Resumo:
O presente artigo pretende identificar o processo de “escolha do legado”, compreendido a partir do momento de “receber” do ciclo da dádiva na teoria de Mauss, em pessoas que se dedicam à criação e manutenção de instituições culturais em uma cidade do interior de Minas Gerais. Foram realizadas entrevistas com três sujeitos, buscando compreender suas histórias de vida e a relação destas com os processos culturais. Identificou-se que o processo de escolha ocorre a partir de dois momentos: o primeiro, a partir do ato de “receber” atividades culturais específicas na infância, geralmente marcada por figuras de admiração e identificação por parte do sujeito, e o segundo momento no início da vida adulta, em que a vinculação com processos culturais se articula com as atividades profissionais.
Palavras-chave: produção cultural; legado; Teoria da Dádiva
Abstract:
The present article intends to identify the process of “choosing the legacy”, understood from the “receiving” moment of the gift cycle in Mauss theory, in people who are dedicated to the creation and maintenance of cultural institutions in a city in the interior of Minas Gerais. Interviews were conducted with three subjects, seeking to understand their life stories and their relationship with cultural processes. We identified that the choice process occurs from two moments: the first, from the act of “receiving” specific cultural activities in childhood, usually marked by figures of admiration and identification by the subject, and the second moment in early adulthood, in which the link with cultural processes is articulated with professional activities.
Keywords: cultural production; legacy; Gift Theory
Resumen:
El presente artículo pretende identificar el proceso de “elegir el legado”, entendido desde el momento de “recibir” el ciclo de don en la teoria de Mauss, en personas que se dedican a la creación y mantenimiento de instituciones culturales en una ciudad del interior de Minas General. Se realizaron entrevistas con tres sujetos, buscando comprender sus historias de vida y su relación con los procesos culturales. Se identificó que el proceso de elección se da a partir de dos momentos: el primero, desde el acto de “recibir” actividades culturales específicas en la infancia, generalmente marcadas por figuras de admiración e identificación por parte del sujeto, y el segundo momento en la edad adulta temprana, en que el vínculo con los procesos culturales se articula con la actividad profesional.
Palabras clave: producción cultural; legado; Teoria del Don
1 INTRODUÇÃO
Toda sociedade produz uma série de manifestações que englobam elementos linguísticos, artísticos, técnicos e políticos, as quais, ainda que diversificadas em seu interior e em trocas mais ou menos constantes com outros grupos sociais, vão nortear formas prevalentes como essa sociedade se percebe e percebe o mundo. À medida que essas formas ganham perenidade e legitimidade social, tendem a se estruturar em instituições, sejam elas formais, sejam elas informais, materiais ou imateriais, que vão constituir a cultura dessas sociedades. Como representam elementos variados, essas instituições tendem a concentrar suas atividades em áreas específicas dessas culturas, e, conforme recebem os esforços e recursos de seus membros, estruturam-se de maneira cada vez mais organizada e englobando aspectos mais complexos.
Esses esforços e recursos são de natureza múltipla, indo desde investimentos de ordem financeira e material a aspectos psíquicos e ideológicos, com a localização privilegiada de alguns desses elementos culturais, ou algumas das versões desses elementos como centrais na constituição identitária dessas sociedades. No entanto, antes dos elementos materiais e sociais, está sempre o esforço de pessoas específicas que se dedicam à criação e sustentação dessas instituições, muitas vezes, como nos casos em que não existem recursos suficientes para que essas ações possam se profissionalizar, ao custo de uma dedicação pessoal, tanto de tempo quanto de recursos.
A compreensão comumente disseminada dessa dedicação enquanto dedicação gratuita, porém, pode ser objeto de um olhar mais atento. Partimos aqui do pressuposto de que as ações realizadas nesse processo de dedicação podem ser mais bem compreendidas dentro de uma perspectiva da circulação de uma dádiva, ou seja, de inserção do sujeito em uma cadeia de compromissos nos quais os atos de dar, receber e retribuir são regidos por regras que buscam manter os compromissos, e não extingui-los. Nesse sentido, ações que, muitas vezes, parecem não ter contrapartida as têm em outro sentido que não aquele ao qual estamos acostumados em uma sociedade de mercado.
A inserção em cadeias de dádiva ligadas a essas ações culturais pode ser compreendida a partir da vinculação da pessoa a um legado, que lhe precede e deve lhe suceder. O sujeito se localiza como um elo na manutenção e no desenvolvimento desse legado, a partir de suas contribuições, mas também a partir do que recebeu dos que lhe antecederam e contando com as contribuições dos que virão. Assim, tradições culturais podem manter-se ao longo do tempo, desde que mantida a vinculação das pessoas com o legado a elas associado.
A estruturação de instituições culturais em cidades pequenas, na sua maioria dotadas de poucos recursos financeiros e humanos, é um exemplo de como as instituições se sustentam por meio de vinculações decorrentes de cadeias de dádiva. Nessas, os ganhos aos quais as instituições se dedicam, sejam eles materiais, sejam eles simbólicos, só podem ser compreendidos a partir desse modelo de pensar os processos econômicos.
Por mais que representem a cultura dessas cidades de maneira geral, são, em grande parte, decorrentes do trabalho sistemático de poucas pessoas, que assumem para si a responsabilidade de criá-las e sustentá-las. Ainda que tais ações sejam realizadas em conjunto com outros membros da comunidade, a dedicação sistemática dessas pessoas é fundamental, principalmente nos períodos iniciais, em que essas instituições ainda não se estruturaram de forma autônoma no tocante a sua sustentabilidade material ou legitimidade social.
