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NÍVEL DE LETRAMENTO DO PROFESSOR: IMPLICAÇÕES PARA O TRABALHO COM O GÊNERO TEXTUAL NA SALA DE AULA

LEVEL OF LITERACY OF THE TEACHER: IMPLICATIONS FOR THE WORK WITH GENRE IN THE CLASSROOM

NIVEAU D’ALPHABÉTISATION DU PROFESSEUR: IMPLICATIONS DANS LE TRAVAIL AVEC LE GENRE TEXTUEL EN SALLE DE CLASSE

NIVEL DE LETRAMIENTOS DEL PROFESOR: IMPLICACIONES PARA EL TRABAJO CON EL GÉNERO TEXTUAL EN LA CLASE

Resumo

O presente trabalho objetiva apresentar o nível de letramento do professor de português da escola pública de Santa Catarina a partir da leitura e escrita de textos pertencentes aos gêneros da esfera social do trabalho docente. A questão norteadora refere-se à dificuldade da transposição didática pelo professor, da teoria à prática, pela leitura que faz do texto oficial da educação no estado (a Proposta Curricular de Santa Catarina). A pesquisa fundamenta-se em teorias do letramento de Soares (1998, 2001), Kleiman (1995), Rojo (1998, 2000, 2002), Leite (2001), entre outros, e na noção de gênero do discurso bakhtiniana, como foi discutida por Rodrigues (2000, 2001), Rojo (2002) e Schneuwly (mímeo). O corpus analisado resultou de aplicação de uma pergunta sobre gêneros e tipos textuais a quatro professores da Escola de Educação Básica Dom Joaquim, de Braço do Norte, Santa Catarina. Constatou-se, com a pesquisa, que o nível de letramento do professor de português não é suficiente para que ele compreenda e discuta o capítulo referente à Língua Portuguesa do documento em questão, pelo menos ao ponto de constituir práticas reflexivas no seu cotidiano profissional a partir do que lhe vem sendo proposto. Há ausência total de planejamento de aulas que contemplem os gêneros textuais nos Planos de Curso dos professores pesquisados. Tais professores, também não conseguiram, em sua totalidade, diferenciar gênero de tipo textual.

Palavras-chave:
letramento; gêneros do discurso; tipo textual; leitura

Abstract

The present work discusses the level of literacy of Portuguese teachers at the public schools of Santa Catarina State measured from their reading and writing texts belonging to the genre of the social sphere of the teacher’s work. The guiding question refers to the teacher’s difficulty for didactically transposing theory to practice by means of reading the state’s official text on education (the Proposta Curricular of Santa Catarina). The research is based on theories of literacy by Soares (1998, 2001), Kleiman (1995), Rojo (1998, 2000, 2002), Leite (2001), among others, and on the Bakhtinian notion of discourse genre, as it has been discussed by Rodrigues (2000, 2001), Rojo (2002) and Schneuwly (s.d). The analyzed corpus resulted from a question related to genres and textual types made to four teachers of the Escola de Educação Básica Dom Joaquim de Braço do Norte, Santa Catarina. From the results it was possible to conclude that the level of literacy of teachers of Portuguese is not sufficient for them to understand and discuss that chapter related to the Portuguese Language in the above mentioned text; at least not enough to constitute reflexive practices in their professional routine from what has been proposed to them. There is a total lack of planning classes that deal with textual genres in the Course Plans of the teachers researched. None of the teachers were able to tell the difference between genre and textual type.

Keywords:
literacy; genre; textual types; reading

Resume

Ce travail a comme objectif présenter le niveau d’alphabétisation de l’instituteur de portugais de l’école publique de Santa Catarina à partir de la lecture et de l’écrit de textes appartenant au genre du domaine social du travail professoral. La question qui se pose se réfère à la dificulté de transposition didatique par le professeur, de la théorie à la pratique, par la lecture qu’il fait du texte officiel de l’éducation dans l’État (la Proposition Curriculaire de Santa Catarina). La recherche est fondée dans les théories de l’alphabétisation de Soares (1998, 2001), Kleiman (1995), Rojo (1998, 2000, 2002), Leite (2001), parmi d’autres, et dans la notion de discours bakhtinien, selon la discussion de Rodrigues (2000, 2001), Rojo (2002) et Schneuwly (s.d.). Le corpus analysé est le résultat d’une question qui fut posée sur les genres et les types textuels à quatre formateurs de l’École de l´Educação Básica Dom Joaquim de Braço do Norte, Santa Catarina. On a pu constater que le niveau d’alphabétisation du professeur de portugais ne suffit pas pour qu’il puisse comprendre et discuter le chapitre relatif à la Langue Portugaise du document en question, au moins dans la mesure de constituer des pratiques réflexives dans son quotidien professionnel à partir de ce que lui est proposé. Il y a une absence totale de projets de cours qui considèrent les genres textuels dans les Plans de Cours de ces formateurs dont les travaux furent rechechés. Em outre, ces professeurs ne furent pas capables de faire la différence entre genre et type textuel.

Mots-clés:
alphabétisation; genres du discours; type textuel; lecture

Resumen

El presente trabajo objetiva presentar el nivel de letramiento del profesor de portugués de la escuela pública de Santa Catarina a partir de la lectura y escrita de textos pertenecentes al género de la esfera social del trabajo docente. La cuestión norteadora se refiere a las dificultades de la transposición didática por el profesor, de la teoría a la práctica, por la lectura que hace del texto oficial de la educación en el estado (la Propuesta Curricular de Santa Catarina ). La investigación se fundamenta en teorías del letramiento de Soares (1998, 2001), Kleiman (1999), Rojo (1998, 2000, 2002), Leite (2001), entre otros, y en la noción de género del discurso bakhtiniana, como fue discutida por Rodrigues (2000, 2001), Rojo (2002) y Schnuwly (s.d.). El corpus analisado resultó de la aplicación de una pregunta sobre géneros y tipos textuales al cuadro de profesores de la Escuela de Educación Básica Dom Joaquim de Braço do Norte, Santa Catarina. Se constató, con la investigación, que el nivel de letramiento del profesor de portugués no es suficiente para que él comprenda y discuta el capítulo referente a la Lengua Portuguesa del documento en cuestión, por lo menos al punto de constituir prácticas reflexivas en su cotidiano profesional a partir de lo que le viene siendo propuesto. Hay ausencia total de planeamiento de clases que contemplen los géneros textuales en lo Planes de Curso de los profesores investigadores. Tales profesores , también no conseguiron, en su totalidad, diferenciar género de tipo textual.

