Acessibilidade / Reportar erro

A (CO)CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DE EVENTOS MEMORIALÍSTICOS EM ENTREVISTAS ORAIS

The Discursive (Co)Construction of Memorialistic Events in Oral Interviews

La (co)construcción discursiva de eventos memorialísticos en entrevistas orales

Resumo

Examina-se nesta pesquisa a estrutura de eventos memorialísticos sobre o trabalho artesanal ou manufatureiro em seis entrevistas orais com idosos de 66 a 84 anos. A fundamentação teórica explora conexões teórico-conceituais, assumindo o diálogo como uma propriedade inata da linguagem humana e a suposição de que a topicalização discursiva impacta diretamente a construção de eventos memorialísticos, determinando papéis para o entrevistador e o entrevistado. Os resultados indicam que, mesmo sem experiência direta com o trabalho artesanal ou manufatureiro, o entrevistador emerge como o principal coautor na construção das lembranças narradas.

Palavras-chave:
Memória; Linguagem; Eventos memorialísticos; Processamento discursivo; Entrevistas orais

Abstract

We examine in this research the structure of memorial events about artisanal or manufacturing work in six oral interviews with elderly aged 66 to 84. The theoretical foundation explores theoretical-conceptual connections, assuming dialogue as an innate property of human language and the assumption that discursive topicalization affects directely the construction of memorial events, determining roles for the interviewer and the interviewee. The results indicate that, even without direct experience with artisanal or manufacturing work, the interviewer emerges as the primary co-author in shapping the narrated memories.

Keywords:
Memory; Language; Memorialistic events; Discursive processing; Oral interviews

Resumen

Esta investigación examina la estructura de eventos memoralísticos sobre el trabajo artesanal o manufacturero en seis entrevistas orales con personas mayores de 66 a 84 años. La fundamentación teórica explora conexiones teórico-conceptuales asumiendo el diálogo como propiedad innata del lenguaje humano y el supuesto de que la topicalización discursiva impacta directamente la construcción de eventos memoralísticos, determinando roles del entrevistador y del entrevistado. Los resultados indican que, incluso sin experiencia directa con trabajos artesanales o manufactureros, el entrevistador emerge como coautor principal en la construcción de las memorias narradas.

Palabras clave:
Memoria; Lenguaje; Eventos memorialísticos; Procesamiento discursivo; Entrevistas orales

1 INTRODUÇÃO

Neste artigo, abordo a interação verbal em entrevistas dedicadas à recordação de atividades artesanais ou manufatureiras. O objetivo é examinar a organização dos eventos rememorados nos diálogos, considerando que, quando o entrevistador opta por um tópico, os participantes opinam sobre ele e, juntos, constroem e renovam as cenas, indiciando um evento. Para compreender o que se passa nesse contexto específico, fundamento-me em Benveniste (1995BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral I. Trad. de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995., 1989), Candau (2014CANDAU, J. Memória e identidade. Trad. de Maria Leticia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2014.), Edelman e Tononi (2000EDELMAN, G. M.; TONONI, G. A Universe of Consciousness: How Matter Becomes Imagination. New York: Basic Books, 2000.) e Jubran (2015JUBRAN, C. S. Tópico discursivo. In: JUBRAN, C. S. (org.). A construção do texto falado. São Paulo: Contexto, 2015. p. 85-126. (Gramática do português culto falado no Brasil, v. 1).).

Na recordação da experiência laboral, realizam-se operações globais de construção de eventos ou eventivação, nos quais os participantes da entrevista se constroem como um EU e um TU. Focando na operação de topicalização discursiva, observo como esses participantes fazem emergir a memória dessas práticas, assumindo que a topicalização discursiva impacta diretamente a construção dos eventos e determina papéis para entrevistador e entrevistado.

Em paralelo, avalio a pertinência da teoria de Edelman e Tononi (2000EDELMAN, G. M.; TONONI, G. A Universe of Consciousness: How Matter Becomes Imagination. New York: Basic Books, 2000.) segundo a qual o entrevistado revisita cenas de seu passado. A atualização das cenas leva em consideração a história de vida, a experiência incorporada, a construção cognitiva de um mundo aprendido e vivido e a identidade que se forma ao longo da vida do indivíduo, integrando uma comunidade representativa de uma identidade social. Além disso, assumo que os entrevistados reconstroem uma narrativa incorporada de seu passado artesanal ou manufatureiro, refletindo em expressões linguísticas, por exemplo, características compartilhadas que expressam a identidade coletiva.

