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O CAMPO DISCURSIVO NA MÍDIA* * O trabalho apresentado neste artigo foi desenvolvido como atividade didatica com os alunos do curso de Jornalismo da PUC-SP, na disciplina An·lise de Discurso, nos anos de 1998 e 1999; uma sintese deste trabalho foi apresentada no 13° INPLA - Metodologias de Pesquisa em Linguistica Aplicada, LAEL-PUCSP, em 02.05.03, no interior do Simp6sio intitulado Midia e Discurso.

THE DISCURSIVE FIELD IN THE MEDIA

LE CHAMP DISCURSIF DANS LES MÉDIAS

EL CAMPO DISCURSIVO EN LA MIDIA

Resumo

A partir da noção de termos-pivô, redimensionada sob a perspectiva de tema e acontecimento discursivo (GUILHAUMOU et al, 1994), detectou-se, na edição de 07.05.1998 do jornal Folha de São Paulo, um campo discursivo (MAINGUENEAU, 1984) constituído a partir de seca/saque, envolvendo 10 textos de diferentes gêneros. A análise delimita os sentidos produzidos em cada acontecimento discursivo e os efeitos interlocutivos que sua inserção no campo produz, sob o modo da refutação recíproca (COURTINE, 1981). As formações discursivas conflitantes que se manifestam no campo respondem ao ideal de imparcialidade do jornalismo contemporâneo; mas a configuração do campo, resultado do gesto interpretativo do jornal, é, ela própria, produtora de sentidos.

Palavras-chave:
campo discursivo; termos-pivô; acontecimento discursivo; refutação; jornal

Abstract

Based on the notion of pivot-terms, re-dimensioned under the perspective of theme and discursive event (GUILHAUMOU et al, 1994), one detected, on the 05/7/1998 edition of the newspaper Folha de São Paulo, a discursive field (MAINGUENEAU, 1984) constituted from the terms drought/sack, involving 10 texts from different genres. The analysis delimits the produced meanings in each discursive event and the interlocutory effects that its insertion in the field produces, under the mode of reciprocal refutation (COURTINE, 1981). The conflictive discursive formations, which are manifested in the field, relate to the ideal of impartiality of today’s journalism, but the field shaping, a result from the interpretative move of the newspaper, is in itself a producer of meanings.

Keywords:
discursive field; pivot-terms; discursive event; refutation; newspaper

Résumé

À partir de la notion de termes-pivot, rétablie sous la perspective de thème et événement discursif (GUILHAUMOU et al., 1994), on a retenu, dans l’édition du 07 Mai 1998, au journal Folha de São Paulo, un champ discursif (MAINGUENEAU, 1984) constitué à partir de sécheresse/traite, autour de dix textes de genres différents. L’analyse délimite les sens produits dans chaque événement discursif et les effets interlocutifs produits dans son insertion dans le champ , sous le moyen de la réfutation réciproque (COURTINE, 1981). Les formations discursives qui se heurtent dans le champ répondent à l’idéal d’impartialité du journalisme contemporain; mais la configuration du champ, résultat du geste interprétatif du journal, est, elle-même, productrice de sens.

Mots-clés:
champ discursif; termes-pivot; événement discursif; réfutation; journal

Resumen

A partir de la noción de ´términos - eje, redimensionada sob la perspectiva de tema y acontecimiento discursivo (GUILHAUMOU et al , 1994), se detectó, en la edicción de 07.05.1998 en el periódico Folha de Sáo Paulo, un campo discursivo (MAINGUENAU, 1984) constituido a partir de seca/saque, envolviendo diez textos de diferentes géneros. El análise delimita los sentidos produzidos en cada acontecimiento discursivo y los efectos interlocutivos que su inserción en el campo produce, sob el modo de la refutación recíproga (COURTINE, 1981). Las formaciones discursivas conflitantes que se manifiestan en el campo, resultado del gesto interpretativo del periódico, es ella propia, productora de sentidos.

Palabras-clave:
campo discursivo; términos-eje; acontecimiento discursivo; refutación; diario

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho consiste num estudo sobre a constituição do campo discursivo na mídia impressa. Desenvolve-se através da análise de discurso de um conjunto de materiais textuais presentes na edição de 07.05.1998, do jornal Folha de São Paulo.

Maingueneau define campo discursivo como “um conjunto de formações discursivas que se encontram em concorrência, se delimitam reciprocamente [...]” (1984, p. 28). Tal concorrência, diz, deve ser considerada de modo amplo: “ela inclui tanto o afrontamento direto quanto a aliança, a neutralidade aparente [...] entre discursos que possuam a mesma função social e divergem sobre o modo como se deve ocupá-la” (1984, p. 28).

O campo discursivo objeto deste trabalho se inscreve na categoria do político e as diferentes posições de discurso relativas a diferentes formações discursivas, aqui representadas, envolvem o presidente Fernando Henrique Cardoso, seus aliados políticos, seus opositores políticos, críticos e analistas pró ou contra FHC, além, é claro, do próprio jornal cuja posição de discurso se manifesta através das vozes de seus representantes - porta-vozes - nas matérias jornalísticas. O objetivo do trabalho, no entanto, conduz à consideração do jornal como ocupando uma segunda posição, externa ao campo, na medida em que é ele, jornal, quem constrói, no espaço midiático, o próprio campo discursivo, aí dando acesso a determinadas vozes, e produzindo, assim, uma determinada configuração do espaço polêmico.

