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Oficinas estéticas no Morro da Queimada: memórias em processo

Aesthetic workshops in Morro da Queimada: memories in process

Talleres estéticos en Morro da Queimada: memorias en processo

Resumo

Investigar as memórias de oficinas de arte oferecidas em um território periférico de Florianópolis, Santa Catarina, é o objetivo desta pesquisa. A aproximação da equipe de pesquisa com o território iniciou em 2017, através de oficinas estéticas oferecidas na Cooperativa no Morro da Queimada. A maioria dessas oficinas não teve continuidade, porém permanecem no local rastros do que ali acontecia. A partir das perspectivas Benjaminiana e Vigotskiana, considera-se a importância do trabalho com os restos, com aquilo que é jogado fora, rejeitado, esquecido. Importam esses restos à investigação em psicologia pois, embora considerados minúcias insignificantes, são vestígios de outros possíveis não concretizados que, uma vez perscrutados e visibilizados, podem vir a contribuir para a compreensão e transformação do presente. Foram realizadas 10 entrevistas com mulheres participantes das oficinas. A metodologia de análise dos dados foi a análise do discurso, a qual nos permitiu compreender o que motivou e o processo de construção das oficinas, a participação comunitária, as eventuais repercussões, os motivos para descontinuidades e o que ficou como memória para as participantes. Como resultados, constatou-se que, apesar do fim das oficinas, algumas aprendizagens persistiram e foram transmitidas de geração em geração, principalmente aquelas em que havia um sentido mais amplo como, por exemplo, a tradição do fazer chocolate para entregar na páscoa às crianças da comunidade. Outro resultado obtido foi a compreensão da importância dada às oficinas como locais de concretização de encontros e de compartilhar experiências de vida.

Palavras-chave
arte; oficinas estéticas; produção social de memória

Abstract

To investigate the memories of the art workshops offered in a peripheral territory in Florianópolis, in the state of Santa Catarina, Brazil, is the aim of this research. The team got closer to the territory in 2017, through aesthetic workshops offered in Morro da Queimada’s co-op. Most of these workshops did not continue, although tracks of what happened there have remained in the place. From the Benjaminian and Vigotskian perspectives, the importance of the work with the remains, with what is thrown away, rejected, forgotten. These remains are important to the investigation in psychology because, even as insignificant details, they are vestiges of other possibilites that aren’t unfulfilled, by being scrutinized and seen, may contribute to the comprehension and transformation of the present. In this sense, the analysis seeks to understand the characteristics of the art workshops offered in the co-op and of the workshops that occurred before the co-op, focusing on community participation, possible repercussions and the motives for it to have ceased to exist. 10 interviews were carried out with women that participated in the workshops. The methodology of data analysis was the discourse analysis, which allowed us to understand what motivated and the construction process of the workshops, the community participation, possible repercussions that its discontinuities and what remained as memory to the participants. Despite the end of the workshops, some learnings persisted and were transmitted from generation to generation, especially those that had a broader meaning such as, for example, the tradition of making chocolate to deliver to the community´s kids during Easter. Another obtained result was the comprehension of the importance given to the workshops as places for accomplishment of encounters and of sharing life experiences.

Keywords
art; aesthetic workshops; social production of memory

Resumen

Investigar las memorias de los talleres de arte ofrecidos en un territorio periférico de Florianópolis, en Santa Catarina, Brasil, es el objetivo de esta pesquisa. La aproximación del equipo de investigación con el territorio se ha iniciado en 2017, por medio de talleres estéticos ofrecidos en la Cooperativa del Morro da Queimada. La mayoría de estos talleres no tuvo continuidad, pero permanecen en la localidad rastros de lo que allí pasaba. Desde las perspectivas Benjaminiana y Vygotskiana, se considera la importancia del trabajo con los restos, con aquello que es tirado, rechazado, olvidado. Importan estos restos a la investigación en psicología, pues aún que minucias insignificantes, son vestigios de otros posibles que, al ser examinados y visibilizados, pueden venir a contribuir para la comprensión y transformación del presente. En este sentido, el análisis pretende comprender las características de los talleres de artes ofrecidos en la cooperativa y de los talleres que ocurrían antes de la cooperativa, con enfoque en la participación comunitaria, eventuales repercusiones y los motivos para que tengan dejado de existir. Fueran realizadas 10 entrevistas con mujeres participantes de los talleres. La metodología de análisis de los datos fue el análisis del discurso, que nos permitió comprender lo que ha motivado el proceso de construcción de los talleres, participación comunitaria, posibles repercusiones, sus discontinuidades y lo que quedó en la memoria para las participantes. A pesar del término de los talleres, algunos aprendizajes han persistido y fueran transmitidas de generación a generación, principalmente aquellos en los que había un sentido para amplio, como, por ejemplo, la tradición del hacer chocolate para entregar en la pascua a los niños de la comunidad. Otro resultado obtenido fue la comprensión de la importancia dada a los talleres como locales de concretización de encuentros y del compartir las experiencias de vida.

Palabras clave
arte; talleres estéticos; producción social de la memoria

1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa objetiva investigar as memórias de oficinas de artes no Morro da Queimada, território periférico de Florianópolis, Santa Catarina. Embora tenhamos ciência das contradições que marcam as discussões sobre o que é arte e o próprio sistema de artes (Moraes, 2018), partimos da compreensão de arte como possibilidade de representação e reconfiguração do sensível partilhado (Rancière, 2005RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2005.). Em diálogo com as contribuições de Rancière, entendemos que convivem lado a lado artes que representam e reproduzem o sistema social vigente e artes que tensionam modos instituídos de ver, ouvir, dizer e pensar, configurando-se estas como resistências à partilha hegemônica do sensível. Interessa-nos pesquisar essas artes que provocam fissura ou ruído diante do que se apresenta como normatizado; mais especificamente, interessam-nos as artes produzidas por pessoas em suas lides ordinárias, cujos produtos não são propriamente compreendidos como arte pelo circuito que as legitima. Insistimos em afirmálas como arte porque tensionam lugares subalternizados, constituídos por marcadores sociais da diferença que hierarquizam saberes e fazeres e contribuem para a perpetuação da lógica patriarcal escravocrata ainda vigente e as desigualdades que dela decorrem (Schwartz, 2019). Afirmar serem artes essas atividades que as mulheres com as quais pesquisamos realizam é, por conseguinte, um gesto político de valoração das artes da existência protagonizadas por pessoas comuns, as quais comumente passam ao largo das discussões do sistema de artes e de políticas públicas que reconheçam suas protagonistas como sujeitos de direitos.

