RESUMO:
Este trabalho propõe demonstrar a relação entre o compositor José Siqueira e o violoncelista russo Mstislav RostropovichMstislav Rostropovich Foundation. 2021. [Mensagem pessoal]. Mensagem recebida por Marcelo Moreno. através de elementos musicais presentes na II Sonata para Violoncelo e Piano (1972Siqueira, José. 1972. II Sonata para Violoncelo e Piano. Rio de Janeiro, RJ: Partitura manuscrita.). Assim, exploramos a literatura do violoncelo daquele período, bem como elementos que influenciaram Siqueira em seu processo composicional. A partir de Siqueira (1981Siqueira, José. 1981. O Sistema Modal na Música Folclórica do Brasil. João Pessoa, PB: Secretaria da educação e cultura.), Aquino (2006Aquino, Felipe Avellar de. 2006. “Song of Sorrow”. The Strad. V. 117, n. 1391, p. 52-57. Londres.), Santos (2016Santos, Roberta Regina dos. 2016. “Recitativo, Ária e Fuga para violoncelo e orquestra de cordas de José Siqueira: dimensões estéticas e interpretativas”. Dissertação de mestrado. João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba - UFPB.) e Silva (2023Silva, Marcelo Moreno da. 2023. “Universalidade e regionalismo na obra de José Siqueira: construção das edições crítica e de performance da II Sonata para Violoncelo e Piano”. Dissertação de mestrado. João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba - UFPB.), sugerimos a presença de sonoridades similares a gestos da Primeira e Terceira Suítes para Violoncelo Solo de Benjamin Britten, contemporâneo de Siqueira e amigo pessoal de Rostropovich. Desta forma, através do processo comparativo de excertos, percebem-se outros importantes traços composicionais em Siqueira, além das manifestações culturais da música do Nordeste brasileiro. Ademais, constamos um dualismo entre o regionalismo e elementos da música europeia de concerto na obra do compositor paraibano. Deste modo, apresentamos uma perspectiva abrangente de seu estilo composicional, ao mesmo tempo em que se demonstra que a ligação entre Siqueira e Rostropovich vai muito além da dedicatória.
PALAVRAS-CHAVE:
José Siqueira; II Sonata para violoncelo e piano; Mstislav Rostropovich; Performance; Música brasileira
ABSTRACT:
This article proposes to reveal a connection between José Siqueira and the Russian cellist Mstislav RostropovichMstislav Rostropovich Foundation. 2021. [Mensagem pessoal]. Mensagem recebida por Marcelo Moreno. through musical elements present in the II Sonata for Cello and Piano (1972Siqueira, José. 1972. II Sonata para Violoncelo e Piano. Rio de Janeiro, RJ: Partitura manuscrita.). We’ve explored the cello literature from that period, as well as elements that came to influence Siqueira in his compositional process. Based on Siqueira (1981Siqueira, José. 1981. O Sistema Modal na Música Folclórica do Brasil. João Pessoa, PB: Secretaria da educação e cultura.), Aquino (2006Aquino, Felipe Avellar de. 2006. “Song of Sorrow”. The Strad. V. 117, n. 1391, p. 52-57. Londres.), Santos (2016Santos, Roberta Regina dos. 2016. “Recitativo, Ária e Fuga para violoncelo e orquestra de cordas de José Siqueira: dimensões estéticas e interpretativas”. Dissertação de mestrado. João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba - UFPB.), and Silva (2023Silva, Marcelo Moreno da. 2023. “Universalidade e regionalismo na obra de José Siqueira: construção das edições crítica e de performance da II Sonata para Violoncelo e Piano”. Dissertação de mestrado. João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba - UFPB.), we suggest the presence of sonorities that are similar to musical gestures from Britten’s First and Third Solo Suites - Siqueira’s contemporary and Rostropovich’s personal friend. Through a comparative study of excerpts, it is possible to perceive important compositional traits in Siqueira’s output, in addition to those from the cultural manifestations of the music of the Brazilian Northeast, as a dualism between regionalism and elements from the European concert music. Thus, we present a more comprehensive perspective of Siqueira’s compositional style, denoting that the connection between Siqueira and Rostropovich goes beyond a dedicatory.
KEYWORDS.
José Siqueira; II Sonata for cello and piano; Mstislav Rostropovich; Performance; Brazilian music
1. Introdução
A II Sonata para Violoncelo e Piano do compositor paraibano José Siqueira (1907-1985) foi escrita na cidade do Rio de Janeiro, no período de 27 de maio a 3 de junho de 1972, e foi dedicada ao violoncelista russo Mstislav Rostropovich (1927-2007), considerado um dos maiores instrumentistas do século XX.1 1 Este artigo é um extrato de pesquisa de mestrado desenvolvida na Universidade Federal da Paraíba, defendida em 2023, cujo título é “Universalidade e regionalismo na obra de José Siqueira: construção das edições crítica e de performance da II Sonata para Violoncelo e Piano”. O trabalho busca oferecer contribuição para uma melhor compreensão da obra de José Siqueira, enfatizando sua importância para a música brasileira de concerto, mais especificamente, para a literatura do violoncelo. Como um dos resultados, foi disponibilizada uma edição crítica, como também uma edição de performance da Sonata, baseadas nos manuscritos de Siqueira e de seu copista, F. Paes de Oliveira. Apesar de ter sido composta em 1972, esta Sonata foi estreada, muito provavelmente, apenas em 2022 - ou seja, 50 anos após a data de sua composição - pelo violoncelista Marcelo Moreno, um dos autores do presente trabalho, ao lado do pianista Lucas Bojikian. A performance integral da obra está disponível através do link na plataforma YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=ZKB0OUDrQJo Desta forma, procuramos explorar elementos estruturantes característicos da literatura do violoncelo, composta naquele período, bem como os aspectos que vieram influenciar Siqueira em seu processo composicional. Nesta investigação, buscamos demonstrar, a partir de elementos musicais presentes na obra, que a ligação entre Siqueira e Rostropovich vai muito além da simples dedicatória inserida no manuscrito. Assim, vislumbramos que a origem da homenagem a Rostropovich está em referências ao compositor britânico Benjamin Britten (1913-1976), salientando que este era um dos compositores mais próximos de Rostropovich naquele momento. De fato, em pontos específicos da Sonata, percebemos referências que nos remetem às sonoridades brittenianas, notadamente quanto ao seu repertório para o violoncelo, que foi integralmente dedicado a Rostropovich.
