Resumo
O objetivo fundamental deste artigo é analisar as representações midiáticas sobre as mulheres que ocupam cargos de destaque na política. Procuro levantar como a mídia jornalística define e agrupa cada uma das práticas, explicita os atores sociais e relaciona causalmente as ações com as ações dos outros através da análise de uma reportagem. Como pressuposto teóricometodológico, utilizo a Análise de Discurso Crítica tal como desenvolvida por Fairclough (2003), van Leeuwen (1997), além dos estudos sobre Linguagem da Avaliação (WHITE, 2004; MARTIN, 2006). Constatou-se que, na reportagem analisada, a representação das mulheres em cargos de destaque na política evidencia vozes conflitantes sexistas.
Palavras-chave: análise de discurso crítica; identidade; mídia; representação
Abstract
In this paper, my aim is to study the representations by the Brazilian media discourse of women politicians in one particular news report. The research is based on Critical Discourse Analysis (Fairclough,2003; Theo van Leeuwen, 1997) and the Appraisal framework (White,2004; Martin,2006). The analysis of the newspaper report shows that female politicians are perceived as different from their male counterparts and that there are implicit relations of power in the text, which might contribute to shaping the reader’s perception of reality.
Keywords: critical discourse analysis; media discourse; representation; identity
Résumé
L’objectif essentiel de cet article est celui d’analyser les représentations médiatiques sur les femmes qui ont des postes influents dans la politique. Je cherche à savoir comment le média journalistique définit et groupe chacune des ces pratiques, précise les acteurs sociaux et met en rapport d’une manière causale des actions avec les actions d’autres personnes à travers l’analyse d’un reportage. Comme présupposé théorico-méthodique, j’utilise l’Analyse Critique du Discours développée par Fairclough (2003), Van Leeuwen (1997), et, en outre, les études sur le Langage de l’Évaluation (WHITE, 2004 ; MARTIN, 2006). On a remarqué que dans le reportage analysé, la représentation des femmes dans des postes influents dans la politique, met en évidence des voix qui sont en désaccord misogynes.
Mots-clés: analyse critique du discours; identité; média; représentation
Resumen
El objetivo fundamental de este artículo es analizar las representaciones de la prensa sobre las mujeres que ocupan cargos de destaque en la política. Busco levantar cómo la prensa define y agrupa cada una de las prácticas, explicita los actores sociales y relaciona las causas de las acciones con las acciones de otros a través del análisis de un reportaje. Como presupuesto teórico metodológico, utilizo el Análisis de Discurso Crítico tal como desarrollado por Fairclough (2003), van Leeuwen (1997), asimismo los estudios sobre Lenguaje de Evaluación (WHITE, 2004; MARTIN, 2006). Constaté que, en el reportaje analizado, la representación de las mujeres en cargos de destaque en la política evidencia voces sexistas.
Palabras-clave: análisis de discurso crítico; identidad; prensa; representación
1 INTRODUÇÃO
A participação e a conquista das mulheres no âmbito político tem sido preocupação freqüente dos estudos desenvolvidos não só por historiadores, antropólogos, sociólogos, mas também por analistas críticos do discurso empenhados na investigação dos mecanismos empregados pelas instituições para marcarem e construírem diferenças sócio-políticas entre os gêneros masculino e feminino. A diferença sexual, discutida por Swain (2005), estabelece o sujeito universal, isto é, o masculino, como normativo e evidente. Segundo a autora, aqueles (as) que não se enquadram nesta evidência normativa ancorada no sexo biológico tornam-se produtos desta diferença.
Dessa forma, analisar as estratégias discursivas empregadas pelos gêneros da mídia jornalística, para tentar desnaturalizar a instauração e a reprodução das desigualdades, torna-se uma ação política emancipatória e transformadora.
Há uma série de categorias analíticas fundamentais para os estudos discursivos críticos que requerem uma atenção especial porque implicam, muitas vezes, em construções textuais que enfatizam as estruturas discursivas de abuso de poder, desigualdades sociais e relações de exclusão ou inclusão sociais. A pressuposição e a modalidade configuram-se como uma dessas categorias. Para Fairclough (2001, p. 202), “a pressuposição leva a modalidade categórica a um estágio adiante ao tornar a fatualidade como tácita, oferecendo imagens e categorias para a realidade; posicionando e moldando os sujeitos sociais e contribuindo principalmente para o controle e a reprodução sociais”. Com base nesta tese, neste artigo será desenvolvida, em um primeiro momento, a análise da reportagem de notícias “Mulheres em Alta”, extraída da revista de variedades brasileira IstoÉ, seção Internacional, de 07 de dezembro de 2005.
O gênero reportagem de notícias pode ser caracterizado como aquele que objetiva relatar acontecimentos por si, através de uma comunicação pública e informal. O fato relatado, geralmente de natureza privada, torna-se público para uma ampla e heterogênea audiência. Fairclough (2001) denomina as reportagens como “representações do discurso”, ou seja, relatos significativos do que as pessoas falaram e evidências de eventos que “merecem” ser notícia. Assim, reportagem jornalística não é apenas uma forma lingüística, mas uma prática social, ou seja, uma forma de ação e interação social, sujeita a diversos deslocamentos, aberturas e flexibilidades de configuração e construção. Dessa forma, enquanto estrutura textual e discursiva, o gênero reportagem de notícias caracteriza-se da seguinte forma: título, lead1, texto, foto, legenda, além de possuir a narrativa como padrão retórico recorrente. Enquanto prática social, o gênero reportagem de notícias implica processos particulares de produção, distribuição e consumo de textos.
