Resumo
Entre as tendências que compõem a contemporaneidade literária no Brasil, a crítica tem identificado a presença de novos realismos, o retorno à subjetividade (SCHØLLHAMMER, 2009, 2020), a reiteração da narrativa entrecortada e a tematização da violência nas grandes cidades (RESENDE, 2008), entre outras. Considerando tais constatações, identificamos a recorrência de diversos traços presentes ainda no romance moderno revisitados no contemporâneo. O presente trabalho propõe a análise de um desses traços - o multiperspectivismo (HARTNER, 2019, NIEDERHOFF, 2019) - em Meia-noite e vinte (2016), de Daniel Galera, Pontos de fuga (2019), de Milton Hatoum, e Torto arado (2019), de Itamar Vieira Junior. O objetivo é analisar de que formas as perspectivas múltiplas se articulam em autores e obras de propostas distintas, buscando compreender os diferentes efeitos alcançados, e como cada obra tangencia questões fundamentais para a sociedade brasileira na atualidade, como a violência.
Palavras-chave: multiperspectivismo; violência; romance brasileiro contemporâneo
Abstract
Among the trends in literary contemporaneity in Brazil, critics have identified the presence of new realisms and the return to subjectivity SCHØLLHAMMER, 2009, 2020), the reiteration of the fractured narrative and the thematization of violence in big cities RESENDE, 2008), among others. Considering these findings, we recognize the recurrence of several traits present in the modern novel revisited in the contemporary. The present work proposes the analysis of one of these traits - multiperspectivity HARTNER, 2019; NIEDERHOFF, 2019) - in Meia-noite e vinte (Twenty After Midnight) (2016) by Daniel Galera, Pontos de fuga (2019) by Milton Hatoum, and Torto arado (2019) by Itamar Vieira Junior. We aim to analyze how multiple perspectives are articulated in authors and works with different aesthetic projects, seeking to understand the different effects achieved, and how each work touches on fundamental issues for Brazilian society today, such as violence.
Keywords: Multiperspectivity; violence; contemporary Brazilian novel
Resumen
Entre las corrientes que componen la literatura contemporánea en Brasil, la crítica ha identificado la presencia de nuevos realismos y el retorno a la subjetividad (SCHØLLHAMMER, 2009, 2020), la reiteración de la narrativa fracturada y el tema de la violencia en las grandes ciudades (RESENDE, 2008), entre otros. Teniendo en cuenta estos hallazgos, identificamos la recurrencia de varios rasgos presentes en la novela moderna revisitada en la época contemporánea. Este artículo propone el análisis de una de estas características - el multiperspectivismo (HARTNER, 2019; NIEDERHOFF, 2019) - en Meia-noite e vinte (2016), de Daniel Galera, Pontos de fuga (2019), de Milton Hatoum, y Torto arado (2019), de Itamar Vieira Junior. El objetivo es analizar cómo se articulan múltiplas perspectivas en autores y obras con diferentes propuestas, buscando comprender los diferentes efectos logrados, y cómo cada obra aborda cuestiones fundamentales para la sociedad brasileña actual, como la violencia.
Palabras-clave: Multiperspectivismo; violencia; novela brasileña contemporánea
Uma das dificuldades de se empreender um estudo de fenômenos contemporâneos é a impossibilidade de um olhar distanciado que permita a visão orgânica de tais fenômenos. Assim se dá com a crítica à literatura contemporânea, que procura analisar as publicações atuais ao passo que a própria sociedade que lhes deu origem é objeto de análises e sujeita a mudanças. Não dizemos com isso, no entanto, que a literatura seja meramente reflexo da sociedade; mas sua ligação com o mundo exterior à obra, de forma mais ou menos óbvia, é inalienável. Desse modo, seguem as Ciências Sociais e a Crítica Literária, que se destinam à contemporaneidade em um trabalho sempre relevante, nunca concluso, de lançar luz sobre a sociedade e a arte de hoje.
Quanto à literatura brasileira de nossa época, tem sido estudada em profundidade e a ela atribuem-se a falta de característica unificadora e a heterogeneidade (SCHØLLHAMMER, 2009). Ainda assim, fazem-se tentativas de identificar linhas de força e traços recorrentes. Beatriz Resende, por exemplo, aponta para a “escritura realista das grandes cidades contemporâneas, especialmente narrativas da violência e da desigualdade” (RESENDE, 2010, p. 110), como uma das mais prevalentes tendências nesse panorama. A autora também observa um retorno ao trágico e um sentido de urgência, que chama de presentificação (RESENDE, 2008), nas obras literárias brasileiras dos últimos anos; ainda que haja grande heterogeneidade, “fala-se do Brasil” (RESENDE, 2010, p. 108). A mesma tendência é destacada por Karl E. Schøllhammer, para quem prevalece um foco temático voltado “para a sociedade e a cultura contemporâneas, ou para a história mais recente” (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 35). As narrativas da violência urbana não são propriamente novidade: na esteira do brutalismo consolidado por Rubem Fonseca ainda na década de 1970, têm seus desdobramentos na atualidade. Contudo, o mesmo crítico não considera o engajamento de uma obra com problemas sociais incompatível com a exploração das subjetividades, e acrescenta que “há claramente, na literatura e na própria crítica contemporânea, uma acentuada tendência em revalorizar a experiência pessoal e sensível como filtro de compreensão do real” (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 106).