Ademais, sabe-se que o violoncelista soviético foi, definitivamente, o maior responsável pela expansão do repertório violoncelístico ao longo de todo o século XX, ao realizar mais de mais de 100 estreias mundiais de obras para violoncelo. Ao mesmo tempo, devemos considerar que Siqueira nutria estreita relação com a antiga União Soviética (URSS), com visitas periódicas para reger e apresentar suas composições. Fato que, inclusive, resultou em obras suas editadas em Moscou. Por outro lado, esta relação profissional com os soviéticos levou o compositor a ser perseguido pelo regime militar brasileiro, o que resultou em sua aposentadoria compulsória em 1968 (Antunes 2007Antunes, Jorge. 2007. “José Siqueira: Música, Brasilidade, Indignações e Lutas”. In Dossiê José Siqueira. Revista Brasiliana: Revista Semestral da Academia Brasileira de Música. Número 25., 39-40).
Neste estudo, para compreendermos a Sonata de Siqueira, procuramos discernir que, além do compositor ter empregado elementos provenientes das manifestações culturais vernaculares, como ponto central de boa parte de seu repertório, está também presente a influência de compositores europeus. Assim, no intuito de melhor compreender sua obra, lançamos um olhar mais abrangente sobre as fontes composicionais de Siqueira.
A obra está estruturada em quatro movimentos: Introdução, Allegro, Aboio e Samba de Engrenagem; contendo fortes alusões à cultura do Nordeste do Brasil, ao empregar o Sistema Trimodal como principal recurso composicional. Este princípio é baseado nos modos eclesiásticos presentes na música das manifestações culturais do Nordeste brasileiro, sistematizado a partir de pesquisas realizadas por Siqueira nesta região (Vieira 2006Vieira, Josélia Ramalho. 2006. “José Siqueira e a ‘Suíte Sertaneja para violoncelo e piano’ sob a Ótica Tripartite”. Dissertação de mestrado. João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba - UFPB., 32). Estas referências estão notoriamente inseridas nos dois últimos movimentos da Sonata, já a partir de seus respectivos títulos. Neste caso, o quarto movimento faz menção ao samba do recôncavo baiano, enquanto o Aboio se refere a um canto dos vaqueiros nordestinos. Entretanto, nos dois primeiros movimentos, Introdução e Allegro, Siqueira praticamente se distancia da linguagem e sonoridade da cultura musical do Nordeste do Brasil, embora ainda empregue elementos do Sistema Trimodal.
Coincidentemente, as Três Suítes para Violoncelo Solo, Opp. 72, 80 e 87 do britânico Benjamin BrittenBritten, Benjamin. 1986. Three Suites for Cello Opp. 72, 80 & 87. Londres: Faber Music Ltd., foram escritas entre 1964 e 1971, ou seja, período cronológico próximo e anterior ao da composição da Sonata de Siqueira. Aliás, a terceira e última Suíte de Britten traz referências à cultura musical russa, no intuito de homenagear seu amigo e violoncelista Mstislav Rostropovitch (Aquino, 2006Aquino, Felipe Avellar de. 2006. “Song of Sorrow”. The Strad. V. 117, n. 1391, p. 52-57. Londres.). Assim como Siqueira, Britten também fez constantes viagens à Rússia naquele mesmo ínterim, a fim de reger suas próprias obras. Inclusive, uma dessas viagens foi organizada pelo próprio Rostropovich, que recebeu Britten e seu companheiro, o tenor Peter Pears, em sua residência (Pyke, 2011Pyke, Cameron. 2011. “Benjamin Britten’s creative relationship with Russia”. Tese de doutorado. Londres: Goldsmiths, University of London.). Desta forma, vemos neste momento de constantes visitas à Rússia uma possibilidade de troca cultural entre Britten, Rostropovich e Siqueira, aspecto que se mostra relevante na estruturação da Sonata do compositor brasileiro.
2. Recursos composicionais de Siqueira: Sistemas Pentatônico e Trimodal
Podemos considerar que a influência das manifestações culturais do Nordeste do Brasil vem a ser uma das principais características composicionais de José Siqueira, elemento que está fortemente presente em boa parte de suas obras. Desta forma, a Sonata em estudo é marcada pelo emprego dos Sistemas Trimodal e Pentatônico, largamente utilizados por Siqueira em sua produção. As explanações destes sistemas composicionais estão registradas pelo compositor nos livros O Sistema Modal na Música Folclórica do Brasil (1981aSiqueira, José. 1981. O Sistema Modal na Música Folclórica do Brasil. João Pessoa, PB: Secretaria da educação e cultura.), bem como no Sistema Pentatônico Brasileiro (1981bSiqueira, José. 1981. Sistema Pentatônico Brasileiro. João Pessoa, PB: Secretaria da educação e cultura.). Ambos publicados sob encomenda da Secretaria da Educação e Cultura e Diretoria Geral de Cultura do Estado da Paraíba.
2.1. O Sistema Pentatônico
Fruto de pesquisas sobre as manifestações de matrizes africanas na região do recôncavo baiano, a estruturação do Sistema Pentatônico Brasileiro é resultado de observações do compositor sobre os rituais de candomblé. Nessa região, Siqueira constata a presença de escalas pentatônicas nas melodias aplicadas a estes rituais (Siqueira 1981bSiqueira, José. 1981. Sistema Pentatônico Brasileiro. João Pessoa, PB: Secretaria da educação e cultura., 01). Ainda ressalta que estas escalas estão imbuídas na música de países como China e Japão, mas também na música proveniente do continente africano. Basicamente, Siqueira (1981bSiqueira, José. 1981. Sistema Pentatônico Brasileiro. João Pessoa, PB: Secretaria da educação e cultura., 02) afirma que a melodia pentatônica não admite modulação nem cromatismo. Ainda esclarece que a escala pentatônica é composta por um conjunto de cinco notas, que podem possuir intervalos diatônicos, mas nunca cromáticos. O Exemplo 1a abaixo demonstra uma escala pentatônica, segundo Siqueira (1981bSiqueira, José. 1981. Sistema Pentatônico Brasileiro. João Pessoa, PB: Secretaria da educação e cultura.).
Acordes pentatônicos ou pentamodalismo (Siqueira 1981bSiqueira, José. 1981. Sistema Pentatônico Brasileiro. João Pessoa, PB: Secretaria da educação e cultura., 03) diz respeito a uma harmonia constituída de três formas distintas. Na primeira, ao ser construído um acorde maior, é incluído um intervalo de quinta justa, sempre que esse intervalo forme, com a fundamental e a quinta do acorde, segundas maiores ascendentes. Já na segunda forma, ao ser constituído um acorde menor, é incluído um intervalo de quinta justa, sempre que esse intervalo forme, com a fundamental e a quinta do acorde, segundas maiores descendentes, como demonstrado no Exemplo 1b. Outra forma de criar um acorde pentatônico seria a transformação da própria escala pentatônica em um acorde.