Entendemos, com Vigotski (1998, p. 320)VIGOTSKI, L. S. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1998., que “A arte é antes uma organização do nosso comportamento visando ao futuro, uma orientação para o futuro, uma exigência que talvez nunca venha a concretizar-se, mas que nos leva a aspirar acima da nossa vida o que está por trás dela”. O foco, portanto, da pesquisa aqui relatada, consiste em investigar oficinas de arte realizadas em um território periférico marcado pela precariedade de serviços públicos, para compreender o que motivou sua realização, o processo de construção das oficinas, a participação comunitária, as eventuais repercussões, os motivos para descontinuidades e o que ficou como memória dessas oficinas para as participantes.

O Morro da Queimada compõe, juntamente com vários outros territórios, o Maciço do Morro da Cruz, localizado na região central de Florianópolis, SC. É habitado por pessoas em situação de vulnerabilidade social, predominantemente remanescentes de quilombolas e beneficiárias dos serviços assistenciais do município (Santos, 2009SANTOS, A. L. Do mar ao morro: a geografia histórica da pobreza urbana em Florianópolis. 2009. Tese de Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Geografia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2009.; Maia, 2018MAIA, C. G. A. "A revolução vem do pastinho": escrevivências antropológicas sobre vozes negras em Florianópolis-SC. 2018. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2018.). A Cooperativa da Queimada, construída para o desenvolvimento de atividades de geração de renda, consiste em um marcador temporal nas discussões apresentadas. Viabilizada com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), teve como atividade inaugural a produção de aquecedores solares feitos com material reciclável por moradoras(es) do Morro da Queimada.

Nossa aproximação com o território e a cooperativa iniciou em 2017, com o projeto de pesquisa-intervenção “Artes na Queimada”, vinculado ao Núcleo de Pesquisa em Práticas Sociais, Estética e Política (NUPRA). O projeto visa oferecer a crianças, jovens e adultos oficinas estéticas com a mediação de linguagens artísticas variadas. Embora oficinas sejam modos consolidados de trabalhar e pesquisar com diferentes grupos (Spink; Menegon; Medrado, 2014SPINK, M. J.; MENEGON, V.M.; MEDRADO, B. Oficinas como estratégia de pesquisa: articulaçõe`s teóricometodológicas e aplicações ético-políticas. Psicologia & Sociedade, [s.l.], v. 26, n. 1, p. 32–43, 2014. Doi: htps://doi.org/10.1590/S0102-71822014000100005
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), importante se faz pontuar as características que a adjetivação “estética” designam ao termo: em oficinas estéticas, trabalha-se com a mediação de diferentes linguagens artísticas para “intervir nos modos de ver, ouvir, sentir e pensar, o que reverbera e reinventa as condições afetivas e cognitivas” (Zanella, 2020, p. 33ZANELLA, A. V. ArteUrbe: jovens, oficinas estéticas e cidade. 1. ed. Curitiba: Appris, 2020.) tanto das pessoas que participam das oficinas como das pessoas que as coordenam/ministram.

No caso das oficinas do projeto referido, foram trabalhadas diferentes linguagens artísticas nos primeiros anos, como grafite, papel colê, pinturas; porém, a partir de 2018, a confecção de colares por mulheres consistiu em atividade principal do projeto, sendo os encontros considerados como dispositivos para a problematização das relações com outras/os, consigo mesmas, com a própria cidade (Zanella; Strappazzon, 2022ZANELLA, A. V.; STRAPPAZZON, A. L. Sobre arte, encontros e desassossego: experiência estética e corpos em relação. In: CARVALHO, M. F.; BRACCHI, D. N.; PAIVA, A. L. S. (Org.). Estéticas dissidentes e educação. 1. ed. São Paulo: Pimenta Cultural, 2022. v. unico, p. 117-134.). Com a pandemia do covid-19, o projeto, bem como as demais atividades que aconteciam na Cooperativa, foi interrompido.

Rastros das oficinas de artes oferecidas no território, presentes antes e depois da construção da cooperativa, motivaram a realização da pesquisa ora relatada. Interessou-nos perscrutar esses rastros, com o intuito de responder às seguintes perguntas: quais oficinas de artes foram oferecidas no Morro da Queimada? Quem as coordenava/ministrava? Quais as intenções das/ os proponentes com a oferta dessas oficinas? Quem as frequentava? Quais linguagens artísticas eram trabalhadas, e de que modo? Quais os objetivos dessas oficinas? Por que deixaram de ser oferecidas? Quais as repercussões dessas oficinas para as/os participantes?

Ao buscar responder a essas perguntas, a pesquisa contribui para a produção social de memórias em um dos territórios da cidade de Florianópolis. Justifica-se sua relevância em razão do número escasso de publicações que relacionam oficinas estéticas com produção social de memórias, embora seja reconhecida a importância desse tipo de intervenção em contextos e com grupos variados (Zanella, 2020ZANELLA, A. V. ArteUrbe: jovens, oficinas estéticas e cidade. 1. ed. Curitiba: Appris, 2020.; Bueno et al, 2021BUENO, G.; BRANCO, L. C.; SILVA, A. F.; PÓLIDO, S. P. Psicologia social comunitária na escola: um projeto de extensão mediado por oficinas estéticas. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 209–227, 2021. Doi: htps://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p205-223
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; Goulart et al, 2023GOULART, N. D.; ASSIS, N.; RODRIGUES, A.; SPILARI, G. Oficinas estéticas e ensino fundamental: formação e atuação profissional em Psicologia Educacional. In: GOMES, A. H.; PEREIRA, E. R.; ASSIS, N. Arte e processos de criação na formação em Psicologia. São Carlos: Pedro & João Editores, 2023.; Lobo; Fernandes; Lopes, 2016LOBO, P. A.; FERNANDES, F. M.; LOPES, B. V. Saúde mental e arte: relato de uma oficina de experiências estéticas em um Centro de Atenção Psicossocial. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental [Brazilian Journal of Mental Health], [s.l.], v. 8, n. 20, p. 70–8, 2016.). Ademais, a pesquisa contribui para problematizar a política de produção de memórias e esquecimentos, bem como as descontinuidades de atividades voltadas a populações que vivem em territórios onde os serviços públicos são precários e/ou pouco acessíveis.

A pesquisa justifica-se também no sentido de resguardar projetos, histórias, memórias e produções realizadas no território, para preservar o sentido histórico de coletividade e resistência, pensando em novas formas de reinventar os espaços coletivos. No processo de produção de memórias, o mapeamento dos rastros das oficinas de arte apresenta-se como fundamental para a compreensão dos movimentos de moradoras/es em ações coletivas, o que pode contribuir para o delineamento de futuras atividades e, consequentemente, para o desenvolvimento local.

