Resumo
Uma análise da situação dos Estudos Literários no Brasil evidencia que a riqueza de sua diversificação não tem resultado numa pacífica convivência de seus estudiosos. Na contramão das explicações habitualmente mobilizadas, este artigo propõe então investigar os motivos teóricos do fenômeno de polarização dos Estudos Literários partindo da vontade de assumir um problema teórico interno à disciplina. Em seu aspecto paradoxal, as teorias de literatura, quaisquer que sejam, definem seu objeto de estudo através de um discurso normativo implícito ou explícito. O artigo sugere que tal aspecto paradoxal pode ser revertido através do uso das ferramentas da hermenêutica: círculo, paradigma e conflito. Por fim, a partir da ideia de conflito das interpretações e com o apoio da hermenêutica crítica de Paul Ricœur, conclui-se pela possibilidade de compreender melhor, e talvez de ultrapassar a polarização atual dos Estudos Literários.
Palavras-Chave: Estudos Literários; hermenêutica crítica; Paul Ricœur; conflito de interpretações
Abstract
An analysis of the situation of Literary Studies in Brazil shows that the richness of its diversification has not resulted in a peaceful coexistence of its scholars. Contrary to the explanations usually used, the article proposes to investigate the theoretical reasons for the polarization of Literary Studies, starting from the desire to take on a theoretical problem internal to the discipline. In their paradoxical aspect, theories of literature, whatever they may be, define their object of study through an implicit or explicit normative discourse. The article suggests that this paradoxical aspect can be reversed by using the tools of hermeneutics: circle, paradigm, conflict. Finally, based on the idea of the conflict of interpretations and with the support of Paul Ricœur's critical hermeneutics, it concludes that it is possible to better understand and perhaps overcome the current polarization of Literary Studies.
Keywords: Literary studies; critical hermeneutics; Paul Ricœur; conflict of interpretations
Resumen
Un análisis de la situación de los Estudios Literarios en Brasil muestra que la riqueza de su diversificación no ha resultado en una convivencia pacífica de sus estudiosos. Al contrario de las explicaciones usualmente utilizadas, el artículo propone investigar las razones teóricas de esa polarización de los Estudios Literarios, a partir del deseo de asumir un problema teórico interno de la disciplina. En su aspecto paradójico, las teorías de la literatura, cualesquiera que sean, definen su objeto de estudio mediante un discurso normativo implícito o explícito. El artículo sugiere que este aspecto paradójico puede invertirse utilizando las herramientas de la hermenéutica: círculo, paradigma, conflicto. Por último, basándose en la idea del conflicto de interpretaciones, y con el apoyo de la hermenéutica crítica de Paul Ricœur, se concluye que es posible comprender mejor, y tal vez superar, la polarización actual de los Estudios Literarios.
Palabras clave: estudios literarios; hermenéutica crítica; Paul Ricœur; conflicto de interpretaciones
Paradoxos dos Estudos Literários
Na urgência dos acontecimentos históricos, temos tendência a pensar que a missão ou, mais modestamente, o “papel” da literatura é denunciar as injustiças, relatar as violências, apontar o escândalo e a catástrofe iminente, dar voz às identidades e diferenças que nos parecem fatos objetivos com os quais nos deparamos a cada instante. Paralelamente, a variedade dos tipos de pesquisa e publicação na área dos Estudos Literários é hoje muito significativa. Há incontáveis estudos de comparação entre obras ou autores, seja pela mediação de um conceito estilístico, como o gótico, ou em forma de comparações entre obras diversas de um gênero, tais como o ensaio, o gender, a literatura de mulheres e a literatura trans. Estuda-se a definição de novos gêneros - como por exemplo a literatura homoafetiva, de testemunho, do trauma e auto-etnográfica. Publicam-se críticas sobre boas ou más obras, bons ou maus períodos, bons ou maus estudos sobre boas ou más obras. Teoriza-se a partir das mais variadas filiações conceituais. Teoriza-se nos mais diversos campos - recepção, hermenêutica, retórica e ontologia. O intersemiótico se multiplica já há algum tempo - música e literatura, cinema e literatura, artes plásticas e literatura, etc. -, e convive com comparações interdisciplinares - entre filosofia e literatura, sociologia e literatura, psicanálise e literatura, etc. Recortes geográficos, linguísticos, históricos, nacionais e transnacionais persistem, ao lado de novos recortes para as identidades culturais: afro-descendência, periferia, povos originários, entre outros. Ferramentas clássicas da área - filologia, poética, estilística e estudo de manuscritos - coabitam com novos conceitos, o resgate, o diário de pesquisa, o material paratextual. Pensa-se sobre o ensino de literatura, sobre o futuro da literatura, sobre o lugar da literatura, sobre o método para estudar literatura. E a lista não é exaustiva, embora seja sintoma de uma pulsão de exaustividade na área.
Diante de um quadro tão diversificado, como encontrar formas de classificação e estratégias de generalização que entendam o campo que aí está?
Neste exato ponto surge o problema: fazer um levantamento sobre o que se faz em Estudos Literários não é como catalogar espécies de borboleta. O conceito empírico das atividades que gravitam em torno da literatura já traz embutida uma decisão necessariamente valorativa a partir da qual se decide o que será incluído e o que será excluído da empiria, de modo que a implicação da normatividade na investigação dos fatos é o primeiro paradoxo do qual não conseguimos nos desfazer. Dizer que seremos objetivos na análise do material classificado em matéria de Estudos Literários é impossível, pois usaremos um método de catalogação baseado sempre, ele mesmo, numa prévia e discutível seleção.1 À imagem do delegado de “A carta roubada” (Poe, 2003), o qual procura o objeto concreto “carta”, objetivo e sem significado, na realidade material e jamais o encontra, corre-se o risco de não chegar ao significado do objeto, isto é, ao sentido dos Estudos Literários, pela lógica da exaustividade realista.