No entanto, o que leva tais pessoas a se mobilizarem e se dedicarem à criação e manutenção dessas instituições e, principalmente, a estas instituições especificamente, e não a outras? Este texto mostra os resultados de uma etapa da pesquisa “Consciência do legado em trajetórias de vida dedicadas à produção e promoção cultural local”, em que buscamos a resposta a essa questão a partir da noção de “escolha de legado”, compreendida dentro da Teoria da Dádiva de Mauss, no momento do “receber” a dádiva.
Temos, então, como objetivo desta pesquisa, compreender como se estrutura o processo de adesão a trajetórias culturais, estabelecendo como recorte de amostra três sujeitos responsáveis pela criação e manutenção de instituições culturais em uma cidade de pequeno porte em Minas Gerais. Para isso foram realizadas três levas de entrevistas semiestruturadas, que buscavam a compreensão que os sujeitos estabelecem de suas trajetórias de vida em relação à vinculação a trajetórias culturais, dentro da perspectiva da história oral de vida.
Procuramos então, na estrutura do texto, delimitar conceitualmente os conceitos utilizados, inicialmente, no tópico 2, descrevendo as noções de Teoria da Dádiva, de Mauss, e a noção de Consciência de Legado, estruturada também a partir da Teoria da Dádiva e das noções de Conhecimento Tácito de Polanyi. Ainda dentro desse tópico, procuramos especificar como esse processo se dá em crianças, analisando sua relação com o circuito da dádiva. No tópico 3, procuramos estruturar de forma mais detalhada a relação entre as noções de dádiva e de legado, especificando principalmente o momento do “receber”, do circuito da dádiva com a noção da escolha do legado.
No tópico 4, explicamos o método utilizado, descrevendo os sujeitos da pesquisa, e as opções pelas entrevistas semiestruturadas e pela História Oral de Vida como referências metodológicas principais. No tópico 5, descrevemos os resultados, procurando dar ênfase às diferentes ondas de entrevistas. No tópico 6, discutimos os resultados procurando estabelecer as semelhanças e diferenças entre os sujeitos, bem como a articulação dos resultados com as noções teóricas estabelecidas. No tópico 7, em que estabelecemos as conclusões do estudo, pudemos perceber que os processos de escolha do legado se estruturam em dois momentos: inicialmente, na infância, intermediados pela vinculação afetiva a figuras de admiração; e confirmados no início da vida adulta, pela articulação da atividade como agente cultural com a vida profissional e social dos sujeitos.
2 A TEORIA DA DÁDIVA E A CONSCIÊNCIA DO LEGADO
A noção de Consciência do Legado (CARVALHO; PIRES; MALVEZZI, 2018) se refere à percepção da contribuição pessoal de um sujeito ou grupo a uma tradição cultural. Essa contribuição se dá a partir de um conhecimento pessoal de cunho experiencial, que serve de base para a atribuição de sentido às ações e instituições culturais das quais o sujeito participa. Esse sentido não é idêntico ao sentido explícito e socialmente compartilhado das instituições. Ele se refere mais ao próprio sujeito na sua relação com seu desejo do que em relação com processos identitários ou relações de pertença.
Embora ocorra em um processo em que o tempo é mediador das relações, esse tempo, como nos mostram Mauss e Hubert (2003), não é um elemento que quantifica os compromissos, e sim esses que intermediam a contagem do tempo e de seus ciclos. Ele fornece um saber que faz um contraponto à construção de um sentido histórico linear das instituições e que está articulado com as práticas de atribuição de sentido dadas pelo que Roudinesco (2006) vai conceituar como arquivos, que teriam uma função de referências compartilhadas socialmente desses sentidos.
O legado vai então passar por duas formas, a princípio, contrapostas de produção de sentido que se articulam. Ele se estrutura como um conhecimento tácito, pessoal e, por definição, de difícil comunicação, produzido a partir das sínteses pessoais desenvolvidas pela história de vida do sujeito (POLANYI, 1966). Esse desenvolvimento, no entanto, sempre se dá em relação a algo, o que possibilita que essa síntese pessoal e o conhecimento a ela associado tenham alguma possibilidade de expressão, ainda que limitada na sua formulação enquanto dimensão cognitiva (POLANYI, 1969).
A expressão e o compartilhamento dessa reflexão pessoal se estruturam, no entanto, além de uma dimensão cognitiva, a partir do que Mauss (2003) vai chamar de dádiva. A noção de uma economia da dádiva se baseia em uma cadeia de trocas baseadas na tríade dar-receber-retribuir, ou seja, uma pessoa estabelece uma relação de troca, que, diferentemente das relações hegemônicas do capitalismo, não busca a extinção da relação no cumprimento da obrigação, mas a manutenção de um laço social. Ao receber algo, eu me obrigo a retribuir, e, ao receber minha retribuição, a pessoa reinstaura o ciclo, gerando a manutenção da relação. Nesse sentido, a abertura ao outro que se estabelece para a troca de experiências pessoais ocorre porque, mais do que troca de bens ou informações, o que é fundamentalmente compartilhado na cadeia de dádiva são compromissos.
A noção de legado vai então se configurar como uma transmissão de conhecimentos tácitos e experienciais, vivenciados como compromissos em relação às tradições culturais. O legado é transmitido a partir da inserção dessas vivências em cadeias de dádiva entre diferentes gerações (LAVAL, 2006), de dedicação à manutenção e criação cultural, de tradições culturais que foram recebidas de alguém que já as havia produzido antes, e as quais são repassadas para quem irá sustentá-las depois. Não se configuram então nem como conhecimentos nem como instituições, mas como a vivência de compromissos de contribuição a algo que os ultrapassa enquanto sujeitos (CARVALHO; PIRES, 2019).