O Exemplo 1c demonstra o emprego de acordes pentatônicos nos comps. 20-22 da Introdução da Sonata de Siqueira. No comp. 21, na mão direita do piano, há apenas quatro notas [Fá#, Si, Ré, Mi]. Entretanto, na mão esquerda, a nota Lá do conjunto de notas [Ré, Lá, Ré] completa o acorde pentatônico do referido compasso.
2.2. O Sistema Trimodal
Para Siqueira (1981aSiqueira, José. 1981. O Sistema Modal na Música Folclórica do Brasil. João Pessoa, PB: Secretaria da educação e cultura., 01), apenas elementos como ritmos e temas melódicos das manifestações culturais brasileiras e seus processos contrapontísticos, a utilização de instrumentos ditos nacionais e textos nos idiomas indígenas ou africanos na música vocal não são suficientes para caracterizar uma música como brasileira. Por esta razão, Siqueira acaba notando a necessidade de uma abordagem mais aprofundada da música de nosso país, com vistas à formação de uma estética composicional focada na cultura da música nordestina. Para isso, o compositor lança o trabalho intitulado O Sistema Trimodal na Música Folclórica do Brasil, fruto de pesquisas composicionais desenvolvidas no Nordeste brasileiro (Vieira 2006Vieira, Josélia Ramalho. 2006. “José Siqueira e a ‘Suíte Sertaneja para violoncelo e piano’ sob a Ótica Tripartite”. Dissertação de mestrado. João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba - UFPB., 32). Este sistema se baseia em três modos presentes na música nordestina, seus respectivos derivados, como também na superposição de acordes com intervalos de segundas, quartas e quintas. Os modos são divididos em três e correspondem aos modos eclesiásticos. Para cada modo, existe um modo derivado, conforme dispostos na Tabela 1 e no Exemplo 2a:
No movimento Aboio da Sonata, podemos perceber a utilização do III Modo Derivado (Exemplo 2b) como também o emprego da polarização em torno da nota Si na parte do violoncelo, inclusive na mão esquerda da parte do piano (Exemplo 2c).
Comps. 04-06 do Aboio da Sonata de Siqueira. Pedal da nota Si com escala descendente no III Modo Derivado, com centro em Sol#
Podemos constatar que todos os modos derivados apresentados são, na verdade, rotações dos modos reais, a partir do grau VI de cada escala. Embora o compositor tenha racionalizado este sistema, não é sua intenção a criação de algo novo, mas apenas ordenar estes modos que estão presentes na música do Nordeste do Brasil, contribuindo para a formação e teorização da música brasileira (Siqueira 1981aSiqueira, José. 1981. O Sistema Modal na Música Folclórica do Brasil. João Pessoa, PB: Secretaria da educação e cultura., 02). Pelo fato de Siqueira afirmar não ter encontrado correspondente histórico ao III Modo Real, assim como o III Modo Derivado, o compositor os considera como modos autenticamente brasileiros, e os classifica como Modos Nacionais (Siqueira 1981aSiqueira, José. 1981. O Sistema Modal na Música Folclórica do Brasil. João Pessoa, PB: Secretaria da educação e cultura., 06-07). Assim, podemos aferir que o compositor não encontrou aplicação destes modos em outras composições anteriores às suas, na música de concerto, apesar de estarem presente nas práticas musicais oriundas das manifestações culturais do Nordeste. Alvarenga (2000Alvarenga, Hermes Cuzzuol. 2000. “Ousadia e convenção no Segundo Concerto para Violino e Orquestra de Camargo Guarnieri”. Série Estudos, Porto Alegre, v. 5., 193), por sua vez, confirma que este modo misto é, de fato, característico da música do Nordeste do Brasil, elemento inclusive empregado no 2º Concerto para Violino e Orquestra (1953) de Camargo Guarnieri.
Entretanto, constatamos em trabalhos recentes voltados para a pesquisa e análise de obras de José Siqueira (Peixoto, 2021Peixoto, Fabio Silva. 2021. “José Siqueira and the Concertino for Violin and Chamber Orchestra (1972) through the lens of his Trimodal System: analysis and revised edition of his piano reduction”. Dissertação de doutorado. Boston: College of Fine Arts, Boston University.; Ramalho, 2022Ramalho, Marcel. 2022. “Folkloric Nationalism and Essential Nationalism in José Siqueira’s Loanda and Maracatu: elements of the Maracatu tradition and interpretative suggestions”. Per Musi. Nº 42. Belo Horizonte, MG.), que o III Modo Real é, na verdade, uma escala já empregada por compositores europeus do século XX anteriores a Siqueira, como o húngaro Béla Bartók (1881-1945) e o francês Maurice Ravel (1975-1937). Segundo Lendvai (1971Lendvai, Ernö. 1971. Béla Bartók: An analysis of his music. Londres: Kahn & Averill., 67-69), esta escala é conhecida pela combinação de quarta aumentada com sétima menor, sendo chamada de Escala Acústica, pois deriva da série harmônica.3
3
Acoustic Scale ou Overtone Scale.
O autor ainda ressalta que esta escala vem a ser “a forma mais característica do sistema ‘diatônico’ de Bartók”4
4
“The most characteristic form of Bartók’s ‘diatonic’ System” (Lendvai 1971, 67).
(Lendvai 1971Lendvai, Ernö. 1971. Béla Bartók: An analysis of his music. Londres: Kahn & Averill., 67). De fato, ela está presente em obras de Bartók, como no quarto movimento do Quarteto de Cordas Nº 4 (1928), Cantata Profana (1930) e na Música para Cordas, Percussão e Celesta (1937). Da mesma forma, está presente em obras como L’Isle Joyeuse (1904) e La Mer (1905) de Claude Debussy, como também em Petrouchka de Igor Stravinsky (Tymoczko, 2004Tymoczko, Dmitri. 2004. “Scale Networks and Debussy”. In: Journal of Music Theory. 1 October; 48 (2): p. 219-294. doi: https://doi.org/10.1215/00222909-48-2-219.
https://doi.org/https://doi.org/10.1215/...
).