Mencionamos acima algumas vertentes do contemporâneo apontadas por apenas dois de seus críticos; a constatação de tais vertentes interessa-nos especialmente para os propósitos deste ensaio e para a compreensão dos romances que propomos analisar. Em Meia-noite e vinte (2016), de Daniel Galera, Pontos de fuga (2019), de Milton Hatoum, e Torto Arado (2019), de Itamar Vieira Junior, podemos observar, cada qual à sua maneira, a violência constitutiva das relações que se constroem entre as personagens e instituições. Este texto tem como objetivo destacar a relevância das perspectivas múltiplas como procedimento de composição narrativa em romances contemporâneos. No escopo deste artigo, tratamos mais especificamente de obras que exploram a violência na sociedade brasileira através das vozes de múltiplos narradores. Em tais narrativas, cada narrador acrescenta sua perspectiva sobre tal fenômeno de forma convergente com as outras vozes, como procuraremos demonstrar. Assim, colocamos em evidência duas observações acerca da literatura brasileira contemporânea: 1) o uso de diversas perspectivas se faz adequado para discutir uma sociedade em que vozes e informações dialogam e colidem a todo momento, eliminando a possibilidade de uma verdade absoluta; 2) ainda que por múltiplas vozes, a violência - em diferentes formas - se faz presente e constante em tais narrativas, sendo ponto de convergência das várias perspectivas.
Optamos, em nossa análise, pelo termo multiperspectivismo, o qual tem sido usado em estudos de narratologia com diferentes definições, para diferentes aspectos de análise (Hartner). Por perspectivas múltiplas não nos referimos aqui à focalização variável, que pode ser observável em inúmeros romances - inclusive do cânone brasileiro -; utilizamos o termo ao considerar a dispersão da voz narrativa através dos romances por múltiplos narradores, em alternância de discursos, como expediente estruturante de cada uma das três obras, sugerindo, em princípio, o ceticismo quanto a um conhecimento absoluto da realidade. Para Marcus Hartner (2019), a forma prototípica de tal modo de construção é o romance epistolar, que se popularizou a partir da segunda metade do século XVIII, e outro antepassado mais recente é o romance em forma de colagem (ou montagem) que se vê na primeira metade do século XX, em obras como Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Döblin, e Manhattan Transfer (1925), de John dos Passos. Trata-se, portanto, de um artifício que se origina no romance moderno e é revisitado na literatura contemporânea.
Para Burkhard Niederhoff (2019), o conceito de perspectiva narrativa é complexo e pode fazer uso de diversos parâmetros, conforme estudos desde meados do século XIX sobre o conceito. Dentre esses parâmetros, o crítico lista o espaço, a ideologia, o tempo, a linguagem e a percepção. Em vários momentos da análise subsequente, à medida que analisarmos as perspectivas múltiplas dentro de cada um dos três romances, esses parâmetros serão postos em maior ou menor relevo. Ao colocar em evidência tais procedimentos narrativos e destacar as formas de violência que atingem as subjetividades presentes nos romances, buscamos compreender quais os efeitos alcançados pela articulação de vários narradores e como a violência se faz ver nos universos ficcionais constituídos.
Olhares para o fim do mundo
O romance Meia-noite e vinte, publicado em 2016 por Daniel Galera, erige-se do início ao fim sobre um tom apocalíptico e a constante presença da morte, desde a menção à “destruição do mundo” (GALERA, 2016, p. 7), em sua primeira frase, até à reflexão da personagem Aurora, na última página, de que “para algo viver, algo, em algum lugar, precisava morrer” (GALERA, 2016, p. 202). O acontecimento central da narrativa é a morte do jovem escritor Andrei Dukelsky, o Duque, e a repercussão dessa morte; Aurora, Antero e Emiliano encontram-se por ocasião do enterro de Duque após anos sem se ver, e as memórias que o grupo revive de sua juventude contrasta com as desilusões da vida atual de cada um dos amigos, tomada pelo pragmatismo e destituída das ambições juvenis.
As três personagens alternam-se enquanto narradores do romance. Prevalece a voz da personagem feminina, mas por ouvir-se cada um dos amigos sobreviventes por sua vez, o romance pode ser lido, à primeira vista, como polifônico (XAVIER, 2020). O conceito de polifonia tal como empregado por Bakhtin, entretanto, não se aplica aqui de forma inquestionável. David Lopes da Silva (2018) argumenta que Meia-noite e vinte não é um romance polifônico pela simples razão de não se estabelecer a polifonia, mas prevalecer a univocidade, como se o próprio Duque atuasse como orquestrador da narrativa. Lembramos que Bakhtin recupera o conceito de polifonia ao analisar a obra de Dostoiévski a partir do gênero musical de mesmo nome que se desenvolveu na Idade Média; eram características de tal gênero “uma multiplicidade de vozes independentes, imiscíveis e superpostas cantando textos variados” (ROMAN, 1992-1993, p. 210). Desse modo, há razão no argumento de Silva, uma vez que as três vozes narrativas estão interligadas, não são imiscíveis e contribuem para a narração de forma relativamente unívoca, cada qual acrescentando detalhes e informações sobre a figura sempre presente de Duque, morto em um assalto enquanto corria nas ruas de Porto Alegre.
Quanto ao espaço da cidade, foi apontado por Leila Lehnen como um referente mnemónico importante que configura a subjetividade dos personagens tanto no passado como no presente. As ruas de Porto Alegre são, portanto, dispositivos da memória que acionam não somente lembranças, mas também servem de impulso para uma reflexão do/sobre o presente em que vivem os protagonistas dos romances de Galera. (LEHNEN, 2019, p. 128).
A identificação entre cidade e sujeito observada por Lehnen (2019) reforça a aura de desolação e ruína que perpassa o romance: Porto Alegre é descrita como um cenário de devastação em um mês de janeiro extremamente quente em que o transporte público está em greve e ainda se sente o clima de conflito e descontentamento do ano anterior (2013), quando a população foi às ruas em violentos protestos, uma clara referência às jornadas de junho. Ao caminhar pelas ruas da cidade, a estudante de doutorado Aurora (que até então vivia em São Paulo) se depara com lixo, sujeira, toda sorte de mau cheiro e o não reconhecimento de um espaço que a moça associava ao brilho e às esperanças da juventude. Levada de volta às pressas para a capital gaúcha pelo infarto do pai, Aurora se vê entre as preocupações com a saúde dele, com o término de seu doutorado e com a terrível notícia do assassinato do amigo, em meio a esse ambiente de violência urbana e desconforto constante, como se observa no trecho: “o suor brotava atrás das minhas orelhas e escorria pelo pescoço. Me perguntava o que teria acontecido com a cidade em minha ausência” (GALERA, 2016, p. 9). A desesperança de Aurora quanto ao futuro é evidente em inúmeras passagens, como: “me peguei pensando, contra a minha vontade, que na verdade ele [Duque] havia sido poupado, que talvez fosse sortudo no fim das contas, pois tinha escapado de algo terrível que se avizinhava, algo a que teríamos que nos acostumar” (GALERA, 2016, p. 12-13).