Palabras-clave:
letramiento; género del discurso; tipo textual; lectura

1 INTRODUÇÃO

Os estudos sobre letramento num contexto mais amplo, superando as noções de um saber escolarizado, e remetendo às práticas sociais de leitura e de escrita, é que motivaram a elaboração deste artigo, que procura relacionar letramento e gêneros do discurso, na medida em que o segundo também remete às esferas sociais de uso da língua. Neste sentido parece possível abordar estes dois temas a partir da idéia de que o nível de letramento pode ser avaliado sob a ótica das diferentes estratégias de leitura/escrita dos gêneros do discurso.

Di Nucci (2001DI NUCCI, Eliani P. Alfabetizar letrando... um desafio para o professor. In: LEITE, S. A. (Org.). Alfabetização e Letramento: contribuições para as práticas pedagógicas. Campinas: Komedi Artes Escritas, 2001.) chama atenção para o fato de que, se começam a existir novas demandas de uso da escrita em uma sociedade que se torna cada vez mais grafocêntrica, não basta mais somente aprender a ler e a escrever, é preciso usar a escrita no cotidiano. São as necessidades sociais que determinam o aprimoramento dos usos sociais da leitura e da escrita nos diferentes gêneros. O que a autora destaca interessa aqui por remeter exatamente à questão de letramento e gênero: ter competências para usar a leitura e a escrita nas práticas sociais implica falar diretamente dos gêneros discursivos, pois a prática social de uso da língua pressupõe o uso de um gênero.

Documentos oficiais de ensino já contemplam propostas de práticas de ensino em língua materna a partir dos gêneros discursivos, numa visão de ensino mais voltada às práticas sociais de uso da língua e, portanto, já pretendendo desenvolver o nível de leitura/ letramento. O que parece insipiente, porém, é a transposição didática (ROJO, 2000______. A prática da linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC/ Campinas: Mercado de Letras, 2000.). A ausência do gênero na sala de aula é também um problema de letramento. O professor, sem formação adequada e informação suficiente, não apresenta um nível de leitura que lhe possibilite ampla compreensão do documento oficial de ensino. Por conseguinte, acontece uma repetição no trabalho com o ensino de língua na sala de aula: ainda é somente o gênero escolarizado de escrita e leitura que se ensina e se aprende. Há uma distância entre o que dizem estes documentos e a prática efetiva do professor. Então, pode-se levantar a hipótese de que há um problema de nível de letramento, pois estas propostas curriculares ou parâmetros ainda se mostram ilegíveis aos professores.

Nesta perspectiva, objetiva-se, com este trabalho, verificar em que medida o nível de letramento do professor da escola pública de SC pode ser avaliado pela sua leitura e escrita de textos pertencentes ao gênero da esfera social do trabalho docente, mais especificamente, os documentos oficiais de ensino, traduzidos neste contexto, pela Proposta Curricular de Santa Catarina e o Plano de Curso do professor, quando se referem ambos, ao trabalho com os gêneros do discurso. Para isso, discutir-se-á primeiramente a definição de letramento adotada, para, logo em seguida, relacionar letramento e gênero do discurso. Considerar-se-á o Plano de Curso do professor como uma manifestação tanto de leitura quanto de escrita, na medida em que essa escrita só é possível como resultado de uma leitura bem feita da proposta norteadora, constituindo-se como documento oficial de ensino de autoria do próprio professor. Desta maneira, se existe uma distância ou aproximação entre o que sugere a proposta curricular e o que diz o professor, é o que este trabalho pretende verificar.

Não se trata mais da discussão reduzida a questionar se o professor é ou não leitor. Há muitos trabalhos na área que já comprovaram que o professor é um leitor. Brito (1998BRITO, L. P. L. Leitor interditado. In: Leituras do professor. Campinas: Mercado de Letras, 1998., p. 68) afirma que ser leitor, para o professor, não é simplesmente reduzir o conceito a alguém que desenvolve uma habilidade individual e que, segundo o autor, é só uma questão de postura e de hábito, bastando então, vontade e determinação.

O professor leitor do livro didático requer competências diferentes do leitor de um romance, por exemplo. Para ler um documento oficial de ensino se requer um domínio de leitura de textos de graus de complexidade maiores do que uma reportagem de jornal. Dessa forma, propõe-se aqui um estudo relacionando as características do gênero da esfera do trabalho docente (neste caso a Proposta Curricular de SC) frente às competências de leitura que o professor apresenta, cotejando com as competências de leitura requeridas por esse gênero a partir de uma análise do documento em questão. Acredita-se que, dessa forma, poder-se-á abrir uma discussão produtiva sobre as mudanças que se esperam para a prática do ensino de língua materna nas escolas de ensino fundamental.

Uma pesquisa caracterizada como estudo de caso foi escolhida para desenvolver o trabalho. A metodologia utilizada foi um questionário com perguntas abertas sobre o conteúdo da Proposta Curricular de Santa Catarina, das quais se dará ênfase as que se referem ao gênero como prática de produção textual nas aulas de língua portuguesa das escolas estaduais de Santa Catarina. Far-se-á também uma breve análise de documentos, no caso, os planos de curso dos professores, análise esta que tomará como critério os requisitos contidos no documento oficial de ensino Proposta Curricular de SC, verificando-se em que medida o plano de curso de autoria do professor acusa a leitura deste documento, já que a exigência da Secretaria de Educação do Estado de SC é que todos os planos de curso das unidades escolares da rede estadual devem estar dentro dos eixos norteadores do documento oficial de ensino do Estado. Em seguida, buscar-se-á relacionar estas leituras como específicas do gênero da esfera do trabalho do professor, definindo, por fim e a partir daí, seu nível de letramento. Os sujeitos da pesquisa são quatro professores autores de Planos de Curso, efetivos na Escola de Educação Básica Dom Joaquim, de Braço do Norte, SC. Estes professores trabalham no terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental (quinta à oitava séries). Os planos de curso são da área de Língua Portuguesa e serão analisados com base no capítulo da Proposta Curricular que trata desta disciplina. Todos os quatro professores são graduados em Letras por uma instituição de ensino superior privada localizada na cidade de Tubarão, município mais próximo ao dos sujeitos pesquisados onde se tem oferta de cursos de Letras. É importante esclarecer que estes sujeitos têm de cinco a quinze anos de exercício efetivo no magistério.