2.1 As crianças no circuito da dádiva
O circuito da dádiva se expressa em uma tripla obrigação, de dar-receber-retribuir. A grafia interligada expressa bem o fato de que, apesar de serem três atos aparentemente distintos, quando pensados do ponto de vista de um sistema, constituem em um só. Isso porque a economia da dádiva não deve ser entendida como um simples sistema de trocas de mercadorias, o qual se dá na expectativa difusa de receber, por meio de atos unilaterais descontínuos. Dar, receber e retribuir são três momentos de um mesmo ato. Falar então do “receber” não é falar de um ato específico, mas de um momento, que se articula ontologicamente com os outros dois momentos de dar e retribuir (MAUSS, 2003).
O “receber” não é a simples recepção de um bem. Na economia da dádiva, as coisas têm uma alma, uma energia ligada a quem a dá. O ato de receber é então a recepção do outro em si. Mais que uma troca de objetos, serviços ou bens simbólicos, o que se intercambia é uma parcela do próprio sujeito, que passa a habitar o recebedor, demandando o seu retorno no momento da retribuição. Esse receber está a serviço do vínculo entre pessoas, configurado enquanto vínculos sociais e o estabelecimento de um processo de compromisso e solidariedade para com esse outro que passa a nos habitar e que passamos, ao completar o ciclo da dádiva, a nele habitar também (FLACH; SUSIM, 2006).
Nesse sentido, o oposto do receber, como nos mostra Caille (2014), não seria somente o recusar a dádiva. Essa recusa, assim como o sentido do receber, deve ser compreendida como um momento de uma ação que engloba o dar-receber-retribuir. Precisaria ser compreendida como um momento de uma ação mais ampla, de ignorar/tomar-recusar-manter, em que, mesmo havendo a aceitação, se esta se estabelece sem a perspectiva de retribuição, não se configuraria como um ato de receber, mas como um ato de tomar algo, no qual o donatário é ignorado.
No entanto, a não aceitação não se configura como uma ação antissocial em si (ainda que possa criar inimizade entre o que dá e o que recusa), pois mantém as possibilidades de vinculação múltiplas presentes na sociedade. Esse fato ocorre principalmente em função de elementos hierárquicos, em que o recebedor está localizado hierarquicamente acima do donatário e não se vinculará a esse a não ser como donatário, dentro de uma situação na qual o que se posiciona em uma situação hierarquicamente inferiorvai receber sem a possibilidade de retribuir à altura, tornando-se, assim, tributário, devendo ao donatário, principalmente, gratidão.
Essas relações ganham uma situação especial ao pensarmos o ato de receber na infância, em que a dissimilaridade de possibilidades de retribuição entre crianças e adultos bem como a vinculação dos laços sociais individuais aos laços sociais familiares colocam as relações de dádiva como uma ação dupla, ou seja, de um lado, processos de trocas materiais e simbólicas no âmbito da sociedade de adultos, mas também como preparação para a socialização das crianças e de preparação para uma futura inserção em laços de dádiva.
As obrigações decorrentes da dádiva são assumidas inicialmente como um “nós” do grupo interno familiar, em relação aos “outros”, externos a esse grupo, e não pela criança isoladamente. A circulação interna da dádiva vai então colocar tanto crianças como idosos, principalmente, no momento do receber, ficando compromissados com o dar ao chegar à vida adulta ou já tendo realizado o momento do dar, antes de alcançada a velhice. No entanto, como indica Portugal (2011), essas obrigações, no caso das crianças, podem mudar no futuro, principalmente pelas vinculações familiares secundárias, adquiridas por meio de casamentos, ou das vinculações conflitantes, decorrentes da dupla vinculação familiar.
A dádiva que circula no interior do núcleo familiar é o cuidado. Este é dirigido pelos adultos às crianças e aos idosos, que, por sua vez, os dirigem às crianças e aos idosos quando são adultos, dentro de uma perspectiva de reciprocidade. Mas a perspectiva do cuidado futuro não é a única retribuição esperada pelos donatários das crianças. Segundo Flores et al. (2011), espera-se que elas sustentem os compromissos assumidos pelos pais em direção ao grupo exterior e, internamente, direcione a eles respeito e gratidão.
Apesar dessa submissão aos laços sociais decorrentes das relações familiares, as crianças constroem laços sociais próprios, que vão cultivar ainda que se contraponham aos laços que seus pais estabelecem. Essas ações de trocas materiais e simbólicas entre as próprias crianças serão fundamentais no estabelecimento de laços de dádiva e companheirismo e na estruturação de seus círculos de amigos. Um exemplo, segundo Sirota (2005), é o caso dos presentes de aniversário, que mostram como o ato da criança de receber algo não se configura necessariamente como um estabelecimento de laço social. Se o ato de dar não se configura como uma oferta de si que leve o outro em consideração, embora possa gerar contraprestações formais no âmbito do mundo adulto, não estabelece trocas significativas entre as crianças e, consequentemente, não estrutura laços sociais baseados em cadeias de dádiva.
Esse processo, embora possa ter variações com o correr do tempo, vai durar por todo o período no qual o sujeito mantém-se como dependente. Esta dependência é um elemento variado em nossa sociedade, que precisa levar em conta diferentes aspectos, como classe, gênero ou regras locais. Então, a dependência de uma mulher em relação ao marido, por exemplo, pode se estender durante toda a sua vida adulta ou, no caso de uma criança de classe média de populações urbanas, a dependência pode durar até o final de sua formação em uma universidade, e não ao final da infância ou adolescência. O receber poderá ser então mediado por essa dependência durante esses processos que são variados, tanto em termos temporais quanto na sua magnitude.