Ora, por contraste, enquanto os estudos produzidos na área se multiplicam a ponto de quase se identificarem com a individualidade dos pesquisadores que os realizam, enfrentamos pelo menos dois perigos reais e materiais, aparentemente opostos, com os quais todo mundo parece concordar: o perigo da insignificância da linguagem da literatura à margem da indústria cultural, e o poder de representação e reprodução de linguagem da inteligência artificial.
Chegamos então à segunda formulação do paradoxo: os Estudos Literários, literatura secundária que alerta para as ameaças concretas à literatura, estão preocupados não apenas com a ação sobre a literatura, mas igualmente com si próprios, enquanto área que, institucionalmente, legifera sobre a literatura: ensina, estuda, pesquisa, define, e também inclui em sua tarefa um juízo de valor sobre seu objeto, afirmando: é importante estudar literatura, é fundamental ler poesia, etc.
A dupla formulação do paradoxo dos Estudos Literários acima exposta - que a área existe porque produz normas para seu objeto, ao mesmo tempo que produzir normas para a literatura é produzir a normatividade dos próprios Estudos literários - mostra que a norma não está no objeto literatura, e sim na atividade subjetiva de estudá-la. No exercício dessa atividade, os sujeitos pesquisadores podem estar se sentindo ameaçados em seu domínio sobre o objeto, mas podem também produzir discursos de empoderamento através do objeto. Explica-se talvez pela insegurança a necessidade de justificar discursivamente a tarefa de estudar literatura legiferando sobre ela, mas o preocupante é a violência sintomática das polêmicas, internas à área, em torno da literatura.
O que proponho no presente artigo é refletir sobre o significado da implicação normativa nos Estudos Literários enquanto problema situado não no objeto de estudo, e sim no sujeito (em sentido coletivo) desses estudos. Trata-se de investigar alternativas em lidar com o paradoxo das normas sem ser dominado por ele.
Permito-me aqui uma opinião pessoal. Quem está na área dos Estudos Literários geralmente acredita na utopia da literatura, mesmo, ou talvez sobretudo quando desacredita de sua realização. Olhar para os estudos da área pensando nas utopias que os regem ou que eles contêm é uma forma de extrair o problema da constituição da área das garras do preconceito positivista de que nossas escolhas estariam divididas entre a racionalidade de uma opção teórica e a obscuridade do sentimento que nos faz optar. Entre as duas coisas, estruturar o campo enquanto utópico é abrir espaço para uma linguagem da coesão entre poder e querer de que só a imaginação criadora e mediadora é capaz. Por essa ótica, a utopia específica do presente artigo é que as divergências subjetivas na área não impeçam, não obstante, de chegarmos a um acordo, pelo menos no que tange o caráter paradoxal da normatividade em nossa área. Reconhecê-lo pode ser um avanço.
Círculo hermenêutico
Todas as palavras do repertório lexical dos Estudos Literários são hoje, não obstante, pequenas armadilhas que dificultam o avanço do pensamento e do conhecimento no campo, micro bombas prestes a explodir ao contato do olhar crítico da comunidade, sempre disposta a desentranhar a carga ideológica de qualquer discurso, e a presença do discurso em qualquer palavra.2 Em matéria de crítica, chegamos ao requinte da máquina de criticar, estamos muito perto da faca só lâmina de João Cabral. Como se não houvesse chão, nossa situação parece mesmo a do cavador do infinito: “quanto mais ele cava, mais o universo se transforma em lava”.3 No entanto, a plena consciência desse processo exaustivo de crítica, uma vez que acabou por atingir o próprio significante “literatura”, é o que me dá ânimo para continuar discutindo no cenário atual a questão da literatura. Ora, perguntas tais como “o que é realmente a literatura?”, “o que é a boa literatura?”, “o que deve ser ou não ser literatura?”, sua função na sociedade, seu eventual desaparecimento, etc., possuem grande probabilidade de emperrar o debate público. Tomo distância dessas questões, e tento criar as condições de possibilidade para a seguinte pergunta: em que sentido os Estudos Literários estão em questão por trás de tais perguntas sobre literatura?
Ora, uma vez assente a relação paradoxal entre o objeto literário singular e o campo de abstração que o estuda e define, o caráter paradoxal se estende a tudo e corre o risco de alimentar a máquina de criticar. Das obras provém a prova experimental de que a literatura é isto ou aquilo, mas ao mesmo tempo, sem uma definição “de essência” das obras, fica difícil provar sua existência concreta apenas através de suas manifestações singulares. Por contaminação, das subáreas provém a prova de que os Estudos Literários são isto ou aquilo, etc. O paradoxo está no fato incontornável seguinte: quando se denuncia a legitimidade do poder de seleção normativa das obras literárias não se produz uma nova seleção, a menos que se apele para alguma outra norma. Mas tampouco se produz seleção localizando e denunciando este mesmo paradoxo. Precisamos procurar outra alternativa, pois o problema é o que fazer com isso.
Comece-se dizendo que o tipo de conhecimento da realidade em que é impossível forjar um conceito empírico capaz de subsumir todos os indivíduos de um conjunto, inclusive os novos e vindouros, é o campo da hermenêutica, no qual o conhecimento, e mais exatamente a compreensão dos fenômenos, repousa sempre sobre a lógica do círculo hermenêutico (Schleiermacher, 1987). O conceito foi forjado para pensar sobre a linguagem, já que toda ela, por mais límpida que pareça ser, pode não ser compreendida, pois compreender as partes de qualquer objeto linguageiro depende de uma visão de conjunto, embora o conjunto seja a soma de suas partes.4
Tudo o que pode fazer sentido tem a ver com linguagem, e é assim que a questão pode migrar para o plano da interrogação acerca do próprio sentido existencial, onde o problema é saber onde está, se não é o cogito cartesiano, o princípio unificador das partes e do todo de uma existência. Ainda na mesma linha de raciocínio, Heidegger (2015) irá definir o ser como um existir, e o existir como um compreender, isto é: o ato do existir enquanto compreensão do sentido de existir.