Cabe ressaltar que este trabalho faz parte de um trabalho maior que pretende pesquisar o grau de letramento dos professores frente ao documento oficial de ensino do estado de Santa Catarina, constituindo a relação entre nível de letramento e gênero do discurso um aspecto não contemplado naquela pesquisa.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 Letramento

A escrita, numa perspectiva histórica, surgiu há mais de 5.000 anos antes da era cristã e, durante muito tempo, significou o poder dos burocratas e religiosos, já que o cidadão comum não tinha acesso à leitura e à escrita. Com o desenvolvimento das sociedades, no entanto, o domínio da leitura e da escrita passou a ser uma necessidade emergente, o que provocou o surgimento de práticas de alfabetização. O histórico do desenvolvimento das sociedades marcou significativamente o percurso da alfabetização nas sociedades grafocêntricas.

De maneira geral, durante o período da industrialização, a alfabetização ocorreu separando os indivíduos dos usos sociais da escrita, numa prática descontextualizada das práticas sociais cotidianas. À medida em que novas condições sociais passam a exigir o uso da leitura e da escrita, novas necessidades se configuram: ler e escrever não podem ser apenas habilidades de codificação e decodificação, é preciso usá-las efetivamente na vida diária. Ora, práticas sociais diárias exigem o uso da leitura e da escrita nos diferentes gêneros e não somente como tecnologias (KLEIMAN, 1995KLEIMAN, Ângela. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995.). Segundo a autora, a alfabetização é a área que trata da aquisição da leitura e da escrita, mas com os estudos sobre o seu impacto social é que surgiu o termo letramento.

É importante esclarecer que alfabetização, escolarização e letramento são conceitos distintos e têm características próprias, mas devem se interligar, quando se tem em vista as práticas sociais de leitura e de escrita. Para Di Nucci (2001DI NUCCI, Eliani P. Alfabetizar letrando... um desafio para o professor. In: LEITE, S. A. (Org.). Alfabetização e Letramento: contribuições para as práticas pedagógicas. Campinas: Komedi Artes Escritas, 2001.),

a alfabetização ocorre na instituição escolar e envolve o domínio sistemático das habilidades de ler e escrever. A escolarização, por sua vez, é uma prática formal e institucional de ensino que visa à formação integral do indivíduo, sendo a alfabetização apenas uma de suas atividades. A escola tem projetos amplos, ao passo que a alfabetização é uma habilidade restrita. Ampliando a concepção de escrita para fora do contexto escolar, o letramento envolve a aprendizagem social e histórica da leitura e da escrita em contextos informais e os usos contextualizados no cotidiano do indivíduo. (p. 54)

Hoje, não há como pensar em escolarização, alfabetização e letramento como fatores desvinculados um do outro, pois é importante tomar a alfabetização a serviço do letramento. E o letramento como prática deve tomar como objeto de ensino a língua como viva, dinâmica, os usos que dela se fazem, o seu caráter dialógico. Dessa forma, acaba-se por chegar aos gêneros do discurso, tomando- os numa relação com as práticas de letramento.

Kleiman (1995KLEIMAN, Ângela. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995.) define letramento como o conjunto de práticas sociais que usam a escrita enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos e para objetivos específicos.

Já Soares (apud LEITE, 2001______. Que professor de português que queremos formar? Boletim da Associação Brasileira de Linguística, Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, n. 25, 2001., p. 27), em estudo mais recente, definiu letramento como resultado da ação de ensinar ou aprender a ler e a escrever, ou seja, o estado ou a condição que adquire um grupo social ou indivíduo como conseqüência de ter se apropriado da escrita. Para Soares, essas práticas têm efeito sobre os indivíduos e os diferenciam daqueles que não têm acesso às referidas práticas. Segundo a autora “o que muda no indivíduo que apresenta um bom nível de letramento é o seu lugar social, ou seja, muda a sua forma de inserção cultural na medida em que passa a usufruir de uma outra condição social e cultural”.

Ainda seguindo Soares (1998SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998., p. 15), há que se identificar no conceito de letramento as dimensões social e individual. A dimensão individual relaciona-se com as habilidades individuais, presentes na leitura e na escrita, envolvendo, desde o domínio do código até a construção do significado de um texto.

Já na dimensão social, letramento é um fenômeno cultural referente a um conjunto de atividades sociais que demandam o uso da escrita. Para a autora, esta dimensão social ainda pode ser compreendida por duas perspectivas: a perspectiva revolucionária ou radical, que vê o letramento como um conjunto de práticas socialmente construídas (de leitura e escrita) e que visa transformar as práticas sociais injustas, determinadas social e culturalmente. A perspectiva progressista ou liberal define o letramento como habilidades necessárias para que o indivíduo funcione adequadamente em um contexto social.

Na sociedade moderna, todo indivíduo está inserido em um meio letrado e faz uso da leitura e da escrita de acordo com suas necessidades. A freqüência do contato com a escrita e o tipo de texto que essa escrita constitui é que vai determinar o seu nível de letramento.

Segundo Ribeiro (apud DI NUCCI):

os níveis de letramento estão relacionados com a qualidade das práticas de leitura e escrita do indivíduo, com a qualidade do texto que lê e escreve, com a freqüência e a forma de leitura e de escrita. Além disso, os níveis de letramento variam de acordo com o domínio do código escrito: sujeitos com níveis mais altos de letramento geralmente apresentam mais tempo de escolaridade, o que permite concluir que o nível de letramento está, (de certa forma), relacionado com o grau de escolaridade. (2001, p. 217)

Isto significa que o processo de formação escolar dos indivíduos deve fazer diferença na forma como esse sujeito vai tratar das práticas de leitura e escrita que lhe são demandadas em seu contexto sócio-cultural.