Geralmente, os textos noticiosos midiáticos são resultantes de relatos conduzidos e escolhidos, que constituem interpretações explicativas históricosociais dos eventos. Nessa prática, a historicidade é “simbolicamente manipulada pela memória ou pelas memórias coletivas”, através de elementos lingüísticodiscursivos. Barbosa (2003, p. 117), discutindo a relação entre historicidade e memória (mito, tradição) no contexto das comemorações brasileiras dos 500 anos, aponta que “na escrita jornalística [...] a reconstrução de fatos históricos, quer seja pela recorrência à história, quer seja pelo retorno ao mito, funciona como estratégia de que se vale a mídia, na qualidade de instituição social, para intervir na produção não apenas da informação, mas também de cultura”.
Em que medida então as reportagens relatam os acontecimentos em si ou deixam evidências de opiniões, engajamentos e avaliações, por meio de movimentos dialógicos, ou seja, trazem à tona outras vozes refutadoras, afirmativas, contrastivas? Esse questionamento será o ponto de partida para o nosso debate sobre mídia, política e mulheres, com base nas construções pressupostas, subentendidas e modalizadas constituídas na reportagem “Mulheres em Alta” extraída da revista de variedades Istoé. Tal trabalho se insere em abordagens discursivo-críticas que apontam a linguagem como parte irredutível da vida social, portanto constituinte, mas também constituída de práticas e redes de práticas sociais e culturais.
Dessa forma, o artigo se divide em três momentos: no primeiro, são trazidas algumas implicações político-ideológicas das pressuposições, aplicando tais considerações no corpus; no segundo momento, discutiu-se a representação dos atores sociais implicados no evento “Mulheres em Alta”, com base na proposta metodológica de Theo van Leeuwen (1997) para, no terceiro momento, analisar as avaliações e perspectivas da voz midiática acerca de tal evento, por meio das propostas sobre Linguagem da Avaliação desenvolvidas por White (2004) e Martin (2006).
2 DISCUTINDO AS IMPLICAÇÕES IDEOLÓGICAS DAS PRESSUPOSIÇÕES
Pode-se dizer que a pressuposição é um tipo de intertexto, já que se configura como a presença de vozes de um texto dentro de outro texto; isso implica que elementos de outros textos podem ser incorporados em qualquer situação, sem que haja uma atribuição explícita, ou seja, uma nomeação ou designação de domínio social ou sujeito. Segundo Fairclough (2003), textos inevitavelmente fazem implicações, ou seja, o que é dito em um texto é sempre dito em concordância ou discordância em relação a outro. Neste sentido, as pressuposições podem se referir a coisas ditas ou escritas por alguém em algum lugar, ou mesmo alusões a um grupo de textos ou a um repertório de informações, ou idéias partilhadas, ou seja, constituem crenças, historicidades, valores sócioculturais, além de identidades e relações sociais.
As negociações desenvolvidas nos eventos sociais constituem-se de vozes incluídas e até mesmo excluídas. O reconhecimento de tais vozes depende invariavelmente do contexto e do conhecimento partilhado. A questão que emerge no contexto analítico discursivo é: Como essas diferentes vozes são produzidas nos textos? Ou seja, como as vozes são incorporadas ao se recontextualizarem em outros momentos discursivos? São questionamentos que resvalam para o fato de que “o outro texto não é um outro texto especificado ou identificável, mas um texto mais nebuloso, correspondendo à opinião geral”; isso significa dizer que os sujeitos tendem a dizer algo em função das experiências acumuladas ao longo das práticas sócio-culturais e históricas (FAIRCLOUGH, 2001, p. 156).
No texto midiático, por exemplo, é interessante pontuar como ocorre o movimento de vozes deslocadas de um contexto para o outro, verificando ainda como é realizada a distribuição das informações entre a constituição das vozes autorais e atribuídas e das vozes implicadas no momento da construção da notícia. Essa distribuição de vozes implícitas ou explícitas na construção do texto nada mais é do que a recontextualização de informações e/ou idéias pré-construídas que circulam em moldes, ou seja, em enunciados cristalizados.
O fato é que, principalmente, em textos de gêneros midiáticos, as pressuposições, quando são retomadas de textos anteriores da instância de produção, podem ser manipulativas, assim como sinceras. Manipulativas no sentido de que se configuram como um exercício de poder, como uma influência que se dá por meio do discurso. Observando-se, de forma negativa, a manipulação constitui-se como uma ação de favorecimento realizada pelo manipulador, e prejudicial, para o sujeito manipulado, uma vez que este, muitas vezes, não será capaz de compreender representações e ações defendidas pelas construções manipulativas (VAN DIJK, 1996). Vale ressaltar que, para se interpretar e analisar um discurso manipulativo, é fundamental examinar o contexto de produção e as práticas sociais que o engendram.
Teun van Dijk (1997), discutindo a relação entre semântica do discurso e ideologia, argumenta que a pressuposição é uma categoria discursiva que desempenha funções ideológicas. Enquanto um conjunto de conhecimentos culturais tácitos que dão significado ao discurso, as pressuposições levam os leitores a tomarem as afirmações como determinadas construções de realidades. As pressuposições, que são inferidas com base nas construções textuais, podem ser ativadas por alguns elementos lingüístico-discursivos, quais sejam: artigos definidos, descrições definidas, verbos fáticos, implicativos, de mudança de estado, elementos iterativos, expressões temporais, sentenças clivadas (MOURA, 1999; VAN DIJK, 1997).