O constante incômodo de Aurora parece vir, concomitantemente, das impressões desagradáveis que o espaço exterior lhe desperta e da constatação de sonhos perdidos, da realidade da vida adulta que não coincide com suas expectativas enquanto jovem caloura na universidade, quando participava, junto com as demais personagens, de uma publicação digital no início dos anos 2000. O ímpeto de renovação estética e pioneirismo na internet que marcou a juventude de Aurora e dos outros integrantes do grupo Orangotango se perdem na passagem para a vida adulta: a moça enfrenta a incerteza da aprovação em seu doutorado, uma vez que fora reprovada no exame de qualificação por um professor com segundas intenções não correspondidas; a incerteza com relação à saúde do pai; e toma a decisão de um aborto ao engravidar de Antero após o breve reencontro motivado pela morte de Duque. Passagens como a seguinte revelam uma Aurora angustiada e insegura quanto ao futuro - o seu e o do mundo: “Os anos passaram e, a partir de certo ponto, não saber o que fazer da vida passou a ser ruim, e havia algo muito pior, que era não querer fazer mais nada. Fechei o livro sobre as pernas cruzadas. Uma angústia me acometeu como uma cãibra. Tentei segurar, mas logo estava fungando” (GALERA, 2016, p. 29). É fácil compreender a angústia da personagem se listarmos todas as formas pelas quais a violência e a morte circundam sua vida e de outras personagens. O professor a reprovou como retaliação por um assédio não consumado; a enfermidade do pai exacerbou seu senso de incerteza quanto ao futuro; o amigo e jovem escritor Duque foi vítima de latrocínio; e a morte está presente novamente no episódio do aborto.
As perspectivas de Emiliano e Antero, não tão prevalentes no romance quanto as de Aurora, trazem menos reflexões angustiadas e episódios mórbidos, mas igualmente contemplam “um horizonte utópico deixado para trás com a juventude” (LEHNEN, 2019, p. 133) e a desilusão que os arranjos práticos da vida adulta lhes impõem. As impressões de decadência do espaço urbano de Aurora parecem ser compartilhadas por Emiliano: “Fui virando as esquinas de improviso, como se procurasse a origem daquele leve cheiro de podridão que empestava a cidade desde o início da onda de calor” (GALERA, 2016, p. 47), assim como a sugestão de uma situação financeira e emocional instáveis. Com seus 30 e poucos anos, as personagens do romance rescendem a frustração e desesperança. De modo mais visível que verbalizado, a contradição das propostas juvenis com o conformismo a um outro modo de vida é a marca mais evidente de Antero. Pela perspectiva de Emiliano, ele fora o mais provocador e entusiasmado dos jovens do grupo, e hoje emprega o mesmo furor e assertividade em defender marcas e produtos em sua empresa de publicidade - “enganação em larga escala” (GALERA, 2016, p. 52), na visão de Emiliano. Bem-sucedido financeiramente, Antero entrega-se à pornografia na ausência da esposa e cai em desespero quando essa descobre suas traições e o expulsa de casa.
Embora considere que “não há o que cause choque em nossa época” (GALERA, 2016, p. 83), o publicitário também é afetado pela sensação de catástrofe iminente e ruína da sociedade:
Respondi alguns e-mails, tentei adiantar a leitura dos artigos [...], mas a tela exibindo o telejornal da GloboNews ao fundo sequestrava minha atenção com imagens de guerra, corrupção, pane climática e violência urbana. Lembrei da conversa apocalíptica de Aurora no dia do velório do Duque. (GALERA, 2016, p. 90-91).
Distraído pelas imagens de violência na televisão, Antero relembra o reencontro com Aurora e Emiliano no velório, assim como vários momentos marcantes de sua juventude com o grupo de amigos - a passagem de 1999 para o ano 2000, com as previsões catastróficas do bug do milênio, por exemplo, e o ano novo que passaram no sítio dos pais de Emiliano para fugir da atmosfera de fim de mundo que então se criava. Nessa rememoração, são mencionados fatos e falas de outras personagens, alguns dos quais já dados ao leitor pelas outras vozes narrativas; assim, estabelece-se a narrativa múltipla, que costura como retalhos as impressões e visões de cada um dos três amigos para compor o conjunto do romance: um retrato de jovens de classe média de Porto Alegre, cuja passagem da adolescência para a vida adulta traz uma inegável sensação de perda - das utopias, da alegria, do ímpeto de fazer e ser.
Mais conformado com a nova realidade, Antero parece conscientemente optar por não ser levado pelo mesmo desânimo dos outros: “A nova angústia era essa expectativa difusa de um sufocamento vagaroso e irreversível, após o qual não restaria nada. Eu não desejava pensar como ela [Aurora], não queria ser contaminado por aquele pessimismo. Havia construído uma vida boa para mim [...]” (GALERA, 2016, p. 93). O mais impetuoso e rebelde dos membros do Orangotango, portanto, era o que melhor se adaptara à sociedade capitalista, tornando-se empresário dedicado ao consumo e evitando reflexões perturbadoras sobre a realidade do mundo e de sua própria vida. Fazia-o, contudo, conscientemente, como a citação acima aponta: não ignorava a existência de tal atmosfera, os pensamentos dos amigos (principalmente de Aurora) ou mesmo a violência e negatividade que chegavam inevitavelmente pelo noticiário.