O professor é um sujeito que detém, em princípio, alto grau de letramento, pois, saído de agências formadoras em nível de terceiro grau, tem, na sua história, contato freqüente com a escrita e com a leitura, restando indagar se esses contatos são com material de qualidade, que lhe garantam o nível de letramento que lhe é demandado em suas práticas profissionais. Medir o grau de letramento, no entanto, não é fato simples e corriqueiro, pois requer definições claras do conceito de letramento com que se articula e os critérios pelos quais se vai tentar definir o nível de letramento. Cabem aqui, então, dois esclarecimentos: o primeiro é que, ao tentar se definir o nível de letramento do professor de língua materna de quinta a oitava série da escola pública de Santa Catarina, os critérios estabelecidos são retirados de um documento oficial de ensino, pertencente a um gênero da esfera do trabalho do professor e, portanto, elaborado para que ele lesse e transformasse sua escrita (planos de curso) e, a partir dela, sua prática pedagógica.

Sabe-se, porém, através de observações em sala de aula e leitura de planos de curso, bem como através da resistência dos professores, mostrada em cursos de capacitação promovidos pela Secretaria de Estado de Educação, que o profissional professor não tem dado conta das leituras que esse documento pressupõe que ele possa fazer. Fica então a pergunta: é o nível do letramento do professor que não dá conta dessa leitura? Qual a responsabilidade das agências formadoras sobre o nível de letramento desses professores?

O professor tem contato freqüente com os gêneros da esfera do seu trabalho? Qual a posição do profissional docente frente a esses documentos? O documento foi elaborado tendo o professor como interlocutor?

São essas perguntas, entre outras, que este trabalho pretende discutir, sem pretensão de fornecer respostas acabadas e receitas prontas, mas de se levantar discussões a respeito do nível de letramento dos professores.

2.2 Gêneros do discurso

Para Bakhtin, os gêneros do discurso são tipos relativamente estáveis de enunciados constituídos historicamente e que mantêm uma relação direta com a dimensão social. Assim afirmando, para ser possível falar em gênero do discurso, é preciso compreender que Bakhtin concebe a língua a partir de sua dialogicidade, da natureza sócio-histórica e ideológica, sendo que, para o autor, o centro organizador de toda expressão está situado no exterior, no meio social que envolve o indivíduo. Para o autor, o homem se constitui na e pela interação, sempre em meio a uma complexa rede de relações sociais, das quais participa permanentemente (FARACO, 1999FARACO, Carlos A. O dialogismo como chave de uma antropologia filosófica. In: FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. (Orgs.). Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Editora da UFPR, 1999.). Assim, Bakhtin vai estabelecer que a realidade fundamental da língua é a interação verbal. O produto da interação entre dois ou mais indivíduos socialmente organizados é o enunciado. Pode-se concluir, então, que o uso da língua se faz por meio de enunciados.

O enunciado é socialmente orientado, segundo Bakhtin, e sempre estará organizado em função de um destinatário e, por isso, nunca será neutro. Ele é inevitavelmente carregado, atravessado por outros enunciados, fundamentado numa existência socialmente sustentada.

Quanto aos gêneros,

Trata-se de formas relativamente estáveis tomadas pelos enunciados em situações habituais, entidades culturais intermediárias que permitem estabilizar os elementos formais e rituais das práticas de linguagem. [...] Assim, os gêneros, enquanto formas historicamente cristalizadas nas práticas sociais, fazem a mediação entre a prática social ela própria e a atividade de linguagem dos indivíduos. (ROJO, 2002______. Concepção de leitor e produtor de textos nos PCNs: Ler é melhor do que estudar. In: ______. Leitura e Escrita na Formação de Professores. São Paulo: Editora Musa, 2002. p. 31-52., p. 6)

Para Rojo, os locutores sempre reconhecem um evento comunicativo, uma prática de linguagem, como instância de um gênero. Segundo a autora, este funciona como um modelo comum, como uma representação integrante que determina um horizonte de expectativas para os membros de uma comunidade confrontados com as mesmas práticas de linguagem. Como tipos estáveis, podem ser referências fundamentais para a construção das práticas de linguagem.

Bakhtin (apud ROJO, 2000______. A prática da linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC/ Campinas: Mercado de Letras, 2000.), apresenta três dimensões para os gêneros do discurso: 1. os temas - são os conteúdos, as idéias, que se tornam possíveis de dizer através do gênero; 2. a forma composicional - são as estruturas semelhantes que definem determinado gênero; 3. o estilo - são traços da posição enunciativa do locutor e também da forma composicional do gênero.

Estas dimensões constitutivas dos gêneros são determinadas pela situação da produção dos enunciados e, portanto, gêneros e textos a eles pertencentes não podem ser compreendidos, produzidos ou conhecidos sem referência aos elementos da sua situação de produção.

2.3 Gêneros e tipos textuais

Há muito que, ao se tratar do ensino de língua materna, vem se falando em trabalhar com o texto, para buscar sentido para o ensino de linguagem. Porém, já sucede a esse modismo da tipologia textual o dos gêneros, originando questões sobre as relações entre as duas. Documentos oficiais de ensino como PCNs (BRASIL, 1998) e Propostas Curriculares do estados e municípios vêm falando da importância do trabalho com o gênero, mas não deixam claro qual a nítida diferença entre essas duas categorias.

Para Schneuwly (mímeo), o tipo textual é o resultado de uma ou várias operações de linguagem efetuadas no curso do processo de produção, dentre outras características apontadas pelo autor.