3 O RECEBER E O LEGADO
Como o legado não se configura como um conhecimento objetivo ou bem material ou simbólico que possa ser intercambiado, o seu receber precisa ser compreendido não só a partir da teoria da dádiva, mas também a partir das noções de conhecimento tácito de Polanyi (1966), que é um conhecimento experiencial, o qual não pode ser intercambiado nos moldes que se transmitem outros conhecimentos ou bens simbólicos. O que se intercambia nesse caso são a adesão e dedicação a uma tradição cultural, a qual recebemos de quem nos precedeu e nos obrigamos a repassar para os que virão depois de nós (CARVALHO; PIRES, 2019). Só a partir dessa adesão e no ato de retribuir é que o conhecimento experiencial de estar naquela posição de sustentação da tradição cultural pode ser integralmente recebido.
O receber o legado de uma tradição cultural só se efetiva de fato a partir do momento em que se retribui o que nos foi dado. Tal fato nos remete a um receber que não se efetiva imediatamente após sua escolha ou adesão, principalmente no caso das crianças, mas que vai ocorrer de maneira gradual, à medida que nos dedicamos e passamos pelas diferentes fases de adesão e sustentação de tradições culturais e vivenciamos as experiências ligadas a essas ações. É necessário, então, que haja por parte do sujeito a manutenção constante de um direcionamento de suas energias e recursos, por longos períodos de tempo.
No entanto, para além dessa dinâmica interna do ato de receber, é interessante notar que o processo de receber se dá em relação a uma escolha. Como nos mostram Derrida e Roudinesco (2004), de uma forma ou de outra, sempre vai haver uma escolha em relação a qual narrativa de sentido vai-se filiar. Consideramos aqui que o mesmo acontece em relação a qual projeto, e, como sujeitos sociais, colocamo-nos em dívida ao aceitar receber uma dádiva que nos é oferecida. O sujeito geralmente é exposto a diferentes tradições culturais, que lhes são oferecidas como dádiva ao longo da vida. Nesse sentido, o que o leva a escolher uma tradição específica?
A resposta a tal questão demanda que, à noção de dádiva e de conhecimento tácito, some-se a noção psicanalítica de desejo e a função que este tem de articular a dinâmica e a economia psíquica do sujeito com o legado. Como nos mostra Freud (1996a [1905]), o desejo surge como tentativa de reinvestimento de uma primeira satisfação cujo representante se perdeu, e nos organiza não só em relação às nossas necessidades, mas também na nossa relação com o outro. Esse direcionamento em relação ao outro ocorrerá como a tentativa de mobilização do outro (e de seu desejo) em relação a nós, em um primeiro momento, por meio de uma relação direta, com as figuras parentais, mas, após o estabelecimento das interdições decorrentes da internalização do Complexo de Édipo, pela via cultural, na qual se busca o acesso ao desejo do outro por meio de conhecimentos, bens e valores culturais.
Esse redirecionamento de uma parcela da pulsão antes direcionada para os conteúdos sexuais, agora recalcados, vai se estabelecer como um desejo de saber, direcionados para elementos da cultura. No entanto, segundo Porto (2013), essa busca de saber não se configura como um ato solitário, pressupondo o outro detentor de um saber, que possa intermediar meu acesso a ele. É necessário que se suponha que esse outro detenha um saber que tem a chave para dar acesso a relações com as pessoas e com as coisas. A noção de desejo é então importante para compreender que, mais do que conhecimentos puros, o que se busca com a mobilização do outro em relação a si é acessar as experiências associadas ao saber desse outro, e as possibilidades de satisfação do desejo que se supõem associados a essas experiências.
Como o receber o legado só se concretiza em sua transmissão, este vai se estruturar entre um desejo de aprender e um desejo de transmitir o que aprendeu. Em ambos os casos, o que se busca é mobilizar o outro e seu desejo, tanto no que sabe antes de mim quanto o que deseja o acesso a esse saber. O receber o legado é receber esse outro, com seus conhecimentos, mas também com seu desejo, numa relação em que conhecimentos, vivências e desejos em relação a tradições culturais possam circular entre os sujeitos e sustentar essas tradições para que fiquem disponíveis aos grupos sociais aos quais esses sujeitos pertencem.
No entanto, como essa dinâmica do desejo nos leva a um processo de escolha de um legado? Quando e como tal desejo encontra no legado uma maneira de expressão e de satisfação? O presente artigo se propõe então a analisar a estruturação do processo de escolha de um legado, a partir da consideração das trajetórias de dedicação à criação e manutenção de instituições culturais em agentes culturais de uma cidade do interior de Minas Gerais.
4 MÉTODO
4.1 Amostra
O estudo foi realizado a partir de entrevistas com três sujeitos que são referência na criação e estruturação de instituições culturais em um município do interior de Minas Gerais. A escolha dos sujeitos se deu em função de dois critérios. O primeiro foi ter criado ou participado da criação de instituições culturais no município. O segundo foi ter se dedicado por mais de vinte e cinco anos a essas instituições.
Sujeito 1 – Atual secretário de Cultura do município, com 71 anos, foi líder estudantil, vereador, prefeito do município e deputado estadual, além de ter trabalhado em outros cargos públicos. É advogado e professor de direito (aposentado) e, atualmente, além de Secretário de Cultura, tem um jornal, no qual trabalha como redator, sendo também formado em Jornalismo. Foi um dos fundadores do Conselho de Patrimônio Histórico Municipal, da Associação Municipal de Cultura e da Academia Municipal de Letras, sendo membro ativo de todas essas entidades. É autor de um livro em que resgata histórias de moradores locais e tem vasta produção escrita, na sua maioria, artigos e editoriais de jornal.
Sujeito 2 – Aposentado como coletor da Receita Estadual, com 78 anos, vindo de uma família com vários músicos, tem formação como músico na banda da Polícia Militar de MG. Participou da criação das duas Bandas Filarmônicas da cidade, sendo coordenador de uma delas durante 30 anos, e participou de ambas por 52 anos. Participou também da criação de um coral e de um conjunto de jazz na cidade, ambos já extintos, sendo atualmente membro ativo da Academia Municipal de Letras. Tem quatro CDs gravados, dois deles dedicados ao resgate de obras de compositores locais.