3. Siqueira e Rostropovich: Elementos de um possível encontro
Segundo a Fundação Mstislav Rostropovich, a partitura da II Sonata de José Siqueira encontra-se nos arquivos deixados por Rostropovich, tendo sido entregue para o violoncelista em algum momento entre os anos de 1972 e 1974, embora nunca a tenha apresentado em público.5 5 Informação fornecida pela instituição via e-mail. Na verdade, estes foram os anos mais decisivos na vida do instrumentista, que resultaram em sua saída definitiva daquele país, ocorrida em 26 de maio de 1974 (Ivashkin e Oehrlein 1997Ivashkin, Alexander, e Oehrlein, Josef. 1997. Rostrospektive zum Leben und Werk von Mstislav Rostropovich. Schweinfurt: Reimund Maier Verlag., 110). Assim, naquele ano, Rostropovich deixou a União Soviética, dando início ao seu exílio, por defender e abrigar, em 1970, o escritor Aleksandr Solzhenitsyn - perseguido político por críticas ao regime soviético (Aquino 2006Aquino, Felipe Avellar de. 2006. “Song of Sorrow”. The Strad. V. 117, n. 1391, p. 52-57. Londres.). Desta forma, a partitura da II Sonata possivelmente permaneceu na União Soviética, enquanto Rostropovich deixava o país sem conseguir levar todos os seus pertences. Fato que provavelmente veio a impedir qualquer oportunidade da obra ser executada pelo seu homenageado.
Naquela mesma década, Rostropovich chegou a vir ao Brasil ao menos duas vezes. Em 1974, na cidade de São Paulo, fez o seu primeiro recital com sua filha Elena como pianista após o exílio (Ivashkin e Oehrlein, 1997Ivashkin, Alexander, e Oehrlein, Josef. 1997. Rostrospektive zum Leben und Werk von Mstislav Rostropovich. Schweinfurt: Reimund Maier Verlag.). Já em julho de 1978, na cidade do Rio de Janeiro, realizou uma série de quatro apresentações, que contaram com a participação de sua esposa, a soprano Galina Vishnevskaya, além da pianista Martha Argerich. Entretanto, não encontramos registros nem relatos de um encontro entre Rostropovich e Siqueira que pudesse resultar em uma performance, ainda que informal, da referida obra. Inclusive, verificamos que no ano de 1994 foi concedido o título de Doutor Honoris Causa ao violoncelista, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), embora a cerimônia de entrega desta honraria nunca tenha acontecido.6 6 Informação obtida por e-mail junto à Secretaria dos Órgãos Colegiados da Reitoria da UFRJ. Contudo, pelas constantes visitas de Siqueira à Rússia, e pelo fato de ter dedicado sua II Sonata a Rostropovich - assim como o II Concerto ‘Painel Sonoro’ para Violoncelo, orquestra de sopros, harpa, piano e percussão (1972) -, cogitamos que o violoncelista russo tenha, de fato, chegado a realizar um encontro com o compositor paraibano, no qual tenha apresentado a Terceira Suíte para Violoncelo Solo de Benjamin BrittenBritten, Benjamin. 1986. Three Suites for Cello Opp. 72, 80 & 87. Londres: Faber Music Ltd., a fim de mostrar a nova obra e, sobretudo, demonstrar as possibilidades do instrumento. Aspecto marcante na própria II Sonata que, da mesma forma que a Suíte do compositor britânico, alia o virtuosismo técnico-instrumental ao elemento vernacular.
O próprio Siqueira relata viagens à União Soviética para reger suas obras entre 1955 e 1975 (Siqueira, 1981Siqueira, José. 1981. O Sistema Modal na Música Folclórica do Brasil. João Pessoa, PB: Secretaria da educação e cultura.). Da mesma forma, entre 1963 e 1971, Britten realizou inúmeras visitas à União Soviética (Pyke, 2011Pyke, Cameron. 2011. “Benjamin Britten’s creative relationship with Russia”. Tese de doutorado. Londres: Goldsmiths, University of London.), o que se caracterizou por um período de forte aproximação com Rostropovich. Neste caso, a relação entre Britten e Rostropovich deixou um legado relevante para a literatura do violoncelo, uma vez que resultou na composição das Três Suítes para Violoncelo Solo, a Sonata para Violoncelo e Piano, como também a Sinfonia para Violoncelo e Orquestra, Op. 68 (Cello Symphony). Desta feita, estas obras retratam o virtuosismo de Rostropovich, assim como elementos idiomáticos do violoncelo, tendo sido integralmente dedicadas e estreadas pelo violoncelista.
Vemos na coincidência das visitas à Rússia pelos dois compositores como uma possibilidade, mesmo que indireta, de uma influência composicional entre Britten e Siqueira. Elemento que se mostra relevante na estruturação da Sonata, objeto do presente estudo. A Terceira Suíte para Violoncelo, Op. 87 (1971) é uma obra singular, uma vez que Britten utiliza referências da cultura musical russa para homenagear Rostropovich, aspecto aliado a um forte conteúdo virtuosístico (Aquino, 2006Aquino, Felipe Avellar de. 2006. “Song of Sorrow”. The Strad. V. 117, n. 1391, p. 52-57. Londres.). É possível que Britten a tenha mostrado a Siqueira, ou mesmo que Rostropovich tenha tocado a obra para o compositor brasileiro, se considerarmos que a Sonata em questão somente veio a ser escrita em 1972. Neste ano, segundo os arquivos da instituição Britten Pears Arts, Benjamin Britten já havia publicado as notas de programa sobre a Terceira Suíte para o Festival de Aldeburgh de 1972. Contudo, a estreia da obra foi cancelada, tendo ocorrida apenas em 21 de dezembro de 1974, quando foi interpretada por Rostropovich. Ademais, a primeira edição da Terceira Suíte ocorreu somente em 1976, pela editora Faber Music. O que nos leva a supor que as referências à Terceira Suíte de Britten presentes na Sonata de Siqueira se devem a um provável encontro entre Rostropovich e Siqueira, uma vez que, como descrito, a Suíte ainda não havia sido estreada nem muito menos publicada.
Da mesma forma que a Terceira Suíte de Britten, a II Sonata de Siqueira foi composta com a intenção de expressar a cultura de um povo. No caso da Sonata, retrata expressões culturais do Nordeste do Brasil. Já na Terceira Suíte, Britten explora expressões da cultura musical russa como um meio para homenagear Rostropovich em um dos períodos mais críticos de sua vida (Aquino, 2006Aquino, Felipe Avellar de. 2006. “Song of Sorrow”. The Strad. V. 117, n. 1391, p. 52-57. Londres.). O que, ao mesmo tempo, atesta a importância das expressões musicais populares na construção de uma estética modernista na música de concerto.