Na construção discursiva da memória, analiso a formação e a reformulação de eventos através de entrevistas conduzidas com o método de História Oral. Nesse processo, destaco a reconstituição de cada entrevistado como protagonista de sua história, um agente social que compartilha subjetivamente suas experiências. Assim, mesmo que o indivíduo que viveu ou testemunhou os eventos seja geralmente o foco central na História Oral, examino se há funções distintas para entrevistador e entrevistado como coautores do evento. Posto isso, o problema concentra-se na esfera da formação e da reformulação de eventos visando materializar discursivamente um passado remoto. Sobre a delimitação do problema, analiso o papel da evidenciação discursiva como um fenômeno emergente de natureza discursivo-cognitiva na interação humana.

O estudo se justifica pela necessidade de aprofundar a compreensão da construção conjunta de eventos memorialísticos no âmbito da análise discursiva. Através da evidência colaborativa de informações, os participantes estruturam eventos que revelam vivências de quem presenciou acontecimentos ou foi parte deles no contexto da influência deliberada de um entrevistador que busca depoimentos sobre como tudo se desenrolou. Dito isso, verifico implicitamente a eficácia do método de História Oral para a coleta de dados, pois o método pode distorcer resultados em vez de refletir a realidade vivida. Em síntese, ao considerar os dados que compõem o conjunto de informações, analiso o papel da evidenciação discursiva em um cenário de interação que envolve a formação e reformulação de eventos memorialísticos no contexto do gênero da entrevista oral.

2 EXPERIENCIAÇÃO E MEMÓRIA NA EMERGÊNCIA INTERACIONAL

Na perspectiva benvenistiana, a linguagem é incondicionalmente importante para que o homem viva e se comunique. Não se atinge “[...] o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber a existência do outro. É um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem” (Benveniste, 1995BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral I. Trad. de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995., p. 285).

Enquanto sujeito social, o ser humano interage com os outros por meio da linguagem, estabelecendo-se como sujeito e adquirindo consciência de si mesmo por meio da comparação. Isso implica referir-se a si mesmo como EU quando se dirige a um TU na interlocução (Benveniste, 1995BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral I. Trad. de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995.). Ao se tornar um sujeito (um EU em relação a um TU) em um contexto de discurso específico, o ser humano utiliza a linguagem e a ativa; nesse processo interativo, ele dá origem à enunciação.

Este estudo se concentra na abordagem teórica da interação entre EU e TU como uma atividade discursiva que constrói significado, pois a linguagem está intrinsecamente relacionada ao contexto, às circunstâncias de produção e, em última instância, à dimensão social. Nesse contexto, os indivíduos se envolvem em atividades sociocomunicativas, interagindo entre si (Koch, 2009KOCH, I. G. V. Argumentação e linguagem. 12. ed. São Paulo: Cortez, 2009., 2010). Logo, considerando que a enunciação é a maneira como a linguagem é posta em ação, ao utilizar os elementos formais da enunciação, o locutor se declara como tal, coloca o outro em relação a si e estabelece a instância de discurso, criando uma “[...] forma sonora que atinge um ouvinte e que suscita uma outra enunciação de retorno” (Benveniste, 1989BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral II. Trad. de Eduardo Guimarães et al. Campinas: Pontes, 1989., p. 84).

Durante a interação, o ser humano age em conjunto com seu(s) par(es). Nesse processo, o EU e o TU se formam e se expressam. Essa interação confirma o que Benveniste (1989BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral II. Trad. de Eduardo Guimarães et al. Campinas: Pontes, 1989., p. 93) argumenta sobre a linguagem: esta “[...] é para o homem um meio, na verdade, o único meio de atingir o outro homem, de lhe transmitir e de receber dele uma mensagem. Consequentemente, a linguagem exige e pressupõe o outro. A partir daí, a sociedade é dada com a linguagem”.