É também Maingueneau (1983______. Sémantique de la polémique: discours religieux et ruptures idéologiques au XVIIe siècle. Lausanne: L’Âge d’Homme, 1983.) quem chama a atenção para a dimensão polêmica irredutível que caracteriza o campo discursivo. “O exercício da polêmica supõe a partilha do mesmo campo discursivo e das leis que lhe são associadas” (1989, p. 125), diz o autor. Nesse sentido, as polêmicas em que as formações discursivas estão envolvidas são a própria atualização do processo de delimitação recíproca que as constitui, já que uma formação discursiva (PÊCHEUX, 1975) constitui uma região do interdiscurso a partir da qual coisas (aspectos do real) são nomeadas e significadas. As formações discursivas são sócio-históricas: cada discurso se produz a partir de uma formação discursiva dada, à qual o sujeito de discurso, inconscientemente, se identifica. Assim, a atualização acima referida supõe pontos de divergência que emerjam, no processo discursivo, como deflagradores da polêmica. Diz Maingueneau: “É difícil de aí não perceber pontos- chave, do mesmo modo como se fala em palavras-chave [...]” (1987, p. 124).

Os pontos-chave em que as diferentes posições de discurso se manifestam, no corpus objeto deste trabalho, traduzem-se pelas palavras-chave ‘seca’ e ‘saque’. São os enunciados que, nos diferentes discursos, vão determinar, pelo processo de predicação, o que são seca e saque, o que nos permite ver aí os pontos-chave de que fala Maingueneau. Tais enunciados, por sua vez, se sustentam em redes de formulações (COURTINE, 1962, p. 46) às vezes realizadas no próprio texto, outras vezes não, mas recuperáveis pelos mecanismos do pré-construído e do efeito de sustentação (PÊCHEUX, 1975, p. 99 a 111). Tais enunciados, por outro lado, ou bem se formulam explicitamente sob a modalidade da negação polêmica, ou nela se inscrevem em virtude da rede de formulações em que se articulam.

Maldidier, Guilhaumou e Robin propõem tratar em termos de tema e acontecimento discursivo o processo de constituição de tal tipo de campo:

A noção de tema [...] supõe a distinção entre o ‘horizonte de expectativas’ - o conjunto das possibilidades atestadas em uma situação histórica dada - e o acontecimento discursivo que realiza uma dessas possibilidades, inscrito o tema numa posição referencial. (1994, p. 93).

De fato, no corpus objeto deste trabalho era o fato da seca no nordeste que vinha emergindo, já há algum tempo, como notícia, a que se veio acrescentar o fato dos saques que começavam a ocorrer nas regiões vitimadas pela fome. No entanto, dizem os autores,

o acontecimento discursivo não se confunde nem com a notícia, nem com o fato designado pelo poder, nem mesmo com o acontecimento construído pelo historiador. Ele é apreendido na consistência dos enunciados que se entrecruzam num momento dado. (1994, p. 93)

É nesse sentido que, nos diferentes materiais textuais presentes na edição de 07.05.1998 da Folha de São Paulo aqui analisados, o que está em jogo não são os fatos da seca e do saque, mas a responsabilidade do governo pela situação de calamidade (sua possibilidade de haver prevenido os efeitos sociais da seca; sua atuação em socorro dos flagelados) e a natureza, legítima ou não, do saque em tal situação. É em torno dessas posições que as diferentes vozes em jogo se aproximam ou se afastam. As vozes correspondem aqui, numa abordagem enunciativo-discursiva, aos sujeitos de discurso que, no corpus em questão, são: individualizados; identificados (políticos, jornalistas, etc.); as vozes se inscrevem em determinadas formações discursivas e sua inscrição corresponde à ocupação de uma certa posição de discurso.

É assim também que seca e saque funcionam, nesta análise, como termos- pivô. Não se trata, está claro, de termos-pivô previamente selecionados pelo analista, mas, antes, como os que se impõem pela própria natureza do corpus: é em torno deles que os diferentes discursos presentes no campo se delimitam reciprocamente através do recurso agudo às formas de refutação polêmica (COURTINE, 1962, p. 98).

2 O CORPUS

O corpus deste trabalho envolve 10 materiais textuais de diferentes gêneros jornalísticos (matérias, artigos, entrevistas) presentes nas páginas de política nacional do primeiro caderno e no caderno de economia (textos 9 e 10) da mencionada edição da FSP. Excluíram-se deliberadamente do corpus os editoriais, na medida em que é nestes espaços diagramáticos que a posição (opinião) do jornal se enuncia explicitamente. Dados os objetivos deste trabalho, o que se procurava era a presença dessa posição enquanto efeito de sentido produzido pelo próprio campo discursivo, o qual, como já observamos, é produto do gesto interpretativo do próprio jornal.

A numeração atribuída aos textos (1 a 10) obedece à ordem de aparecimento de cada qual na edição em questão e é nessa ordem que são objeto da análise, que busca explicitar seus efeitos de sentido no processo interlocutivo que caracteriza o campo discursivo. Mas a ordem seguida procura também guardar a posição de um sujeito-leitor-ideal, cuja leitura do jornal se daria segundo o próprio modo de apresentação do veículo. Nesse sentido, as análises estariam também capturando o processo de leitura através do qual o próprio leitor se vê convidado a engajar-se nesse processo interlocutivo. De qualquer forma, como se poderá observar, a ordem dos textos não interfere nos resultados da análise.

Ao longo das análises, alguns materiais textuais são submetidos a uma análise exaustiva da superfície discursiva, outros a uma análise parcial e outros ainda se acompanham somente das conclusões da análise. Nos dois últimos casos, o leitor pode facilmente inferir os procedimentos analíticos que conduziram aos resultados. Essa diferença de tratamento se deveu exclusivamente aos limites de extensão deste artigo.

Os diferentes materiais textuais que constituem o corpus foram submetidos à técnica do recorte (ORLANDI, 1984ORLANDI, E. Segmentar ou recortar? In: Lingüística: questões e controvérsias. Uberaba: Fiu, 1984. (Série Estudos, 10), p. 14-15): dado que se trata, aqui, de análise de discurso (e não de análise textual), o que interessava, nos materiais textuais, era a presença dos discursos sobre a seca e o saque.

