pela Igreja católica, primeiro em sua "guerra santa" contra o Islã na Península Ibérica e na Europa Central, e mais tarde em sua "guerra justa" contra os índios na América. Em Memória y exílio, refiro-me a um momento ulterior: a negação, eliminação e alienação de todas aquelas correntes do pensamento moderno que tiveram um conteúdo crítico e emancipador, trate-se quer do humanismo "judaizante" de Luis de León, do misticismo "iluminista" de inspiração islâmica e judaica como o de Juan de la Cruz, quer dos intelectuais ilustrados do século XVIII na Espanha e em Portugal, e em suas colônias da América. No século XX, essas estratégias do exílio foram centrais em toda a América Latina. Seu símbolo não só é a repressão dos Estados fascistas do século XX, mas também as estratégias pós-modernas de deslocamento ou banalização dessa tradição crítica com nomes tão importantes como José María Arguedas, Roa Bastos ou Guimarães Rosa, de um lado, e ensaístas como Mariátegui ou Darcy Ribeiro, de outro, entre muitas outras experiências do século passado.
Silvia Carcamo Por que razão foi ignorada a tradição do exílio se, na sua opinião, ela representa o melhor do pensamento espanhol?
Eduardo Subirats O caso espanhol é de uma continuidade sem fissuras do absolutismo teocrático e imperial dos Habsburgos até o absolutismo decadente dos Bourbons nos séculos XVIII e XIX, e deste ao "absolutismo" regeneracionista, nacional-católico e fascista do século XX. Nem na Espanha, nem em Portugal se podia tolerar uma reforma ilustrada do pensamento nos séculos XVII ou XVIII, como não se podia pensar em uma reforma liberal do Estado ou dos sistemas educativos um século mais tarde, porque isso teria afetado a continuidade dessa tradição de intolerância. Em Memoria y exílio, analiso dois casos que me parecem fundamentais nesse sentido, e que nunca foram estudados com a intensidade que merecem: Simón Rodríguez, na América, e Blanco White, na Espanha. Esses intelectuais são testemunhos claros do fracasso da modernidade nessas regiões, e a sua crítica ainda hoje tem força vigente.
Silvia Carcamo O que existe de autobiográfico na maneira de conceber a memória no exílio? Como incidiu a experiência de Eduardo Subirats no pensamento e nas posições assumidas em Memoria y exilio ou El continente vacío, seu livro de 1994?
Eduardo Subirats Fugi da Espanha quando ainda era estudante: o ambiente intelectual das universidades espanholas nos anos 1970 e 1980 era asfixiante. Formei-me em Paris e em Berlim. Quando voltei para Barcelona, em 1979, a nova geração que tinha assumido o poder político e cultural deu provas de estar à altura de seus mestres falangistas. Em 1981, fui expulso de um modo sujo da Universidade de Barcelona. Fui para Nova Iorque e, depois de um breve período em Madri, onde todas as minhas experiências foram negativas, refugiei-me no Brasil. Aí vivi anos muito enriquecedores. Posteriormente, passei longas temporadas na Venezuela e no México, com aterrissagens forçadas em Madri que não merecem comentários. Finalmente, assentei-me em Princeton. Na Espanha, sou "persona non grata", o que de qualquer forma é uma constante histórica. Madri não admite a independência intelectual, muito menos a crítica. O mundo filosófico e hispanístico espanhol é retrógrado e fechado. Não existe pensamento em espanhol em um sentido forte da palavra, precisamente por causa dessa tradição repressiva.
Silvia Carcamo Você não teme fazer aproximações nunca antes pensadas: Américo Castro e Darcy Ribeiro; Juan Goytisolo e José María Arguedas; José María Blanco White e Simón Rodríguez. Essas combinações são uma "provocação", uma maneira de desestabilizar os esquemas de um certo ambiente acadêmico?
Eduardo Subirats Isso não é uma provocação. É um ensaio, uma experiência. Claro, Memoria y exilio desmonta os "cambalachos" de uma hispanística inconsistente, incapaz de entender as limitações institucionais e conceituais da ilustração ibérica, ou de estabelecer nexos entre a espiritualidade de El Zohar o el sufismo com o misticismo cristianizado de Juan de la Cruz ou Teresa de Ávila, e que não se atreve a contemplar abertamente a decadência espanhola a partir do século XVIII. O livro foi furiosamente atacado pela imprensa espanhola precisamente por colocar em questão seus preconceitos engessados. Por outro lado, mostro algo perigoso para essas pessoas: que existem mil maneiras mais coloridas e reflexivas de ler e compreender a história intelectual e artística latino-americana e ibérica, uma vez rompidas as amarras desse empoeirado casticismo espanhol. Mas isso não é uma provocação. É uma libertação. Toda crítica é, em última instância, libertadora.