A notícia da morte de Duque, produto da violência urbana, intensifica, para Aurora, o sentimento de que algo bom, ou importante, já se acabou:
“Já acabou o quê?”
“Tudo! Vocês não têm andado nas ruas? Porto Alegre parece uma galinha sem cabeça correndo pelos últimos minutos no quintal. Em São Paulo tem gente dizendo que vai acabar a água da cidade. Tento ser cautelosa quando leio sobre mudança climática, radioatividade, extinção em massa. Mas parece que ontem eu tomei um tapa na cara.” (GALERA, 2016, p. 50).
Ainda que em diferentes intensidades, as três personagens revelam, ao narrar em primeira pessoa cada um dos capítulos de Meia-noite e vinte, o impacto das mudanças e da violência sobre as subjetividades em um mundo ficcional de forte referencialidade com o Brasil contemporâneo. Em um misto de descontentamento com a própria vida e com a situação do mundo, rondam ares de tragédia e morte em torno das três personagens - ou das quatro, se considerarmos que o jovem escritor Duque não dá voz diretamente à narrativa, mas perpassa-a de forma fantasmagórica do início ao fim. Fazem-se presentes, portanto, o trágico e a temática da violência apontadas por Resende e citadas no início deste ensaio. Observa-se, ainda, a construção a partir de três perspectivas não-dissonantes, mas complementares, de um universo ficcional que dialoga com momentos e questões que marcaram uma certa geração brasileira nas últimas décadas. O enredo é mínimo em comparação com o que a obra realiza predominantemente: a elaboração desse universo a partir de subjetividades em diálogo dentro da obra, em uma mescla de índices da vida contemporânea em uma sociedade de consumo, com profundas reflexões sobre a sustentabilidade de tal modo de vida, e a tendência a uma percepção pessimista diante da violência que a caracteriza.
Retrato de uma geração sob a Ditadura
Milton Hatoum publicou, em 2019, Pontos de fuga, segundo livro de sua trilogia “O lugar mais sombrio”. O primeiro romance da série, A noite da espera (2017), narra as experiências de Martim, jovem paulistano que se muda para Brasília com o pai após este se divorciar de Lina. A passagem de Martim da adolescência à vida adulta se dá em meio a um contexto político e social bastante particular, no fim da década de 1960: a Ditadura Militar e sua repercussão em meio aos estudantes. Dividido entre seu trauma particular (abandonado pela mãe) e a contingência que o chamava à ação junto aos novos amigos, Martim se torna um jovem adulto melancólico cuja principal ocupação é a literatura. Seu grupo de amigos participa - com maior ou menor envolvimento - de manifestações estudantis, de um grupo de teatro e de uma revista literária que acaba desmantelada pela polícia. Ao escapar desta ação policial, Martim vai para São Paulo e transfere seus estudos da Universidade de Brasília para a Universidade de São Paulo, e neste ponto se encerra a história do primeiro volume.
Pontos de fuga narra, portanto, as experiências do rapaz em meio a um novo grupo de jovens amigos, vivendo em uma república na Rua Fidalga, em São Paulo. Mas a narrativa não se limita a esse espaço ou período, ou mesmo ao protagonismo de Martim; tal como Meia-noite e vinte, o texto tem como marca estrutural evidente a fragmentação, e, neste caso, esta se dá nos âmbitos temporal e espacial, além da dispersão de vozes narrativas. Nesse romance, que é uma colagem de fragmentos textuais com diversos narradores, Martim aparece não mais como protagonista absoluto, mas antes como organizador dos excertos que compõem a história de Pontos de fuga, a qual elabora o retrato de uma geração: a dos estudantes universitários sob o regime da Ditadura Militar no Brasil nas décadas de 1960 e 1970. São fundamentais a essa publicação de Hatoum, portanto, os dois componentes que propomos como base desta análise: as perspectivas múltiplas e a violência constitutiva da sociedade brasileira.
O tempo de escrita e espaço da narrativa é Paris entre 1978 e 1979. Em formato de entradas de diário, os trechos em que o leitor se depara com a voz de Martim são registros da vida do rapaz como exilado na capital francesa enquanto organiza suas anotações da vida em São Paulo e os apontamentos e cartas de amigos. Havendo encontrado, nas aulas de português, sua subsistência, Martim convive com exilados do Brasil e de outros países sul-americanos, cuja principal preocupação é contribuir para a resistência à Ditadura Militar, ainda que à distância. Entre esses exilados e alguns amigos franceses, o jovem paulista tem, por sua vez, como principal ocupação a composição de um conjunto de memórias a partir das anotações e cartas que levou consigo do Brasil. Acerca do romance, Gonçalves (2020, p. 84) observa que “cercado por ruínas, [Martim] recolhe e agrupa os fragmentos, vestígios e estilhaços do passado” (GONÇALVES; GAMA, 2020, p. 84). Tais fragmentos revelam as vozes de diversas outras personagens: cartas de Lélio, Dinah, Vanah, Laísa e outros, anotações pessoais de Anita e o diário de Ox são as principais fontes dos fragmentos que montam a narrativa, além das próprias anotações de Martim - não somente a partir de várias vozes, mas a partir de vários lugares (São Paulo, Brasília, Santiago, Vilhena, Cidade do México, entre outras), em um intervalo de vários anos.
Os relatos dos amigos são organizados por Martim em um processo de reconstrução da memória - tema ao qual dedica algumas reflexões no decorrer do romance, como: “A memória é uma voz submersa, um jogo perverso entre lembrança e esquecimento” (HATOUM, 2019, p. 182), ou “A memória só faz sentido depois do esquecimento?” (HATOUM, 2019, p. 310). Fato é que as memórias, suas e alheias, que reconstitui dos anos 1972 a 1979, são repletas de referências à repressão, a episódios de enfrentamento entre estudantes e policiais, de menções à necessidade de se engajar na resistência e de pensamentos verossímeis a personagens da época, como no trecho a seguir, datado de 1979:
“Posso voltar”, concordou uma mulher, “mas não engulo essa anistia geral”.