Em Gadamer, a compreensão existencial passa necessariamente pelos textos da cultura, tematizando a realização do círculo, cum prehendere, através de uma atitude que abrange em conjunto o texto como parte e todo da inteligibilidade existencial. Aceita-se ler como se aceita jogar; aceitam-se as normas do texto assim como se joga uma partida sem ser o dono de suas regras. Gadamer criou os conceitos fortes para o fenômeno da leitura enquanto ato de compreensão existencial: o horizonte de leitura, o pertencimento ao texto, a fusão dos horizontes, a autoridade da tradição, etc. Categorias estas que produzem, no contexto dos Estudos literários modernos, certa atitude crítica de desconfiança.
Ora, o círculo hermenêutico não é um defeito do pensamento, é uma condição existencial humana. O que poderia então significar compreender os Estudos Literários? Com o círculo, compreender um fenômeno quer dizer elevar-se concentricamente a níveis superiores em generalidade do ato de compreender: a crise da explicação do texto pelo leitor pode ser um elemento da compreensão do texto lido, a crise da ciência de que é capaz o estudioso pode possibilitar a compreensão da literatura enquanto fenômeno paradoxal, a crise da inteligibilidade empírica dos Estudos Literários em sua diversidade extrema leva a compreender nele a implicação circular de teorias, e a crise da cientificidade das teorias conduz à teorização hermenêutica das teorias, buscando se há sentido nos Estudos Literários.
Antecipo-me dizendo que a exposição desse modelo de hermenêutica, alicerçado numa crise geral e radical do conhecimento científico no campo das humanidades, como propõe Gadamer em Verdade e método (1997), é fundamental para a questão, mas não será suficiente para dar sentido aos Estudos Literários. Adotarei outro modelo, pois há aqui mais um paradoxo que dou de presente: hoje, a hermenêutica gadameriana, baseada na convicção da crise do conhecimento objetivo, longe de permitir a compreensão da totalidade do fenômeno dos Estudos Literários, ajuda a polarizar a divisão que reina na área.
Se, na órbita dos Estudos Literários, desde sempre existiu o problema tipicamente hermenêutico dos critérios de inclusão das singularidades num conjunto definidor, a proposta aqui é não retornar com o argumento do círculo hermenêutico ao plano da multiplicidade e variedade das obras literárias concretas que os Estudos Literários abrangem. Que esteja em crise um discurso de abstração superior capaz de formular conceitos para uma variedade de práticas as quais, todas elas, podem ser consideradas como Estudos Literários, é fato. Mas geralmente retorna-se, desde esse ponto, ao problema paradoxal da relação de diversificação e legiferação que se tem, em última instância, com a própria literatura.
Entretanto, por essa ótica, as teorias produzidas no âmbito dos Estudos Literários ficarão reduzidas ao contexto de polarização em que hoje sobrevivem, e assim corremos o risco de ter que confessar que em nada avançamos na compreensão geral dos Estudos Literários.
Pode ser mesmo que constatemos o caráter intransponível do primeiro círculo hermenêutico e retornemos à estaca zero. Quem sabe até o objeto “Estudos Literários” seja um mito, ou pior, uma mistificação destinada a impor certa ideologia da unidade do “literário”, ou quem sabe mente, situando-se dentro da racionalidade etnocêntrica que insiste em “estudá-lo”. Pode ser mesmo que os Estudos Literários não façam mais sentido e ponto final. Ou existam paradoxalmente a fim de trabalhar em conjunto na tarefa de negação de seu próprio objeto.5 Mas pode ser também que não seja necessário render as armas tão facilmente. Pessoalmente, pretendo não desistir.
A hipótese do paradigma
Tendo em mente a lógica hermenêutica dos Estudos Literários, proponho agora investigar um ângulo diferente, distinguindo cuidadosamente a reflexão sobre a prática epistemológica (em que condições podemos falar em Estudos Literários?) de um problema ontológico (a condição de possibilidade dos Estudos Literários é estar de posse de uma teoria unificadora sobre a realidade ou a existência).
O problema ontológico - isto já intuíram os formalistas -, vinculado a teorias sobre a realidade, está comprometido com a filosofia ou com a ciência e oculta por definição a legitimidade da questão epistemológica enquanto problema interno dos Estudos Literários. Sob condição de ter que pensar os Estudos Literários enquanto dependência da disciplina em relação a uma ontologia, interdita-se a autonomia teórica dos Estudos Literários, sua capacidade de auto-definição metodológica. Tal capacidade, no entanto, não é incompatível com a proposta hermenêutica de autorreflexão sobre o método, sobre a prática epistemológica, desde que esta não se dedique apenas a criticar a norma enquanto equívoco ou ilusão contida no discurso alheio.
Explorar as condições de possibilidade das normas próprias que regem as práticas dos Estudos Literários é pôr entre parênteses, talvez provisoriamente, as teses ontológicas tanto quanto a implicação das demais áreas do conhecimento no processo de formação das tendências dos Estudos Literários. Usarei aqui o termo paradigma.
