Em meio à escassa literatura historiográfica acadêmica sobre os performers musicais, o livro de Robervaldo Linhares Rosa é uma grata surpresa. Como é bom poder tocar um instrumento: pianeiros na cena urbana brasileira (ROSA, 2014) atrai os olhos de qualquer musicista, tanto pelo estofo recheado de informações quanto pela maciez do tecido com que foi escrito. É uma aula sobre como escrever sobre um instrumento e seus instrumentistas e deveria ser tomado como modelo entre os pesquisadores da performance que procuram comunicar seus resultados de pesquisa. Robervaldo o faz tão bem, que o livro se torna acessível também ao leigo interessado em música, que recebe a devida atenção, como ser informado que o luthier italiano Bartolomeo Cristofori foi o inventor do piano no século XVIII. Para o leitor músico, por exemplo, inclui exemplos musicais com excertos rítmicos (ROSA, 2014, p.64, 65 e 188), que esclarecem as características da síncope na música brasileira. Especialistas e diletantes vão apreciar, do começo ao fim, as 255 páginas que passaram por dois crivos muito exigentes, sua tese de Doutorado em História pela UnB de 2012 e o concurso do Prêmio Funarte de Produção Crítica em Música, o qual venceu em 2013.
Apesar de se originar de uma tese de doutorado, Robervaldo conseguiu limpar o tom empedernido e a aridez que caracterizam esses documentos acadêmicos. Escolheu bem as diversas epígrafes com que abre diversas seções do livro, como essa do escritor José de Alencar (citado por ROSA, 2014, p.26): "O piano foi para a mulher o que o charuto é para o homem, um amigo para todas as horas e um confidente alerta". Ou essa outra, vinda de um dos compositores brasileiros que soube apaziguar as fricções e acotovelamentos entre as músicas erudita e popular no Brasil:
"O pianeiro faz-me tão bem à saúde como um moteto de Palestrina, cantado pelos meninos da Capela Sistina. Dá-me alegria de viver, restabelece-me o equilíbrio interior, transmite-me euforia". (Brasílio Itiberê, citado por ROSA, 2014, p.43).
Mais do que isso, o autor se deixa contaminar com um estilo literário que torna a leitura do livro ainda mais prazerosa, como nesse trecho (ROSA, 2014, p.63):
"Ora, se compartilho com Milhaud a premissa de que o ritmo define o caráter da música pianeira, assim como a constatação de que, em seu contexto, os gêneros mais recorrentes das teclas brancas e pretas dos pianos (hoje talvez, amareladas e carcomidas) revelavam, buliçosamente, muito das cores do Brasil, sinto a necessidade de rastrear os caminhos dessa música tipicamente brasileira e do efetivo emprego de seu ritmo nas composições que embalaram tantos momentos de entretenimento e distrações."
Do ponto de vista científico, Robervaldo fundamenta bem seu livro, recorrendo a referenciais teóricos tradicionais, jornais, revistas, partituras, iconografia, gravações de áudio e vídeo e material da internet. Centenas de fontes textuais impressas, 8 entrevistas, 32 partituras e 27 documentos sonoros tornam, de fato, seu estado da arte, como ele mesmo diz ser, "...constituído de fontes plurais..." (ROSA, 2014, p.17).
Encontrar apenas dois senãos na organização do livro não diminuem seus muitos méritos, mas apenas revelam um pouco de trabalho que o leitor pode ter. Primeiro, o anexo de imagens (fotos e desenhos de pianeiros, seus locais no Rio antigo, capas de partituras históricas e seu conteúdo) poderia ter sido distribuído ao longo do livro, tornando as ilustrações mais contextualizadas e oportunas. Como ocorre, por exemplo, com a única ilustração inserida no meio do texto, à p.106, em que o genial chargista Raul Pederneiras sintetiza (em 1924? Assim sugerem as referências...), a partir do gosto musical, as classes sociais com suas roupas, maneirismos, sotaques e distribuição geográfica no Rio de janeiro. Ao mesmo tempo em que rimos, aprendemos que os antigos bairros de Cidade Nova, Gambôa, Saúde e "adjacências" preferiam letras de fossa como em "Bem sei que tu me desprezas...". Se São Cristóvão, Vila Isabel e "vizinhanças" poetizavam como em "À noite, o plenilúnio é como um sonho...", a classe nobre residente em Botafogo, Copacabana e "outras babéis" se deliciavam com o italiano, como em "Non t'amo più! ... Vorrei morir!..." Robervaldo faz uma boa análise iconográfica dessa charge e quase nos incita a inferir que as três tiras da charge de Pederneiras refletem os três estratos sociais que já vinham se desenhando claramente na sociedade brasileira desde o começo do século XIX, pelo menos: os escravos negros com o violão, os europeus brancos com sua ópera e piano de cauda e, espremidos entre os dois, os morenos como Chiquinha Gonzaga e tantos outros pianeiros com seus pianos de armário. Ainda em relação às imagens, faltou dar o crédito ao autor a charge usada na capa e o pianeiro ali representado (seria o Sinhô?).