Memórias pregressas, histórias oficiais e vozes dominantes constituem o visível/audível da cidade, a compor o arquivo que se apresenta aos leitores/transeuntes. Mas a polifonia urbana congrega também murmúrios, restos, vestígios de vidas outras que ecoam na cidade, em suas instituições, suas vias e interstícios, constituindo os corpos de seus habitantes. Trata-se de vozes que se encontram marginalizadas na história oficial de Florianópolis, mas que nos apontam para sujeitos, territórios, modos de vida e resistências plurais.

Gagnebin (2009)GAGNEBIN, J. M. Lembrar, escrever, esquecer. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009., resgatando o legado de Walter Benjamin, afirma a importância do trabalho de poetas, artistas e trapeiros com os restos, contrapondo-se ao hegemônico, através do perscrutar dos rastros, com aquilo que sobra do ritmo acelerado da cidade, do que é jogado fora, rejeitado. Inspiradas nesse exercício, apostamos na importância desses restos para a investigação em psicologia, pois, ainda que se tratem de minúcias insignificantes, uma vez perscrutados e visibilizados, podem vir a contribuir para a compreensão e transformação do presente ao oportunizar a construção de (novos) sentidos.

2 SOBRE OFICINAS DE ARTES E PRODUÇÃO SOCIAL DE MEMÓRIA

Investigar as memórias das oficinas de artes nos leva ao encontro das vozes sociais dos grupos e contextos que constituem tanto as oficinas como a cooperativa do Morro da Queimada e o território em que se inserem. Não nos interessa investigá-las como de fato foram e nem as encerrar com interpretações definitivas, mas sim revelar o que se esconde por trás de uma realidade aparente, do que foi esquecido, desprivilegiado na construção da memória social (Benjamin, 1987BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.; Gagnebin, 2018GAGNEBIN, J. M. Walter Benjamin: os cacos da história. 1. ed. São Paulo: Editora n-1, 2018.; Carvalho; Jobim e Souza, 2017CARVALHO, S. C.; JOBIM E SOUZA, S. Escutadoras de memória: a experiência de aprender fazendo. Revista Brasileira de Educação de Jovens e Adultos, [s.l.], v. 5, n. 10, p. 164–79, 2017.).

Vigotski (1995)VIGOTSKI, L. S. História do desenvolvimento das funções psíquicas superiores. Obras Escogidas III. Madrid: Visor Distribuiciones, 1995. indicava, no início do século XX, a necessidade de maior atenção aos restos e vestígios ou, em suas palavras, às minúcias insignificantes que se configuram como “documentos psicológicos”. Assim, buscamos perscrutar rastros, compreendidos como documentos psicológicos, que narram acontecimentos pregressos e se apresentam como vestígios de um futuro que não se concretizou, uma tentativa de não apagamento de um passado que inscreve marcas no presente.

Buscamos investigar especialmente as memórias das oficinas de arte, considerando oficinas como um instrumento privilegiado de práticas sociais e discursivas, facilitador da troca dialógica, de negociações e da construção de sentidos. As oficinas estéticas, por sua vez, possibilitam um “modo específico de relação com a realidade, pautado por uma sensibilidade que permita reconhecer a polissemia da vida” (Zanella, 2006, p. 36ZANELLA, A. V. “Pode até ser flor se flor parece a quem o diga?”: Reflexões sobre educação estética e o processo de constituição do sujeito. In: Sílvia Z. R.; Andréa V. Z.; Kátia M. (Org.). Relações estéticas, atividade criadora e imaginação: sujeitos e/em experiência. 1. ed. Florianópolis: Editora da UFSC: NUP/ CED/UFSC, 2006, p. 33–47.). Nesse sentido, apostamos nas oficinas de arte como possibilidade de reinvenção dos modos de ver, sentir, pensar e imaginar. O dever ético e político em pesquisar com mulheres participantes dessas oficinas está, por conseguinte, em não deixar que suas narrativas desapareçam e se percam; que suas histórias, seus valores e suas tradições permaneçam vivos e permitam a perpetuação de um legado coletivo (Carvalho; Jobim e Souza, 2017CARVALHO, S. C.; JOBIM E SOUZA, S. Escutadoras de memória: a experiência de aprender fazendo. Revista Brasileira de Educação de Jovens e Adultos, [s.l.], v. 5, n. 10, p. 164–79, 2017.).

3 CAMINHOS METODOLÓGICOS

O processo de produção de informações para responder às perguntas da pesquisa compreendeu em observações participantes e entrevistas/conversas com pessoas que fizeram parte dessas oficinas, seja na condição de proponentes, seja na condição de professoras, seja na condição de aprendizes. Com as observações participantes, procuramos a conexão com o fluxo constante de pessoas, falas, espaços, conversas e objetos do território, assim como a valorização do que Spink (2008)SPINK, P. K. O pesquisador conversador no cotidiano. Psicologia & Sociedade, [ s.l.], v. 20, n. spe, p. 70–77, 2008. Doi: htps://doi.org/10.1590/S0102-71822008000400010.
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chama de “micro-lugares”: os encontros e desencontros, os acasos diários que produzem e são produtores de processos sociais identitários. As entrevistas, por sua vez, são compreendidas como conversas cunhadas em contextos, condições e tempos variados, no ritmo dos improvisos e das necessidades que foram sendo evidenciadas a partir dos encontros com quem se pesquisou.

A realização da primeira entrevista com a professora da educação quilombola abriu possibilidades para o contato com outras pessoas que se envolveram diretamente com as oficinas de artes no Morro da Queimada. Após essa primeira entrevista, realizamos uma entrevista coletiva, proposta e articulada pela professora. Participaram dessa entrevista, além da professora, outras 3 mulheres.

Nessa entrevista coletiva, conseguimos o telefone de outras possíveis pessoas a serem entrevistadas. No entanto, a abordagem via telefone não funcionou, sendo mais eficaz a ida ao Morro, contatando conhecidos na rua, indo às suas casas, seguindo o fluxo de tempo das próprias pessoas e do lugar. No total, foram realizadas 10 entrevistas, com número de participantes e locais variados, como: na própria cooperativa, na casa das participantes e até mesmo em uma escadaria do Morro. A princípio, as entrevistas foram pensadas para ocorrerem individualmente, mas o movimento das participantes indicou outro caminho: houve entrevistas coletivas e outras que seriam individuais, mas ocorreram em espaços com circulação de pessoas que esporadicamente também participaram.