É interessante observar que o termo, cunhado por T. S. Kuhn em A estrutura das revoluções científicas (2017), destinava-se inicialmente a entender a especificidade das ciências exatas, as quais, superiores segundo ele às demais atividades culturais, caracterizam-se pela estabilidade em sua forma de pesquisar. Segundo Kuhn, o modo de evolução da ciência, marcado pelo fenômeno de seu progresso, é uma combinação entre uma estrutura de estabilidade, o paradigma, e um leque de pesquisas “normais”, as quais, enquadradas no paradigma, toleram a criatividade e variedade de respostas, muitas vezes divergentes, sem cair na esterilidade das intermináveis discussões inconclusivas acerca dos princípios norteadores de uma determinada área científica. Em suma, pesquisa-se dentro de uma estrutura de pensamento. Podemos partir do princípio que a ideia de paradigma não se incompatibiliza com a questão hermenêutica, muito pelo contrário. O paradigma é uma forma coerente de pensar, e embora ele possa ser ultrapassado, não equivale a uma mera ideologia, já que sua ultrapassagem é um processo interno ocorrido através da produção de anomalias, as quais, pelo seu próprio caráter de anomalia, provam que o paradigma não é apenas um modelo redutível à ideia de falsidade.
Neste sentido, o conceito de paradigma é estrutural, e não ontológico. Para funcionar, não precisa definir a “essência” da ciência, e pertence à matriz conceitual do transcendentalismo. Mas a noção é interessante também para lidar com a historicidade do pensamento na área de humanas, combinando a inteligibilidade dos consensos com os conflitos que nele se produzem.
No campo dos Estudos Literários, uma justíssima aversão ao positivismo cientificista produz certa reação epidérmica a tudo o que tenha ar de estabilidade científica. Mas inversamente o valor moderno do desacordo último e irrevogável enquanto modo superior de pensar, o conceito do paradigma da falta de paradigma, ou até o estado de incessante radicalidade sem período de normalidade acabaram gerando uma contradição que Jameson associa ao discurso do pós-moderno, quando observa que:
uma das características mais marcantes do pós-moderno é o modo pelo qual (...) inúmeras análises de tendências (...) previsões econômicas, estudos de marketing, críticas de cultura (...) revivals religiosos se aglutinaram todos para formar um novo gênero discursivo a que podemos muito bem denominar de “teoria do pós-modernismo”. (Jameson, 1997, p. 14).
Jameson nota ainda que hoje
qualquer observação virtual sobre o presente pode ser mobilizada para investigar o próprio presente, e pode ser utilizada como sintoma e índice da lógica mais profunda do pós-moderno, que assim se torna, imperceptivelmente, sua própria teoria e a teoria de si mesmo. (Jameson, 1997, p. 16).
Em suma, a par da proliferação das pesquisas na área dos Estudos Literários, todas igualmente possíveis e aceitáveis, perdeu-se de vista a unidade de uma questão, tudo se passando como se houvesse nisso uma contradição intransponível do círculo hermenêutico, algo como um fenômeno em que a inteligibilidade das partes depende e não depende de uma visão de conjunto, já que não há mais visão de conjunto.
A ideia de paradigma estruturante para os Estudos Literários formula aqui modestamente uma proposta de resolução da contradição por uma nova dialética que não dependa de um modelo histórico ontológico.
Cenário de divisão
O funcionamento implícito das normas de inclusão ou de exclusão que regem as práticas dos Estudos Literários não são fatalmente estruturas de alienação, uma vez que podem ser pensadas por dentro da área, em que uma plácida extensão coabita com um desacordo estéril apenas na medida em que não se transforma em conflito. Uma coisa aproxima as facetas aparentemente opostas das polêmicas teórico-literárias da área: todas podem ser definidas como recusa da produtividade do conflito através da estratégia de denúncia das ideologias do adversário.
Visto da forma mais esquemática e grosseira possível na cena brasileira, os desacordos que versam sobre a tarefa dos Estudos Literários e sobre o significado da literatura têm tomado a forma do enfrentamento. Por um lado, posições estéticas, acuadas pela dificuldade de perpetuar suas normas no contemporâneo, e, por outro lado, posições culturalistas, caracterizadas pela livre e espontânea recusa ética dos critérios de seleção habitualmente estéticos, susceptíveis de valorizar a qualidade das obras que elas mesmas desejam promover.
Para complicar este tenso cenário, enfrentamos coletivamente uma discussão sobre a indústria cultural. Embora ela já se tenha imposto como realidade material condicionadora hoje de nossa relação com a literatura, os estetas veem o mercado como perigo a evitar, e muitas vezes inclusive como catástrofe inevitável que justifica seu pessimismo, e os culturalistas o veem como um obstáculo que inclui a possibilidade da ação transformadora dos comportamentos pelo domínio sobre o poder do mercado. Existe desacordo não acerca da existência do mercado, e sim acerca de sua significação existencial e histórica.
Roberto Acízelo diagnosticava há quase 10 anos uma dualidade fatual entre certo hermetismo literário versus a indústria cultural, sem interesse na literatura.6 Afirmava então que “a partir da segunda metade do século XX, a literatura, em termos de consideração pública, decaiu da posição elevada que vinha ocupando desde o século XIX” (Souza, 2015). Desejoso de esboçar uma explicação que ele mesmo qualifica de “síntese sumaríssima” (Souza, 2015) para este fenômeno, ele prosseguia: “por um lado, o experimentalismo das vanguardas estéticas, suscitando produtos literários cada vez mais sofisticados e herméticos (...); por outro, a indústria cultural (...) capacitando-se a oferecer às grandes massas urbanas estímulos estéticos alternativos à literatura (...)” (Souza, 2015). Mas sugiro pensar que a dicotomia apontada exige uma interpretação de seu significado, e por isso o mercado não é apenas uma realidade material que nos afeta, e sim um fenômeno que nos divide internamente. Precisamos saber por quê.