2.1 Mulheres em Alta: as vozes valorativas do(s) discurso(s) do outro(s)
No texto, as representações textualizadas constroem de maneira informal e, às vezes, caricatural a identidade das mulheres que estão conquistando posições de destaque no mundo da política, por meio da descrição sumária de acontecimentos relatados, resvalando para construções de realidades genéricas e abstratas. As mulheres são descritas principalmente pela aparência e pelos domínios sociais ocupados, cargos políticos e posições de destaque.
Visualmente, a primeira página da reportagem (do lado esquerdo) traz, em sua configuração, não só uma fotografia que toma praticamente todo o espaço da reportagem, mas também um chapéu e um parágrafo introdutório; as páginas (mais duas) que se seguem trazem textos e fotos de mulheres que ocupam cargos de destaque na América Latina.
O símbolo que indica sexo feminino @& traz, em seu interior, imagens em plano frontal/zoom de mulheres que se destacam em cargos políticos em vários países da América do Sul (Argentina, Chile, Colômbia e Uruguai), sob o título “Mulheres em Alta”, que já evidencia um pressuposto (por que as mulheres estavam em baixa?). Na legenda da foto, tais mulheres, que ora estão sorrindo, ora atentas, são designadas “Estrelas”. O plano frontal sugere certa proximidade das mulheres com o observador/leitor do texto, uma interação solidária, já que os olhares encontram-se no mesmo nível, ou seja, há uma construção de olhar demanda (KRESS; VAN LEEWEN, 1996). Vale ressaltar que todas as imagens da reportagem estão construídas desta forma: símbolo vermelho com fotos, em plano frontal, dos rostos das mulheres que estão representadas no texto.
Essas mulheres são construídas metaforicamente como “estrelas”, isto é, astros luminosos que possuem as mesmas posições relativas na esfera política, e quando observadas possuem traços semelhantes: figuras eminentes, jovens e bonitas. No entanto, vale ressaltar que a designação destas mulheres como “estrelas” sugere uma certa desvalorização, já que tais mulheres não estão sendo notícia porque pertencem ao domínio do show business, mas ao domínio político. Pode-se dizer que seja uma designação sexista, já que os homens políticos não são nomeados desta forma.
A construção do chapéu já orienta o observador/leitor para tal interpretação: “Depois da Colômbia, uma “onda feminina” aproxima-se do poder na Argentina. Já presente no Uruguai, Paraguai e no Brasil, ela pode chegar ao Chile ”. Os ativadores de pressupostos, no chapéu, (depois, já, presente, chegar) associados à metáfora da “onda”, implicam que a relação entre mulher e poder político não é - ou era - uma prática histórica tão “comum”. Pode-se dizer que, neste momento, a prática jornalística se funde à historicidade ou às construções míticas, tácitas, trazendo à tona a voz do outro, das representações sócio-culturais hegemônicas. Isso se verifica, por exemplo, na seguinte passagem do parágrafo introdutório:
(1) “A mulher e o poder político não costumam formar um par freqüente, principalmente em salões da América Ibérica, onde a elite patriarcal durante muito tempo impôs seus passos e suas vontades...” e “que as mulheres estão, cada vez mais, ganhando destaque político”.
Neste fragmento, estão, entre outras, pressupostas as seguintes construções ideológicas que nos permitem participar deste acontecimento histórico intermediado:
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a) Era possível somente a relação entre homem e poder político.
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b) Antigamente a elite patriarcal impunha certos valores e normas, hoje amulher já pode ter vontades aceitas.
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c) As mulheres não tinham posição de destaque no espaço político, mashoje estão ganhando espaço.
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d) Esse evento comportamental não é usual, não passa de uma novidade.
O texto, através de assertivas e pressupostos, deixa explícita a questão emergencial de que as mulheres vêm ganhando destaque, “embora na maioria das vezes, ainda pela mão dos homens”. O pressuposto tácito é que as mulheres por si só não conseguiriam atingir tais objetivos e posições políticas. Pode-se dizer que tais proposições e escolhas lingüísticas nos levam a um discurso sexista. O processo material “vêm ganhando” torna a mulher antes uma beneficiária do que uma agente da ação, o que é enfatizado pela passagem “na maioria das vezes, ainda pela mão dos homens ”. O pressuposto centrado na expressão “sempre foi assim” reforça a crença de que a relação entre mulher e poder político sempre foi nula.
O evento mulheres em cargos de destaque na política é construído e distribuído ao leitor/observador de forma engajada. Veremos agora algumas representações atribuídas a estas mulheres, trazendo à tona pressupostos ora sexistas ora aparentemente transformadores. Aparentemente transformadores, uma vez que “marcar a presença das mulheres nas diferentes instâncias do político, dele fazer parte com direito de expressão e decisão, é um grande passo para mudanças mais profundas”, nas relações sociais/sexuais/ de sexo (SWAIN, 2005, p. 349).
No tópico Argentina, o texto atribui à Kirchner o papel central de tal forma que o torna mais evidente do que propriamente as mulheres, através principalmente da posição inicial tópica e do verbo implicativo “surpreendeu”, que pressupõe uma atitude inesperada daquele presidente, reforçado ainda pelo ativador “ainda mais”. As atribuições ao ministro (todo-poderoso) associadas à ação (colocar em seu lugar) reforçam o ideário discursivo “na maioria das vezes, ainda pela mão dos homens”.