Sujeito 3 – Professora de Inglês aposentada, com 92 anos, foi a principal criadora do Museu Municipal, o qual coordena desde sua criação, em 1992 (processo que se iniciou em 1988). É membra ativa da Academia Municipal de Letras e da Associação Municipal de Cultura, tendo um livro publicado, sobre viagens e vivência de outras culturas.
4.2 Coleta e análise de dados
Os dados foram coletados por meio de duas ações. As primeiras contaram com entrevistas semiestruturadas, que ocorreram em três momentos, com cada entrevistado. No primeiro momento, solicitava-se aos entrevistados que falassem de sua relação com os empreendimentos de forma geral. Os temas que emergiram nas primeiras entrevistas serviram de base para a organização das seguintes. Na segunda rodada, solicitava-se que falassem mais sobre os eventos de sua infância narrados na primeira entrevista, que haviam sido identificados como importantes para a escolha da área de atuação cultural posterior. O mesmo era feito na terceira entrevista, mas buscando que se narrasse com mais detalhes a articulação da sua vida profissional com sua atividade cultural no início da vida adulta.
Com isso, buscou-se adequar as entrevistas ao método da história de vida, estruturando-as como entrevistas prolongadas (THIOLLENT, 1982). Nelas, procurou-se possibilitar que o entrevistado se mantivesse em uma situação de exploração de sua própria trajetória, sendo a intervenção do entrevistador principalmente decorrente do direcionamento para a temática da pesquisa e da busca de manutenção do processo associativo entre as vivências relacionadas ao tema da pesquisa e outras vivências de sua vida. Cabe ressaltar também que as categorias escolhidas para nortear a segunda e terceira onda de entrevistas, ou seja, os eventos da infância e a articulação com a vida profissional na fase adulta, foram decorrentes da análise da primeira onda de entrevistas, em que essas categorias emergiram como categorias comuns e destacadas como estruturadoras de sentido para os entrevistados.
Também, foram realizadas análises de documentos (artigos de jornal e fotos de arquivos pessoais dos entrevistados), os quais serviam para fornecer dados que remetessem a uma interpretação dos fatos não exclusivamente calcada em elementos projetivos atuais dos entrevistados, conforme indicado por Roudinesco (2006). Buscava-se, ainda, que esses objetos (que em alguns momentos eram prédios históricos onde os empreendimentos culturais se localizavam ou que podiam ser vistos durante as entrevistas) servissem como objetos mnemónicos, os quais permitiam que as associações pudessem ocorrer de forma a retomar circuitos amplos de memória, na qual as narrativas sobre os acontecimentos se articulavam com elementos diversos da vida do sujeito e da cidade (CARVALHO, 2014).
Os dados foram analisados a partir da perspectiva da História de Vida (SPINDOLA; SANTOS, 2003), que busca identificar as construções de sentido que o próprio autor faz de sua trajetória, e das articulações de compreensões que existiam tanto no passado quanto no presente, incluindo também as expectativas em relação ao futuro. Nessas narrativas, buscou-se identificar os momentos em que ocorreu a adesão a tradições culturais específicas, bem como os elementos relacionados a essa adesão.
Embora as narrativas sobre essa adesão sejam mediadas pela atuação posterior como criadores e mantenedores das instituições às quais se vincularam, a vivência em relação a elas se localizou nos questionamentos somente como um dos elementos da trajetória de vida. O que se buscava como chave interpretativa para as narrativas do processo de adesão se concentrou então, principalmente, nas experiências passadas (infância e início da vida adulta), que foram fundantes na escolha do legado a receber.
5 RESULTADOS
Os resultados foram analisados por sujeito, a partir das três ondas de entrevistas. Foram realizadas as primeiras entrevistas, com o intuito de verificação do processo de vinculação aos empreendimentos e movimentos culturais na história de vida dos entrevistados. A partir da análise dessas entrevistas, identificou-se, como pontos em comum sobre o processo de adesão a tradições culturais, que a adesão a essas tradições ocorria de uma forma dupla, inicialmente na infância, por meio de vinculações ligadas principalmente à fruição estética e vinculação afetiva a figuras de admiração, e, em um segundo momento, no início da idade adulta, com a articulação dessa vinculação à tradição cultural com as atividades profissionais. Apresentaremos os resultados, então, por onda de entrevistas e, internamente a essas ondas, por sujeito. A referência à “cidade” sempre se referirá à cidade natal (e atual) dos entrevistados.
5.1 Primeira onda de entrevistas, com foco na vinculação aos empreendimentos e movimentos culturais de maneira geral
Sujeito 1 – Ainda na adolescência, participou do movimento estudantil secundarista, em que conheceu as ações de fomento cultural dessa iniciativa. Nesse período, começou a participar também da política municipal, tendo sido eleito vereador e, logo depois, prefeito. Suas ações políticas foram marcadas pela organização de eventos culturais, tanto com finalidade de promoção cultural em si quanto como forma de mobilização popular para outras ações, como arrecadação de recursos ou mobilização comunitária. Aos dezoito anos, criou um jornal (que funcionou initerruptamente desde então) com abrangência municipal. Após o fim de mandato como prefeito, foi eleito deputado estadual (como suplente, exercendo por um ano o mandato). Depois disso, passou por diversos órgãos públicos no estado, lecionou aulas de Direito (é advogado com mestrado em Direito Público). Mesmo no período em que morava em outras cidades, sempre se manteve vinculado ao jornal fundado em sua juventude e participou também da criação de diversas outras entidades culturais locais, principalmente a Academia Municipal de Cultura e Arte, a Academia Municipal de Letras e o Conselho de Patrimônio Histórico Municipal. Atualmente, é secretário municipal de Cultura, trabalhando também em seu jornal.