Em um artigo imediatamente anterior,7 o mesmo autor versou sobre os “vários eixos que atualizaram sucessivamente a confluência literatura/educação” (Souza, 2014, p. 209), advertindo que o “eixo da diversidade” atual, em que “a literatura passa a ser concebida como transparência às diversas identidades não reconhecidas ou dominadas: a das mulheres, a das etnias politicamente minoritárias, a dos homossexuais, a das sociedades pós-coloniais” (Souza, 2014, p. 209), já pode estar em risco, caso seja incapaz de renovar suas próprias normas teóricas, devidamente articuladas com a missão educativa da literatura, de maneira que, como ele alerta, a lógica do consumo individualista não corrompa a intenção ética da diversidade. Acrescento que a lógica do consumo individualista também atinge os indivíduos pesquisadores em sua aceitação da produtividade como critério de reconhecimento e recompensa de sua tarefa. Doa a quem doer.
Se as observações de Acízelo convidam a pensar uma ética da subjetividade capaz de questionar suas próprias normas, inclusive as das ações individuais, não temos assistido a isso. Veja-se por exemplo a última polêmica em torno da publicação pela Companhia das Letras da obra Casa de alvenaria, de Carolina Maria de Jesus. Enquanto a Profa. Regina Dalcastagnè denuncia em um post na mídia (2014) a transformação de Carolina em fetiche exótico, em decorrência da decisão editorial de manter os “desvios linguísticos” de seu português, Gabriel Nascimento, em uma carta aberta publicada recentemente, desmascara a pesquisadora enquanto representante da tradição brancocentrada do Brasil. Segundo ele, Dalcastagnè, acadêmica-branca-de-elite-preconceituosa, cegada pelo preconceito de classe e raça, não percebeu que Carolina de Jesus não fala português, fala pretuguês. Concordo que seja legítimo, sem dúvida, que a escritora não seja revisada em virtude de normas que não lhe pertencem e às quais não se refere. Seria até uma contradição performática que ela fosse lida pela lógica dos desvios em relação a uma norma linguística que não é a sua própria, sobretudo quando isto significa deixar paralelamente de ser lida pela beleza da língua que fala.
Entretanto, ao colocar uma pergunta sobre tradução apontando o “monolinguismo dos críticos de literatura” (Nascimento, 2023, p. 9338), o autor da carta aberta, ao mesmo tempo que fala negativamente do “guarda-chuva equivocado da norma” (Nascimento, 2023, p. 9336), fala positivamente de sua própria norma como se ela não fosse “uma grande tradição de africanizar o português brasileiro” (Nascimento, 2023, p. 9338). É essa dissimetria entre crítica e valorização positiva que o leva a afirmar que a naturalização é, quase que ontologicamente, algo positivo: “autores e críticos precisam naturalizar a escrita e fala das pessoas negras” (Nascimento, 2023, p. 9339). No entanto, desnaturalizar é um dispositivo fundamental da crítica das ideologias, é denunciar a atribuição de qualidades essenciais a um fenômeno apenas construído socialmente. Desnaturalizar (criticar) e naturalizar (deformar), embora sejam dois verbos antitéticos, são ambos negativos em planos analíticos diferentes: desnaturalizar é um gesto de reflexão crítica que se destina a denunciar as relações de poder que estruturam a realidade mas não são percebidas na superfície. Naturalizar é acreditar ingenuamente que as ilusões ideológicas refletem a realidade, reforçando o poder mistificador das ideologias. Nenhuma das duas palavras se aplica à ideia de positividade dos valores culturais nos quais acreditamos ou que queremos valorizar.
Por sua vez, na liderança do Grupo de Literatura Brasileira Contemporânea da UnB, Dalcastagnè, autora do relevante estudo Literatura brasileira contemporânea - um território contestado,8 recusa a naturalização dos efeitos sociais das desigualdades, e, por isso, pode tratar a invisibilidade das identidades minorizadas como reprodução de ideologia, não como realidade, a não ser como deformação de realidade. Como se vê, em ambos os discursos, há a não dita norma do positivo: o desejo de transformação da realidade, os “livros que consigam definir o Brasil”9, o reconhecimento da beleza do pretuguês. A falta de conhecimento transparente da realidade que nos determina nos obriga à denúncia do ideológico, e a transformação do real depende de uma práxis. Embora tal práxis seja justíssima, frases como “não é a norma que cria os sujeitos, mas é dos sujeitos que emanam as normas” (Nascimento, 2023, p. 9339) misturam vários planos: língua como sistema (do Bantu inclusive), formas de falar, diferença entre língua e fala, discursos em ritmo do sujeito, convenções políticas e sociais, ação dos sujeitos, determinação infra estrutural etc. Está claro que podemos e devemos transformar o mundo questionando as normas, mas é óbvio que um sujeito não cria sozinho uma norma, que um crítico não tem poder de decisão ontológica sobre ela, e que as normas, como as línguas, são coletivas sem serem apenas uma convenção entre indivíduos. Em outras palavras, não me parece possível ser um indivíduo que afirma seus valores considerando-se isento de ideologia. E ainda: ou todas as normas são ideologias, ou a norma nunca é apenas ideologia, embora todas as normas possam também ser ideologias. Se a gente aceita as regras do jogo só quando está ganhando, não está produzindo o questionamento das regras. O que não quer dizer que o sujeito deva desistir de jogar uma partida. Ao contrário, ele deve afirmar-se.