Enquanto Kirchner é representado como aquele responsável pelas ações ousadas e surpreendentes para um país que viveu uma longa e dura história de ditadura, é sobre ele que recai a máxima da responsabilidade (designa, coloca) e de julgamentos (bom-mocismo político, grande ousadia, novas ministras não passam de marionetes). As mulheres são descritas pela idade (o ministro não foi representado pela idade), pelos papéis sociais (economista, embaixadora, chefes) e pelas posições partidárias (ex-militante esquerdista, soldado kirchnerista). É curioso observar que, embora o texto trate das mulheres em posição de destaque na política Argentina, a referência à história política da Argentina toma relevo pela atitude do presidente ousado, que busca consolidação, “colocando” as mulheres em cargos de destaque. A mulher política, como se pode perceber, só existe na medida em que se consolida o outro: o sujeito universal masculino, a referência evidente.
O texto traz inúmeras avaliações sobre as mulheres, sobre o país (novas ministras não passam de marionetes, estrela ascendente da política, pátria do tango, dança das mulheres), e principalmente sobre a atuação de Evita (uma carismática, ex-dançarina Isabelita Perón, cujo governo de triste memória, foi ante-sala da ditadura) de forma sexista e negativa, secundarizando e reforçando o ideário fragilizado da relação entre mulher e poder público. Metaforizada na figura da marionete e do soldado, a representação atribuída, no texto, às mulheres políticas argentinas centra-se na incapacidade e na falta de competência de agirem de forma autônoma. Seguem exemplos abaixo:
(2) “Nestor Kirchner surpreendeu ao demitir [...] o seu todo-poderoso ministro da Economia, Roberto Lavagna e colocar em seu lugar a economista Felisa Miceli, 51 anos, que até agora chefiava o Banco de La Nación Argentina.”
“Kirchner surpreendeu ainda mais ao designar Nilda Garré, 55 anos, atual embaixadora Argentina na Venezuela e militante de direitos humanos nos anos 70, para chefiar a pasta da Defesa.”
No tópico Chile, o texto alterna informações acerca do acontecimento relatado (os ventos de mudança atravessaram a Cordilheira dos Andes e já alcançaram o Chile) e memória/tradição histórica (um dos países mais conservadores). Tais proposições pressupõem a impossibilidade de se eleger à presidência do país uma mulher. Diferentemente da representação discursiva Argentina, a ênfase está na disformidade entre o conservadorismo e a construção positiva e forte de uma mulher com pretensão ao cargo mais elevado da política (médica, 54 anos, militante socialista, filha de brigadeiro legalista que morreu na prisão durante a ditadura de Pinochet, ministra da defesa, firmeza e profissionalismo). Aqui, não se tematiza uma beneficiária, mas uma agente, responsável pelas ações (conquistou, dirigiu a pasta). Talvez essa construção identitária positiva e não sexista se diferencie das mulheres políticas argentinas pelo fato de ser uma novidade no Chile tal proximidade da mulher com o poder.
Vale ressaltar que o pressuposto básico é que elas não estão no poder, mas estão conquistando aos poucos esta proximidade com o poder. O que de fato volta ao pressuposto inicial: “essa mudança é uma onda, ventos, sem antecedentes tradicionais/míticos, mas que podem ser construídos agora, neste presente histórico”. Há apenas uma relação de proximidade com o poder.
Já no tópico Colômbia, o texto inicia explicitando que a relação de proximidade entre poder público e mulheres é tradição - já virou quase tradição - implica que não é uma relação concreta, determinística, mas de contigüidade. O relato do evento colombiano se constrói na narrativa do país pioneiro, tradicional, que teve seu início em 1991, com a designação de Noemi Sanín para o ministério das Relações Exteriores. O destaque central aqui está no pioneirismo (depois de Noemi, tudo mudou) e na posição adquirida por Noemi, realçada pelos atributos (bela, primeira mulher a ocupar tal cargo na América Latina).
Embora pouco relevante para a construção do evento mulheres em cargo de poder, o atributo da aparência, no texto, reforça uma crença tradicional ao afirmar que “Noemi não era apenas bonita, mas competente, embora tenha fracassado em suas tentativas de chegar à Presidência ” (traz o pressuposto de que mulher bonita não combina com competência, inteligência e política, embora possa tentar). As avaliações e comentários arrolados no texto recaem, como já vimos, no discurso do pioneirismo (depois de x, teve mais duas mulheres na chancelaria, atual presidente nomeou 6 mulheres para o Ministério de 16 pastas).
Vale destacar que, embora haja o pioneirismo que sustente a proximidade da relação entre mulher e poder público na Colômbia, ao falar das atitudes do atual presidente em relação a isso, o texto deixa em aberto um julgamento, que, por si só, é bastante interessante porque sugere que o presidente nomeou seis mulheres para se mostrar liberal para a sociedade, não porque ele o seja, muito pelo contrário, “apesar de politicamente conservador, mostrou-se liberal em questões de igualdade de gêneros”. Percebe-se que a incorporação da igualdade dos gêneros, neste caso, baseada na construção da mulher como ser político, não passa de uma estratégia de ação política envolta pela idéia de diversidade, mas que não foge efetivamente do molde binário, sexista.