3 AS ANÁLISES

3.1 Texto 1: “Solução depende de Deus, diz FHC”1 1 Reportagem de Renata Giraldi

O acontecimento alvo deste relato são declarações de FHC durante uma “conversa informal com jornalistas, logo após jantar no Itamaraty [...]”. Trata-se, portanto, de um texto que se constrói sob o plano de enunciação do discurso reportado (BENVENISTE, 1970; PAULILLO, 1993PAULILLO, R. Procedimentos de análise do discurso reportado. In: CHAIA, V.; RESENDE, P. E.; ALMEIDA, L. F. R. de (Orgs.). Análise do discurso político: abordagens. São Paulo: Educ, 1993.).

Vários temas foram objeto dessas declarações, destacados nos subtítulos que segmentam a matéria: Seca e solidariedade; Pt e eleições; Previdência e juros; Bolsas e câmbio. Mas, como se vê, a voz do enunciador citante (MAINGUENEAU, 1981______. Approche de l’énonciation en linguistique française. Paris: Hachette, 1981.) tornou saliente o primeiro deles, focalizado no título, significando, assim: sua suposta maior relevância em função do noticiário; o gesto de leitura do jornal de que resulta a constituição do campo discursivo.

Segmentos recortados

O presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou, anteontem à noite, que a solução para o problema da seca no Nordeste não depende só do governo federal. “Depende de Deus, do tempo e da chuva”, disse, ao ser questionado se tinha controle absoluto sobre a situação.

[...]

Para o presidente, deve haver empenho por parte dos governos locais porque o combate à seca não depende apenas dele. “Não é só o governo federal que deve trabalhar”, afirmou. “O governador, o prefeito, o vereador, todos devem (trabalhar)”.

Ao ser indagado se entendia que as pessoas estão passando fome, razão pela qual estariam participando de saques, respondeu: “Eu entendo quando a pessoa sente fome”. Ele disse que não aceita o incentivo aos saques. “Isso não dá”. FHC, em entrevistas anteriores, já havia criticado o uso político e o incitamento a saques.

FHC disse que está torcendo para que a chuva caia nos 1.029 municípios atingidos pela seca.

Tais segmentos constituem a quase totalidade do texto sob o subtítulo “Seca e solidariedade”, e é aqui que se desenvolve o discurso em que os termos-pivô, objeto deste trabalho (seca/saque) são significados, explicitando-se as posições de discurso em jogo. É na primeira metade das seqüências recortadas que seca emerge como o significante saliente, ao passo que na segunda metade é saque. A análise se debruçará, em primeiro lugar, no discurso sobre a seca aqui presente, para em seguida ocupar-se do discurso sobre o saque.

A análise permitirá reter, dessa forma, dois enunciados centrais, que manifestam a posição de discurso relativamente a seca e saque, respectivamente, sustentadas pelo sujeito de discurso (a voz nº 1 do campo discursivo em questão), que corresponde a FHC.

3.1.1 Na primeira metade dos segmentos recortados, nota-se a conexão ativa entre os enunciados citados, atribuídos a FHC, e as pontuações que decorrem da intervenção do enunciador citante (a repórter, representando o jornal). Tais intervenções se manifestam naqueles segmentos em que a voz 1 (FHC) é citada em discurso indireto.

Assim, no enunciado citado em discurso indireto

(1) “[...] o problema da seca não depende só do governo federal”

o uso do operador ‘só’ pontua a dimensão de denegação (negação polêmica, cf. Ducrot, O., 1984; Indursky, F., 1989INDURSKY, F. Relatório Pinotti: o jogo polifônico das representações no ato de argumentar. In: História e sentido na linguagem. Campinas: Pontes, 1989.), que é assim sobre-significada ao enunciado citado em discurso direto:

(2) “Depende de Deus, do tempo e da chuva”.

Tal caráter de denegação tem como efeito de sentido fazer aparecer a voz 1 como sujeito de um ato ilocucionário de defender-se de virtuais enunciados acusatórios (seja, por exemplo, ‘o problema da seca é de responsabilidade do governo federal’), cuja presença, portanto, está desde já aludida no campo discursivo. É por essa razão que, ao final desta análise, reteremos, como enunciados centrais sobre seca e saque que representam a posição de discurso da voz 1, enunciados sob a fórmula denegativa.

No segundo parágrafo desta primeira seqüência, observe-se o enunciado reportado em discurso indireto.

(3) “Para o presidente, deve haver empenho por parte dos governos locais porque o combate à seca não depende só dele”

a que se segue a seqüência em discurso direto:

(4) “Não é só o governo federal que deve trabalhar [...] o governador, o prefeito, o vereador, todos devem [...]”

É o esquema sintático ‘X depender de Y’, efetivamente realizado em (1), (2) e (3), e a conexão entre (3), citação em discurso indireto, e (4), citação em discurso direto, sob a modalidade da expansão, que faz com que (3) emerja como uma retomada parafrásica de (4) (SERRANI, 1993SERRANI, S. A linguagem na pesquisa sócio-cultural: um estudo da repetição na discursividade. Campinas: Ed. Unicamp, 1993.), o que nos permite atribuir a presença daquele esquema também em (4), fazendo ecoar, assim, a dimensão parafrásica presente em:

A deve trabalhar por B

B depender de A

Assim, as enunciações (1) a (4) articulam-se sob o esquema sintático X depender de Y, sendo x = seca. Note-se que este esquema se realiza na forma afirmativa somente quando Y ¹ governo federal, sendo a posição Y nominalizada por:

Deus

o tempo

a chuva

o governador

o prefeito

o vereador

e emerge sob a forma da refutação (negação polêmica) - marcada por não e só - quando Y = governo federal. Note-se, ainda, a repetição (duas ocorrências) de enunciados sob essa configuração, cujo efeito de sentido será não só a enfatização do caráter do ato de defesa aí envolvido, mas também a significação de seu inverso, isto é, a não responsabilização (mesmo que parcial) pela responsabilização (também parcial), acusatória, no caso, já que sustentada a partir do ato de defender-se, de: Deus; o tempo; a chuva; o governador; o prefeito; o vereador.