Mas a postura de adesão ao cânone sofre igualmente por falta de exploração de seus princípios normativos próprios. Assim é que, por exemplo, Leyla Perrone-Moisés, falando de seu último livro, Mutações da literatura no século XXI (Perrone-Moisés, 2016)10, caracterizou seu trabalho, em entrevista à Folha de São Paulo (Perrone-Moisés, 2017), como uma crítica aos estudos culturais “que tratam a literatura como documento”. O problema, segundo ela, viria de uma confusão dos gêneros feita pelos culturalistas, os quais se equivocariam pela falta de cuidado na delimitação das fronteiras disciplinares, por carecerem “de formação histórica, sociológica e política suficiente”. Já começa por aí a questão. Então não haveria também confusão de gêneros na atribuição de autoridade literária ao sociólogo, ao historiador, ao cientista político? Paralelamente, Perrone-Moisés deplora, como eu também deploro, o desaparecimento da “literatura enquanto tal” dos currículos escolares, fato que resulta em sua redução a uma mera vertente dos estudos linguísticos.
Hoje caiu em desuso argumentar em nome da essência do literário, e, portanto, o desaparecimento dos textos literários da grade já significa de facto, o desaparecimento dos “critérios para definir o valor de uma obra”. Mas não precisamos nos conformar com isso, uma vez que temos o poder de continuar afirmando critérios se admitirmos que eles não estão apenas nas obras e sim na cultura e no sujeito11 dos Estudos Literários. A crítica das políticas públicas exige um esforço de teorização dos valores, um esforço que se apoia em utopia, em desejo de um mundo melhor com literatura, e não apenas nos textos enterrados do cânone.
Se, como Perrone-Moisés ainda diz ao final de sua entrevista à Folha de São Paulo, “é preciso partir do objeto texto, ver como ele é construído para alcançar sua significação ao longo da história (...)”, é possível que aluda a uma hermenêutica gadameriana ou à teoria da recepção de Jauss para contestar a clássica mania historicista de periodizar. Mas o efeito aqui é que o texto de literatura será tomado como realidade cultural transparente. Por isso creio que um acordo entre esteticistas e culturalistas na área dos Estudos Literários precisa procurar um meio termo através da ideia de que não há definitivamente coincidência prévia entre literatura e realidade.
Isto é de certa forma o que propõe a estética da teoria da recepção de Jauss, em que o fenômeno de inclusão e de exclusão das obras tanto perpetua quanto transforma a sociedade. Mas se a análise desse processo é convincente para entender de que maneira os textos do passado chegaram até nós, entretanto o problema da dialética histórica, a meu ver, não ficou tão bem resolvido por Jauss. Quando se tratou de entender de que forma as obras continuam e continuarão a chegar até nós,12 embora tenha antecipado a perfeita legitimidade dos estudos culturais em tomar parte no processo de constituição da história literária, a estética da recepção não demonstrou quais são os critérios de leitura do presente. Neste sentido, a par de uma contingência histórica enquanto produtora de regras inclusive para reler ou desler o passado, a estética da recepção não responde totalmente à questão das normas de seleção dos objetos literários nem as atribui à área específica dos Estudos Literários.
Diante da dificuldade em lidar com a questão dos Estudos Literários num espaço público marcado pelas polarizações, por vezes violentas, temo que agora já não baste cada um reivindicar alto e bom som suas normas para o objeto “literatura”.
Por fim, observo que a polarização atua também dentro dos Estudos Literários nos discursos definidores dos gêneros literários enquanto opostos entre si. A poesia, outrora eminente, hoje relegada à marginalidade, afirma sua postura crítica em relação à sociedade e ao resto da literatura, num jogo de passividade e atividade em relação ao fenômeno de exclusão que a toca, numa linha baudelairiana já consolidada e tradicional. De fato, uma já longa tradição de desacordo entre experiência poética, conhecimento científico e engajamento político, ou de desacordo entre linguagem poética e entretenimento, delineia os contornos de um campo que se faz pensante por conta própria como condição de sobrevivência. As relações de exclusão, de inclusão e de implicação entre poesia, teoria, filosofia e literatura também adensam as tensões do normativo, nunca completamente assumido.
Neste cenário, como concede Marcos Siscar, se “não há receita para saber o que é a boa literatura”13, isto não significa que não devamos ou não possamos discutir a questão: “há um esforço a ser feito hoje para continuar arrancando sentido do fluxo pantanoso de insignificância14 no qual se tem tentado jogar a poesia”, ele afirma.15 Ele é crítico à lógica mercadológica: “o exercício único e exclusivo da razão mercadológica limita e empobrece a nossa vivência da poesia e o sentido da literatura”16. Destaco a utopia do projeto. Mas por que arriscar no jogo apenas “a nossa vivência da poesia”? Talvez seja interessante salvar do fluxo pantanoso os próprios Estudos Literários, enquanto campo mais geral para o qual é ainda necessário inventar teorias que deem sentido ao estudo de literatura em conjunto. Do contrário, o que será de nós, que não somos poetas?