“Não é melhor do que viver no exílio?”
Ela olhou o rosto do conterrâneo deitado no tapete: “Prefiro viver e morrer no exílio. É mais digno que a rendição e a farsa”. (HATOUM, 2019, p. 240).
A incredulidade da personagem exilada diante da anistia geral, além de outras passagens em que os jovens demonstram forte esperança na queda da Ditadura ainda no início dos anos 1970, dão ao romance de Hatoum o efeito de vozes ouvidas no calor da hora, destituindo-o do olhar distanciado e consciente dos desdobramentos posteriores que poderia marcar uma obra escrita três décadas após o fim do regime ditatorial.
Semelhantemente ao romance de Daniel Galera, as múltiplas perspectivas não são imiscíveis ou contrastantes de forma significativa; é comum entre as vozes das várias jovens personagens o incômodo com a situação sociopolítica do país, variando certas modulações - como a ironia das observações de Ox, a decidida militância de Dinah e a racionalidade de Lélio, planejando cada passo adiante. Todas compõem, em conjunto, o retrato de uma geração de jovens estudantes de classe média naquele período no Brasil, impactados pelo contexto de opressão e violência. Quanto a esta, representada em diversas passagens, conforme já mencionado, é também omitida em outras: experiências dos jovens com a polícia são silenciadas, novamente em favor da verossimilhança do discurso sobre o trauma, que, para Eurídice Figueiredo, é “frequentemente uma escrita fragmentária e lacunar” (FIGUEIREDO, 2017, p. 44) e que, em várias passagens desse romance, revelam o desejo de esquecimento.
É o que se observa no seguinte trecho da carta escrita por Lélio a Martim, em que relembra o episódio quando a polícia desmancha o ponto de encontro da revista literária que publicavam, e leva o rapaz para a prisão, onde permanece por vários dias e, subentende-se, sofre com a brutalidade costumeira dos interrogatórios conduzidos pelas forças militares: “Não quero falar dos interrogatórios. Melhor calar sobre o que se quer esquecer? Mas é impossível esquecer” (HATOUM, 2019, p. 87-88). De modo semelhante, a perspectiva de Vana também expressa a hesitação em relembrar certos episódios em que a violência se inscreve: “Outras coisas aconteceram nessa última reunião e na delegacia, mas vale a pena recordar? Certos dias da nossa vida não deviam existir, dias em que a vida é só traição, e os deuses, mais cruéis que misericordiosos” (HATOUM, 2019, p. 75). O trauma que atinge as jovens personagens de Pontos de fuga é de duas ordens: no caso de Martim, é íntimo e causado pela dor do abandono materno, já que a mãe desapareceu completamente pouco tempo depois de separar-se do pai. Quanto às outras personagens, expressam-se experiências como as de Lélio e Vana, já comentadas, menções menos explícitas à tortura, como vem a saber o leitor, que Dinah sofreu, ou experiências de confronto com policiais em protestos estudantis. A violência aqui está, portanto, atrelada ao contexto político-histórico. A ficção de Hatoum revisita um período crítico da história brasileira, reconstituindo-o pela vivência e perspectiva de múltiplas personagens, que contribuem não somente para a visão dada pelo romance sobre a Ditadura Militar no Brasil, mas também constroem fragmentariamente cada episódio. O próprio Martim é construído a partir de outras vozes, como se vê no fragmento abaixo, do diário de Ox:
No quarto ao lado da minha torre, Martim ensaia uma personagem imaginária, depois lê em voz alta peças de Oswald de Andrade e Ionesco; com uma voz seca, lê cartas da mãe dele, ou escreve num caderno fajuto, a capa toscamente ilustrada pelo Grito do Ipiranga, a grande piada pátria da Independência.
Será Martim um patriota? Um patriota órfão de mãe?
Pouco provável: não conheço patriotas tão deprimidos...” (HATOUM, 2019, p. 80).
A descrição de Martim como melancólico pelos colegas se justifica pela experiência do rapaz, já que a melancolia “consiste em um resultado de uma perda. Uma perda afetiva, (...) o desaparecimento de um período de tempo que não volta (...) ou o afastamento de pessoa(s), ou o distanciamento de um lugar” (GINZBURG, 2017, p. 11). A perda da mãe é, portanto, a primeira razão para a melancolia do rapaz, mas não a única: para Jaime Ginzburg, “o comportamento melancólico é caracterizado por um mal-estar com relação à realidade” (GINZBURG, 2017, p. 12), e as circunstâncias político-sociais do Brasil à época retratadas são evidentemente agravantes de qualquer mal-estar interior. Não apenas Ox descreve Martim como “deprimido”, mas inúmeros outros excertos do romance revelam a preocupação dos jovens com o bem-estar do rapaz. Embora a realidade cause descontentamento em todas as personagens/perspectivas que compõem o romance, em Martim é que esse descontentamento se torna melancolia de forma mais patente.
A elaboração do enredo através de múltiplas perspectivas, portanto, permite que cada indivíduo some seu ângulo de observação aos demais na composição de uma memória coletiva, destacando momentos, objetos e pessoas que lhe são mais relevantes no passado daquele grupo. Embora seja Martim o organizador dos fragmentos, as várias perspectivas mantêm sua autenticidade pela preservação de suas vozes: os excertos de diários e cartas surgem em primeira pessoa, gerando o efeito de uma composição democrática em que cada qual tem a voz por sua vez. Procedimento de composição semelhante já fora observado na escrita de Hatoum, como narrativa que se dá por afluência, com vários narradores que se dirigem ao narrador principal (SANTOS; LEAL, 2020). O fato de os olhares que compõem Pontos de fuga não se distanciarem significativamente contribui para uma reconstrução coesa do passado, e a visão deste oferecida pelo romance é a de um passado de violência, fraturas, dispersão. Para José Luís Jobim, “toda experiência individual de Martim é marcada pelo pano de fundo da violência da ditadura militar em pleno funcionamento” (JOBIM 2020, p. 128), e poderíamos acrescentar que não somente as experiências de Martim, mas também das demais personagens, carregam marcas de violência, de modo que as perspectivas múltiplas convergem para essa visão do passado. Assim, ganha força no romance tal visão, sendo construída não a partir de uma, mas de múltiplas perspectivas; não se trata de impressão particular, mas do olhar sobre o passado para o qual convergem as vozes de toda uma geração.