No tópico Mercosul, após uma rápida descrição de participações femininas na política no “resto do mundo”, o texto realça mais uma vez os títulos, credenciais e afiliações institucionais e partidárias das mulheres que ocupam posição de destaque na política:
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a) Paraguai: “a chancelaria é ocupada por uma mulher, Leila Rachid, desde a posse do presidente”;
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b) Uruguai: “a veterana militante de direitos humanos Azucena Bernutti, 75 anos, tornou-se ministra da Defesa do governo esquerdista”;
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c) Brasil: “primeira ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, não deixou saudades; ascensão de Dilma Rousseff à Casa Civil e sua defesa de uma política econômica menos ortodoxa do que a defendida pelo ministro da Fazenda, Antônio Palocci, traz as mulheres a primeira vez à linha de frente...”.
Alguns ativadores de pressupostos que revelam a ênfase mais uma vez no discurso do pioneirismo e de atributos negativos acerca de ações políticas de mulheres.
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a) desde a posse => o marcador temporal pressupõe que antes não era ocupado por mulher;
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b) em tornou-se ministra => o verbo de mudança pressupõe uma transformação;
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c) não deixou saudades => o verbo pressupõe que o seu governo foi ruim;
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d) menos ortodoxa => o léxico pressupõe que a ministra é mais liberal que o atual ministro;
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e) primeira vez => o marcador temporal pressupõe que nunca outra mulher ocupou a pasta da Casa Civil.
3 REPRESENTAÇÃO DOS ATORES SOCIAIS
Levando em consideração as questões acima arroladas, será realizada uma breve representação dos papéis que são atribuídos aos atores sociais no texto “Mulheres em Alta”, com base na proposta de Theo van Leeuwen (1997), em que os atores sociais podem ser representados de duas formas: exclusão ou inclusão. Pode-se dizer que, no texto analisado, os atores sociais centrais estão sempre representados de forma inclusiva, embora de diferentes formas. Para Van Dijk (1997, p. 149) “há tendência para descrever as mulheres de maneira diferente dos homens, cuja aparência é considerada menos relevante, por exemplo, em notícias de teor político ou econômico”.
As mulheres políticas, por exemplo, são referidas como indivíduos, singulares, determinadas com identidades especificadas através não só da nomeação, mas também das funções que exercem na política. Segundo Theo van Leeuwen (1997, p. 194), “jornais dirigidos à classe média tendem a individualizar as pessoas pertencentes às elites”. No texto analisado, é perceptível que as mulheres descritas são determinadas não só pelo uso de nomes próprios e sobrenomes, mas também pelos títulos (ministra, embaixadora, chanceler), cargos (médica, economista), afiliações (militante). São classificadas ainda através da faixa etária (o que não ocorreu com os homens políticos citados), pela identificação relacional (filha de X, ministra da defesa do y, ministra do governo y) e ainda pela aparência física. Vale ressaltar que a identificação pela aparência física não ocorreu com os homens políticos citados, o que pode resvalar para a construção de uma aparente inocência empírica que não condiz com o teor político da reportagem.
Os homens políticos, quando citados e descritos, são representados de forma ativa, uma vez que são responsáveis pelo ato de se colocar mulheres em cargos elevados. Dessa forma, são determinados pela nomeação de nomes próprios e sobrenomes e, principalmente, pela categorização funcional dos cargos públicos (presidente, atual presidente). Diferentemente das mulheres, não são identificados nem de forma classificatória e muito menos física; apenas um exemplo de identificação relacional referente ao ministro da Economia, que foi demitido pelo presidente da Argentina (seu todo-poderoso ministro da economia).
É interessante como o evento mulheres em cargos de destaque na política é representado no texto, pressupondo antes uma prática comportamental do que propriamente prática política. O evento é designado como tumulto, perturbação “onda feminina, dança das mulheres com o poder, os ventos de mudança, novidade, quase tradição, participação feminina na política, onda feminina rumou, aportou pela primeira vez, a última e mais decisiva manifestação desse fenômeno, desejo de minorar a desigualdade de gêneros”. Percebe-se que o evento é representado por metáforas naturais (onda, ventos de mudança), nominalizações (dança, participação, manifestação, desejo de minorar). Segundo van Leewen (1997, p. 181), tais categorias lingüísticas sugerem processos de exclusão por segundo plano, ou seja, quando “os atores sociais excluídos podem não ser mencionados em relação à atividade, mas são mencionados algures no texto, e nós conseguimos inferir com alguma certeza quem eles são. Eles não estão tanto excluídos, mas sim pouco visíveis, empurrados para segundo plano”. O que se pode postular assim é que tanto o evento quanto as mulheres representadas no texto são colocados em segundo plano, seja pela representação do marionete, seja pelo discurso do pioneirismo, conservadorismo ou da novidade.
Vale destacar que, na descrição das mulheres, algum tipo de poder sempre é informado, mas não há nenhuma avaliação associada às titulações. As mulheres são ainda representadas através dos processos mentais e relacionais (é, vem ganhando, estão ocupando, tornou-se, não passa de), isso implica que elas apenas “existem”, não detêm o controle de suas ações. Embora as mulheres ocupem cargos de poder e risco não são representadas como agentes de ações. Debatendo sobre a noção de diferença sexual como a principal causa da desigualdade, Swain (2005, p. 345) afirma que “os códigos políticos criam cidadãs de segunda categoria, nomeadas mulheres, a partir de sua sexualização, a partir de uma definição atrelada a seu corpo e a seu sexo biológico”. Essa representação fica evidente nas avaliações, apreciações e julgamentos ativados na voz textual que veremos a seguir mais detalhadamente.