Reforçar o campo teórico: o conflito das interpretações
Leio em Feminist Explorations of Paul Ricœur’s Philosophy, organizado por Annemie Halsema e Fernanda Henriques:
O conflito de interpretações que Ricœur nomeia denuncia a capacidade da razão humana em dizer a última palavra sobre um assunto - na herança de Kant - e também proclama a necessidade de diálogo entre os rivais hermenêuticos de forma a atingir o entendimento mais completo possível de cada assunto (...) Para Paul Ricœur, o conflito de interpretações é o que nos permite atingir o mais profundo entendimento da realidade. (Tissot, Damien in Haselma; Henriques, 2016, p. 4-5, tradução minha).17
A estratégia agora é refletir com Ricœur sobre as condições de transformação da polarização na área dos Estudos Literários em conflito produtivo. O primeiro passo é teórico-crítico: não dispomos de um sujeito senhor de si e fundador absoluto do pensamento, nem dispomos de um aparato filosófico conceitual sistemático e todo-poderoso para interpretar o mundo, nem somos capazes de produzir um conhecimento total da realidade. Em suma, ao mesmo tempo que o gesto interpretativo é incontornável, as ferramentas disponíveis para uma hermenêutica da existência não são as do conhecimento ontológico. A ideia, já presente numa decisão precoce tomada por Ricœur desde “A simbólica do mal” (1960), acena para dois caminhos que se cruzarão na tese da hermenêutica crítica: reconhecer os limites da filosofia hermenêutica em matéria de interpretação existencial, e reconhecer que o sujeito humano está sempre às voltas com uma negociação de sua identidade enquanto subjetividade em conflito. A cultura é feita de símbolos, mitos, textos, narrativas, mas também, de conhecimento, e nestas linguagens se produzem as ferramentas da interpretação. Pela ótica ricœuriana, todo o campo da hermenêutica existencial, além de problematizar a identidade, estende a problematização à esfera da própria cultura, onde a ideia de conflito será determinante porque a hermenêutica da existência será também uma hermenêutica dos textos: “Do que finalmente me aproprio, é uma proposição do mundo; esta não está por trás do texto, como estaria se fosse uma intenção oculta, mas diante dele, como aquilo que a obra desdobra, descobre, revela. A partir daí, compreender é compreender-se diante do texto” (Ricœur, 1986, p. 130, tradução minha).18
Mais precisamente formulada num livro feito para dialogar com o estruturalismo, ou seja, em O conflito das interpretações (Ricœur, 1978), a tese central do conflito volta-se para o problema da existência dos textos e propõe que a estruturação dos valores e saberes da cultura, no campo da hermenêutica dos textos, dê-se através do conflito. Sem o conflito, nada se estrutura, como mostra a controvérsia entre Gadamer e Habermas exposta por Ricœur em Du texte à l’action (1986, p. 367-368). Duas hermenêuticas que, como ele observa, se apresentam na discussão pública e acadêmica como opostas porque falam de lugares diferentes, mas são complementares, na medida em que uma hermenêutica crítica mostra que tais hermenêuticas podem se reforçar respectivamente pela modalidade do conflito.19
De certa forma, todo gesto de interpretação de um texto precisará se apoiar na positividade do próprio texto, e nesta perspectiva, um gesto hermenêutico não é uma negação de seu objeto, é um gesto de “reconhecimento das condições históricas às quais toda compreensão humana está sujeita no regime da finitude” (Ricœur, 1986, p. 400). Textos de literatura propõem mundos diante dos quais nos entendemos. Para esse tipo de hermenêutica, interpretar dá-se no âmbito de uma tradição de interpretação, no seio de uma cultura, através de uma prática originada naquilo que desde já trabalha sorrateiramente nela. Interpreta-se pertencendo. De dentro da tradição, a partir de uma posição de historicidade, em função de um horizonte e através de um preconceito de leitura, nosso desde sempre já aí, tais são as condições de possibilidade da compreensão de texto para a hermenêutica da recolecção. Tal experiência é estética, mas note-se que a expressão aqui não significa uma atividade do juízo de gosto. Estético aqui consiste em sustentar no texto sua dimensão de produção de sentido histórico enquanto algo que se origina na própria experiência de alteridade à qual nos expomos diante do texto.
Por outro lado, numa linha de total reconhecimento da função crítica da interpretação e do papel incontornável das ciências humanas produtoras da crítica das ideologias, Ricœur afirma a necessidade da leitura de suspeita em relação à positividade inquestionável da tradição e do texto. É um gesto de “desafio dirigido contra as distorções da comunicação humana” (Ricœur, 1986, p. 400). De certa forma, enquanto discurso paralelo aos objetos textuais da literatura, os Estudos Literários objetivam o significado latente dos textos: estruturas, conteúdos inconscientes, ideologias contidas nas diversas produções e manifestações da cultura humana. É para este tipo de hermenêutica que a dimensão estética da literatura pode significar mistificação, ocultação do real sentido, reprodução ideológica. O impensado, a origem não sabida das ações e dos discursos, o inconsciente pulsional tal como descoberto por Freud, o inconsciente estrutural tematizado por Lévi-Strauss, as condições materiais reais, tais são as dimensões da desconfiança moderna diante dos fenômenos de linguagem da cultura.
A tese de Ricœur é que nenhuma das duas hermenêuticas funda a experiência da compreensão, ambas a mediatizam e entram uma com a outra numa relação dialética produtora de cultura e de sentido, e isso supõe um deslocamento da oposição entre a ideia de recolecção sem crítica e de crítica sem recolecção.
A hermenêutica da recolecção do sentido, segundo Ricœur, precisa estar penetrada pelas ferramentas crítico-teóricas das ciências humanas, as quais, quando aplicadas ao texto, são ferramentas da desconfiança. Hoje os textos já não podem ser lidos ingenuamente, e não existe para nós a compreensão espontânea e direta, a crença no texto ou no mito do texto. Mas se não podemos descartar o aparato crítico-teórico que norteia as práticas das disciplinas de humanas, inclusive dos Estudos Literários, isto não significa que possamos considerá-lo como fundador, como revelador de verdade última. Pois por outro lado, as hermenêuticas da suspeita são devedoras ao arcabouço simbólico e cultural sem o qual nem mesmo se justifica a própria vontade de criticar e de desconfiar, ou a vontade de acreditar na ideia de uma comunicação sem limites. Por isso Ricœur dá razão a Gadamer, quando este último afirma contra Habermas que é preciso desconfiar da desconfiança. 20
Se uma leitura de recolecção não é nem deve ser uma leitura de ingênua participação, de adesão espontânea à tradição como produtora de sentido, uma leitura de crítica das ideologias tampouco pode ingenuamente ignorar seus próprios preconceitos de leitura. Assim é que a interpretação da articulação dialética entre as hermenêuticas pode mostrar como a ingenuidade pode estar dos dois lados.