Pintando a terra com seu vermelho cor de pássaro
A terceira publicação cujas perspectivas múltiplas e abordagem da violência propomos analisar em muitos pontos difere das duas anteriores. Torto arado (2019) é a única das três escrita por um autor negro; diferente de Meia-noite e vinte e Pontos de fuga, não é romance urbano, mas passa-se na zona rural; sendo minoria no panorama da literatura brasileira contemporânea (DALCASTAGNÈ, 2008). As personagens são negras e quilombolas, distantes do espaço universitário em que circulam as personagens das outras duas obras - entre outras particularidades. Ainda assim, optamos por incluí-la neste ensaio pela relevância dos dois aspectos que nos interessam e, justamente, por sua especificidade.
Torto arado narra a história das irmãs Bibiana e Belonísia, moradoras da Fazenda Água Negra, pertencentes a uma comunidade de trabalhadores rurais que desde os tempos da escravidão estão sujeitos à exploração e à dependência da terra e das condições impostas pelos patrões. De acordo com Shirley Carreira, “a fazenda Água Negra reproduz a estrutura autárquica das fazendas coloniais que centralizavam o exercício de poder. Exercício esse que continua a existir no Brasil do século XXI, em muitos latifúndios que, secretamente, impõem aos trabalhadores um sistema de escravidão” (CARREIRA, 2021, p. 191). Não é muito distinta, portanto, a situação em que vivem as irmãs de um sistema escravocrata. Impedidos de construir casas de alvenaria para não denunciar seu longo vínculo com a propriedade, esses camponeses têm seus casebres de barro danificados por qualquer intempérie. Não lhes é permitido vender os excedentes da produção de suas próprias hortas nem do que pescam no rio, trabalham incansavelmente nas plantações e ficam completamente vulneráveis diante de estiagens prolongadas ou qualquer outro contratempo climático. Mas não é apenas nas relações de trabalho que a violência se inscreve: na construção íntima das histórias de Bibiana e Belonísia se apresentam frequentemente aos olhos do leitor situações de abuso, sofrimento e morte.
Apresentamos o romance como construção de perspectivas múltiplas por estar a narração dividida em três vozes, que distintamente trazem o olhar de Bibiana, de Belonísia e de uma entidade do jarê - manifestação religiosa sincrética particular da região -, a encantada Santa Rita Pescadeira. Vários acontecimentos são relatados, portanto, mais de uma vez, sob diferentes óticas. Para Joyce Fernandes (que opta pelo conceito de estrutura narrativa polifônica para se referir à construção do romance), tal “recurso da sobreposição de vozes que repetem, retomam e acrescentam memórias individuais e coletivas, pode ser entendida como uma estratégia de construção de uma identidade cultural coletiva e do processo de trauma cultural” (FERNANDES, 2021, p. 246). Concordamos com a ideia de elaboração de memória e identidade cultural coletivas no romance, que traz ao leitor questões que não somente falam “de um tempo passado, [mas] estão bem presentes no Brasil de hoje” (CARREIRA, 2021, p. 196), distantes, contudo, da atenção e consciência da maior parte dos brasileiros. Dessa forma, o político se insere na obra à medida que essa permite ao leitor a ampliação de sua percepção do Brasil, por meio da realidade que é representada no romance: realidade dos explorados, dos silenciados.
É emblemático que o episódio que inicia o romance seja a mutilação das línguas das duas meninas, que, ao encontrarem entre os pertences da avó uma faca de fino acabamento, põem-na em suas bocas, “tamanha era a vontade de sentir seu gosto” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 15). Resultado da curiosidade infantil é que uma das meninas perde permanentemente a língua e a capacidade de falar. O silêncio que recai sobre Belonísia é o daqueles que vivem, sentem, trabalham, mas não podem erguer a voz para falar de suas queixas: sua voz é semelhante a um “arado torto”, som feio ou mal articulado, motivo de deboche para outros que ouvem. Mas o silêncio não é a única desvantagem de Belonísia, e, por extensão, de seu povo.
A dor e a violência são companheiras constantes das personagens. Belonísia escapa da violência doméstica pela morte prematura de Tobias; Maria Cabocla sofre seguidas agressões do marido, até que Belonísia o enfrente, com a lâmina do mesmo punhal no queixo. Severo, primo e marido de Bibiana, é assassinado em frente à sua casa em razão de sua militância pelos direitos dos trabalhadores. A seca e a fome grassam a comunidade em mais de um momento da narrativa; bebês natimortos, crianças e adultos morrendo de fome ou doença, mãos feridas, pés cortados, muito suor molhando a secura da pele exposta ao sol no trabalho diário. O sofrimento que leva à loucura: a avó das protagonistas, Donana, descobriu que o marido violava sua filha sob o próprio teto; matou-o com o mesmo punhal que emudeceria Belonísia e que salvaria Maria Cabocla. Na lâmina da faca foi impresso o sangue de muitos, mas Donana nunca mais veria Carmelita; com a filha se foi sua saúde mental.