Foi seguido um roteiro de entrevista, permitindo a abertura para outras perguntas durante o processo. Os principais tópicos abordados nas entrevistas foram sobre a experiência de morar no Morro da Queimada; a participação, os aprendizados, o sentido das oficinas e o motivo do seu encerramento. As conversas duraram em torno de uma hora. Apenas uma participante não permitiu gravar. O registro dessa entrevista foi feito por escrito após sua conclusão. O consentimento das entrevistas foi obtido via Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Todas as participantes da pesquisa foram mulheres e, em sua maioria, negras. A primeira entrevistada, Sueli2 2 Os nomes apresentados no artigo são todos fictícios. , é professora da educação quilombola e tem, em média, 60 anos de idade; não é moradora do Morro da Queimada, mas participa de projetos e dá aulas de alfabetização na comunidade há mais de 20 anos; articulou a realização de oficinas na Queimada, entre elas: de chocolate, vela e sabonete. Antonieta, outra entrevistada, criadora do grupo Mitos, projeto social de dança afro3 3 Canal no Youtube do Grupo Mitos: https://www.youtube.com/channel/UCylDpSWZA3Hi4uf5o8H6Bqw , participou de várias oficinas, entre elas: de chocolate, vela, cesta de bebê e sabonete. Com 45 anos, sempre morou no Morro e, assim como Sueli, é também considerada uma liderança na comunidade e importante na criação das oficinas. Marielle, prima da Antonieta, tem 55 anos, foi criada no Mocotó, comunidade vizinha à Queimada; participou das oficinas de chocolate, vela, sabonete, cesta de bebê, fuxico e ajudou na fundação do Grupo Mitos. Conceição também é prima da Antonieta, tem 47 anos e mora com os dois filhos e o marido na comunidade; realizou as oficinas de chocolate, sabonete e vela e participou do grupo Mitos. Dona Lélia está com 80 anos e participou da oficina de fuxico, boneca de pano e cesta de maternidade. Tia Dandara, aos 82 anos, é uma das moradoras mais antigas do Morro; nasceu e casou no Mocotó, participou das oficinas de sabonete e vela, é mãe de santo e possui um terreiro em sua casa. Carolina tem 46 anos, nasceu no Mocotó e mora nas casinhas4 4 Popularmente conhecido como “as casinhas da Ângela Amin” – em referência à Prefeita em exercício na época – foi um projeto contemplado pelos recursos do Programa Habitar Brasil BID (HBB) para a construção de unidades habitacionais a famílias de baixa renda que viviam em áreas de risco. há cerca de 20 anos; foi uma das participantes da oficina de colares e do projeto de aquecedor solar. Marta e Maria foram entrevistadas em conjunto: Marta tem entre 50 e 60 anos e Maria está com 48 anos; Marta afirma morar nas casinhas há mais de 47 anos; ambas participaram do projeto de aquecedor solar. A primeira entrevista coletiva contou com as seguintes entrevistadas: Neusa, Thereza, Sueli e Lélia, com idades entre 60 e 80 anos. A segunda entrevista coletiva foi realizada com Elza, Alzira, Beatriz, Ruth e Ciata, com idades entre 30 e 60 anos. As entrevistadas se lembraram de várias oficinas e foram ajudadas no processo de rememoração por Sueli, que, além de promover o encontro, participou da conversa.

A produção e análise das informações coletadas seguiram princípios norteadores para a relação estabelecida entre pesquisadoras e entrevistadas. Fundamentadas nas contribuições do círculo de Bakhtin, entendemos que “O/a pesquisador/a não é um/a perguntador/a, mas um sujeito em interação com outros/as, ele/a é participante da produção de sentidos que serão analisados” (Machado; Zanella, 2019, p.13MACHADO, J. P.; ZANELLA, A.; V. Bakhtin, ciências humanas e psicologia: diálogos sobre epistemologia e pesquisa. Psicologia & Sociedade, [s.l.], v. 31, p. 1–17, 2019. Doi: htps://doi.org/10.1590/1807-0310/2019v31166423
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). Portanto, como pesquisadoras, estamos inseridas e somos constituídas pela trama dialógica; por conseguinte, as análises aqui apresentadas partem de valores enunciados por vozes sociais que nos constituem como sujeitos no mundo.

Desse modo, a metodologia de análise dos dados foi a análise do discurso, partindo das contribuições de Mikhail Bakhtin, Lev S. Vigotski e Walter Benjamin. Sob o prisma desses autores, as análises permitem investigar a materialidade discursiva – o enunciado concreto – a partir de suas condições de produção, compreendendo que a palavra resulta sempre da interação de sujeitos, devidamente localizados numa determinada situação social, e opera na realidade e nos sujeitos ali envolvidos.

4 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Para Gagnebin (2018)GAGNEBIN, J. M. Walter Benjamin: os cacos da história. 1. ed. São Paulo: Editora n-1, 2018., Walter Benjamin pensa a narração de histórias como a arte de contar sem a preocupação de explicar tudo, de não encerrar os acontecimentos em uma única versão, de apresentá-los de forma inacabada. Partindo dessa compreensão, buscamos, com a análise das entrevistas, produzir um saber situando-o no momento e “na possibilidade de não fechamento do/a outro/a à condição de coisa muda” (Machado; Zanella, 2019, p. 13MACHADO, J. P.; ZANELLA, A.; V. Bakhtin, ciências humanas e psicologia: diálogos sobre epistemologia e pesquisa. Psicologia & Sociedade, [s.l.], v. 31, p. 1–17, 2019. Doi: htps://doi.org/10.1590/1807-0310/2019v31166423
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). Mesmo que os rastros das memórias de mulheres sobre as oficinas de artes no Morro da Queimada se apresentem confusos, contraditórios e destoantes uns dos outros, nosso objetivo não se propõe a uma história final, cronológica e linear: afinal, toda história não é estática, e sim dialógica, constituída por diferentes vozes sociais (Jobim e Souza, 2014JOBIM e SOUZA, S. Memória coletiva e tempos de vida: sobre a intenção política da escrita da história em Walter Benjamin e Maurice Halbwachs. Mnemosine, [ s.l.], v. 10, n. 2, p. 179–94, 2014. Disponível em: htps://www.e-publicacoes.uerj.br/mnemosine/article/view/41630. Acesso em: 10 dez. 2022.
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; Gagnebin, 2018GAGNEBIN, J. M. Walter Benjamin: os cacos da história. 1. ed. São Paulo: Editora n-1, 2018.; Bakhtin, 2003BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martin Fontes, 2003.).

Partindo desses pressupostos, as memórias narradas pelas entrevistadas foram analisadas considerando dois marcadores temporais: o início das oficinas e dos projetos que antecederam a criação da Cooperativa da Queimada; e as oficinas e os projetos que ocorrem após a criação e ocupação do local. Essa divisão foi necessária para melhor compreensão dos movimentos ocorridos na comunidade e das lideranças envolvidas nesse processo até a construção da Cooperativa e do seu uso como um espaço coletivo das/os moradores.