Outrossim, percebemos na Sonata de Siqueira a intenção de captar a identidade artística de Rostropovich. Neste sentido, verificam-se a presença de passagens virtuosísticas que o violoncelista poderia executar com agilidade, precisão e intensidade. De fato, Rostropovich não só foi reconhecido por suas habilidades artísticas, mas também por ser um dos maiores ícones da história do instrumento. Destacado pelo seu grande virtuosismo, intensidade expressiva, ao mesmo tempo em que era um instigador de novas obras para o violoncelo. Aspectos que contribuíram efetivamente para a ampliação do repertório do instrumento ao longo do século XX.
Inflexões e sonoridades brittenianas estão claramente presentes na Sonata de Siqueira. Estas são oriundas notadamente da Terceira Suíte (1971), mas também da Primeira Suíte escrita por Britten em 1964. Coincidentemente, um ano marcante para a história política do Brasil, com a implantação da ditadura militar. Como podemos observar nos exemplos abaixo, há uma forte semelhança tanto em relação ao gesto melódico quanto ao aspecto rítmico, entre os comps. 74-75 da parte do violoncelo da Sonata de Siqueira (Exemplo 3a) e os comps. 20-26 do Moto Perpetuo da Primeira Suíte de Britten (Exemplo 3b). Observamos, nestes trechos, uma relação intervalar de sétima, associada a um padrão rítmico similar, de semicolcheias, em ambas as obras, além das sequências de segundas, que aparecem invertidas na comparação entre os dois exemplos.
Da mesma forma, podemos constatar um paralelo entre os comps. 80-82 da Sonata de Siqueira (Exemplo 4a) e os comps. 18-19 do Bordone da Primeira Suíte de Britten (Exemplo 4b). Ambos apresentam uma linha melódica sobre uma longa nota pedal de Ré, realizada em corda solta. Na obra de Siqueira, constatamos um gesto em 3/4, ao mesmo tempo em que na obra de Britten, a melodia superior tem como gesto equivalente a uma figuração rítmica de compasso composto, mais precisamente 9/8. Os dois excertos são caracterizados pelo emprego da semínima ligada à uma colcheia.
Aspectos da Terceira Suíte de Britten também estão presentes na Sonata de Siqueira. Neste sentido, se atentarmos para o fato de que esta Suíte ainda não havia sido estreada, nos leva a questionar como inflexões tão similares estão presentes em obras de diferentes compositores, dedicadas ao mesmo violoncelista. Elemento que nos induz a intuir que a aproximação entre Siqueira e Rostropovich vai muito além de uma mera dedicatória na partitura da II Sonata. Possivelmente, um encontro entre os dois, ocasião na qual Rostropovich deve ter apresentado as Suítes solo de Britten - um dos compositores mais próximos do violoncelista naquele determinado período.
Neste caso, verificamos que os dois compositores se utilizam de células rítmicas semelhantes em tercinas de semicolcheias, caracterizadas por um impulso a cada três notas (Exemplo 5a, comp. 155; Exemplo 5b, comps. 1 e 4). No comp. 155 do Allegro da Sonata, Siqueira emprega uma inversão do que está escrito nos comps. 1 e 4 do Presto da Terceira Suíte de Britten. Nestes respectivos movimentos, há a presença de gestual cromático similar entre a parte do piano da Sonata e a linha do violoncelo da Suíte (Exemplo 5a, comps. 153-154; Exemplo 5b, comp. 2-3). Ao mesmo tempo, constatamos semelhança neste mesmo gestual do Presto da Terceira Suíte de Britten (Exemplo 5b, comps. 1 e 4) e a parte do violoncelo do Allegro da Sonata de Siqueira (Exemplo 5c, comps. 137-138).
Assim como Britten, Siqueira também explora o caráter vocal do violoncelo através do recurso de repetição constante de notas, em referência à cultura vernacular (Exemplos 6a e 6b), aspecto claramente ligado à questão da oralidade. Britten, por sua vez, na Terceira Suíte, grafa a indicação parlando, atrelada ao elemento do caráter vocal oriundo dos temas russos empregados na Suíte - três canções folclóricas que foram arranjadas para canto e piano por Tchaikovsky, além de um hino para coro masculino da Igreja Ortodoxa Russa (Aquino, 2006Aquino, Felipe Avellar de. 2006. “Song of Sorrow”. The Strad. V. 117, n. 1391, p. 52-57. Londres.). Já Siqueira, a fim de estabelecer o caráter vernacular no movimento intitulado Aboio, explora a repetição de notas que está associada à sonoridade da linguagem oral. Neste sentido, o compositor escreve, em nota de rodapé na partitura, que o aboio se refere a um “canto plangente com que os vaqueiros guiam suas boiadas” (Siqueira, 1972Siqueira, José. 1972. II Sonata para Violoncelo e Piano. Rio de Janeiro, RJ: Partitura manuscrita.). Neste caso, este elemento é enfatizado pela escrita vocal/falada presente em uma obra essencialmente instrumental.
As duas obras aqui comparadas são caracterizadas pela exploração do material das expressões vernaculares, desenvolvida concomitante à exploração do virtuosismo instrumental. Em sua Terceira Suíte, Britten conclui a obra com a apresentação dos quatro temas russos. Já na Sonata, como movimento final, Siqueira emprega a sonoridade rústica de um material característico do samba do recôncavo baiano, com clara referência às sonoridades dos instrumentos regionais, notadamente a rabeca.
4. Dualismo na obra de José Siqueira
Reconhecemos que Siqueira foi fortemente influenciado pelas manifestações culturais do Nordeste brasileiro, elemento explorado em suas obras de caráter regionalista. Contudo, através de sua atuação como regente e professor, podemos constatar um considerável conhecimento sobre a música de concerto europeia, notadamente de compositores como Beethoven, Brahms, Bartók e Debussy. Um repertório que ele costumava reger tanto no Brasil quanto no exterior, à frente de importantes orquestras. Percebe-se que esta bagagem musical está nitidamente presente em sua produção composicional. Em entrevista, Ricardo Tacuchian (2022Tacuchian, Ricardo. 2022. Entrevista concedida a Marcelo Moreno. Videoconferência. Rio de Janeiro, RJ.), discípulo do compositor, nos revela que Siqueira abordava consideravelmente a música de Béla Bártok em sala de aula. Ao mesmo tempo, afirma que parte dos compositores brasileiros da geração de Siqueira, de fato, recebeu influência de Claude Debussy. Já o violoncelista Márcio Malard (2022Malard, Marcio. 2022. Entrevista concedida a Marcelo Moreno. Videoconferência. Rio de Janeiro.), amigo e colaborador de Siqueira, afirma que a obra Crepúsculo (1939) para orquestra de cordas do compositor possui claros traços da música de Debussy. De fato, em 1949, Siqueira escreveu uma canção intitulada Debussy (Figuras 1a e 1b), para voz e piano, conforme registrado no Catálogo de Obras de José Siqueira (1980Migliavacca, Ariede Maria. 1980. Compositores Brasileiros: Catálogo de Obras. Série Compositores: José Siqueira. Ministério das Relações Exteriores: Departamento de Cooperação Cultural, Científica e Tecnológica.), compilado pelo Ministério das Relações Exteriores. Embora tenha sido composta sobre letra do poema homônimo de Manuel Bandeira, verificamos que a canção apresenta similaridade quanto ao gestual melódico de La fille aux cheveux de lin - oitava peça do livro de Prelúdios de Claude Debussy (Figuras 1c e 1d). Assim, consideramos que Siqueira buscou captar elementos da música do compositor francês no processo de elaboração da obra em questão.