O segundo senão é a falta de um índice onomástico (fácil nesses tempos modernos, em isso pode ser feito automaticamente em softwares de texto), que obriga o leitor a folhear o livro para frente e para traz se quiser localizar nomes de pianeiros ou de figuras importantes desse entorno, como os chargistas e desenhistas de capas de partituras. Robervaldo até teve um relance nesse sentido nos Capítulos 5 e 6, ao colocar nomes de 18 pianeiros mais destacados em negrito. Mas sem negrito, as dezenas de pianeiros, menos conhecidos continuam difíceis de serem localizados em uma busca mais ágil. Um índice de obras no final também poderia otimizar o rico conteúdo do livro.
No Capítulo 1, Robervaldo adentra a sociologia dos pianeiros, mostrando a dicotomia entre a educação feminina no instrumento e os obstáculos das mulheres se apresentarem em público. Discute a demanda pela nova profissão dos pianeiros, abordando seu perfil cultural e a consolidação do piano como bem de consumo, de prestígio e status social, "...indispensável em um salão ainda mesmo quando nenhuma pessoa da família o saiba tocar", diz o sociólogo Gilberto Freyre (citado por ROSA, 2014, p.29).
No Capítulo 2, o autor disseca a etimologia e emprego do termo pianeiro versus o termo pianista na literatura. Aborda também os gêneros que supriram incialmente o repertório do primeiro: a modinha, o lundu, o choro o maxixe e o principal antecedente do choro, o tango brasileiro. Aqui também a figura pioneira de Chiquinha Gonzaga e o gênero choro, no qual se destacou, são trazidos à tona.
No Capítulo 3, Robervaldo discute a hibridação dos gêneros estrangeiros no país. Contextualiza a síncope brasileira entre a síncope europeia (e sua notação) e a síntese aditiva da rítmica africana, um aspecto fundamental nas práticas de performance dos pianeiros. Por fim, enfatiza os papéis dos dois pioneiros na cena musical carioca e brasileira, que tiveram experiências bem distintas: Chiquinha Gonzaga, revolucionária tenaz dos papéis femininos na sociedade ("...uma das figuras mais importantes na luta pelas liberdades no país" diz Edinha Diniz, citada por ROSA, 2014, p.72) e Ernesto Nazareth, cuja autoestima foi continuamente testada por transitar mais no limiar entre as práticas populares e eruditas do piano ("Por que eu não fui estudar na Europa?..."citado por ROSA, 2014, p.83)
No Capítulo 4, assistimos os costumes do império dando lugar a uma nova urbanização do Rio, quadro que se reflete no sotaque europeu das valsas e schottishes do elegante mulato brasileiro Aurélio Cavalcanti dando lugar ao molejo carioca de uma nova geração de pianeiros "...de bairros periféricos..." (ROSA, 2014, p.119): Menezes Filho, Costinha, Corujinha, Chirol, Xandico, J. Garcia de Christo, Azevedo Lemos, Bulhões, Viúva Guerreiro e Mário Penaforte.
O Capítulo 5 traz os pianeiros do início do século XX ligados à herança da negritude cantada e dançada, como nas marchinhas de carnaval, nos sambas e, mesmo, nas repercussões do ragtime no Brasil. O autor põe em destaque figuras emblemáticas do Rio de Janeiro (Sinhô, Augusto Vasseur, Eduardo Souto, Careca e Freitinhas) e de São Paulo (Marcelo Tupinambá, Zequinha de Abreu, Giovanni d'Alice e Idálio de Mello).
No Capítulo 6, o autor discute a adaptação da profissão de pianeiro frente às inovações tecnológicas do rádio e do cinema. Aparecem o pianeiro das gravações de disco em estúdio, o pianeiro das trilhas sonoras ao vivo para os filmes mudos e, após o advento dos filmes falados, o pianeiro que recepcionava o público tocando nas salas de espera dos cinemas. Assim como o capítulo anterior, o Capítulo 6 também tem um cunho biográfico, focado em três grupos históricos: começa com os eruditos-populares Ary Barroso, Radamés Gnattali e Tia Amélia; passa pelos virtuosos Aloysio de Alencar Pinto, Carolina Cardoso de Menezes e Bené Nunes; e chega até os bossa novistas Dick Farney, Johnny Alf e Tom Jobim.
Finalmente, com a vontade de ler mais sobre o tema, fica a esperança de que Robervaldo continue seus estudos sobre essa temática para ampliar seu escopo e nos revelar pianeiros que possivelmente surgiram em todo o Brasil, fora do eixo Rio-São Paulo.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jul-Dec 2015
Histórico
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Recebido
07 Maio 2015 -
Aceito
22 Set 2015