Obtém-se, assim, a partir de (1) a (4), uma série paradigmática, resultado da dessintagmatização das seqüências em questão, constituída de frases que correspondem a enunciados co-presentes no discurso, quer porque efetivamente realizados, quer porque sua presença é aludida pelos primeiros, cuja correlação representa o fenômeno designado por Henry (1975HENRY, P.. Constructions relatives et articulations discursives. Langages, Paris: Larousse, 37: Analyse du discours, langue et idéologies, 1975.) como o efeito de sustentação:

Série paradigmática 1

Nesta série paradigmática estão desdobrados os enunciados presentes no texto, quer efetivamente realizados - seja literalmente, seja pela explicitação de algumas elipses sintáticas (caso de 2.2, 2.3, 4.2, 4.3), quer não realizados, mas cuja presença foi significada no texto por mecanismos de paráfrase referencial (caso de 3, quanto a governo federal (º depender dele) (cf. FUCHS, 1982a______. La paraphrase entre langue et discours. In: Langue Française, Paris: Larousse, 53: La vulgarisation, fev. 1982.)), ou cuja presença foi trazida à tona por mecanismos de paráfrase interpretativa (cf. FUCHS, 1982b), como é o caso de 4.1, 4.2, 4.3 (as seqüências não realizadas são marcadas por colchetes). Todas as sentenças da série paradigmática correspondem a enunciados atribuídos à voz 1 (= FHC).2 2 Sem duvida, o movimento dial6gico aqui manifestado pelas vozes 1 e 0 (o enunciador citante), de um lado, e o leitor, de outro, seriam um objeto de estudo particularmente interessante. Mas, dado o escopo deste trabalho, tal dimensao nao sera focalizada: do ponto de vista da constituicao do campo discursivo, o fato de discurso mais saliente no que respeita aos efeitos de sentido do campo discursivo e que, no texto, quem fala e uma unica voz, a voz 1, FHC.

Podemos obter, ainda, uma outra série paradigmática, a partir da consideração de que o esquema sintático saliente (como já foi observado) ‘X depender de Y’ supõe relações de equivalência sintático-semântica com ‘Y ser responsável por X’ (do ponto de vista, por exemplo, de um modelo de base semântica (FILLMORE, 1968)), de modo que a correlação entre

X depender de Y (realizado)

Y ser responsável por X (não realizado)

repousa no efeito de sustentação do segundo sobre o primeiro. Tal caminho de análise é sugerido pela enunciação (5), em que o enunciador citante relata o contexto discursivo em que o enunciado citado (da voz 1), correspondente à enunciação (1), se produziu (parágrafo 1 dos segmentos recortados):

(5) “[...] disse, ao ser questionado se tinha controle absoluto sobre a situação”.

Tal série paradigmática envolve o esquema ‘X (a seca) depender de Y’ (realizado, nas enunciações (1) a (4)), que implica o esquema ‘Y ser responsável por X’ (não realizado, mas sugerido pelo lugar da responsabilização envolvido na significação ilocucionária do ato de defesa aí implicado, como já foi observado), e que nos remete ao par ‘depender de/ser responsável’ por, enquanto efeito de sustentação do segundo sobre o primeiro, efeito de sustentação esse que é sinalizado no texto pela enunciação (5), que realiza o esquema ‘Y ter controle sobre X’, sob a modalidade da retomada parafrásica entre um realizado e um não realizado:

Série paradigmática 2

Aqui, 5. atua no sentido de sinalizar, à moda de um colofon de Lacan (citado por Récanati, F., 1979RÉCANATI, F. La transparence et l’énonciation. Paris: Seuil, 1979., p. 142), a presença latente de 5’, com o qual mantém relação parafrásica interpretativa, denunciando a função de efeito de sustentação do par 5./5’ relativamente a ‘1-4’.

De modo que, se a seca não depende só do governo federal, este não pode ser responsabilizado por ela ou por seus efeitos perversos (a fome, por exemplo). Esse mecanismo se vê reforçado pela seqüência final dos segmentos recortados:

(6) FHC disse que está torcendo para que a chuva caia [...]”

onde a posição do sujeito que torce por algo alude a um lugar de não-agentividade.

As análises até aqui desenvolvidas, relativas à primeira metade dos segmentos recortados, conduzem, portanto, à retenção de um enunciado central, que chamaremos de EI, e cuja formulação será assim configurada:

EI = A seca não depende do governo

correspondendo a uma posição de discurso identificada como a da voz 1 (FHC).

3.1.2 A segunda metade dos segmentos recortados, por outro lado, evidenciam a saliência do significante (termo-pivô) ‘saque’. Observe-se que, aqui, o enunciado citante (tal como em 5.) reporta o contexto interlocutivo (dialógico) no qual se inscreve o enunciado (da voz 1) reportado em discurso direto:

(6) “Ao ser indagado se entendia que as pessoas estão passando fome, razão pela qual estariam participando de saques [...]”

(7) “Eu entendo quando a pessoa passa fome”

Note-se que a pergunta dirigida a FHC, segundo o enunciador citante, contém um pré-construído, parafraseável por:

‘a fome é a causa dos saques’ (correspondente a (6)).