Silva (1999SILVA, Jane Q. Gênero discursivo e tipo textual. Scripta, Belo Horizonte, v.2, n.4, p. 87-106, jan./jun. 1999., p. 100), afirma que tipo textual é uma noção que remete ao funcionamento da constituição estrutural do texto. Para a autora, o tipo textual é necessário para a constituição do gênero, pois um gênero pode trazer na sua configuração vários tipos textuais. Para Silva,

considerando que o discurso se materializa no texto, cujo plano estrutural assume uma dada configuração em virtude de uma correlação entre os elementos de sua organização e suas condições de produção, podem-se, especificando um pouco mais essa noção, tratar os tipos textuais como modos enunciativos de organização de discurso no texto, efetivados por operações textualmente discursivas [...] (1999, p. 101).

Desse modo, definir o tipo textual como um conjunto de princípios organizadores que incidem sobre planos internos de composição do texto, não isenta os tipos de estarem vinculados à natureza do gênero a que pertencem, pois a partir dele é que vão assumir formas e funções específicas. Em se tratando da prática de leitura e produção textual na escola, uma tipologia variada de textos não garante o trabalho com as práticas sociais de leitura e de escrita, já que o tipo só adquire sentido quando enfocado a partir do gênero a que se vincula. Isso porque o gênero:

[...] é uma designação que diz respeito a todas e quaisquer manifestações concretas do discurso produzidas pelos sujeitos em uma dada esfera social do uso da linguagem. [...] são formas de funcionamento da língua que nós sujeitos construímos e utilizamos na forma de texto, nas situações discursivas de que participamos. São fenômenos contextualmente situados, (re)conhecidos por nós empiricamente. (SILVA, 1999SILVA, Jane Q. Gênero discursivo e tipo textual. Scripta, Belo Horizonte, v.2, n.4, p. 87-106, jan./jun. 1999., p. 105)

Se o gênero pode ser categorizado como empírico, o tipo textual seria muito mais uma construção teórica que, conforme Silva, recobre realidades distintas do funcionamento do discurso. O que é importante ressaltar, porém, é que nada impede que haja entre tipo e gênero um entrecruzamento, até para melhor compreender de que forma pode se manifestar o discurso quando em forma de texto. Para Schneuwly (mímeo), os tipos de textos seriam “construções ontogenéticas necessárias à autonomização dos diversos tipos de funcionamento e, de modo mais geral, da passagem dos gêneros primários aos secundários”, ou seja, ao tomar forma, ao receber o acabamento para fazer sentido, o tipo textual se enquadra no gênero.

Então, ao se falar de gênero como objeto de ensino e, segundo Rojo (2002______. Concepção de leitor e produtor de textos nos PCNs: Ler é melhor do que estudar. In: ______. Leitura e Escrita na Formação de Professores. São Paulo: Editora Musa, 2002. p. 31-52.), não meramente os textos ou tipos de texto, fala-se de constituir um sujeito capaz de atividades de linguagem que envolvem tanto capacidades lingüísticas ou lingüístico-discursivas, como capacidades propriamente discursivas, relacionadas à apreciação valorativa da situação comunicativa. Segundo a autora, é um outro modo de se produzir e de se compreender e ler textos em sala de aula.

2.4 O documento oficial de ensino: um gênero da esfera do trabalho do professor

Textos oficiais de ensino podem se apresentar de múltiplas formas, desde folhetos e manuais com dimensão legislativa, até propostas condensadas relativas a políticas educacionais e conceitos pedagógicos. O ponto convergente, no entanto, é que todos se caracterizam como publicações de Secretarias de Educação destinadas às escolas, cuja finalidade primordial é “redefinir ou orientar práticas educativas” (SILVA e FRADE, 1998, p. 96).

Geralmente, o texto oficial de ensino aparece em contextos de mudanças de políticas educacionais. Então, o texto oficial de ensino:

É aquele produzido a partir de fonte oficial e se caracteriza por expressar posições pedagógicas e políticas de órgãos públicos reguladores da política educacional. [...] Nesse campo entrariam preferencialmente os textos produzidos pelas Secretarias de Educação dos municípios e estados e pelo Ministério da Educação. (SILVA e FRADE, 1998, p. 97)

Uma característica muito importante do texto oficial de ensino é que ele constitui um gênero da esfera social, ou melhor, da esfera do trabalho do professor e, portanto, tem uma forma, um acabamento específico, destinado ao interlocutor: o professor. É um texto que já prevê seu leitor, constituído dialogicamente (ORLANDI, 1988ORLANDI, Eni P. Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez, 1988.; SILVA e FRADE, 1998), e, mais que isso, prevê um perfil de leitor homogêneo e preparado para fazer a leitura do documento. Deve-se considerar também que muitos sujeitos devem ler da mesma forma aquele texto. A constituição do leitor nesse caso, além de depender do sujeito-leitor, muito mais se vincularia ao grupo-leitor, numa perspectiva social.

A leitura do documento deve ter um caráter coletivo: debates, discussões, dias de estudo e um espaço determinado para estas ações, a escola.

A opção de ler ou não ler praticamente não existe, pois é quesito obrigatório ao professor para subsidiar as mudanças que lhe estão sendo requeridas. E é dessa forma que o professor se constitui como leitor de documentos oficiais de ensino: nem sempre correspondendo ao leitor do gênero pressuposto no texto. Problemas de nível de letramento? Problemas de domínio da leitura deste gênero? Problemas de letramento e gênero?

2.4.1 Proposta curricular de Santa Catarina: os requisitos para a constituição do seu leitor

O texto da Proposta Curricular de Santa Catarina (SANTA CATARINA, 1998), que trata da área de língua portuguesa (p.55 a 91), se, por um lado, apresenta consideráveis mudanças, principalmente na postura teórica adotada, mudando os eixos do ensino, por outro lado, possibilita considerar que ainda existe um enorme fosso entre o que diz a Proposta e o que faz o professor da rede estadual de Santa Catarina, a quem o documento está destinado.

Assim como os PCNs (BRASIL, 1998), documento de âmbito federal, a Proposta Curricular de Sc (daqui em diante PC/SC) permite compreender claramente a concepção bakhtiniana de língua, enfatizando a abordagem dialógica que a esta deve ser dada.

Os eixos organizadores dos conteúdos de língua a serem trabalhados pelo professor de língua materna são os seguintes, segundo a PC/SC:

USOS E FORMAS: Língua oral - práticas de fala e escuta. Língua escrita - práticas de leitura e de escritura. Práticas de análise lingüística - língua estrutura e língua acontecimento (aspectos notacionais e gêneros do discurso).