4.1 O início das oficinas

Dois projetos anteriores à criação da Cooperativa foram essenciais para o desenvolvimento das oficinas de artes no Morro da Queimada: o projeto de alfabetização, concretizado por Sueli; e o Grupo Mitos, fundado por Antonieta. A alfabetização surgiu entre os anos de 1990 e 2000, quando Sueli era orientadora educacional em uma escola, e os professores se queixavam de alunos envolvidos com tráfico que moravam na Queimada. Sueli, tendo visão e proposta diferente para esses estudantes, começou a frequentar o Morro e, a partir deste contato com o território, iniciou aos sábados um trabalho de alfabetização voluntária com as mulheres mais velhas. O Grupo Mitos, por sua vez, foi fundado após a morte de um menino negro no Morro, em 1998. Foi realizada uma roda de capoeira em frente à antiga sede União Mocotó5 5 Espaço construído para uso coletivo dos moradores do Morro do Mocotó e da Queimada, atualmente em desuso. e, devido à revolta sobre o acontecimento, o grupo que já ensinava dança para as crianças decidiu se unir em um projeto social e lutar em prol das pessoas negras da comunidade.

Sueli lembra que, aos sábados, na sede União Mocotó, ocorriam os ensaios de dança afro do grupo Mitos. As mães das jovens que vinham acompanhar os ensaios iniciaram um movimento para fazerem atividades em conjunto:

E elas começaram dizendo: “Sueli, tá, tu só faz (sic) com os jovens, só faz (sic) com as meninas? E nós?”. Aí foi onde foi surgindo, né? Eu dizia: “Tá, mas o que é que a gente vai fazer?”. Dandara também ia, as filhas da Dandara. “Ah, vamo (sic) fazer um… a gente sabe fazer muita coisa, Sueli” “ Tá, então tá, então vamo (sic) lá”. Aí a gente começou, né. Eu passei os ensaios das crianças pra de manhã e à tarde nós íamos, aí a gente tava (sic) fazendo ali, mas aí toda a criançada vinha, né? Aí elas começaram a se incomodar, “não, aqui não dá, vamo (sic) procurar um local”, e a Dandara: “Vamo (sic) lá pra casa!”

Sueli descreve que, antes da existência da Cooperativa, havia um bar abandonado que pertencia ao marido de Dandara. Naquele local foi onde começaram as primeiras oficinas, simultaneamente com as aulas de alfabetização. Nas lembranças de Sueli, as oficinas atenderam à demanda das próprias mulheres, que “sabiam fazer muita coisa”, mas reivindicavam um espaço próprio e que atendesse aos seus interesses. Um lugar para trocas e aprendizagens, sem a participação das crianças, em que a polissemia da vida é reconhecida, uma vez que as necessidades de um grupo de mulheres são olhadas e busca-se reconhecê-las (Zanella, 2006ZANELLA, A. V. “Pode até ser flor se flor parece a quem o diga?”: Reflexões sobre educação estética e o processo de constituição do sujeito. In: Sílvia Z. R.; Andréa V. Z.; Kátia M. (Org.). Relações estéticas, atividade criadora e imaginação: sujeitos e/em experiência. 1. ed. Florianópolis: Editora da UFSC: NUP/ CED/UFSC, 2006, p. 33–47.; Machado; Zanella, 2019MACHADO, J. P.; ZANELLA, A.; V. Bakhtin, ciências humanas e psicologia: diálogos sobre epistemologia e pesquisa. Psicologia & Sociedade, [s.l.], v. 31, p. 1–17, 2019. Doi: htps://doi.org/10.1590/1807-0310/2019v31166423
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). Já na memória de Conceição, o primeiro local das oficinas foi o “terreiro da Dona Dandara”. Seja o bar, seja o terreiro, a referência mencionada diz respeito aos espaços de Dona Dandara e sua família, espaços estes que oportunizaram os encontros.

A primeira oficina realizada foi a de chocolate. “Porque aí nós fazíamos a festa das crianças. Nós fazíamos no Natal, na Páscoa e no Dia das Crianças” (Sueli). Segundo ela, as integrantes das oficinas eram as filhas da Dandara e também as mulheres participantes da alfabetização. Cabe mencionar que, para além dos encontros, as oficinas produziam bens, como chocolate, o qual atendia a uma realidade coletiva do território, a saber, as comemorações de Páscoa, Natal e Dia das Crianças.

Marielle afirma ter tido conhecimento das oficinas pela sua prima Antonieta, e acabou participando pelo fato de estar envolvida nas aulas de alfabetização com a Sueli, como ressalta sua filha ao responder à pergunta sobre a participação nas oficinas:

Filha: É, a mãe foi primeiro pra começar a ler, primeiro começou com a oficina que foi a Sueli que fez.

Marielle: A da Sueli, é. Da Sueli.

Filha: Daí a Antonieta tinha o Mitos, daí ficou, juntou tudo, sabe? Daí dali foi (sic) juntando as outras oficinas, o Mitos.

Pesquisadora: Tá, mas então você foi pra Sueli, pra aprender as coisas?

Filha: Pra aprender a ler e escrever.

Conceição, ao ser perguntada sobre como ocorreu o início de sua participação nas oficinas, reitera ter sido aluna da Sueli e se aproximado desse espaço com o objetivo de atualizar os estudos e relembrar algumas coisas da escola:

É bom para se preparar [...] Você sabe, né, as pessoas da nossa cor [aponta para o braço] […] por exemplo, se eu tô (sic) fazendo uma prova e tem duas brancas do meu lado, eu fico em desvantagem. Vai tá lá escrito onde eu moro, e todo mundo acha que quem mora no morro é vagabundo, bandido.

A fala aponta as condições desiguais decorrentes de marcadores sociais da diferença: o status de moradia no morro e o fato de ser negra obliteram a aceitação em empregos e outras oportunidades no campo do vivido, como já nos convoca a pensar autoras como Gonzalez (2020)GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. e Crenshaw (2002)CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171–88, 2002.. A discriminação, vivida cotidianamente, requer estratégias para seu enfrentamento e, segundo Conceição, “ter estudo” é fundamental para diminuir a desvantagem. Desse modo, a educação se configura como importante estratégia de resistência e para autonomia de sujeitos (hooks, 2013HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.).

A entrevista com Antonieta trouxe outras informações sobre o que motivou a participação nas oficinas. Segundo ela, as mães das meninas que participavam do Mitos não trabalhavam e estavam com depressão por conta de seus filhos estarem presos. Decidiram, então, começar a fazer oficinas de sabonete, vela, chocolate e cesta de fita bebê. Além desse fator, houve outros motivos para sua realização, como ela descreve:

Antonieta: Foi por causa do terreiro, por causa do terreiro a gente tava (sic) gastando muita vela, tudo isso, aí a gente começou. Aí a Sueli também veio com a ideia, pelos cursos, e fomos fazendo.

Pesquisadora: E a de chocolate?