Tal pré-construído se vê elidido na resposta de FHC, tal como reportada no texto; o que equivale a uma posição de discurso que aceita A (o fato da fome) como verdadeiro, mas recusa a conexão causal ‘A é causa de B’ (= o saque), objeto do pré-construído presente na pergunta. Nesse sentido, o enunciado (7) equivale a uma forma indireta de refutação: ‘A fome não é causa do saque’.

Na seqüência temos o segmento:

(8) “Ele disse que não aceita o incentivo ao saque: ‘Isso não dá’”

cujo movimento põe em jogo o mesmo mecanismo já observado: retomada parafrásica interpretativa, por parte do enunciador citante, de um dito do enunciador citado, movimento que mobiliza, simultaneamente, procedimentos de discurso indireto e de discurso direto, tão comuns no texto jornalístico.

O enunciado (8) se articula à seqüência em que o enunciador citante comenta que o enunciador citado:

(9) “[...] já criticara o uso político e o incitamento ao saque”.

Assim, as enunciações de (6) a (9) nos permitem construir uma terceira série paradigmática, a partir dos enunciados efetivamente realizados, que nos conduzem, por efeito de sustentação, aos enunciados virtuais, presentificados no texto, embora não realizados:

Série paradigmática 3

ensejados pelo pré-construído de (6) rejeitado em (7), e pelas enunciações (8) e (9) que ensejam, enquanto efeito de sustentação, a presença (sob a modalidade do não-dito) de 6-7’, 8.1’, 8.2’.

De modo que a análise da segunda parte dos segmentos recortados nos permite reter, como um segundo enunciado central aqui presente, igualmente atribuído à voz 1 (= FHC):

EII = ‘O saque não decorre da fome’

Ambos os enunciados centrais que a análise permitiu cernir

EI = ‘A seca não depende do governo’

EII = ‘O saque não decorre da fome’

guardam-se sob a formulação denegativa, realidade discursiva presente no texto 1, como já foi observado, e significam que tais enunciados já pressupõem um campo discursivo polêmico no qual se inscrevem.

Para a voz 1, EI e EII são verdadeiros.

3.2 Texto 2: “Motivos medíocres”3 3 Artigo de Janio de Freitas.

Segmentos recortados

O compromisso de fazer a extensão de águas do São Francisco para zonas áridas, assumido pelo candidato Fernando Henrique Cardoso e reiterado pelo já presidente, foi renegado por um motivo tão penoso, para os que padecem com a seca outra vez, quanto revelador da mediocridade dominante. Pernambucanos, paraibanos, cearenses, rio-grandenses-do-norte batalham há muito tempo pelo projeto conhecido como transposição do São Francisco. Só na Bahia há um núcleo de opositores. Foi por causa deles a ênfase do candidato e do presidente ao seu compromisso com a obra, assim dando aos demais nordestinos o sinal de que não seria mais um a ceder aos interesses minoritários.

Antonio Carlos Magalhães manifestou-se contrário à obra. Era o primeiro ano de governo, mas Fernando Henrique não esperou mais tempo para decidir pelo engavetamento do projeto. E do compromisso.

Mesmo se completada, a transposição não serviria a toda a área atingida pelas secas. Mas, com três anos de obra, grande parte da população agora sacrificada estaria trabalhando a terra, comendo do que plantou, ganhando com os seus cultivos. Tal como acontece com os agricultores servidos pela irrigação do Vale do São Francisco na Bahia [...].

A mediocridade dominante não se contenta, porém. “Não é falta de comida, porque comida há, os armazéns do governo estão cheios”, diz Fernando Henrique. Depois disso, como estranhar que o presidente por ele nomeado para a Companhia Nacional de Abastecimento, Eugênio Stefanello, mande avisar aos flagelados que, onde houver saque de alimentos, não haverá distribuição de cestas. Fiel ao exemplo de cima, não lhe pode ocorrer que a distribuição é mais necessária onde a fome já provoca saques. E, sem o auxílio, os saques vão se prolongar, como em todas as secas, por outras vilas e cidades [...].

Como se pode perceber, a aplicação dos mesmos procedimentos de análise conduziriam, aqui, à atribuição, à voz 2 (Jânio de Freitas), da refutação dos enunciados EI e EII:

Não é verdade que a seca não depende do governo

Não é verdade que o saque não decorre da fome

Para a voz 2, EI e EII são falsos: ~ EI; ~ EII.

3.3 Texto 3: “FHC critica exploração política da seca”4 4 Materia da Sucursal de Brasilia

Trata-se de uma matéria que relata discussões durante reunião de FHC com líderes governistas; portanto, também um texto construído sob a forma do discurso reportado.

Segmentos recortados

O presidente Fernando Henrique Cardoso disse aos líderes governistas, em reunião ontem, que está havendo exploração política dos saques no Nordeste e que não vai permitir desordem pública.

“Está claro que há infiltrações. Eu vi pela TV um monte de sulistas fortes, mais gordos do que eu, gritando que estão com fome”, disse o líder do Pmdb na Câmara, Geddel Vieira Lima (ba).

Segundo líderes que estiveram na reunião, FHC afirmou que a falta de alimentos no Nordeste não foi causada pela seca, mas por uma quebra na safra agrícola. O presidente disse que ainda há açudes com água na região. Líderes governistas do Nordeste, como Inocêncio Oliveira (Pe), concordaram com os argumentos de FHC. Na reunião, Inocêncio afirmou que há fome nas cidades [...].

Tal segmento pode ser considerado como envolvendo dois movimentos: o primeiro, correspondente aos parágrafos 1 e 2, aponta para a sustentação da posição de discurso representada por EII; o segundo, correspondente aos parágrafos 3 e 4, para a posição de discurso representada por EI.