É possível compreender, dessa forma, que o documento preconiza um trabalho que chama de notacional (quando se refere à prática de leitura e de escrita), enfatizando a importância de ver o texto na sua apresentação gráfica dentro de convenções, e, neste caso, conclui-se que o documento está abordando a tipologia textual, para em seguida afirmar que não se deve desconsiderar a língua como acontecimento discursivo, situado socialmente, ou seja, a partir dos gêneros.

Mas, ao abordar especificamente o trato que a escola deve dar ao gênero, segundo a PC/SC:

Não se trata de uma tipologia. As tipologias variam muito, dependendo dos critérios utilizados pelos estudiosos, e provavelmente ninguém conseguirá enquadrar de modo absolutamente aceitável os gêneros e os tipos de seqüências e organização global dos textos que manifestam os discursos de uma sociedade. Além disso, provavelmente não basta um critério. (SANTA CATARINA, 1998, p. 77)

Logo em seguida a estas afirmações, o texto da PC/SC lista alguns gêneros, agrupados a partir de algumas semelhanças, mas em lugar algum explica o que são essas semelhanças, cabendo ao professor, a partir de informações extratextuais ou anteriores, deduzir quais são elas. Isso vai constituir um problema para a leitura, pois o professor possivelmente vai tentar inferir o critério dos agrupamentos. Os grupos de gêneros são assim exemplificados:

  • contos fantásticos, mitos e lendas populares, folhetos de cordel, fábulas;

  • poemas, canções, quadrinhas, parlendas, adivinhas, piadas, anedotas;

  • embalagens, rótulos, calendários;

  • dicionários e enciclopédias;

  • etc. etc. etc.

Não existe, em seguida, nenhuma definição de gênero, o que pressupõe que já seja do conhecimento do professor, que ele tenha, em algum momento de sua formação (?), estudado os teóricos dos gêneros do discurso. Para o sujeito que teve formação que passou longe dessa abordagem, o assunto é ilegível. Um pouco mais adiante, neste mesmo texto, o documento volta a se referir aos gêneros e aos tipos textuais, quando da explicação da metodologia que deve ser utilizada pelo professor para as atividades de prática de leitura e escritura. Antes de entrar diretamente na explicação metodológica, volta-se ao aspecto notacional, isto é, que o texto pode ser mais ou menos espontâneo, mas não deve se deixar de usar as normas de escrita.

Entretanto, a PC/SC volta a afirmar que o texto, lido ou produzido pelo aluno, deve ser uma manifestação discursiva, que, segundo o documento, é uma forma bem mais complicada e exige (do professor ou do aluno?) um conhecimento que vai além do gramatical. Refere-se, aqui, à concepção de texto com a qual a proposta articula. Retoma Orlandi (1988ORLANDI, Eni P. Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez, 1988.), para caracterizar o texto como uma “peça” de linguagem, tendo relações significativas dentro de um contexto histórico, que pode se desenvolver de múltiplas formas, em determinadas situações sociais, não sendo, portanto, uma unidade fechada. A seguir, define o texto também como um objeto empírico, como um conjunto de enunciados que, com coerência e configuração lingüística, emergem em determinados espaços e determinados momentos, ligados aos gêneros existentes nesse tempo e espaço. Valoriza, assim, os contextos de uso da linguagem.

Os tipos textuais, como a descrição, narração e dissertação, só terão sentido, conforme a PC/SC, como “possibilidade de desenvolvimento de seqüências dentro de textos que manifestem vários gêneros discursivos”. Então os gêneros, sendo significativos, são apresentados como: “textos que se compõem de enunciados que obedecem a certas condições de organização, e refletem as características históricas da sociedade onde circulam [...] Sua possibilidade enunciativa faz com que sejam mais ou menos ritualizados” (p. 80). Esta parte parece bastante contraditória ao se tentar encaixar o ensino das tipologias, e neste caso a tríade bem conhecida da prática escolar - descrição, narração, dissertação - dentro de um âmbito maior dos gêneros discursivos.

Os tipos textuais são considerados como fragmentos dos gêneros discursivos, o que não impede, segundo o documento, que se tematize a descrição como uma configuração que aparece em alguns gêneros, sem tomá-la como forma independente na sociedade. Para a PC/SC, (p. 80),

É inútil insistir em guardar a caracterização tripartite dos textos, que acaba se tornando um problema a mais para a produção em ambiente escolar; deve- se deslocar ou mesmo esquecer essa classificação...

Mesmo com este retorno do texto da proposta à questão do gênero, ainda não se pode considerar que fica mais fácil ao professor conceber uma metodologia de trabalho somente com essas informações. Debates, discussões podem ser bem vindos, mas não serão suficientes para clarear os fatos apresentados pela PC/SC.

3 COMO O PROFESSOR LÊ A PC/SC?

Para se tentar responder a essa questão usou-se um questionário com dez perguntas, das quais apenas uma vai ser aqui considerada. Esta questão se refere ao significado que os professores dão à parte da proposta que afirma que se deve trabalhar com os gêneros do discurso e não somente com os tipos textuais.

Os cinco sujeitos são professores efetivos da rede estadual de SC, na Escola de Ensino Básico Dom Joaquim de Braço do Norte, e têm experiência de 5 a 21 anos na docência em língua materna. Escolheu-se os efetivos apenas (no total são mais de 15 professores) porque estes é que sempre participam dos cursos de capacitação referentes à PC/SC.

Além do questionário, faz-se aqui a análise da escrita desses professores a partir do seu plano de curso, observando-se em que medida o assunto dos gêneros e tipos textuais está presente em seu planejamento.

3.1 Gêneros e tipos segundo o professor

A pergunta específica, dentro de um questionário maior, que se referia a várias partes da Proposta Curricular era: o que significa trabalhar com os gêneros do discurso e não somente com tipos textuais, segundo a PC/SC?