Tacuchian (2022Tacuchian, Ricardo. 2022. Entrevista concedida a Marcelo Moreno. Videoconferência. Rio de Janeiro, RJ.) reafirma a liderança da França como importante polo cultural no século XX, cuja influência extrapolava as fronteiras da Europa. Ao mesmo tempo, Siqueira considerava a relevância musical francesa, a ponto de ter estudado musicologia na Universidade de Sorbonne (Vieira 2005Vieira, Josélia Ramalho. 2006. “José Siqueira e a ‘Suíte Sertaneja para violoncelo e piano’ sob a Ótica Tripartite”. Dissertação de mestrado. João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba - UFPB., 26). Desta forma, Siqueira passou a empregar procedimentos composicionais como o uso de intervalos quartais, escalas pentatônicas, além do emprego de escalas modais em sua obra (Santos 2016Santos, Roberta Regina dos. 2016. “Recitativo, Ária e Fuga para violoncelo e orquestra de cordas de José Siqueira: dimensões estéticas e interpretativas”. Dissertação de mestrado. João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba - UFPB., 07). Contudo, o compositor manteve inspiração nas expressões culturais do Nordeste do Brasil, mesclando estes elementos a fim de criar uma sonoridade característica e própria. A exemplo disso, no mesmo ano de 1949, compôs a Suíte Sertaneja para Violoncelo e Piano, obra essencialmente regionalista e que traz fortes referências às manifestações culturais citadas, sobretudo pela estruturação de um aboio e de um coco entre seus movimentos. O que evidencia a presença de um dualismo na obra do paraibano, ao mesclar o elemento nacionalista com referências à música europeia em sua produção.
Na obra Recitativo, Ária e Fuga (1972) para violoncelo e orquestra de cordas,7 7 Obra dedicada ao violoncelista Márcio Malard. Santos (2016Santos, Roberta Regina dos. 2016. “Recitativo, Ária e Fuga para violoncelo e orquestra de cordas de José Siqueira: dimensões estéticas e interpretativas”. Dissertação de mestrado. João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba - UFPB., 37) constata gestual similar quanto ao contorno melódico apresentado pelo violoncelo solista, no início da Ária, e o tema do segundo movimento do Concerto para Violino e Orquestra de Johannes BrahmsBrahms, Johannes. 1921. First Sonata in E minor for Cello and Piano. Nova York: G. Schirmer, Inc. (1822-1897) - que é apresentado inicialmente pelo oboé. Isto reforça a ideia do quanto Siqueira deixava-se influenciar pelas importantes obras orquestrais que conhecia e costumava reger. Podemos constatar isso através do link de QR CODE, na Figura 2a, contendo a gravação da Ária da referida obra de Siqueira pela Camerata Fukuda, sob regência de Celso Antunes, com o violoncelista Fábio Presgrave (minutagem: 36’24’’); como também do link de QR CODE, na Figura 2b, da gravação da obra de Brahms pela Frankfurt Radio Symphony, com o maestro Paavo Järvi e a violinista Hilary Hahn (minutagem: 24’10’’).
De fato, ainda em referência à canção Debussy, Siqueira não é o único compositor nacionalista brasileiro a escrever obra que faz menção explícita a um compositor europeu. No mesmo ano de 1949, Heitor Villa-Lobos (1887-1959) compôs, em Paris, a obra intitulada Hommage à Chopin (Figura 3) para piano solo. Na qual demonstra a sua admiração à linguagem musical do compositor polonês, a partir da textura, estruturação melódica, conteúdo harmônico e gestos musicais (Hoefs, 2020Hoefs, Lars. 2020. “The influence of Chopin on Villa-Lobos: Hommage à Chopin, Mazurka-Choro, and arrangements for cello”. Revista Debates. N. 24., 173-174).
Hommage à Chopin, de Villa-LobosVilla-lobos, Heitor. 1955. Hommage à Chopin. Paris: Editora Max Eschig.
Na verdade, o próprio Villa-Lobos compôs suas Bachianas Brasileiras inspirado no contraponto de Johann Sebastian BachBach, Johan Sebastian. 1972. Six Suites for Cello Solo. Nova York: International Music Company. (1685-1750), aliado ao elemento nacionalista de sua obra (Aquino, 2021Aquino, Felipe Avellar de. 2021. “A voice for Brazil”. The Strad. V. 132, n. 1575, p. 36-42. Londres.). Afinal, o emprego de material de outro compositor não é objeto exclusivo da música de concerto do século XX.
Assim, de acordo com Mitschka (1961, 248, apudCosgrove 1995Cosgrove, Audrey O’boyle. 1995. “Brahms’s Fugal Sonata Finales”. Tese de doutorado. Louisiana, EUA: Louisiana State University., 27-28; Kendall 1941Kendall, Raymond. 1941. “Brahms's Knowledge of Bach's Music”. In Papers of the American Musicological Society at the Annual Meeting.), no 1° movimento da Sonata em Mi Menor para Violoncelo e Piano Op. 38, Johannes Brahms faz referência à Arte da Fuga de J. S. Bach. Neste caso, Brahms utilizou o motivo do Contrapunctus 4 para compor os três primeiros compassos de sua Sonata (Exemplo 7a). Da mesma forma, percebe-se um gestual similar, com relação ao contorno rítmico e melódico, entre o Contrapunctus 13 de A Arte da Fuga de Bach e o motivo do sujeito da fuga que abre o 3º movimento da mesma Sonata de Brahms. Ambos possuem um intervalo descendente de oitava, seguido de uma sequência ascendentes em tercinas, interpolado por semínimas ligadas à primeira colcheia da quiáltera (Exemplo 7b).