Ao desenvolver a linguagem em contextos sociais e culturais, o ser humano adquire as ferramentas linguísticas necessárias para expressar sua capacidade de se situar simbolicamente em tempos e espaços de enunciação. Ademais, a formação do indivíduo como sujeito ocorre pela simbolização do pensamento, em que a linguagem revela o uso explícito do “eu” no discurso. À medida que a linguagem assume esse papel, o sujeito se apresenta como um locutor em um ato de discurso singular, apropriando-se do idioma para se mostrar como um agente social, um sujeito no discurso. Ao expressar uma linguagem subjetiva mais personalizada, ele se revela como um ser social, um sujeito consciente de suas ações e de seu lugar e presença na sociedade. Conforme Marcuschi (2004MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividade de retextualização. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2004., p. 35), “[...] a própria língua mantém complexas relações com as representações e as formações sociais. Não se trata de um espelhamento, mas de uma funcionalidade em geral mais visível na fala”.

Linguagem e trabalho são atividades humanas complexas que envolvem abordagens teóricas e metodológicas específicas e diversificadas. No entanto, elas compartilham um elemento comum: são práticas sociais, enraizadas cultural e historicamente e destinadas a atender às necessidades humanas. Além disso, essas atividades são moldadas pelas relações sociais de forma dialética, contribuindo para a socialização de conhecimentos e valores específicos de um ou vários grupos sociais.

Como práticas sociais, a linguagem pode refletir a identidade coletiva de um grupo (Candau, 2014CANDAU, J. Memória e identidade. Trad. de Maria Leticia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2014.). Na perspectiva do uso da linguagem como reflexo da identidade coletiva, os indivíduos expressam características distintivas ao manifestar, por meio de situações de trabalho específicas, valores e saberes associados às atividades artesanais ou manufatureiras e o resgate da história pessoal relacionada ao trabalho.

No exercício da memória, as pessoas incorporam diferentes contextos discursivos, reconstruindo e atualizando o passado ao criar e recriar narrativas ou relatos de experiências na interação dialógica com outros. Com base na operação fundamental de topicalização discursiva para construir significado, em diálogo com Candau (2014CANDAU, J. Memória e identidade. Trad. de Maria Leticia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2014.) e Edelman e Tononi (2000EDELMAN, G. M.; TONONI, G. A Universe of Consciousness: How Matter Becomes Imagination. New York: Basic Books, 2000.), destaco as relações entre memória e construção de identidade, bem como a ideia de memória não representacional. A memória, inseparável da identidade, é uma reconstrução constante e atualizada do passado, não necessariamente uma reconstituição fiel dele.

A memória não funciona como repositório de lembranças, mas como processo constante de reconstrução. Cada vez que uma lembrança é evocada, ela se entrelaça com outras recordações e com o contexto - incluindo o interlocutor. O valor das experiências é influenciado por aspectos emocionais relativos a essas vivências. Portanto, as experiências são recriadas a cada recordação e, mesmo que possam parecer idênticas, seguem caminhos associativos diferentes, mesclando-se com novos elementos.

De fato, a memória é uma construção contínua sobre o passado, que se atualiza e se renova no presente, conforme destaca Candau (2014CANDAU, J. Memória e identidade. Trad. de Maria Leticia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2014.). Na interação entre entrevistador e entrevistado, as cenas emergem a partir de uma palavra, um gesto, um sinal, por meio dos quais os interlocutores colaborativamente dão forma ao evento em discussão, ou seja, à entrevista oral. A combinação, conforme a teoria seletiva de Edelman e Tononi (2000EDELMAN, G. M.; TONONI, G. A Universe of Consciousness: How Matter Becomes Imagination. New York: Basic Books, 2000.), reflete o momento em que entrevistador e entrevistado compõem e recompõem cenas do trabalho manufatureiro ou artesanal no diálogo a partir da interação entre atividades neurais e sinais originários do corpo, cérebro e mundo.