3.3.1 O enunciado atribuído à voz 1 (FHC)

1.“está havendo exploração política dos saques”

contém uma indeterminação:

saques são explorados politicamente (?)

saques são uma exploração política (?)

em que a primeira possibilidade admite a espontaneidade dos saques, mas não a segunda. De qualquer forma, tal indeterminação do enunciado realizado 1., qualquer que seja a leitura interpretativa desambiguizante, não exclui a associação entre ‘saque’ e ‘manipulação política’: esta última, se não está na origem dos saques, intervém a partir do saque enquanto fato consumado.

O segundo enunciado atribuído à voz 1 (FHC):

2. “[...] não vai permitir desordem pública”

menciona ‘desordem pública’, que, por efeito de sentido de pré-construído, de um lado, e por formulação sintática, de outro (já que ‘saque’ é o único co- referente possível para ‘desordem pública’), aponta para:

1-2’ ‘saque’ é ‘desordem pública’ (não realizado)

O efeito de sentido de deslegitimação do saque aí presentificado se vê confirmado pelo enunciado atribuído a Geddel Vieira de Lima:

3. “Está claro que há infiltrações. Eu vi pela TV um monte de sulistas fortes, mais gordos do que eu, gritando que estão com fome”

do qual se pode extrair a paráfrase referencial:

3’ ‘sulistas gordos gritam que estão com fome’

que envolve vários pré-construídos - se sulistas, não nordestinos; se gordos, não famintos - que se apóiam em representações “naturalizadas” (sentido já dado: Pêcheux, M., 1975) e na série de enunciados que constituem seu efeito de sustentação:

3.1’ não famintos fazem saques

3.2’ se não famintos fazem saques, então a fome não é a causa dos saques

3.3’ o saque não decorre da fome

3.4’ não famintos se infiltram nos saques

3.5’ se não famintos se infiltram nos saques, então há exploração política dos saques (movimento de retorno ao enunciado 1)

3.6’ o saque decorre da exploração política

Assim, no texto 3, as vozes 1 (FHC) e 2 (GVL) sustentam EII:

O saque não decorre da fome

3.3.2 Nos dois últimos parágrafos da seqüência recortada do texto 3, ocorre um deslocamento da correlação seca/fome, que é o elo que permite a associação entre seca e saque. O enunciado realizado atribuído à voz 1 (FHC):

4. “[...] a falta de alimentos no NE não foi causada pela seca, mas por uma quebra na safra agrícola”

aponta para:

4.1’ ‘a fome não foi causada pela seca’ (mas pela quebra da safra)

que se sustenta pelo enunciado realizado, atribuído a Inocêncio de Oliveira (voz 4):

5. “há fome nas cidades”

que se desdobra em:

5.1’ ‘a fome não ocorre só no campo, mas também nas cidades’

até chegar ao enunciado realizado, atribuído a FHC (voz 1):

6. “ainda há açudes com água na região”

que aponta para:

6.1’ ‘a seca (no campo) não é total’.

No circuito de produção de sentido desencadeado pelos enunciados 4, 6 e 5 (ordem em que figuram no texto) manifesta-se um gesto extremo que, a partir da sustentação de EII (o saque não decorre da fome) pela série paradigmática anterior (1 a 3) conduz, pela dissociação do vínculo saque/fome, à própria dissolução do vínculo seca/fome - a fome não decorre da seca - presente em 4.1’.

É a partir desse movimento que se configura, aqui, a sustentação de EI (A seca não depende do governo). Na medida em que a eventual responsabilização pela seca só se coloca em função de seus efeitos perversos (a fome), 4.1’ (‘a fome não decorre da seca’) atua como um argumento em favor dessa desresponsabilização.

Assim, podemos considerar que neste segundo segmento do texto 3, as vozes 1 (FHC) e 4 (Io) ocupam posições de discurso que se identificam com a enunciação de EI:

A seca não depende do governo.

3.4 Texto 4: “Saque de 9 caminhões em PE”5 5 Materia de Fabio Guibu, da Agencia Folha, Recife.

Segmentos recortados

Cerca de 1.500 pessoas saquearam ontem nove caminhões e carretas carregados com alimentos na rodovia Br-428, entre os municípios de Santa Maria da Boa Vista e Lagoa Grande, no sertão pernambucano, segundo a polícia.

Os saques, coordenados pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), ocorreram entre 4h e 9h. Não houve confronto e ninguém ficou ferido.

Segundo Adalberto Alves da Silva, 25, da coordenação estadual do MST, os alimentos foram para as 4.600 famílias dos acampamentos de Catalunha e Boqueirão.

Silva disse que foram seis, e não nove, os veículos saqueados. Segundo ele, o roubo foi decidido pelos acampados, em assembléia na noite de anteontem.

Aqui, de um lado, o que podemos considerar como voz 5 (o repórter, a polícia local) sustenta o enunciado realizado

O MST coordenou os saques

o que apontaria para

O saque decorre da ação do MST

o que, portanto, poderia ser interpretado como um lugar de discurso de sustentação de EII (o saque não decorre da fome). No segundo segmento, a voz 6 (Adalberto A. Silva, da coordenação estadual do MST) faz afirmações de que se extrai, por paráfrase referencial:

‘acampados do MST decidiram pelo saque’

‘acampados do MST foram os beneficiários do saque’.

Nos limites do texto 4 não se pode atribuir a tais sem terra (além de organizados no MST) a condição de também famintos pela seca, o que levaria à refutação de EII. No entanto, essa parece ser a direção de sentido sugerida pelo texto 5, que figura como um box no próprio campo diagramático do texto 4. Apesar disso, não reteremos, do texto 4, a posição de discurso de sustentação de EII, relativa à voz 5, e a posição de discurso de refutação de EII (~ EII), relativa à voz 6, interpretação que poderia ser sustentada devido à sobredeterminação do sentido que os textos 5 e 6 produzem sobre 4. Manteremos, aqui, as posições de discurso das vozes 5 e 6 como “neutras”.