Silvia Carcamo Em seu livro, o exílio tem a força de uma metáfora capaz de convocar vários sentidos. Um deles se refere à expulsão de uma língua, como é o caso dos zapotecas no México atual? De que modo o intelectual deve operar ali?
Eduardo Subirats É importante recordar que a língua espanhola se constituiu no decorrer de uma longa história de exclusões e expulsões. Nebrija, seu gramático fundador, foi antes de tudo um "expurgador" do castelhano: ele se impôs como tarefa eliminar os componentes léxicos e gramaticais árabes e judaicos que o contaminavam. Juan de Valdés já fez essa crítica. E na América, o trabalho de destruição das línguas históricas por parte dos "letrados" hispânicos foi sistemático. A propósito, a sua política de uniformidade e regulação segue adiante hoje através do colonialismo dos meios eletrônicos e da indústria editorial. Isso não criou nem criará nações hispano-cristãs, como costumam dizer os guardiães do velho imperialismo ibérico. Criou sim essa inquebrantável unidade de gramática, poder e dogmatismo intelectual que tornou impossível o desenvolvimento de um pensamento literário ou filosófico que pudesse alcançar, mesmo que só de longe, a intensidade espiritual de um Maimônides, de um Averroes ou de um Ramon Lull.
O que fazem hoje os intelectuais que falam e escrevem nas línguas históricas da América é o que podem e devem: resgatar poeticamente as palavras, restaurá-las e atualizá-las, e fazer isso contra a maré da comercialização da literatura em espanhol, a banalização midiática da cultura e a persistência de políticas coloniais e racistas dentro das Américas. Conheci obras fascinantes a esse respeito no México. Há um verdadeiro renascimento de línguas vernáculas nesse sentido. Chiapas é um modelo. Com grandes dificuldades políticas e econômicas, certamente. Mas essa é uma grande tarefa.
Silvia Carcamo Onde situar Memoria y exilio no conjunto da sua obra?
Eduardo Subirats O centro da minha obra é a crítica filosófica e cultural. É a "teoria crítica", como você enfatizou. Crítica filosófica que se tem articulado sobretudo em torno de questões epistemológicas (El alma y la muerte), culturais (La cultura como espectáculo) e estéticas (Linterna mágica). Mas, ao mesmo tempo, sempre me debati com a realidade imediata que me rodeava: o mundo cultural espanhol, a deriva da Europa neoliberal e pós-moderna, a crise sustentada da América Latina. El continente vacío integra esses momentos. É um livro filosófico cujo problema central é a constituição da consciência moderna, mas partindo da expansão colonial dessa consciência na América como seu princípio constituinte. Isso me coloca em um conflito radical com o main stream norte-americano. Primeiro, porque considera o colonialismo ibérico como um "colateral damage" do colonialismo inglês. Segundo, porque pretendem enjaulá-lo nos limites de uma teoria da representação. E por último, porque não desejam se ver envolvidos em uma crítica que, em última instância, poria em questão as estratégias de colonização que implicam a "globalização" e a "hibridização" latino-americana. Com relação a Memoria y exilio, trata-se, no fundo, de uma análise da decadência hispânica e latino-americana, e um aviso sobre a necessidade de dar uma guinada enérgica na direção e marcar novos rumos clara e veementemente críticos, renovadores e libertadores, se é que, no futuro, queremos respirar livremente.
Silvia Carcamo Como se pode chegar a problematizar, à luz de Memoria y exilio, o campo do hispanismo?
Eduardo Subirats A conclusão pragmática e construtiva de Memoria y exilio são as "Sete teses contra o hispanismo", que acabo de apresentar em Florianópolis, e o que foi feito em Londres, México, Salamanca, Hofftra e inclusive na Columbia University, em Nova Iorque. Essas teses enfocam a necessidade de uma reforma radical das categorias diretrizes que organizam a história das culturas ibéricas e latino-americanas em amplo sentido, que compreende as expressões literárias, artísticas e filosóficas, assim como as constelações políticas que a atravessam. Você poderá considerá-las provocadoras: ponho em questão a falta de perspectivas e o vazio intelectual que atravessa o hispanismo dominante. Essas teses fazem, além disso, uma defesa do humanismo, de um humanismo crítico que nessa era dos "pós" e das "desconstruções", bem como do cinismo que os inspira, é tão ameaçador para o "establishment" corporativo da academia, do mesmo modo que o foi para o dogmatismo eclesiástico na era imperial clássica do século XVI.
Silvia Carcamo Apesar das visões negativas sobre o rumo tomado pelo Ocidente, você não deixa de pensar uma saída utópica, como podemos apreciar na sua última intervenção no Brasil, durante o ciclo de conferências sobre o pensamento latino-americano no Centro Cultural Banco do Brasil. O que você pode comentar sobre essa utopia?