Outras personagens perdem a razão no decorrer da história do povo de Água Negra por traições e perdas. As dores, esforços e sofrimentos de Bibiana e Belonísia - ou por elas relatados - são frutos de várias formas de violência impostas a esse povo. À narrativa particular e íntima de cada uma das irmãs soma-se, na terceira parte do livro, a da encantada Rita Pescadeira. Para Carrera, “Valendo-se de uma estratégia narrativa que evoca o sobrenatural para criar o efeito de real, por meio do comprometimento com um espaço mimético reconhecível pelo leitor, Vieira Junior desestabiliza o modo tradicional de representação” (CARREIRA, 2021, p. 195). Para a autora, a presença do elemento insólito, antes de comprometer a “impressão de realidade”, torna-a mais intensa “do que o realismo que se busca mimético” (CARREIRA, 2021, p. 196). A narração de Santa Rita Pescadeira acrescenta à narrativa a possibilidade da onisciência e da expansão temporal. Testemunha das violências sofridas por “seu povo” desde os tempos da escravidão, “a encantada apresenta um discurso de identificação dos perpetradores dessa violência e de reivindicação por justiça” (FERNANDES, 2021, p. 242):
Vi senhores enforcarem seus escravos como castigo. Cortarem suas mãos no garimpo por roubarem um diamante. Acudi uma mulher que incendiou o próprio corpo por não querer ser mais cativa do seu senhor. Mulheres que retiravam seus filhos ainda no ventre para que não nascessem escravos. [...] Mulheres que enlouqueceram porque as separaram dos filhos, que seriam vendidos. Vi um senhor cruel deitar com mulheres negras e abandonar seus corpos castigados à morte, como se quisesse expurgar o mal que o fazia cair. Outro fez do corpo de seu escravo um reparo para o barco imprestável em que navegava. Entrava água na embarcação. O barco chegou ao seu destino com o homem afogado. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 207).
A violência, dor e morte sofridas pelo povo negro na história do Brasil reverberam na voz da encantada como denúncia de uma história dolorosamente verdadeira: a menos “realista” das narradoras é a que traz a perspectiva mais contundentemente realista. A presença das múltiplas perspectivas, portanto, elabora a história e a memória do povo escravizado (e mais tarde explorado) dos campos brasileiros, partindo de uma experiência particular - a de Bibiana -, que se soma a outra visão particular - a de Belonísia -, ampliando a experiência para o âmbito da comunidade. E, finalmente, com a perspectiva onisciente e atemporal da encantada, amplia-se a vivência das violências para todo um povo, ou um país. Não somente na soma das perspectivas está o efeito, mas na sequência em que se apresentam.
A respeito de tais “camadas narrativas”, Fernandes acrescenta que “se sobrepõem e se complementam, além de dialogar com o que entendemos pela história “oficial” do país. No romance, o discurso do registro público é aludido principalmente no contexto educacional, onde é contestado” (FERNANDES, 2021, p. 231). Tal contestação é perceptível em passagens como a que segue, quando Belonísia justifica seu desinteresse pela escola e pelos “ensinamentos” da professora:
Poder estar ao lado de meu pai era melhor do que estar na companhia de dona Lourdes, com seu perfume enjoativo e suas histórias mentirosas sobre a terra. Ela não sabia por que estávamos ali, nem de onde vieram nossos pais, nem o que fazíamos, se em suas frases e textos só havia histórias de soldado, professor, médico e juiz. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 99).
A história oficial do país, contada pela voz das elites e reproduzida pela professora, não parece falar à jovem camponesa sobre nada que possa identificar com sua própria história. Interessa notar que a passagem coloca a professora como a ignorante, já que repete a história distante de desconhecidos, e desconhece a história e importância daqueles ao seu redor. O romance põe em primeiro plano, portanto, a presença e papel dos pequenos, anônimos, sofridos - e silenciados - para a história do Brasil. Como o escravo que se afogou para que o barco chegasse ao destino, Torto arado é a narrativa dos que sofrem toda espécie de violência, não reconhecidos e fundamentais para o funcionamento do país.
Múltiplos olhares sobre a violência no Brasil
A leitura das três obras selecionadas permite o estabelecimento de vários paralelos, apontando para algumas das linhas de força presentes na literatura brasileira contemporânea, conforme mencionado anteriormente. Entre os elementos comuns, vemos que as três oferecem reconstruções do Brasil contemporâneo, destacando diversas formas de violência com as quais convivem as personagens, e tais recomposições se utilizam de multiperspectivismo como expediente de estruturação narrativa. Através de várias vozes, afirma-se a impossibilidade de uma verdade única ou absoluta e valoriza-se a subjetividade e pessoalidade de cada experiência e relato. De forma relativamente unívoca, as diferentes vozes presentes nos romances em questão apontam para direções semelhantes na interpretação que fazem do Brasil contemporâneo.
Em Daniel Galera, as múltiplas perspectivas são entrelaçadas pelo incômodo que o espaço traz a cada personagem, em um constante mal-estar que abrange das sensações físicas ao desencanto que a passagem da juventude à vida adulta traz a cada um dos amigos. Assim como as ruas de Porto Alegre perderam o brilho e vibração que pareciam ter quando as personagens saíam da adolescência, as vidas de Aurora, Emiliano e Antero - e também de Duque, morto prematuramente em consequência da violência urbana - tomaram rumos inesperados e, quase sempre, indesejados. Embora narrado pelos três amigos sobreviventes, não há no romance grande dissonância entre as vozes; as possibilidades futuras não se apresentam tão brilhantes, e a morte é uma sombra a pairar sobre toda a narrativa, seja na forma de latrocínio, aborto, infarto, imagens no telejornal, até a morte da esperança e dos sonhos dos jovens gaúchos na década de 2010. A soma das múltiplas perspectivas, portanto, apenas consolida a ideia de uma geração que perdeu o entusiasmo da passagem do século, com as infinitas promessas de inovação por meio da tecnologia e da internet, e se encontra em uma realidade de desilusão.