3.5 Texto 5: “CE registra 2 ocorrências”6 6 Materia da Agencia Folha.

Segmentos recortados

Cerca de 800 pessoas participaram ontem de mais dois saques em cidades cearenses. O primeiro saque ocorreu por volta das 9h15, em Cascavel (53 km ao norte de Fortaleza).

Um grupo de 500 pessoas invadiu o prédio da prefeitura e levou cerca de dez toneladas de alimentos estocados no depósito de merenda escolar local.

A delegada Fátima Guilhermina disse que não houve indícios de participação do MST.

Em Cedro (420 km ao sul de Fortaleza), o saque de cinco toneladas de alimentos de um depósito municipal teve a participação de cerca de 300 pessoas. Segundo a polícia, não houve envolvimento do MST.

“Era um bando de famintos”, disse o policial militar Domingos Paz.

As vozes aqui envolvidas (reportagem, delegada, policial), generalizadas enquanto voz 7,7 7 Note-se que o que autoriza tais generalizacoes e a inexistencia de diferenca de posicao de discurso entre enunciador citante e enunciador(es) citado(s). apontam para a refutação de EII.

É falso que o saque não decorre da fome (~ EII)

É o texto 6, que também se inscreve como box no campo diagramático do texto 4, que conduz e dirige esse processo interlocutivo ao seu clímax.

3.6 Texto 6: “Governo controla saques, diz Stédile”8 8 Entrevista com J.P. Stedile, concedida a Fernanda da Esc6ssia, da Sucursal do Rio de Janeiro.

Entrevista com J.P. Stédile: Fernanda da Escóssia, Sucursal do Rio

Segmentos recortados

Folha - Por que o MST está apoiando e organizando saques de famintos nas áreas de seca?

Stédile - Por uma questão humanitária. O saque ajuda a resolver o problema gravíssimo da fome. O fato de os flagelados terem a coragem de fazer o saque é uma maneira de chamar a atenção. Senão, o Fernando Henrique não tinha ido para o Ceará.

Folha - Mas como o MST decide a participação na organização dos saques, como anteontem?

Stédile - As formas de solidariedade dependem da situação local. Se, num município, os flagelados vêm nos pedir ajuda, nós não vamos negar. A linha geral do movimento é de total apoio e solidariedade. O que vai ser feito depende mais dos flagelados do que nós.

Folha - O MST não teme perder o controle dos saques?

Stédile - As pessoas que fazem saque querem comida. Se o governo quer evitar - nós também não queremos saque -, tem que distribuir comida, não pode administrar burocraticamente a fome.

O saque, quem controla não é o MST, nem a Cnbb, nem os bispos, é o governo. Se ele distribuir comida, está resolvido. O Fernando Henrique sabe que eles não têm um plano concreto para isso. No desespero, usa o MST e a Igreja como bode expiatório.

Aqui, a voz 8 (Stédile), também bloqueia a eventual direção de sentido que o texto 4, por si só, poderia ensejar, quanto à participação do MST nos saques enquanto identificável com a “exploração política dos saques”, posta em jogo no texto 3 (direção de sentido que esta análise não guardou, apesar da sobredeterminação de sentido que os textos 5 e 6 produzem em relação a 4).

As enunciações atribuídas à voz 8 (JPS) refutam agudamente, como se pode notar, EII: É falso que o saque não decorre da fome (~ EII).

3.7 Texto 7: “Governo troca verba para a seca por votos”9 9 Materia de Lucio Vaz, da Sucursal de Brasilia.

Segmentos recortados

O governo federal usou a verba destinada a combater os efeitos do El Niño, como a seca, para atender pedidos de deputados e aprovar a reforma da Previdência.

O efeito de sentido, aqui, é de refutação de EI - “É falso que a seca (seus efeitos) não depende do governo”. ~ EI - posição de discurso que corresponde à voz 9 (Lucio Vaz, representando o jornal).

3.8 Texto 8: “Governo já sabia que seca seria ajuda há seis meses”10 10 Materia de Marta Salomon, da Sucursal de Brasilia.

Matéria: Marta Salomon, Sucursal de Brasília

Segmentos recortados

Seis meses antes de o governo anunciar às pressas as primeiras medidas de emergência contra a seca, o alerta soou na Esplanada dos Ministérios. Um relatório do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) apontava uma redução drástica das chuvas no Nordeste [...].

O efeito de sentido, aqui também, é claramente de refutação do EI - É falso que a seca não depende do governo (~ EI) - posição sustentada pela voz 10 (M.S., o jornal).

3.9 Texto 9: “A igreja, os saques e o ministro”11 11 Artigo de Luis Nassif.

Segmentos recortados

[...]

É um trabalho meritório da Rádio Aparecida e da Cnbb. Mas o que o padre Celso e a igreja achariam se, em vez de filas organizadas, onde todos tivessem vez - velhos, mulheres e crianças -, os donativos fossem alvo de saques, onde os fisicamente mais fortes levassem vantagem?

Esse é o resultado concreto da defesa dos saques feita por bispos e até por um ministro do Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda Pertence. Ao justificarem saques - ainda mais em armazéns da Comunidade Solidária, onde os alimentos estavam disponíveis para distribuição -, o que conseguiram foi a substituição de um sistema organizado (ainda que precário) de distribuição de alimentos por um sistema selvagem de saques.

Foram saqueados não os armazéns da Comunidade Solidária, mas todos os velhos, mulheres e crianças que não tiveram acesso a filas organizadas, nem tiveram condições de medir forças com saqueadores adultos.

Nesse momento, João Pedro Stédile, líder do Movimento dos Sem Terra, está organizando saques por todo o Nordeste. Nos últimos tempos, em função de várias críticas recebidas, Stédile vinha adotando posições políticas mais conseqüentes. Agora, depois que um ministro do Stf legitima os saques, por que haveria ele de demonstrar bom senso? [...]