Eduardo Subirats Não, utopia, não! A palavra utopia se converteu em um sucedâneo da transcendência cristã. É uma promessa trivializada de felicidade em um "não-lugar", em vez de prometê-la no velho "além" dos missionários da cruz. Está claro que tampouco se trata do lamento e do choro. Da negatividade fossilizada dos relatos masoquistas do deslocado, do marginalizado, do espoliado, do assassinado, que é a outra cara do niilismo cristão. E do conservadorismo acadêmico, acertadamente chamado 'subalterno'.
Dizer não ao não-ser quer dizer reivindicar o não-lugar de uma esperança volátil: não quer dizer buscar a salvação em u-topos, ou seja, em nenhuma parte. Quer dizer resistência, rebeldia e crítica. Significa querer permanecer e prevalecer no ser da realidade atual do aqui e agora. Esse é o significado profundo de Espírito no sentido de Ruah ou de Pneuma, quer dizer, a energia vital e intelectual necessária para dar um sentido humano real a um mundo progressivamente desconstruído e progressivamente desumanizado.
Por outro lado, fiz em julho, efetivamente, uma conferência no Rio de Janeiro e em Brasília sobre a América Latina. O resultado é um longo ensaio que publicarei, junto com as teses, sob o título "Viaje al final del Paraíso". Suponho que o título é por si mesmo eloqüente. Refere-se a um final. Mas reivindica o significado espiritual de Paraíso, que não é a lenda cristã da culpa e da condenação do espírito (a condenação sacerdotal do Eros). Ali postulo a necessidade de retomar a tradição intelectual crítica latino-americana que a academia corporativa norte-americana e a indústria cultural européia enterraram debaixo de uma avalancha de patéticas veleidades narcisistas e produtos literários descartáveis.
Silvia Carcamo Memoria y exilio será publicado no Brasil?
Eduardo Subirats Publicar, tornar-se público, é difícil no contexto cultural hispânico, resistente a qualquer postura crítica e inovadora que não seja avaliada por alguma instituição. Na Espanha, fecharam-me quase todas as portas. A edição madrilense de El continente vacío foi "liquidada" alguns meses depois da publicação, depois que investidores ligados ao Opus Dei defenestraram o seu editor Mario Muchnik. Memoria y exilio pôde vir à tona porque conheci Carlos Ortega, editor de Losada, outro dos escassos editores que não são agentes imobiliários, e sim verdadeiros intelectuais. Nos Estados Unidos, as coisas são mais sofisticadas. Princeton University Press me disse há alguns anos atrás: seu livro El continente vacío é bom, mas é eurocêntrico. Com isso, queriam dizer que não mencionava nenhum dos pós-colonialistas anglo-saxões que elevaram o modelo colonial inglês a paradigma universal do bom colonialismo, e que consideram, implicitamente, a América Latina como as Índias ocidentais. Spivak é um exemplo patético que conta com uma plêiade de lúgubres prosélitos latino-americanistas. Com relação a Memoria y exílio, posso contar uma história ainda mais engraçada. A editora Palgrave me escreveu: muito obrigado, mas o senhor não se encaixa na "nossa linha". Para ensaístas hispânicos ou hispanistas, não se admitem mais de quatro termos: feminismo, homossexualidade, estudos culturais e pós-colonialismo. Parece uma taxonomia borgiana. Mas não creia que estar "in line" significa somente formar em linha, como no exército. Se você obedece a essas linhas, e não passa dos limites, significa também que tem de fazer fila, como nas alfândegas, à espera da vez para entrar no clube dos publicados. Esses alinhamentos se decidem, aliás, na própria academia e nas instituições que financiam a investigação. É um circuito perfeito de controle fechado. Nele já não é necessária a censura porque a produção corporativa das humanidades já está homologada "geneticamente" antes de ser concebida. O pós-modernismo batizou sacramentalmente esse sistema como idade pós-intelectual. O resultado é um eterno déjà vu, e um soporífero espírito gregário de corpo, de incorporação burocrática de uma inteligência institucionalmente "deserotizada", como nas ordens religiosas do Império cristão. Mas, em última instância, o resultado terminal desses controles é uma proibição interiorizada do espírito crítico, que desde Montaigne até Adorno concebeu o ensaio como meio de experimentação literária e de liberdade expressiva.
Quanto ao Brasil, dois dos meus livros, Da vanguarda ao pós-moderno e A penúltima visão do paraíso, foram publicados primeiro no Brasil, e só mais tarde no México. Mas não, no Brasil não foram publicados nem El continente vacío, nem Linterna mágica, nem Memoria y exilio. Grossos demais, caros demais. Uma pena, porque isso me permitiria tornar mais intensa a minha relação intelectual com uma cultura que admiro e amo. Obrigado por suas perguntas.
Tradução: Flavia Ferreira dos Santos
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Out 2005 -
Data do Fascículo
Jun 2005