Sujeito 2 – Membro de família com inúmeros músicos, alguns profissionais de renome tanto na área prática quanto na área acadêmica, cresceu em ambiente musical. Na adolescência, foi para Belo Horizonte completar os estudos e ingressou na Banda Filarmônica da Polícia Militar, em que refinou o conhecimento musical que já possuía. Desde novo, trabalhou, entre outras atividades, como músico, como forma de complementação de renda. Depois, passou no concurso para coletor estadual e retornou à cidade. Passado um tempo, participou da criação de uma banda filarmônica no município, que já havia tido uma banda, mas que deixara de existir. Depois de desentendimentos com parte dos membros dessa banda, saiu e, com outros membros, fundou uma segunda banda, da qual participou como coordenador e, depois, como regente, por quase quarenta anos. Nesse meio tempo, participou também da formação de um coral e de uma banda de jazz, atualmente extintas. Durante um período no qual foi deslocado para outra cidade em função de seu trabalho na coletoria estadual, participou da banda local, tornando-se seu regente até retornar para sua cidade, destacando a importância dessa participação para seu processo de socialização nessa outra cidade. Atualmente, é membro ativo na Academia Municipal de Cultura e Arte e na Academia Municipal de Letras.
Sujeito 3 – Ligada a uma família de professores e educadores do município, trabalhou como professora de inglês tanto na rede pública quanto como professora particular. Para aprimorar a fluência e os conhecimentos de inglês, realizou algumas viagens para o exterior, que depois se tornaram mais rotineiras. Essas viagens foram de grande importância, pois nelas procurava ter contato com grandes museus e entidades culturais dos países que visitava. Ao participar de um evento sobre história municipal, teve a ideia, conjuntamente de outras pessoas, de montar um arquivo sobre essa história. Esse processo se intensificou ao serem descobertos resquícios arqueológicos no município. Depois de um período recebendo, armazenando e catalogando material histórico do município e após participar de uma série de cursos no Arquivo Público Mineiro e no Museu Nacional, fundou o Museu Municipal, o qual coordena desde sua fundação, há quase trinta anos. Atualmente, é membro ativo na Academia Municipal de Cultura e Arte, na Academia Municipal de Letras e no Conselho de Patrimônio Histórico Municipal.
5.2 Segunda onda de entrevistas, com foco nas primeiras experiências vivenciadas que os vincularam às atividades culturais a que são ligados
Sujeito 1 – Por ter passado por uma série de restrições à liberdade que as crianças de sua época tinham, em decorrência de problemas de saúde, narra o encanto que tinha ao participar das festas de São João promovidas por um tio. Essas festas, algo totalmente inusitado para o tamanho da cidade (além de grandes eventos, devido ao fato de o festeiro ser amigo de Luiz Gonzaga, contavam, algumas vezes, com a participação do cantor), eram, na fala do entrevistado, “à vista de uma criança, um acontecimento quase mágico”. A participação no evento, tanto na fruição estética quanto na percepção um pouco mais detalhada da sua organização (ainda que não tenha participado dela), foi então um elemento marcante na sua vida, no qual percebeu a importância da produção de festas e eventos culturais na vida das pessoas e da comunidade.
Sujeito 2 – A vinculação com a música era “uma coisa natural”, por viver em um ambiente familiar em que a música era algo constante e seu aprendizado disponível. A ligação com a música era então, principalmente, pela fruição estética dela. No entanto, essa ligação está também relacionada ao fato de a música estar associada a festas, ambientes e momentos de felicidade, com formas agradáveis de socialização.
Sujeito 3 – Sua vinculação com o resgate da história local se dá inicialmente em função do pai, que foi professor e um dos estruturadores do sistema educacional no município. Sendo professor de História, participou de ações de resgate da história do município. A narrativa das histórias locais por parte do pai é experienciada como um momento importante de sua infância, no qual, além das histórias, o pai explicava que a história local é tão importante para as pessoas, nas suas vidas cotidianas, como os grandes fatos da história universal.
5.3 Terceira onda de entrevistas, com foco na articulação entre a vinculação às tradições culturais e as atividades laborais dos sujeitos
Sujeito 1 – A articulação das ações culturais com as ações profissionais ocorre no início da vida adulta, principalmente pela vinculação das atividades culturais com as atividades políticas. Nesse sentido, tanto as ações culturais, de promoção de eventos como ação de mobilização política de grupos sociais, quanto a criação do jornal se estruturaram como uma forma de articular seu trabalho como político e gestor público, com atividades culturais, fossem elas festas populares ou as atividades de escrita jornalística.
Sujeito 2 – A vinculação de suas atividades profissionais com a música ocorre no período final da adolescência, quando começa a participar como músico na banda da Polícia Militar. O sujeito narra que sua atividade como músico nesse período de juventude foi um elemento para lhe proporcionar renda. A atividade se configurava também, nesse período, e mesmo depois de não depender mais da renda decorrente da música, como importante elemento de socialização.
Sujeito 3 – A vinculação com a atividade de recuperação e manutenção da história local ocorre um pouco mais tarde. Ela acontece inicialmente por meio de suas viagens, em articulação com suas funções como professora de Inglês. A criação do museu já ocorre em um período mais próximo de sua aposentadoria, não estando associado diretamente à sua trajetória laboral. É interessante notar aqui o fato de que essa adesão mais tardia é indicada em alguns momentos das falas em função de questões de gênero e de outras ocupações que lhe sopesavam, tendo sua dedicação se ampliado à medida que os filhos foram se tornando mais independentes e deixando a cidade para estudar fora, possibilitando-lhe mais tempo livre.