Antonieta: Chocolate por causa da Páscoa, nós... a gente sempre produz o nosso chocolate pra dar pras ( sic) crianças, a gente ensina eles ( sic) a fazerem o chocolate, é a nossa tradição. [...] Cesta decorativa, porque, assim, um nenê nascia, elas não tinham condições de fazer aquelas cestas, e aí a gente faz cesta de fita. Tem muita, muita gente que faz cesta ainda.

As condições do lugar em que habitam forjaram necessidades, as quais, por sua vez, indicaram às próprias mulheres o que trabalhar nas oficinas: velas para as preces aos pais de santo do terreiro; chocolates para presentear as crianças da Queimada, em datas festivas; cestas enfeitadas com artigos de higiene para mães e seus bebês recém-nascidos. Não somente aprendiam e faziam coisas nas oficinas: aprendiam e ensinavam, faziam e presenteavam, entretecendo suas próprias existências nesse processo e construindo as próprias tradições, apontando-nos para a potência ético, estética e política das oficinas estéticas (Zanella, 2020ZANELLA, A. V. ArteUrbe: jovens, oficinas estéticas e cidade. 1. ed. Curitiba: Appris, 2020.).

Antonieta se refere à oficina de chocolate como “nossa tradição”, o que Hobsbawm (1997)HOBSBAWM, E.; RANGER, T. (Org.). A invenção das tradições. Terence. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. chama de tradição inventada. Nesse caso, a tradição inventada busca uma ação solidária: reúnem-se para fazer chocolates e dar para as crianças da comunidade na Páscoa, mas essa tradição também envolve o ensinar umas às outras: as que sabem mais ensinam as que sabem menos a prepararem o chocolate. Devido às crianças não receberem chocolates de suas famílias na Páscoa, em razão das precárias condições econômicas, a comunidade estabelece relações diferentes com a data festiva, criando a sua própria tradição.

No construir das oficinas, Sueli foi um grande referencial para as mulheres, estando sempre presente na comunidade, envolvendo-se em projetos para as crianças e engajada na alfabetização. Nesse sentido, quem articulou as oficinas, buscando oficineiros para ensinar as mulheres, assim como recursos materiais para a execução, foi Sueli:

Que aí assim, eu ia articulando, “ah fulano, é, você pode ir lá dar uma oficina? Ó, amanhã nós vamos lá fazer chocolate”. E aí elas foram fazendo. Tinham umas também aqui que já sabiam fazer, então elas ensinavam as outras né, e aí a gente foi fazendo.

Além do protagonismo de Sueli na oferta e no desenvolvimento das oficinas, há outra importante agente nesse processo. Conceição lembra que Antonieta “passava de porta em porta” e “corria atrás” de recursos para a realização das oficinas, mas sempre recebia não: “Fecharam as portas para Antonieta”. Ressaltou Conceição que grande parte dessa rejeição decorre do preconceito que se tem com quem mora no Morro. Na dissertação de Maia (2018)MAIA, C. G. A. "A revolução vem do pastinho": escrevivências antropológicas sobre vozes negras em Florianópolis-SC. 2018. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2018., ela aponta que “morro” assume diferentes significados em Florianópolis, dependendo da sua localização; ou seja, residir no “Morro da Queimada” é diferente de morar no “Morro da Lagoa”, pois as condições socioeconômicas definem as concepções dadas a esses locais. Segundo Santos (2009)SANTOS, A. L. Do mar ao morro: a geografia histórica da pobreza urbana em Florianópolis. 2009. Tese de Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Geografia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2009., a partir das décadas de 40 e 50, houve grande fluxo de migrantes pobres para os morros, vinculado aos planos de modernização e urbanização da cidade de Florianópolis, tornando os morros o refúgio da população pobre. Portanto, Conceição, ao relatar sobre preconceito sofrido, está pontuando sobre a discriminação em relação à condição de classe associada aos morros.

Na continuidade da entrevista, Conceição faz um desabafo: “Eles não olham para o Morro”. Sua fala entretece tempos, remontando ao descaso pregresso com o território que persiste na atualidade, mostrando o abandono da cooperativa pelo poder público. Araujo (2006)ARAUJO, C. B. Os pobres em disputa: urbanização, política e classes populares no Morro da Caixa D'água, Florianópolis – anos 1950 e 1960. 2006. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2006. evidencia que, por conta do difícil diálogo com a prefeitura e devido às precárias condições materiais existentes nos morros, historicamente, as comunidades estabelecem redes de solidariedade para vencerem as dificuldades, ajudando uns aos outros por meio de mutirões, de modo que os laços entre grupos são reforçados, contribuindo para noção de coletividade. No entanto, o autor nos lembra de que essas práticas solidárias não anulam os conflitos e tensões entre os grupos.

Conforme a lembrança de Sueli, a professora da oficina de chocolate era uma senhora que fazia bolos para vender; as oficinas de vela foram dadas pela diretora de uma escola que havia feito um curso de vela. Como a oficineira vinha apenas uma vez por mês, as mulheres iam pesquisando nos livros levados por ela, já que, na época, não havia internet. A oficina de sabonete foi oferecida pela mesma pessoa. Segundo Marielle, não havia pessoas de fora da comunidade que davam as oficinas, apenas algumas que vinham auxiliar. Marielle ressalta que Sueli e Antonieta sempre tiveram vários contatos. Ela lembra também que Antonieta deu várias oficinas:

Marielle: Ah, a Antonieta deu de tudo. Ela deu de dança, começando pela dança, né. Ela era professora de dança.

Filha Marielle: Quem sabia mais alguma coisa diferente ensinava, né. Pra ela, né, daí ela ensinava pros outros. Foi assim com o chocolate, com o sabonete, que ela aprendeu com não sei quem, daí ela ensinou pra todos os pessoal (sic).

Antonieta afirma ter feito um curso de capacitação de chocolate, oferecido por uma rede de supermercados, e, após o curso, começou a ensinar na comunidade. Apesar de afirmar que “a Sueli sempre arrumava alguém”, sendo encarregada de chamar oficineiros de fora, outras pessoas emergiram em sua fala como responsáveis por ensinar nas oficinas: Dandara ensinou

a fazer vela e Marielle ensinou sabonete. Através das falas das mulheres, percebe-se que é nas amarras do cotidiano, no fazer coletivo, transversalizado pelos marcadores sociais da diferença, que elas vão (re)inventando modos de perseverar na existência e (re)criando futuros possíveis (Spink; Menegon; Medrado, 2014SPINK, M. J.; MENEGON, V.M.; MEDRADO, B. Oficinas como estratégia de pesquisa: articulaçõe`s teóricometodológicas e aplicações ético-políticas. Psicologia & Sociedade, [s.l.], v. 26, n. 1, p. 32–43, 2014. Doi: htps://doi.org/10.1590/S0102-71822014000100005
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).