4. ANALISANDO AS AVALIAÇÕES: DO JULGAMENTO E APRECIAÇÕES AO ENGAJAMENTO
Volto-me nesta seção para a questão da valoração na reportagem, observando as diferentes formas de se constituir perspectivas (WHITE, 2004; MARTIN, 2006). White (2004) apresenta três categorias para a análise da valoração: atitude, engajamento e graduação. A forma como os textos ativam construções positivas e negativas e como essas construções são negociadas pode ser descritas em três campos semânticos: julgamento, afeto e apreciação. Essas atitudes podem ser ativadas de forma direta ou indireta e ainda se interrelacionarem. Enquanto o afeto é indicado de forma direta, o julgamento (comportamento, regras e moralidade) e apreciação (valor das coisas, estética, critérios e avaliações) são construídos institucionalmente (MARTIN, 2006). Na voz textual, é possível perceber engajamentos e atitudes em relação aos fatos e acontecimentos. Faremos uma breve análise destas categorias.
A finalidade discursiva da reportagem de notícias é a apresentação dos acontecimentos sociais em si, fatos, mas não é isso o que se verifica neste texto. Há julgamentos e apreciações explícitas do evento “onda feminina”, que são colocados como pano de fundo para as análises pormenorizadas do produtor do texto, através de discursos já-ditos que reforçam a credibilidade, corporeidade e sustentação de suas representações discursivas. O fato é que o texto se torna bivocal: na voz do produtor do texto ressoa outras vozes que compartilham da mesma orientação valorativa, por meio de relação de concordância.
Há um movimento de interpelação e enquadramento valorativo crítico do produtor do texto que leva à construção de um discurso apreciativo, de forma a desautorizar ou mesmo desvalorizar a presença de mulheres em cargos políticos de destaque. Há um uso bastante acentuado de operadores argumentativos de refutação (mas, embora, apesar de) que deixa evidente tal construção discursiva sexista.
Pode-se dizer que a voz textual opera de forma ambígua uma vez que, ao mesmo tempo, endossa, e distancia-se, utilizando a voz de outros. Inicialmente afirma para em seguida refutá-las, mas de forma, muitas vezes, distanciada.
Exemplos de representações discursivas de outros que endossam o engajamento na voz textual, pressupondo confiabilidade e plausibilidade, uma proposição aceita por muitos: mas, como dizia uma antiga canção, “o gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente”; declarou-se “soldado kirschnerista”.
Outro exemplo de engajamento está na atribuição de vozes: até por isso os críticos já estão dizendo que as novas ministras não passam de marionetes. Como bem aponta White (2004), as formulações de endosso alinham a voz textual com vozes conhecedoras do assunto de forma convincente. O engajamento da voz textual com essas outras vozes se constrói no contraponto ao fato de existirem mulheres que se destacam em cargos de poder. O contraponto se dá de forma bastante apreciativa e impactante (“é surpreendente que a médica”; “Nestor Kirchner surpreendeu”)
Alguns fatos relacionados ao evento também são apreciados, muitas vezes, de forma negativa, principalmente, por meio do uso de determinadas expressões e léxicos avaliativos, enquadrando a voz textual: grande ousadia, mais truculenta das ditaduras, e também que a pátria do tango, governo de triste memória, ante-sala da ditadura, a projeção de Bachelet foi tamanha, no resto do mundo a participação feminina teve forte impulso, a golpes de dama de ferro, no arcaico Paraguai.
A voz textual expande-se, trazendo à tona construções assertivas com valorações afirmativas com tom de veracidade: na maioria das vezes, Felisa de fato, pode ser, pelo menos a chancelaria.
A contração dialógica é enfatizada na maior parte do texto, seja através do movimento de refutação ora negando, ora contrariando. Ao falar, por exemplo, de mulheres que ocuparam cargo político no Brasil, o texto traz a seguinte refutação “Zélia não deixou saudades”, rejeitando talvez essa onda de mulheres no poder ou apresentando-a como insustentável, já que em nenhum momento do texto tal evento é descrito de forma ativa e positiva, pressupondo talvez que seja inaplicável. Ou mesmo julgando socialmente que tal onda foge à normalidade (“mulher e poder público não costumam formar um par freqüente”), é surpreendente principalmente em países da América do Sul, notadamente reconhecidos pelo comportamento sexista.
Construções de justificativa/refutação são recorrentes quando a voz textual contrapõe-se ao evento, por meio de opiniões negativas, levando o leitor a interpretar que seja algo inaplicável: Noemi não era apenas bonita/ mas refutada: mas competente embora tenha fracassado em suas tentativas de chegar à presidência; apesar de politicamente conservador / mostrou-se liberal em questões de igualdade de gêneros.
Os leitores são lembrados, através de construções contrastivas de fatos históricos e atuais que envolvem mulheres em cargos públicos com passagens negativas: mas é preciso lembrar que, mas essa é outra história, para se ter uma idéia, mas se no Chile é novidade, vê-se que até os sócios menores, também foram tomados pelo desejo de minorar, ainda que tardia e parcialmente, e desta vez não haverá boleros.
Através de uma construção intertextual, as vozes da história são recontextualizadas para legitimar o engajamento da voz textual: “outra situação delicada também devido ao passado ditatorial dos militares uruguaios; e desta vez não haverá boleros”.