Voltando então ao que está em questão no artigo: a possibilidade de compreensão dos Estudos Literários por eles mesmos. Do ponto de vista do debate polarizado, pode-se pedir aos dois lados que, ao se esforçarem para explicitar suas próprias normas, reconheçam que algo do princípio hermenêutico do adversário está contido em seu próprio gesto de interpretação. Do ponto de vista da extrema diversidade da área, talvez a hipótese do paradigma hermenêutico, em seu modelo dialético de mediatização do texto e pelo texto, torne pensável uma reflexão sobre os limites internos da área.
Referências
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» https://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Noticia/Radiografia-da-literatura-brasileira - GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997.
- HASELMA, Annemie; HENRIQUES, Fernanda (org.). Feminist explorations on Paul Ricœur’s Philosophy Lexington Books, 2016.
- HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo 10. ed. Tradução de Marcia Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes , 2015.
- JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997.
- KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas 13. ed. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2017.
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- PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI São Paulo, Companhia das Letras, 2016.
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» https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/02/1857605-leyla-perrone-moises-fala-sobre-a-resistencia-da-ficcao.shtml - POE, Edgar Allan. A carta roubada e outras histórias de crime & mistério Tradução de William Lagos. Porto Alegre: L&PM, 2003.
- RICŒUR, Paul. Du texte à l’action: essaies d’herméneutique 2 Paris: Editions du Seuil, 1986.
- RICŒUR, Paul. Philosophie de la volonté: Finitude et culpabilité 2 - La symbolique du mal Paris: Aubier, 1960.
- RICŒUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Trad. M. F. Sá Correia. Porto: Rés-Editora, 1978.
- SCHLEIERMACHER, Friedrich. Herméneutique : pour une logique du discours individuel Paris: Le Cerf, 1987.
- SEDGWICK, Eve Kosofsky. Paranoid Reading and Reparative Reading; or, You're So Paranoid, You Probably Think This Introduction is About You. In: Novel Gazing: Queer Readings in Fiction Durham: Duke University Press, 1997. p. 123 - 151.
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SISCAR, Marcos. Sobre a poesia que vende. Blog Marcos Siscar, Campinas, 2017. Disponível em: https://marcossiscar.blogspot.com/2017_03_01_archive.html Acesso em: 20/05/2017.
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- SOUZA, Roberto Acízelo Quelha de. E a literatura hoje? In: V Seminário dos Ppg da Área de Letras e Linguística 2015, Campinas. , Campinas: UNICAMP, 2015.
- TISSOT, Damien. Transnational Feminist Solidarities and Cosmopolitanism; In Search of a New Concept of the Universal. In: HASELMA, Annemie; HENRIQUES, Fernanda (org.). Feminist explorations on Paul Ricœur’s Philosophy Mayland: Lexington Books, 2016. p. 79-100.
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1
Área e subáreas da CAPES são um bom exemplo disso.
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2
Chamo a atenção para o fato que a censura das palavras não impede a produção de ideologias no plano semântico. Proibir ou censurar palavras pode ser um resquício de preconceito semiótico que acaba dificultando a tarefa da crítica das ideologias.
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3
Do poema “Cavador do Infinito”, de Cruz e Sousa (1961).
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4
Se isto for visto como problema insolúvel, chega-se aos conceitos derridianos de desconstrução e de diferência.
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5
Posição assumida de alguns teóricos entre nós. Se a literatura não existe, o que seriam então os Estudos Literários?
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6
Numa palestra realizada a convite meu, durante o V Seminário dos PPG da Área de Letras e Linguística que organizei (na parte de Letras) na Unicamp em 2015, quando era coordenadora do PPG Teoria e História Literária.
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7
“A confluência literatura/educação: suas realizações históricas” (2014).
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8
Editora Horizonte, 2015.
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9
Entrevista à Revista Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná. Radiografia da literatura brasileira. Revista Cândido, Curitiba, 4 abril 2014.
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10
São Paulo, Companhia das Letras, 2016.
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11
Em sentido coletivo.
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12
Em “Pour une herméneutique littéraire” Jauss tenta resolver o problema da estética do texto através de um modelo estilístico e poético formal, hoje ultrapassado.
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14
Contra a insignificância do fenômeno poético, Meschonnic propõe o termo significância, outrora cunhado por Émile Benveniste, termo que se distancia das concepções dualistas do discurso poético (ora visto como estrutura de significantes, ora como estrutura de significados) pelo ângulo da renovação do pensamento sobre o ritmo, que tem muito em comum com uma teoria da imaginação poética.
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15
Entrevista concedida a Milena Magalhães. Revista Alère, v. 14, n. 2, 2016.
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16
Idem
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17
“The conflict of interpretations that Ricœur designates denounces the ability of human reason to say the last word on a topic - in the heritage of Kant - and also proclaims the need for dialogue between the hermeneutical rivals to accomplish the fullest possible understanding of each topic (...) For Paul Ricœur, the conflict of interpretations allows us to achieve the deepest understanding of reality.”
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18
« Ce que finalement je m’approprie, c’est une proposition du monde; celle-ci n’est pas derrière le texte, comme le serait une intention cachée, mais devant lui, comme ce que l’oeuvre déploie, découvre, révèle. Dès lors, comprendre c’est se comprendre devant le texte. »
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19
Ecos deste modelo encontram-se em Sedgwick (1997).
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20
Ver sobre o assunto em Aguirre (1998).
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Financiamento
O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
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Parecer Final dos Editores
Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Nov 2024 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2024
Histórico
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Recebido
06 Nov 2023 -
Aceito
11 Mar 2024