As respostas dos professores foram bastante variadas, alguns mostrando que foram à fonte e literalmente copiaram a parte que achavam se tratar desse tema. Para o sujeito A, significa que o aluno deve ter condições de elaborar um texto escrito e também oral, em várias situações. Para essa professora o texto do documento oficial está quase ilegível, pois não consegue associar as várias situações ao contexto de trabalho com os gêneros, e, mesmo restando muitas linhas em branco, no espaço para responder a essa questão, limitou-se ao enunciado acima. As condições que o aluno deve ter, não são, da mesma forma, especificadas, o que mostra uma insuficiência de informações por parte da professora, e que somente com a leitura do documento não conseguiu formar uma idéia sobre a questão dos gêneros e tipos. Na verdade, o sujeito A nem responde à pergunta, desviando para o assunto de uma maneira ampla e vaga, talvez exatamente da forma como entendeu a Proposta Curricular.

O sujeito B também dá mostras de ter recorrido ao texto da PC/SC para responder, copiando vários fragmentos de trechos, o que resultou numa resposta bastante confusa: significa assumir um caráter de um sistema de signos específico, lingüístico, histórico e social que possibilita aos seres representar o mundo e a sociedade; a língua é uma produção humana, não é acabada, e esta se constrói na interação; e faz-se necessário o conhecimento lingüístico e a Produção Textual (maiúsculas do sujeito B).

Esta resposta também permite constatar que a leitura feita do texto em questão se configura como um condensado de informações, com conceitos e concepções amplas, resultando esta última, num texto de leitura bastante difícil para os professores, pela quantidade de informações ali presentes. Além disso, concepções teóricas gerais de autores como Vigotski e Bakhtin formam um texto parafrásico, acrescido do ponto de vista da autoria da proposta, o que faz com que o leitor vá e volte numa leitura que se mostra, por um lado, insuficiente de informações para este perfil de leitor, mas por outro lado, mostra-se repetitiva ao resgatar sempre o mesmo eixo teórico para explicar diversos aspectos do ensino de língua em separado, como leitura, escrita, fala e escuta, bem como análise lingüística. O sujeito B tenta assimilar o amontoado de conceitos e não responde à pergunta formulada.

O sujeito C assim responde à questão: significa variar as modalidades de textos para estimular a compreensão do aluno e conseqüentemente, facilitar a produção textual. Assim como os sujeitos anteriores, este professor não conseguiu ler nem mesmo a pergunta do questionário, que se referia a diferenciar gênero de tipo textual. A resposta acusa uma vaga idéia sobre a tipologia textual, quando se refere a modalidades. O que se perguntou a respeito de gênero não foi sequer levado em conta. O que se pode inferir é que na leitura da Proposta, o professor não “leu” o que se referia à produção escrita, nem mesmo a tipos, construindo sua resposta a partir de informações obtidas em sua própria formação ou em seu processo de escolarização, lembrando o que seu professor fazia (GIMENEZ, 1998GIMENEZ, Telma. Histórias pessoais e o processo de formação de professores. Intercâmbio, v. 6, p. 589-595, 1998.). Este sujeito se mostra distante da leitura requisitada pelo documento, não apresentando nenhuma possibilidade de transformação de sua prática pedagógica.

Os sujeitos D e E tiveram respostas semelhantes, o que pode ter sido causado por trabalharem na mesma unidade escolar e poderem trocar idéias a respeito. Para eles, trabalhar gêneros do discurso é criar possibilidades para que o aluno tenha acesso a vários tipos de discursos, primários ou secundários. (formal, informal, humorístico, poético, científico, etc. ). Pode-se considerar que são os sujeitos D e E que fizeram a leitura mais próxima do texto da PC/SC, constituindo a resposta a partir de uma fala que envolve tipo e gênero. O que chama a atenção, porém, é que as duas noções vêm totalmente imbricadas, isto é, não há distinção entre uma e outra. Se houve um esforço por compreender a concepção proposta, ela teve origens em leituras de outros materiais teóricos, que se referem a gêneros, o que se pode perceber pela noção de primários e secundários atribuída à teoria bakhtiniana dos gêneros. Considerando que estas professoras tiveram sua graduação em Pedagogia recentemente finalizada, pode- se concluir que o próprio currículo deve ter abordado as concepções teóricas adotadas pela proposta, mas de uma forma não suficiente para garantir uma preparação, ou melhor, um nível de leitura que permitisse a entrada do professor- leitor nesse documento oficial de ensino.

3.2 A escrita do professor: os planos de curso

Como os professores fazem planejamento em conjunto, orientados oralmente pela Secretaria de Educação, os planos aqui analisados são dois, sendo que o número um (1) pertence aos sujeitos A, B e C e o plano número dois (2) pertence aos sujeitos D e E.

O Plano de Curso também pode ser considerado um documento oficial de ensino, de autoria do próprio professor, já que serve para nortear as práticas cotidianas, e está situado mais próximo à realidade do aluno, pois, além de estar baseado na Proposta Curricular (é exigência da Secretaria de Educação), é resultado também do Projeto Político-Pedagógico da instituição escolar onde o professor atua.

Nestas condições, o Plano de Curso 1 possui dezessete páginas, das quais sete são cópias do tipo xerox, de um livreto de autoria da Secretaria da Educação que sistematiza os conceitos essenciais que devem ser trabalhados nas disciplinas. Esta parte copiada faz referência às práticas de leitura e de escritura com diferentes gêneros textuais e aspectos discursivos a eles relacionados. Saliente-se que é uma cópia simples, sem nenhuma anotação ou assinatura. Em seguida, sem sub-títulos ou topicalização, entra uma página referendando uma série de conteúdos gramaticais, como sintaxe do período composto com classificação das orações coordenadas e subordinadas e regência. Para a redação (é este o título), há a justaposição de gêneros e tipos além de outras classificações teórico-literárias.

Têm-se elementos dissertativos e narrativos, poesia, prosa, gêneros literários como teatro, conto, novela, romance, narração, dando ênfase à seqüência narrativa, ao foco narrativo, as ações e a atmosfera do texto; descrição de aspectos físicos e psicológicos, entre outros. Para uma outra série da mesma escola, a prática de redação está assim planejada: - níveis de linguagem; tipos de texto, estrutura do texto, texto narrativo-descritivo; uso dos adjetivos nas descrições e outros tópicos de narração. Não há absolutamente nenhum tópico que remeta aos aspectos sociais da leitura e da escrita.