Essa construção discursiva baseada no imaginário da história pode servir aqui para excluir ou diminuir a importância da mulher como ser político, reforçando o lócus instituído sexista.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Voltando então a citação de Fairclough (2001) acerca da relação entre pressuposição e modalidade, pode-se dizer então que os pressupostos ativados no texto associados às construções valorativas, quer sejam de engajamento, julgamento e apreciação, tornam o evento “mulheres em alta” uma perturbação periódica desenfreada, com antecedentes, muitas vezes, negativos, para a constituição do poder público. A voz textual da forma como se configura oferece imagens e apreciações para a construção de realidades depreciativas em torno da representação do evento “mulheres em cargo de poder”, construindo “expectativas contraditórias” (GREE, 1999). Como pode ser observado nas seguintes passagens: desta vez não haverá boleros; mas essa é outra história, Zélia não deixou saudades, governo de triste memória, ante-sala da ditadura, mulheres vem ganhando destaque, embora na maioria das vezes, ainda pela mão dos homens. Tais representações discursivas podem gerar a reprodução social de que “o gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente”. Pode-se postular que o pressuposto central deste texto esteja no fato de que se mulher fosse gado seria mais fácil controlá-la.
Para Theo van Leewen (1997), essas construções discursivas não passam de conhecimentos míticos, ou seja, conhecimentos, crenças que se constituem nas mais diversas práticas socioculturais.
A voz textual se concretiza aqui em um jogo dúbio. Através de uma interação dialógica, reconhece-se uma posição, para em seguida ser refutada, rejeitada.
Esse jogo, nem sempre aparente, se constrói, pode-se dizer, em função do público preferencial da mídia jornalística em que está presente a reportagem: uma revista semanal de variedades destinada à classe média brasileira, reconhecida tacitamente como sexista.
A voz textual refutadora insiste em lembrar ao leitor que a história pode-se repetir. Como argumenta Barbosa (2003, p. 122), citando Gregolin (2002), a mídia utiliza a estratégia discursiva característica da história para, através de textos, trazer “uma memória social construída entre a temporalidade do mítico e a cronologia do histórico”. Tal estratégia pode ser evidenciada no texto a partir do seguinte fragmento: “e desta vez não haverá boleros”. Tecendo considerações acerca da mídia, Fisher (2001, p. 588) afirma que “a mídia é um lugar privilegiado de criação, reforço e circulação de sentidos, que operam na formação de identidades individuais e sociais, bem como na produção social de inclusões, exclusões e diferenças”.
Enfim, a reportagem (ou seria um artigo de opinião?) “Mulheres em Alta” mostra-se antes como um instrumento de controle disciplinar, impondo, claro, de forma obscura, a utilidade das mulheres, do que propriamente um processo de “desconformação” de ‘corpos de mulheres’ em ‘corpos de políticos’ (RODRIGUES, 2005).
REFERÊNCIAS
- BARBOSA, P. L. N. O papel da imagem e da memória na escrita jornalística da história do tempo presente. In: GREGOLIN, M. R Discurso e mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003. p. 111-124.
- FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Coord. e pref. à ed.bras. de Izabel Magalhães. Trad. de Izabel Magalhães et al. Brasília: Editora UnB, 2001.
- ______. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.
- FISHER, R. M. B. Mídia e educação da mulher: uma discussão teórica sobre modos de enunciar o feminino na TV. Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 2, p. 586-599, 2001.
- GREER, G. The whole woman. London: Doubleday, 1999.
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- MOURA, H. M. M. Significação e contexto: uma introdução a questões de semântica e pragmática. Florianópolis: Ed. Insular, 1999.
- RODRIGUES, A. Lugar de mulher é na política: um desafio para o século XXI. In: SWAIN, Tânia; MUNIZ, Diva do Couto (Orgs.). Mulheres em ação: práticas discursivas, práticas políticas. Florianópolis: Ed. Mulheres; Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2005.
- SWAIN, T. N. Mulheres, sujeitos políticos: que diferença é esta? In: SWAIN, Tânia; MUNIZ, D. C. (Orgs.) Mulheres em ação: práticas discursivas, práticas políticas. Florianópolis: Ed. Mulheres; Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2005.
- VAN DIJK, T. Semântica do discurso e ideologia. In: PEDRO, E. M. P. (Org.). Análise Crítica do Discurso: uma perspectiva sociopolítica e funcional. Lisboa: Ed. Caminho, 1997. p. 105-168.
- VAN DIJK, Teun. Discourse, power and acces. In: Texts and practices: reading in critical discourse analysis. London: Routledge, 1996.
- VAN LEEUWEN, T. A representação dos actores sociais. In: PEDRO, E. M. P. (Org.). Análise Crítica do Discurso: uma perspectiva sociopolítica e funcional. Lisboa: Ed. Caminho, 1997. p. 169-222.
- WHITE, P. Valoração: a linguagem da avaliação e da perspectiva. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 4, n. esp: “Análise Crítica do Discurso” org. por Carmen Rosa Caldas-Coulthard e Débora de Carvalho Figueiredo, p. 178-205, 2004.
ANEXO
MULHERES EM ALTA (Cláudio Camargo/Revista ISTOÉ. 07/12/2005)A mulher e o poder político não costumam formar um par freqüente, principalmente em salões da América Ibérica, onde a elite patriarcal durante muito tempo impôs seus passos e suas vontades com a mesma crueza com que o gaúcho tangia o gado. Mas, como dizia uma antiga canção, “o gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente”. Tão diferente que as mulheres estão cada vez mais, ganhando destaque político na região - embora na maioria das vezes ainda pela mão dos homens. Na Argentina, o presidente Nestor Kirchner surpreendeu ao demitir, na segunda-feira 28, o seu todo-poderoso, ministro da Economia, Roberto Lavagna, e colocar em seu lugar a economista Felisa Miceli, 51 anos, que até agora chefiava o banco de La Nacíon Argentina. Kirchner surpreendeu ainda mais ao designar Nilda Garré, 55 anos, atual embaixadora Argentina na Venezuela e militante de direitos humanos nos anos 70, para chefiar a pasta da Defesa.