Abertura da parte do violoncelo do 1º movimento da Sonata em Mi Menor para Violoncelo e Piano de Brahms e motivo do Contrapunctus 4 de A Arte da Fuga de Bach
Motivo da parte do violoncelo do 3º movimento da Sonata em Mi Menor para Violoncelo e Piano de Brahms e motivo do Contrapunctus 13 de A Arte da Fuga de Bach
Ainda na mesma Sonata, nos comps. 53-54 do 3º movimento, constatamos referência aos primeiros compassos do Prelúdio da Suíte em Sol Maior para Violoncelo Solo, BWV 1007 de Bach, com a devida alteração rítmica. Desta forma, verificamos similaridade no gestual musical (Exemplos 8a e 8b) com relação à sequência de arpejos. Benjamin Britten, por sua vez, também se inspira na mesma Suíte de Bach para compor a Barcarola, quarto movimento da Terceira Suíte para Violoncelo Solo op. 87 (Exemplo 8c) - obra referenciada por Siqueira em sua Sonata.
Comps. 53-56 da parte do violoncelo do 3º movimento da Sonata em Mi Menor para Violoncelo e Piano, op. 38 de J. Brahms
Comps. 1-4 do Lento da Terceira Suíte para Violoncelo de Benjamin BrittenBritten, Benjamin. 1986. Three Suites for Cello Opp. 72, 80 & 87. Londres: Faber Music Ltd.
Desta forma, é evidente que a utilização de referenciais composicionais vem a ser uma prática consciente ao longo da história da música. No caso de Siqueira, o emprego de referências da música europeia ocidental concomitante ao emprego de elementos e temas das manifestações culturais do Nordeste brasileiro resulta em obras com forte dualismo composicional. Este aspecto também está visivelmente presente na Sonata em estudo, que pode ser observado a partir da divisão dos movimentos e suas respectivas marcas de expressão. Nos dois primeiros movimentos - I. Introdução; e II. Allegro -, Siqueira não emprega explicitamente as sonoridades inspiradas nas manifestações culturais, demonstrando a criatividade do compositor através do Sistema Trimodal. Já os dois últimos movimentos - III. Aboio; e IV. Samba de Engrenagem -, além da aplicação deste sistema composicional, verificam-se aspectos da cultura do Nordeste brasileiro, explícitos não apenas nos títulos dos movimentos, mas, sobretudo, no material musical empregado. Tacuchian (2022Tacuchian, Ricardo. 2022. Entrevista concedida a Marcelo Moreno. Videoconferência. Rio de Janeiro, RJ.) confirma este dualismo nas composições de Siqueira, com a presença de títulos e indicações de movimentos a exemplo do Aboio, Coco, Canto de Cego, dentre outros. Entretanto, segundo o entrevistado, o compositor conduz suas ideias musicais a partir de uma técnica de escrita europeia, e para instrumentos europeus como o violoncelo; com vistas à música de concerto. Ademais, Tacuchian ressalta o aspecto de obras de Siqueira que muito bem “poderiam ter sido compostas por um compositor europeu [...] e outras obras que só poderiam ser compostas por um compositor do Nordeste” do Brasil (Tacuchian, 2022Tacuchian, Ricardo. 2022. Entrevista concedida a Marcelo Moreno. Videoconferência. Rio de Janeiro, RJ.). Desta forma, afirma Tacuchian:
O conceito de sonata é uma espécie de dualidade [...]. Eu até costumo falar que o que caracteriza a sonata é o drama [...]. O drama é introduzido através do contraste [...]. O primeiro tema da exposição geralmente é muito rítmico e o segundo tema é mais melódico. Essa diferença de caráter cria um drama [...]. O conceito de sonata foi evoluindo. Hoje não está mais ligado àquela coisa de exposição, desenvolvimento e reexposição, mas, na realidade, é um dualismo, é uma luta entre ideias opostas [...]. Assim como Mendelssohn, que escreveu Canções sem Palavras, que são pequenas peças de caráter lírico e romântico, eu diria que a sonata é um teatro sem palavras [...]. E a dramaticidade você consegue através de contraste de ideias. Então, deve ser o caso dessa sonata. O primeiro movimento Siqueira possivelmente resolveu carimbar a Sonata com um carácter dramático [...]. Depois, os outros movimentos ele coloca coisa da tradição folclórica. (Tacuchian 2022Tacuchian, Ricardo. 2022. Entrevista concedida a Marcelo Moreno. Videoconferência. Rio de Janeiro, RJ.).
Apesar de Tacuchian não ter tido contato com a Sonata em questão, apenas através de seu conhecimento sobre a música de Siqueira, conseguiu captar elementos importantes da obra. No caso, o dualismo estrutural entre movimentos e temas. De fato, na Breve Análise, trecho que faz parte da partitura manuscrita da Sonata, o próprio Siqueira aponta este contraste, ao destacar que o Tema A possui caráter rítmico, enquanto o Tema B possui caráter melódico (Siqueira 1972Siqueira, José. 1972. II Sonata para Violoncelo e Piano. Rio de Janeiro, RJ: Partitura manuscrita., 22), o que vai ao encontro da afirmativa de Tacuchian.
Interessante ressaltar que, na década de 1970, Siqueira já escrevia obras em que não se inspirava expressamente nas manifestações regionais, aspecto que o compositor chamava de Nacionalismo Essencial (Siqueira, 1981aSiqueira, José. 1981. O Sistema Modal na Música Folclórica do Brasil. João Pessoa, PB: Secretaria da educação e cultura.). Obviamente, neste período, os elementos da cultura brasileira estariam enraizados em sua prática composicional. Assim, em 1972, Siqueira compõe o já mencionado Recitativo, Ária e Fuga para Violoncelo e Orquestra de Câmara, obra que possui características neoclássicas aliada ao emprego das escalas modais (Santos, 2013Silva, Aynara Dilma Vieira da. 2013. “Coerência Sintática do Sistema Trimodal em duas obras de José Siqueira”. Dissertação de mestrado. João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba - UFPB.). Outra produção que se distancia da influência da música nordestina e que também utiliza escalas modais é o Concertino para Violoncelo e Orquestra (1971). Por outro lado, a Sonata objeto deste estudo, escrita no mesmo período composicional, faz claras referências às expressões culturais do Nordeste, conforme visto, com a presença de um aboio e de um samba, além do emprego de escalas modais e sonoridades nordestinas. O que demonstra que Siqueira possuía uma facilidade em compor, simultaneamente, obras de estilos e origens contrastantes. Seja baseado em estéticas europeias, como também nas manifestações culturais brasileiras.