Elza e a sobrinha da dona Dandara declaram ter participado das oficinas de sabonete, vela e chocolate, das quais Sueli foi a responsável por ministrar as aulas, mas sinalizaram que, por vezes, havia outros professores. Após terem aprendido, começaram elas mesmas a ensinar as outras que ainda não sabiam.

Pesquisadora: Quem que dava?

Elza: Era a Sueli.

Sobrinha da Dandara: Às vezes vinha um professor, né?

Elza: Aí depois foi nós mesmo, né?

Pesquisadora: Aí vocês continuaram dando?

Sobrinha da Dandara: É, a gente, como já tinha um grupo fechado.

Chama-nos a atenção o fato de o movimento de iniciar as oficinas ter surgido das próprias mulheres, mas não foram elas que as organizaram; a busca de professores/as para ensinar foi o modo encontrado para viabilizá-las.

4.2 Descontinuidades

Com a construção das “casinhas” na Queimada, projeto de habitação popular, foi também construída, em 2008, a Cooperativa da Queimada, tendo como atividade principal o projeto de produção de aquecedores solares. Os aquecedores eram feitos de materiais reciclados, como caixa de leite, garrafa pet e cano PVC. Marta e Maria contam que eles tinham uma equipe com cerca de 60 pessoas, que se dividiam em várias funções para a montagem dos aquecedores solares.

O trabalho com os aquecedores solares acabou em 2014, com o fim do contrato com a CELESC, principal viabilizadora do projeto. Segundo Marta e Maria, muitos desistiram por conta da demora para obter retorno financeiro, além de desentendimentos em relação ao dinheiro recebido e disputas em torno do uso do espaço da cooperativa. Já Carolina diz ter acabado por conta do fim do contrato e de desvio de dinheiro: “Que aí quando tu trabalha (sic) numa cooperativa que não é bem administrada, a gente trabalha é bem sem dinheiro, mas quando o dinheiro vem, a ganância vem junto, é onde (sic) dali dá muita confusão, muito desvio”. Com o fim do projeto de aquecedores solares, a cooperativa começou a entrar em declínio, e as envolvidas nas oficinas passaram a ocupar o espaço da Cooperativa para realizarem suas atividades.

Antonieta afirma que, em 2013, o projeto Mitos começou a acontecer na Cooperativa. Segundo Sueli, a única oficina que permaneceu quando foram para a Cooperativa foi a de chocolate, porém novas oficinas foram ofertadas, sendo elas: tear, crochê, bonequinha de EVA e enfeite de Natal. A professora das oficinas de bonecas de EVA e enfeite de Natal foi uma moradora da comunidade na época. O tear foi ensinado por uma oficineira de fora, vinda com recursos do governo: “Foi um recurso que veio do ministério do desenvolvimento social lá pra invernada dos negros, era pra tear porque lá o tear, né, é muito forte” (Sueli). Algumas outras oficinas foram relembradas por Thereza na primeira entrevista coletiva, entre elas as de fuxico e boneca de pano. Já a oficina de colares iniciou com a colaboração da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com o CRAS-Centro. Carolina, ao ser perguntada sobre como ficou sabendo do Artes na Queimada, informa que soube da oficina por conta do CRAS: “O cartaz do CRAS, o CRAS tava (sic) ali. A gente ali já fazia um...elas faziam o cadastro da gente, outras coisas que precisava e já tava (sic) o pessoal ali fazendo”. Portanto, com o fim do projeto de aquecedores solares, a cooperativa foi sendo ocupada pelo Mitos, pela Educação Quilombola, pela Artes na Queimada e outras quatro oficinas de artesanato.

Um dos objetivos da pesquisa foi investigar os motivos pelos quais as oficinas não tiveram continuidade. Em relação aos sabonetes e às velas, chegou um momento em que foi necessário criar uma conta bancária para guardar o dinheiro, devido aos grandes valores arrecadados com as vendas de Dona Laudelina. Foi então realizada uma reunião com todas as mulheres e acordada a abertura uma conta bancária. Sueli conta um dia ter recebido uma alta fatura de um cartão criado em nome da conta destinada aos valores referentes à comercialização dos produtos. Além da dívida no cartão, o dinheiro que estava guardado na conta acabou sumindo. Sueli entrou com um processo contra o banco, mas conseguiu pouco ressarcimento. Após esse episódio, as oficinas de sabonete e vela não mais retornaram.

Em relação à oficina de tear, como foram concedidas por recurso público, as horas de aulas foram poucas e, segundo Sueli, muitas das mulheres participantes “não conseguiram pegar toda a técnica”, pois “o tear é uma coisa bem complicada, não dá pra ser em oitenta horas, é preciso muito mais”. Sueli ainda pressupõe que o fim das outras oficinas aconteceu porque dependiam muito de sua responsabilidade em conseguir os oficineiros e materiais. Destaca ser muito centrado nela e em sua rede de contatos, e quando a rede se quebrou, não havia sustentação para manter o funcionamento das oficinas. Outras explicações para a descontinuidade das oficinas foram dadas pelas demais entrevistadas: para Lélia, “o pessoal mesmo que não fazia aquele esforço”. Conceição considera a falta de verba como motivo para descontinuação das oficinas, pois “os materiais são muito caros” para fazer um produto de qualidade.

Sueli evidencia o Mitos como única oficina que se manteve, por ter se constituído como uma organização. Entretanto, Antonieta frisou sentir medo do projeto acabar por conta da falta de verba e do apoio da comunidade. Desse modo, compreendemos que as descontinuidades estão atreladas, principalmente, à falta de financiamento dos projetos para a compra de materiais e para o pagamento eventual aos professores das oficinas. Também existem rupturas quando envolvem a venda dos produtos e o recebimento de dinheiro, sendo esse um campo de tensão e desconfiança por parte das participantes. Durante o relato das entrevistadas, chama-nos a atenção a presença esporádica do poder público, tendo aparecido no caso da parceria com a CELESC e na situação da professora de tear, que veio com um recurso do Estado. As participantes e, principalmente, as lideranças, ressaltam as lutas e dificuldades cotidianas para conseguirem manter os projetos, tendo em vista o desamparo do poder público em relação ao território.

Outro fator que chama a atenção é a necessidade de liderança para concretizar as oficinas e no caso, quando esta não se faz presente, os projetos enfraquecem ou não têm mais continuidade. Mesmo que as mulheres descrevam gostar das atividades, os projetos não se sustentam se não há pessoa de referência que assume o papel de realizar os trâmites para conseguir financiamento, material, professores, espaço adequado, entre outros fatores importantes na concretização de oficinas. Não podemos deixar de destacar os sujeitos participantes das oficinas abordadas nesta pesquisa: em sua maioria mulheres, negras, sendo alfabetizadas tardiamente, de modo que as condições de existência em meio à desigualdade social e a outras opressões diminuem sua potência de ação e de existência coletiva (Pellicer et al, 2022PELLICER, L. N.; SCHIMITZ, L. R.; STRAPPAZZON, A. L.; ZANELLA, A. V. “A Queimada não estanca”: experiência de mulheres no dispositivo grupal. Polis e Psique, [s.l.], v. 12, p. 95-118, 2022. Doi: htps://doi.org/10.22456/2238-152X.107817.
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).