No romance de Milton Hatoum, de modo semelhante, as vozes que se somam sob a orquestração de Martim para recompor a memória de uma juventude sob a Ditadura Militar não conflitam. Antes, convergem para a representação de uma geração de estudantes impelidos à resistência por meio da arte, ao enfrentamento das forças militares, ou, no caso do protagonista, à melancolia. Entre dramas particulares e o contexto que exigia uma tomada de posição, múltiplas vozes compõem o romance de forma mais fragmentada que os outros dois, nas instâncias temporal, espacial e de voz narrativa. Tal dispersão remete à diáspora e exílio vivenciados por tantos brasileiros durante as décadas de 1960 e 1970; do asilo em Paris, o jovem Martim organiza a narrativa daqueles universitários através de suas próprias anotações em São Paulo e de inúmeros outros fragmentos, em uma colagem que propõe um retrato daquela geração sob a opressão e a ameaça do regime ditatorial.
O romance de Itamar Vieira Junior, por sua vez, ao invés da cidade, volta o olhar para o campo, e, ao invés de jovens universitários de classe média, dá voz aos trabalhadores do campo, negros quilombolas. O texto se divide em três partes, cada qual narrada por uma voz feminina. A construção das múltiplas perspectivas, na ordem em que se dá, permite ao romance partir de uma reconstrução pessoal da vida daquele grupo - representativo de tantos brasileiros esquecidos - e ampliar-se para uma percepção sistêmica daquela comunidade até, finalmente, uma visão de um povo ou um país sob o mesmo jugo da exploração e da violência em muitas formas. Curiosamente, o elemento insólito (a narrativa pela voz da entidade místico-religiosa) é o que permite a expansão temporal, a onisciência, e, em última instância, o realismo contundente do romance.
Ao observarmos os efeitos alcançados pela construção multiperspectivista nos três romances selecionados, destacamos que cada qual, de forma específica, põe em destaque a violência como elemento constitutivo das relações no Brasil contemporâneo - e de ontem também. Muitos olhares e vozes apontam para direções semelhantes; a representação de determinadas gerações, a reconstrução da memória, a problematização de injustiças históricas, todas denunciam que o brasileiro vivenciou e vivencia, diariamente, múltiplas formas de violência.
Referências
- CARREIRA, Shirley de Souza Gomes. Inscrições do real em Torto arado, de Itamar Vieira Junior. E-scrita, v. 12, n. 1, p. 184-198, 2021.
- DALCASTAGNÈ, Regina. Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 31, p. 87-110, 2008.
- FERNANDES, Joyce. O legado traumático da escravidão em Torto arado Revista Entrelaces, v. 11, n. 23, p. 229-248, 2021.
- FIGUEIREDO, Eurídice. A literatura como arquivo da ditadura brasileira Rio de Janeiro: 7Letras, 2017.
- GALERA, Daniel. Meia-noite e vinte São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
- GINZBURG, Jaime. Literatura, violência e melancolia Campinas/SP: Autores Associados, 2017.
- GONÇALVES, Dayane de Oliveira; GAMA, Mônica. Milton Hatoum e a ficção brasileira contemporânea. Raído, v. 14, n. 34, p. 77-88, 2020.
-
HARTNER, Marcus. Multiperspectivity. In: HÜHN, Peter, et al. (ed.).The living handbook of narratology Hamburg: Hamburg University, 2019. Disponível em:Disponível em:https://www-archiv.fdm.uni-hamburg.de/lhn/node/37.html Acesso em: 22 ago. 2022.
» https://www-archiv.fdm.uni-hamburg.de/lhn/node/37.html - HATOUM, Milton. Pontos de fuga São Paulo: Companhia das letras, 2019.
- JOBIM, José Luis. Migrações políticas nas narrativas de Milton Hatoum e Godofredo de Oliveira Neto. Araticum, v. 21, n. 1, p. 122-143, 2020.
- LEHNEN, Leila. As ruínas urbanas de Daniel Galera. Conexão Letras, v. 14, n. 21, p. 127-139, 2019.
-
NIEDERHOFF, Burkhard. Perspective - Point of View. In: Hühn, Peter, et al. (ed.). The living handbook of narratology. Hamburg: Hamburg University, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www-archiv.fdm.uni-hamburg.de/lhn/node/26.html Acesso em: 22 ago. 2022.
» https://www-archiv.fdm.uni-hamburg.de/lhn/node/26.html - RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.
-
RESENDE, Beatriz. A literatura brasileira num mundo de fluxos. Terceira Margem, n. 23, p. 103-112, jul.-dez. 2010. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/tm/article/view/10951 Acesso em: 2 jun. 2023.
» https://revistas.ufrj.br/index.php/tm/article/view/10951 - ROMAN, Arthur Roberto. O conceito de polifonia em Bakhtin - o trajeto polifónico de uma metáfora. Revista Letras, n. 41-42, p. 195-205, 1992-1993.
- SANTOS, Alexandre da Silva; LEAL, Davi Avelino. Literatura e História: produção de saberes na ficção de Milton Hatoum. Somanlu, ano 20, n. 1, p. 50-64, 2020.
- SCHØLLHAMMER, Karl E. Ficção brasileira contemporânea Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
-
SILVA, David Lopes da. Da geração 2000 à geração Meia-noite e vinte: o realismo engenhoso de Daniel Galera. Fórum de Literatura Contemporânea, v. 10, n. 19, p. 99-118, 2018. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/flbc/article/view/19616/14154 Acesso em: 15 jan. 2022.
» https://revistas.ufrj.br/index.php/flbc/article/view/19616/14154 - VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto Arado São Paulo: Todavia, 2019.
- XAVIER, Luiz Gustavo Osório. Homens à deriva: a representação da masculinidade em dois romances de Daniel Galera 2020. 138 f. Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2020.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Ago 2023 -
Data do Fascículo
May-Aug 2023
Histórico
-
Recebido
22 Ago 2022 -
Aceito
15 Mar 2023