5. Considerações finais
José Siqueira deixa em sua obra um importante registro da cultura de nosso país, cujas características certamente devem ser estudadas e preservadas. Notamos, na II Sonata, um considerável conhecimento do compositor sobre as manifestações culturais do Nordeste, associado a uma técnica composicional refinada e própria do compositor. Assim, podemos constatar que Siqueira também se utilizava de fontes consistentes, ao fazer referência a obras de importantes compositores do século XX, resultando em obras relevantes para a expansão da literatura musical brasileira. Como é o caso da presente Sonata, através da qual Siqueira tem a intensão de homenagear o maior violoncelista do século XX. No entanto, a despeito de empregar sonoridades brittenianas, o compositor não perde a sua individualidade enquanto artista, sendo capaz de unir elementos da música de concerto europeia com as expressões populares de seu país natal. Aspecto através do qual deixou importante contribuição ao movimento modernista brasileiro.
A partir desta pesquisa, passamos a compreender que seria complexo encapsular José Siqueira em meras fases composicionais, já que o compositor apresenta pluralidade e flexibilidade em suas obras para violoncelo. Ou seja, Siqueira demonstra facilidade para escrever em estilos distintos, quase que simultaneamente. O que vai ao encontro do pensamento expresso por Tacuchian (2022Tacuchian, Ricardo. 2022. Entrevista concedida a Marcelo Moreno. Videoconferência. Rio de Janeiro, RJ.), em relação ao dualismo presente na obra do compositor, conforme apontado neste artigo. Desta forma, uma mera divisão em fases composicionais não seria suficientemente capaz de explicar como obras de estilos tão distintos foram compostas em um mesmo período cronológico. Ademais, Tacuchian, ao realizar uma comparação entre Siqueira e Villa-Lobos, afirma que ambos os compositores podem ser considerados nacionalistas, entretanto, suas estéticas composicionais são completamente distintas. Assim, buscamos aqui uma compreensão da música de Siqueira de forma mais aprofundada, ao levar em conta os aspectos mais amplos, como também a individualidade do processo criativo do compositor.
A pesquisa documental e as entrevistas realizadas, até o momento, não comprovam se Britten e Siqueira se encontraram em algum momento de suas trajetórias, nem qual foi o aprofundamento da relação entre Siqueira e Rostropovich. Entretanto, as duas obras aqui abordadas apontam que os ideais destas duas mentes criativas, de fato, se entrelaçaram. Podendo, em uma suposta reunião, estar presente a figura catalisadora de Mstislav Rostropovich. Devemos considerar que a década de 1970, período de composição da II Sonata de Siqueira e da Terceira Suíte de Britten, foi marcada pelo ápice da Guerra Fria, ocasião em que dados documentais da extinta União Soviética, como atas de reuniões e encontros oficiais, por exemplo, eram tratados como confidenciais. Ao mesmo tempo, esta época também foi marcada pelo período mais crítico da ditadura militar no Brasil, que tratava qualquer um que demonstrasse interesse pela cultura soviética como inimigo da nação brasileira. O que acabou levando Siqueira a ser aposentado compulsoriamente pela ditadura, numa tentativa em vão de calar o artista paraibano.
Da mesma forma que Benjamin Britten empregou quatro temas russos para homenagear Rostropovich em sua Terceira Suíte, concluímos que os aspectos musicais contidos na II Sonata indicam que Siqueira se utilizou de artifícios presentes na obra de Britten para violoncelo como uma forma de reverenciar este mesmo músico. Sem, no entanto, se distanciar do regionalismo musical brasileiro como elemento característico de sua obra, de maneira que é fascinante visualizar como ele foi capaz de traçar este paralelo com Britten, sem, no entanto, se afastar de suas próprias raízes.
Certamente, a localização de futuros documentos e registros poderão esclarecer como se deu a relação musical entre Siqueira e Rostropovich. Da mesma forma, qual foi a efetiva participação de Benjamin Britten, que resultou na apontada influência na construção da Sonata objeto deste estudo. Outrossim, acreditamos que estamos diante de uma das mais relevantes sonatas brasileiras para esta formação, conforme outras performances da obra poderão também demonstrar.
6. Referências
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» https://doi.org/https://doi.org/10.1215/00222909-48-2-219 - Vieira, Josélia Ramalho. 2006. “José Siqueira e a ‘Suíte Sertaneja para violoncelo e piano’ sob a Ótica Tripartite”. Dissertação de mestrado. João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba - UFPB.
- Villa-lobos, Heitor. 1955. Hommage à Chopin Paris: Editora Max Eschig.
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Este artigo é um extrato de pesquisa de mestrado desenvolvida na Universidade Federal da Paraíba, defendida em 2023, cujo título é “Universalidade e regionalismo na obra de José Siqueira: construção das edições crítica e de performance da II Sonata para Violoncelo e Piano”. O trabalho busca oferecer contribuição para uma melhor compreensão da obra de José Siqueira, enfatizando sua importância para a música brasileira de concerto, mais especificamente, para a literatura do violoncelo. Como um dos resultados, foi disponibilizada uma edição crítica, como também uma edição de performance da Sonata, baseadas nos manuscritos de Siqueira e de seu copista, F. Paes de Oliveira. Apesar de ter sido composta em 1972, esta Sonata foi estreada, muito provavelmente, apenas em 2022 - ou seja, 50 anos após a data de sua composição - pelo violoncelista Marcelo Moreno, um dos autores do presente trabalho, ao lado do pianista Lucas Bojikian. A performance integral da obra está disponível através do link na plataforma YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=ZKB0OUDrQJo
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Ou rebaixamento do grau VII do modo Lídio (II Modo Real).
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Acoustic Scale ou Overtone Scale.
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“The most characteristic form of Bartók’s ‘diatonic’ System” (Lendvai 1971Lendvai, Ernö. 1971. Béla Bartók: An analysis of his music. Londres: Kahn & Averill., 67).
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5
Informação fornecida pela instituição via e-mail.
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6
Informação obtida por e-mail junto à Secretaria dos Órgãos Colegiados da Reitoria da UFRJ.
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Obra dedicada ao violoncelista Márcio Malard.
Editor de Seção Editor:
Editor de Layout:
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
31 Maio 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
07 Fev 2024 -
Aceito
23 Abr 2024 -
Publicado
14 Maio 2024