Convém esclarecer que esta parte também é fotocopiada de algum livro didático, pelas características de impressão que apresenta. Não há, no entanto, nenhuma referência a autores ou títulos. As três páginas finais do Plano são manuscritas e algumas partes estão rasuradas, constando apenas de tópicos soltos do tipo: - treino ortográfico, alfabeto maiúsculo e minúsculo, acentuação gráfica, gênero do substantivo, entre outros da mesma linha. Não há assinaturas.

Assim, verifica-se que a constituição do planejamento destas professoras, que deveria constituir-se em uma escrita de sua própria autoria, a partir do reflexo das leituras feitas da PC/SC, apresenta-se somente como um trabalho de recorte e colagem. É preciso salientar, ainda, uma evidente contradição entre a primeira parte fotocopiada do livreto da Secretaria de Educação (Diretrizes, 2000) e as outras partes fotocopiadas do livro didático e a manuscrita. Não há como comprovar que houve reflexão e leitura do documento oficial de ensino do Estado por parte do professor, e, provavelmente, sua prática continua desvinculada das orientações dadas pela Proposta Curricular. Há, porém, que se chamar a atenção para a consciência das professoras sobre a exigência das Secretarias de Educação de um planejamento consonante à PC/SC, na medida em que as professoras fotocopiaram páginas do livreto explicativo emitido pela própria Secretaria. O nível de leitura feito é que se apresenta distante do proposto pelo texto oficial.

O Plano de Curso 2 está melhor organizado quanto à estética e divisão em partes, estando com identificação e assinatura das professoras. No entanto, quando se chega à parte que trata da escrita, são apresentados tópicos como: produção de textos descritivos, narrativos e dissertativos; reconstrução, produção ou reprodução de textos lidos como clareza, unidade temática, consistência argumentativa, paragrafação, etc.

Também este Plano não faz referência ao trabalho com os gêneros do discurso, marcando algumas tipologias, mas totalmente desvinculadas das noções apresentadas pela proposta. O professor não mostra, em sua escrita, marcas da leitura que possivelmente tenha feito da Proposta Curricular. Se levar em conta que todos esses professores já participaram de cursos de capacitação sobre o documento em questão, não há como afirmar que não tiveram acesso a esta leitura, pois mesmo durante os cursos, leituras de trechos são feitas e discutidas em grupos.

O caráter condensado do documento da Proposta Curricular de Santa Catarina e um nível de letramento dos professores que não alcança a sua leitura (nível este advindo da própria cultura escolar de prática de leitura e escrita com a qual esses professores fizeram sua formação básica, tanto quanto a própria formação de professores, que não capacita o professor para a prática reflexiva) constituem-se num fosso que acaba fazendo, como conseqüência, que textos tão importantes (apesar de hoje já merecerem algumas reformulações), como o da Proposta do Estado de SC, não atinjam o seu interlocutor (principal e único), o professor.

4 A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

A natureza da Proposta Curricular de Santa Catarina não permite a transposição direta para a sala de aula, visto que seu texto tem orientação histórico- cultural e objetiva respeitar as diferentes culturas. O documento se constitui então, de um conjunto de concepções teórico-metodológicas que devem servir de base para a construção de documentos mais próximos à realidade escolar dos alunos, sendo que os autores desses documentos devem ser os professores.

O que ocorre, porém, é que os cursos de formação de professores de língua materna continuam os mesmos, com os mesmos paradigmas de formação. Alunos que entram na faculdade de Letras, na maioria das vezes, não têm uma prática intensa de leitura e escrita, e na graduação também não é oferecida a eles a oportunidade de gerar conhecimento a partir da reflexão. A formação desses profissionais está mais centrada na prática do repetir, do acumular saberes (quase sempre de ordem estrutural da língua e gramatical-normativo), para a finalidade de posterior transmissão. Este perfil de transmissor de saberes escolares é que impede que o professor, quando em formação, adquira as competências necessárias para ser um bom leitor de textos de vários gêneros e, principalmente, dos documentos oficiais de ensino.

A formação de produtores de saberes passa pela reformulação de currículos, por intensas leituras teóricas articuladas com a prática já na época da formação inicial, construindo um perfil de professor leitor que dialogue com o que lê a partir de suas observações e de sua prática.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que se conclui aqui, é que há a necessidade de o professor rever as próprias concepções de leitura e de leitor, admitindo que, no caso da Proposta Curricular, ele precisa passar da condição de mero leitor passivo para a posição de autor que constrói seu próprio documento. Um dos maiores entraves que se encontra para constituir o professor como autor é o livro didático. E, sem duvida, para este tipo de leitura, basta ser leitor decodificador, o que pouco tem a ver com o alto nível de letramento que requer a leitura da PC/SC, e muito tem a ver com a necessidade de rever os cursos de formação de professores. O nível de letramento/ leitura do professor da rede pública de SC, infelizmente, não alcança o documento que lhe é destinado.

O fator relevante para o entendimento do discurso do texto oficial de ensino, é, sem dúvida, o conhecimento anterior, vindo de formação inicial ou continuada. É essa formação que deveria constituir o nível de letramento do professor exigido pela PC/SC para que o professor se fizesse interlocutor desse texto. O documento oficial de ensino deve fazer parte das práticas sociais de leitura e de escrita do professor e, portanto, deve se apresentar ao seu nível de leitura. Se existe, entretanto, uma lacuna entre estes dois aspectos, ela não se deve à incompetência do professor ou à sua falta de leitura, nem ao texto da Proposta, que é condensado e propõe apenas uma concepção mais ampla, sem receitas. É preciso buscar a mudança essencial na cultura escolar, desde as séries iniciais até à formação do professor nas universidades. Não haverá mudanças enquanto o professor não compreender no que se constitui sua prática hoje, o que ela tem de deficiente ou inadequada para novos tempos, e reorientar seu olhar para um novo perfil de homem, de escola e de sociedade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Jun 2004

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2003
  • Aceito
    26 Set 2003
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