6 DISCUSSÃO
As entrevistas iniciais buscavam ter um panorama geral da relação entre a história de vida dos entrevistados e a adesão às tradições culturais e, nelas, principalmente, a atuação sistemática na criação e sustentação de empreendimentos culturais. Percebeu-se como um ponto em comum, nas falas dos entrevistados, que a adesão a essas tradições culturais se dava em consonância com experiências infantis nas quais o prazer associado à fruição estética, seja ela relacionada às histórias, festas ou música, mostrava-se como um caminho pelo qual o processo de redirecionamento da curiosidade infantil para as tradições culturais encontrava uma nova forma de investimento libidinal.
A escolha, nesse primeiro momento, parece estar associada à vinculação identitária com as vinculações já existentes de familiares, em que o respeito, a admiração e o afeto por esses se transfere também para os valores estéticos e culturais por eles cultuados, que são absorvidos como valores próprios. Este processo de introjeção de valores culturais de figuras parentais se mostra em consonância com os descritos por Freud (1996b [1923]) na estruturação do Complexo de Édipo e o início do período de latência, no qual a curiosidade infantil sobre questões sexuais se redireciona para conteúdos culturais.
No entanto, para além da dimensão intrapsíquica, essa adesão aparece muitas vezes nas falas dos entrevistados, em que essas experiências são narradas dotadas de um sentido estruturante não só para suas vidas, mas como elementos estruturantes da organização da social de maneira geral. Dois exemplos interessantes disso são a fala na qual a Sujeito 3 relata que “a história local é tão importante quanto a história geral”, frase ouvida de seu pai, e a fala do sujeito 1, ao narrar fatos relacionados a uma greve de trabalhadores na qual ele atuou quando deputado estadual. Este elenca um dos elementos que justificava seu posicionamento de defesa dos trabalhadores, o que previamente já sabia que geraria a perda de mandato: “Meu pai era amigo do pai dele [de um dos líderes da greve], eles jogavam bola juntos, eu conhecia o pessoal de lá desde criança, a gente brincava junto nas festas que tinha lá [região rural de uma cidade vizinha, na qual o pai possuía terras]”.
Os laços estabelecidos no processo de recebimento das histórias ou das brincadeiras nas festas estruturavam relações que ultrapassavam a mera fruição estética do momento. Mas é interessante notar que ultrapassam também relações de dádiva entre sujeitos específicos. Embora no primeiro caso essa percepção se mostre de maneira mais clara, sendo o compromisso assumido com o elemento abstrato “história local”, mesmo no segundo exemplo, no qual relações de infância se davam acerca de uma comunidade específica com a qual o sujeito 1 tinha contatos familiares e comunitários, o fato que o vincula às pessoas se mostrava principalmente como uma defesa de um modo de vida sustentado por aquela comunidade.
Essa compreensão ocorreu em outra entrevista com o sujeito 1, realizada posteriormente, em conjunto com pessoas que participaram dessa greve, na qual o sujeito apresentava interpretações idealizadas de que os pais desses trabalhadores tinham uma vida de qualidade, que foram contraditas pelos outros entrevistados, os quais ressaltaram que os pais não puderam vivenciar os benefícios que eles haviam conquistado. Esse fato indica que a vinculação afetiva e de dádiva com a comunidade se dava muito mais em função de participar de vivências culturais e festivas junto a ela, e não do cotidiano dela, ainda que esse fosse conhecido e mobilizasse o sujeito 1 moral e politicamente.
Nesse sentido, ainda que o receber seja intermediado pela vinculação afetiva associada a figuras parentais e de familiares, e se reforce com a libido direcionada a essas pessoas, aquele de quem se recebe parece se referir mais a um ente abstrato, ou seja, o receber ocorre das próprias tradições, sejam elas musicais, festivas ou de narrativas históricas. O receber é sempre recebido então como um potlatch (MAUSS, 2003), como uma dádiva ampla advinda das tradições culturais, impossível de ser paga por ele enquanto sujeito, porque ultrapassa o sujeito enquanto tal.
Essa hipótese interpretativa é reforçada pelo processo de vinculação permanecer e precisar ser reconfirmado em um segundo momento, direcionado agora não somente ao âmbito familiar, mas à comunidade. Esse processo de reafirmação aparece no período do final da adolescência, quando o sujeito era colocado diante das necessidades de trabalho (ou pelo menos de um processo de preparação para elas) e de autonomia financeira e social. Nesse segundo momento, é interessante notar dois pontos.
O primeiro é que o processo de expansão e reafirmação do vínculo com a tradição cultural ocorre fora da cidade natal e do âmbito familiar e comunitário originário dos sujeitos entrevistados. Nos três entrevistados, a reafirmação ocorre fora: no sujeito 1, com o contato com as políticas culturais do movimento estudantil nacional da época; no sujeito 2, com a banda da Polícia Militar da capital do estado; e, no sujeito 3, com suas viagens e visitas a museus e outras formas de narrativas das histórias e culturas das localidades visitadas.
Quando o sujeito alcança a autonomia em relação aos laços de dádiva familiares ou comunitários nos quais se localizava de maneira passiva na infância, a reafirmação do vínculo que é buscada é com a tradição em si, nos locais onde esta se apresenta de maneira mais desenvolvida. Ainda que o processo de retribuição ocorra privilegiadamente na cidade natal dos entrevistados, isso não parece indicar um vínculo exclusivamente comunitário. Tanto que o sujeito 2 relata que, ao mudar de cidade, exerceu as mesmas funções de regente de banda por um tempo nessa cidade. O mesmo ocorre com a participação do sujeito 1 em entidades culturais em cidades onde morou ou das quais participa como membro honorário, e com as percepções do sujeito 3 sobre a importância atual do museu para outras instituições, como programas de pós-graduação de universidades próximas ou outros museus e pesquisadores.