Nestes tempos de bom-mocismo político, é uma grande ousadia colocar uma ex-militante esquerdista para comandar Forças Armadas ainda marcadas pela mais truculenta das ditaduras, militares do Cone Sul. Até por isso os críticos já estão dizendo que as novas ministras não passam de marionetes do presidente - Felisa, de fato, declarou-se uma “soldado kirchnerista”-, que busca, com estas e outras mudanças no gabinete, consolidar sua liderança. Pode ser. Mas é preciso lembrar que por trás de Kirchner está sua mulher, Cristina Fernández, estrela ascendente da política, eleita senadora pela Província de Buenos Aires em outubro passado e já tida como presidenciável. E também que a pátria do tango foi a precursora da dança das mulheres com o poder na região: nos anos 40, Evita Perón, uma carismática, primeira-dama, se tornou a maior líder de massas do país. E em 1974, a Argentina foi o primeiro país das Américas a ter uma mulher na Presidência, a ex-dançarina Isabelita Perón, cujo governo, de triste memória, foi a ante-sala da ditadura. Mas essa é outra história.
Os ventos de mudança atravessaram a Cordilheira dos Andes e já alcançaram o Chile, considerado um dos países mais conservadores da América latina, em termos comportamentais. Para se ter uma idéia, o divórcio só foi aprovado naquele país no ano passado. Por isso, é surpreendente que a médica Michele Bachelet, 54 anos, esteja prestes a se tornar a primeira mulher a ocupar o Palácio de La Moneda (sede da Presidência). Militante socialista, Bachelet é filha de um brigadeiro legalista que morreu na prisão durante a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990). Como ministra da Defesa do presidente Ricardo Lagos, ela conquistou a confiança das Forças Armadas pela firmeza e profissionalismo com que dirigiu a pasta. A projeção de Bachelet foi tamanha que ela foi eleita à candidata da Concertación, a coalização de socialistas e democratas-cristãos que governa o Chile desde 1990.
Mas se no Chile é novidade as mulheres estarem próximas do poder, na Colômbia já virou quase tradição. Tudo começou em 1991, quando a bela Noemi Sanín se tornou ministra das Relações Exteriores do governo de César Gaviria, a primeira mulher a ocupar esse cargo na América Latina. Em sua passagem pelo Brasil, em 1993, ela deixou embasbacado o então presidente Itamar Franco. Noemi não era apenas bonita, mas competente, embora tenha fracassado em suas tentativas de chegar à Presidência (1998 e 2002). Depois de Noemi, a Colômbia teve mais duas mulheres na chancelaria (Maria Emma Mejía, entre 1996 e 1998, e a atual, Carolina Barco Isakson, filha do ex-presidente Virgilio Barco). E o atual presidente, Álvaro Uribe, que tomou posse em 2002, apesar de politicamente conservador, mostrou-se liberal em questões de igualdade de gênero ao nomear seis mulheres para o Ministério de 16 pastas. Entre elas, María Lucía Ramírez, a primeira ministra da Defesa da Colômbia, que renunciou em 2003.
No resto do mundo, a participação feminina na política teve forte impulso a partir da convulsão cultural dos anos 60. Sirimavo Bandaranaike, do Sri Lanka, foi a primeira mulher a virar chefe de governo, em 1960, seguida por Indira Gandhi, em 1966 em Israel. Depois, a golpes de dama de ferro, a onda feminina atingiu o Reino Unido em 1979, com Margaret Thatcher, e chegou à Noruega em 1981, com Gro Harlem Brundtland. Em seguida, rumou para a Ásia, com Corazón Aquino nas Filipinas em 1986 e aportou pela primeira vez na América Latina em 1990, com Violeta Chamorro na Nicarágua. A última e mais decisiva manifestação desse fenômeno ocorreu neste ano na Alemanha, quando Angela Merkel se tornou a primeira chanceler (primeiro-ministro) daquele país.
Voltando ao Mercosul, vê-se que até os sócios menores, Uruguai e Paraguai, também foram tomados pelo desejo de minorar, ainda que tardia e parcialmente a desigualdade de gêneros na política. No arcaico Paraguai, pelo menos, a chancelaria é ocupada por uma mulher, Leila Rachid, desde a posse do presidente Nicanor Duarte Frutos, em 2003. E, no Uruguai, a veterana militante de direitos humanos Azucena Bernutti, 75 anos, tornou-se ministra da Defesa do governo esquerdista de Tabaré Vasquez - outra situação delicada também devido ao passado ditatorial dos militares uruguaios. E no Brasil, onde a primeira ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, não deixou saudades, a ascensão de Dilma Roussef à Casa Civil e sua defesa de uma política econômica menos ortodoxa do que a defendida pelo ministro da Fazenda, Antônio Palocci, traz as mulheres pela primeira vez à linha de frente da política do governo. E, desta vez, não haverá boleros.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Set 2024 -
Data do Fascículo
May-Aug 2007
Histórico
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Recebido
13 Fev 2007 -
Aceito
28 Jun 2007