É interessante observar que este é o único texto constitutivo do campo discursivo em questão em que se faz referência explícita às declarações de representantes da Igreja e do Ministro Sepúlveda Pertence quanto à legitimidade do saque em situação calamitosa de fome. Tais declarações, ocorridas no(s) dia(s) anterior(es) à edição de 07.05.1998, em que o campo discursivo objeto desta análise se configura, constituem o verdadeiro horizonte em que as declarações governamentais se inscrevem.

Neste texto 9, a voz 11 (Ln) sustenta a posição de discurso de afirmação de EII - O saque não decorre da fome - pelo argumento de quem saqueia são homens fortes, e não os verdadeiros famintos: mulheres, velhos e crianças.

3.10 Texto 10: “A falta de memória (e de otras “cositas”)”12 12 Artigo de Aloysio Biondi.

Segmentos recortados

Em junho do ano passado, o presidente Fernando Henrique Cardoso prometeu, publicamente, que iria criar o seguro agrícola para cobrir os prejuízos que os agricultores sofrem quando desastres climáticos destroem as colheitas. Um seguro que existe nos outros países. Isso foi há um ano. Mas o presidente não honrou seu compromisso. Ou se esqueceu. Ou foi convencido pela brilhante equipe econômica - sempre pronta a vetar recursos quando eles atenderiam a interesses da sociedade - a engavetar a promessa. Isso, apesar de já se saber, desde o ano passado, que o El Niño poderia provocar prejuízos dantescos aos micro, pequenos e médios agricultores brasileiros. Milhões de famílias. Se o seguro agrícola tivesse sido criado, milhões de famílias, hoje, teriam uma indenização (ao menos parcial) pela perda de suas lavouras, provocada pela seca - e inundações, no Sul. Milhões de pessoas no Nordeste. Centenas de milhares no Sul, Sudeste e Centro-Oeste de famílias produtoras de trigo, arroz e até frutas (laranja, goiaba e maçã sobretudo). Hoje, há saques e ameaças de terremotos sociais no Nordeste [...].

Como se vê, a voz 12 (Ab) se inscreve na posição de discurso de refutação de EI (~EI): é falso que a seca não depende do governo.

4 A CONFIGURAÇÃO DO CAMPO DISCURSIVO

Das análises apresentadas, pode-se delinear a configuração do campo discursivo em questão, como se pode verificar no esquema abaixo, em que as posições de discurso estão registradas.

ESQUEMA 1

Guardamos, aqui, a aparente neutralidade das vozes 5 e 6 relativamente à polêmica constitutiva do campo. Mas, caso tivéssemos inscrito essas vozes nas duas posições de discurso em jogo, devido à sobredeterminação de sentido que os textos 5 e 6 produzem em 4, como foi observado, teríamos que inscrever a voz 5 como sustentando EII e a voz 6 como o refutando: ~EII. Mas isso não alteraria o desequilíbrio em questão: teríamos 5 instâncias de sustentação de EII x 4 instâncias de refutação.

O que se pode concluir da configuração do campo discursivo que o jornal constrói é que ele, jornal, tende a aderir à voz 1 (FHC) no que respeita a EII - e, portanto, à recusa do saque - mas se afasta de FHC no que respeita a EI: para o jornal, a seca é, sim, de responsabilidade do governo.

Desse modo, a pretensa imparcialidade que se obtém pela colocação em confronto das diferentes “opiniões” se mostra em seu caráter derrisório enquanto denegação da tomada de posição que o discurso necessariamente envolve, pois cada edição do jornal constitui, enquanto tal, um ato de discurso.

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  • SERRANI, S. A linguagem na pesquisa sócio-cultural: um estudo da repetição na discursividade. Campinas: Ed. Unicamp, 1993.
  • *
    O trabalho apresentado neste artigo foi desenvolvido como atividade didatica com os alunos do curso de Jornalismo da PUC-SP, na disciplina An·lise de Discurso, nos anos de 1998 e 1999; uma sintese deste trabalho foi apresentada no 13° INPLA - Metodologias de Pesquisa em Linguistica Aplicada, LAEL-PUCSP, em 02.05.03, no interior do Simp6sio intitulado Midia e Discurso.
  • 1
    Reportagem de Renata Giraldi
  • 2
    Sem duvida, o movimento dial6gico aqui manifestado pelas vozes 1 e 0 (o enunciador citante), de um lado, e o leitor, de outro, seriam um objeto de estudo particularmente interessante. Mas, dado o escopo deste trabalho, tal dimensao nao sera focalizada: do ponto de vista da constituicao do campo discursivo, o fato de discurso mais saliente no que respeita aos efeitos de sentido do campo discursivo e que, no texto, quem fala e uma unica voz, a voz 1, FHC.
  • 3
    Artigo de Janio de Freitas.
  • 4
    Materia da Sucursal de Brasilia
  • 5
    Materia de Fabio Guibu, da Agencia Folha, Recife.
  • 6
    Materia da Agencia Folha.
  • 7
    Note-se que o que autoriza tais generalizacoes e a inexistencia de diferenca de posicao de discurso entre enunciador citante e enunciador(es) citado(s).
  • 8
    Entrevista com J.P. Stedile, concedida a Fernanda da Esc6ssia, da Sucursal do Rio de Janeiro.
  • 9
    Materia de Lucio Vaz, da Sucursal de Brasilia.
  • 10
    Materia de Marta Salomon, da Sucursal de Brasilia.
  • 11
    Artigo de Luis Nassif.
  • 12
    Artigo de Aloysio Biondi.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Jun 2004

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2003
  • Aceito
    06 Fev 2004
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