4.3 Sobre memórias das oficinas

Quando perguntadas sobre o que mais gostavam de fazer nas oficinas, sobre o que ficou como memória, o que consideravam mais importante desses momentos de oficina, as respostas das mulheres apontaram para os afetos criados, os momentos de diversão, de compartilhar a vida, o que demarca o aspecto político dos afetos, tal como o compreende Sawaia (2003)SAWAIA, B. Muitos lugares para aprender. São Paulo: CENPEC/Fundação Itaú Social/Unicef, 2003..

O que Conceição mais gostava nas oficinas, além do aprendizado, era a interação e união entre as participantes: contava que durante as oficinas não havia inveja ou competição por fazer enfeite melhor que a outra, ou por uma delas ganhar mais atenção da professora; isso não importava, porque todas estavam ali juntas. Segundo Conceição, no caso das vendas, todas ganhavam a mesma quantia de dinheiro, por isso não havia competição e desentendimentos como em outras ocasiões; pelo contrário, todas se apoiavam: se uma sabia fazer algo melhor que a outra, o ensinamento era repassado: “Era bom porque a gente se divertia, brincava, mas daí todo mundo foi parando, porque não tinha verba”.

Marielle, quando perguntada sobre os aprendizados que ficaram, responde que leva tudo, pois gostava de fazer as oficinas. Porém, o que mais lhe marcou foi a viagem feita com o grupo Mitos para se apresentar no Rio de Janeiro. Antonieta fala que o grupo Mitos é sua vida, sua família, seu primeiro marido e primeiro filho. Afirma que, mesmo diante de muita luta, pois “tudo que é pra nós, negros, é difícil”, ama o grupo e não consegue terminar com ele.

Carolina diz gostar das oficinas porque “tem psicólogo, tem gente de fora”, e é onde dão risadas, brincam, choram e discutem. Dá ênfase à reunião de pessoas: “Nós fazia os colar (sic), nós sentava (sic), se reunia (sic). Elas levavam café, né, levavam lanche pra gente”. Reconhece que a renda recebida pelos colares foi boa, mas afirma não ter tido a intenção de começar a participar por conta do dinheiro. Relata que considerava as oficinas como “uma terapia”, que era um lugar onde poderia “ir ali, conversar, desabafar, chorar”. Os dois momentos mais marcantes para Carolina foram a participação em um evento na universidade e a visita feita a um museu.

É no espaço de socialização cotidiana, no fluxo de encontros informais, nos gestos, nas minúcias do corpo, que se constitui um espaço de viver em comum, de encontros abertos à criação (Strappazzon; Maheirie, 2016STRAPPAZZON, A. L.; MAHEIRIE, K. “Bons encontros” como composições: experiências em um contexto comunitário. Arquivos Brasileiros de Psicologia, [s.l.], v. 68, p. 114–27, 2016.). Os afetos são construídos nos encontros, e vivenciar as oficinas é estar a par das possibilidades de relações que ali se enredam. As oficinas se caracterizam como um mediador da vida; por meio delas, as mulheres da comunidade se uniram, criaram vínculos, amizades e um fazer em comum. As oficinas de artes, partindo do relatado pelas mulheres, trazem à tona a potência de se trabalhar com grupos, de compartilhar trocas e aprendizados, em que se provoquem ruídos e dissonâncias, produzindo afetações.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pesquisar as memórias das oficinas de artes no Morro da Queimada possibilitou conhecer a vida das pessoas, suas singularidades, e colocar como visível e audível aquilo que perdura como minúcias significativas. A pesquisa permitiu constatar as memórias das oficinas de arte como campo rico para a compreensão das contradições, relações de poder e afetos envolvidos no seu processo. Durante as entrevistas, as lembranças das oficinas não vêm apenas como um tempo de aprendizagens para essas mulheres: são narrativas carregadas de vivências do território, interseccionadas pelo gênero, pela raça, pela classe e pela geração. As mulheres não só se lembram de aprender a fazer sabonete, chocolate ou vela e outras técnicas, como contam, também, sobre as oficinas como um meio de diminuir o sofrimento pelo filho preso, sobre vivenciar um tiroteio ao irem instalar aquecedores solares, sobre a falta de oportunidades e o preconceito sofrido por serem periféricas; também se recordam das oficinas como meio que enlaça outros aspectos de sua história ou de suas concepções de vida, como a religião, as tradições e a cultura local. Rememoram que, por meio dos encontros, construíram laços e afetos umas com as outras. Apontam que as oficinas de arte repercutiram nos seus modos de olhar a realidade, de viver as tensões, os confrontos e os estranhamentos, de se relacionar com o mundo. Suas narrativas nos possibilitam compreender que o fazer artesanal constitui-se como uma estética criadora que faz emergir novos modos de existências e de reinventar a própria vida (Rizzo; Fonseca, 2010RIZZO, L.; FONSECA, T. M. G. O acontecimento patchwork: um modo de apreender a vida. Psicologia & Sociedade, [s.l.], v. 22, n. 1, p. 139–48, 2010. Doi: htps://doi.org/10.1590/S0102-71822010000100017
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).

Por fim, destacamos que investigar as memórias não se propondo a uma história única e acabada se apresenta como um desafio, um desafio ético que valoriza as vozes e suas singularidades, que não reduz o sujeito à coisa muda, dando aberturas a outros enunciados e outras significações. Resgatar o passado das oficinas de arte, testemunhar histórias e vozes que são marginalizadas na sociedade, evidenciar esses rastros, colocar em visibilidade é, portanto, fazer uso político da memória (Pasqualotto, 2020PASQUALOTTO, M. Z. Memórias da loucura: arquivo, testemunho e arte. Tese de Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Psicologia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2020.).

  • 2
    Os nomes apresentados no artigo são todos fictícios.
  • 3
  • 4
    Popularmente conhecido como “as casinhas da Ângela Amin” – em referência à Prefeita em exercício na época – foi um projeto contemplado pelos recursos do Programa Habitar Brasil BID (HBB) para a construção de unidades habitacionais a famílias de baixa renda que viviam em áreas de risco.
  • 5
    Espaço construído para uso coletivo dos moradores do Morro do Mocotó e da Queimada, atualmente em desuso.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    26 Dez 2022
  • Revisado
    25 Maio 2023
  • Aceito
    24 Jun 2023
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