O segundo é o fato de que o processo de articulação com as tradições culturais com a formação profissional não ocorre de maneira direta. Embora desenvolvam conhecimentos técnicos e articulem esses elementos com suas vidas profissionais, eles não buscam na produção cultural, na música, nem no ofício de jornalista, historiador ou museólogo sua forma de sustento nem sua profissão. A adesão à tradição cultural é mantida como uma atividade paralela. É importante aqui ressaltar que isso não torna essas atividades necessariamente algo secundário, pois elas são norteadoras das ações e escolhas profissionais, que se estruturaram de forma a permitir seu exercício.
Nesse sentido, a busca de formação técnica sistemática que permitisse um desempenho em nível profissional (no caso, o curso superior em Jornalismo, a formação em música, na banda da Polícia Militar, e a participação em diversos cursos de museologia e restauração de documentos) nos indica que a não adesão à atividade cultural como forma de sustento principal pode estar mais associada à percepção das dificuldades econômicas encontradas nessas áreas do que à adesão a essas tradições culturais. Tal argumento é reforçado principalmente pela presença constante, nas falas dos entrevistados, de a possibilidade de adesão profissional direta se mostrar como algo possível, inclusive com exemplos de familiares e conhecidos. Porém, essa adesão só seria possível com a mudança para grandes centros, o que entraria em contradição com o desejo de permanecer na cidade natal.
Ainda que a adesão à tradição cultural seja então mais importante em termos estruturais que a vinculação comunitária, esta segunda mantém seu peso. É importante retomar aqui então à articulação constante entre o dar-receber-retribuir, que, embora abordemos o momento específico do receber de maneira destacada, precisa ser analisado de forma integrada. O receber se articula com diferentes formas de dar (parental e leiga num primeiro momento, e formal e profissionalizada, num segundo), mas também com um compromisso específico de retribuição, que encontra na vinculação comunitária, principalmente com sua cidade natal, sua forma privilegiada. Então, embora no retribuir a vinculação comunitária se destaque, o receber mantém uma amplitude de possibilidades que ultrapassam a vinculação comunitária e remete, principalmente, às tradições culturais em si.
Nesse sentido, a articulação do receber com uma forma não profissionalizada de exercício da tradição cultural vai encontrar uma expressão semelhante na estruturação de entidades culturais. Embora essas entidades possam auferir alguma renda de maior ou menor monta em alguns momentos, elas não se constituem como atividades centrais na renda não só dos entrevistados, mas de seus membros de maneira geral, convivendo com outras atividades e outros compromissos profissionais.
Uma possível explicação é que esse fato se dê em função de uma separação entre os compromissos formalizados dentro de uma economia de mercado e os compromissos formalizados dentro de uma economia da dádiva, havendo um intercruzamento ou uma articulação entre os compromissos dessas diferentes modalidades de trocas de bens materiais e simbólicos somente dentro de formações de compromissos inconscientes, como nos mostram Pires e Silva (2019).
As ações, embora se mostrem articuladas com o desejo e com trocas simbólicas dos sujeitos, apresentam-se como discrepantes de objetivos pessoais de sua sustentação em termos de uma economia de mercado. Dentro desse contexto, a adesão às tradições culturais e mesmo a criação de instituições culturais não totalmente profissionalizadas podem ser interpretadas muito mais com a sustentação dos compromissos assumidos dentro de uma economia da dádiva do que propriamente com um exercício das ações culturais como algo secundário na vida dos sujeitos, ou como estruturação de entidades pouco organizadas.
7 CONCLUSÃO
O processo de escolha do legado mostra-se articulado com um duplo recebimento, que se inicia na infância, ligado à introjeção de valores estéticos e culturais de figuras parentais admiradas detentoras de destaque enquanto agentes culturais nas localidades onde residiam. Esse recebimento demandará um processo de confirmação, no início da vida adulta, pela aquisição de conhecimentos técnicos relacionados à tradição cultural escolhida, em ambientes onde esta se encontra mais desenvolvida, e sua articulação com a trajetória laboral do sujeito, ainda que de forma indireta. Esse início da vida adulta, compreendido aqui em função de uma autonomia para estabelecimento social e econômico, precisa, no entanto, ser ponderado em função de elementos sociais, como gênero e classe social.
Essa escolha se estrutura em função tanto da fruição estética quanto da vinculação social e comunitária que possibilitam, sem, no entanto se restringir a elas, referenciando o receber o legado principalmente em relação a uma tradição cultural específica em si, com a qual se estabelece o compromisso principal. No entanto, o momento do retribuir, inerente ao momento do receber se mostrou fortemente influenciado pela vinculação comunitária dos sujeitos analisados.
Por fim, identifica-se que o formato de receber a tradição cultural, articulado de forma indireta com as trajetórias laborais e as escolhas profissionais dos sujeitos, vai impactar no formato das instituições culturais criadas. Esse impacto se apresenta principalmente por uma articulação frágil e às vezes conflitante entre os compromissos dos sujeitos e das instituições dentro de um contexto da economia da dádiva, com os compromissos desses mesmos sujeitos e instituições dentro de uma economia de mercado.
Tais interpretações, no entanto, ainda se mantêm como hipóteses interpretativas e se referem a dados iniciais de pesquisa, com um grupo muito restrito de sujeitos, demandando pesquisas mais amplas, com recortes de sujeitos e de áreas geográficas mais variadas. Um avanço nesse sentido poderia possibilitar uma melhor compreensão dos elementos relacionados à criação e à dinâmica de funcionamento de instituições e empreendimentos culturais no nosso país, sobretudo daqueles que se baseiam principalmente na dedicação constante de alguns poucos sujeitos.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
03 Jun 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2022
Histórico
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Recebido
07 Maio 2020 -
Revisado
26 Fev 2021 -
Aceito
12 Mar 2021