No processo de interação oral ou escrita, os interlocutores se envolvem, porque têm um propósito, algo a expressar ou comunicar. Eles se estimulam mutuamente e respondem uns aos outros. Numa interação escrita, que envolve uma diferença temporal entre a produção e a recepção, o escritor exerce seu papel na criação do texto e se projeta como o leitor previsto, imaginado, estabelecendo uma relação ideal de diálogo. Oralmente, a dinâmica é síncrona, de modo que os interlocutores se estabelecem como participantes em uma situação de cooperação na qual negociam, argumentam e constroem o discurso a partir de um tópico discursivo. Na dinâmica dialógica, o tópico discursivo se organiza em torno de um ponto focal, um tema em discussão. Sua construção ocorre de maneira colaborativa e pode ser explicitamente introduzida por uma fala ou ser discernida pelo que está sendo dito.

O tópico discursivo se caracteriza pela definição do foco de atenção e pela estruturação do discurso falado. Quanto ao foco de atenção, o processamento do discurso se realiza com base no conteúdo, com ênfase à referência textual, ou seja, àquilo que está em discussão, podendo os interlocutores utilizar referências explícitas ou implícitas para alcançar um objetivo. Quanto à estrutura do texto, esta se evidencia por relações de dependência entre tópicos discursivos, a depender da amplitude do que se discute e da relevância de cada um deles.

No entanto, nem sempre é possível delinear com clareza o início e o fim de um tópico, pois, em algumas situações, identificamos um novo foco de atenção quando ocorre uma mudança no conjunto de referências, ou seja, o foco da sequência seguinte não está relacionado ao anterior. Quando isso acontece, há uma digressão, que é uma parte da conversa sem conexão direta e imediata com o segmento anterior ou subsequente.

Em certos casos, a transição de tópico pode ser indicada por meio de recursos linguísticos que sinalizam a transição entre os tópicos. Quando os interlocutores alteram o tópico com a ajuda desses recursos, eles encerram a discussão de um tópico e iniciam um novo. Em relação à construção do texto, as paráfrases ocorrem quando um interlocutor reformula uma declaração, mantendo a equivalência semântica, podendo indicar o encerramento de um tópico. As repetições podem ser usadas para introduzir, retomar, manter ou delimitar tópicos, além de indicar um consenso na fluência da conversa. A tematização sinaliza ao interlocutor o foco da conversa, o tópico que será introduzido ou desenvolvido, o novo tópico de relevância anunciado previamente no segmento atual do discurso falado.

Quanto à organização do texto, marcadores discursivos são utilizados para introduzir, continuar, retomar ou encerrar tópicos, conectando os segmentos do discurso oral. Eles asseguram a fluidez do discurso e a coesão entre os tópicos que emergem ao longo do discurso falado. Na oralidade, a hesitação e a interrupção são dois fenômenos essenciais. A hesitação se manifesta principalmente por prolongamentos de sílabas, expressões hesitativas e pausas silenciosas ou preenchidas. As pausas silenciosas são menos comuns porque o locutor corre o risco de perder o turno de fala e o controle sobre o discurso. A interrupção, por sua vez, possibilita a reformulação do que foi dito ou a inclusão de novos elementos para esclarecer o que foi mencionado. Pode ser iniciada pelo próprio locutor que está falando ou pelo outro interlocutor.

A entrevista oral, gênero que constitui o corpus analisado, resulta da interação entre interlocutores que se reúnem para discutir um tópico discursivo. Ao longo do evento de fala, o tópico principal pode ser subdividido em diversos subtópicos. A partir de um tópico principal, podem surgir tópicos constituintes que podem levar a tópicos menores.

Na entrevista oral, o tópico discursivo é geralmente introduzido por uma pergunta do entrevistador. Conforme as normas conversacionais, isso constrange o entrevistado a fornecer uma resposta pertinente. Trata-se de um gênero que supõe alternância imediata das falas dos interlocutores. Como observado por Fávero, Andrade e Aquino (2005FÁVERO, L. L.; ANDRADE, M. L. da C. V. de O.; AQUINO, Z. G. O. de. Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino da língua materna. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2005., p. 21), “[...] é criação coletiva e se produz não só interacionalmente, mas também de forma organizada”.

Na entrevista oral, a interação depende da capacidade de cada interlocutor organizar sua fala de modo a facilitar a compreensão do outro. Como resultado, a progressão é ajustada às necessidades individuais dos interlocutores, e a troca de turnos pode direcionar ou modificar o desenvolvimento do tópico discursivo. Ademais, para manter a coerência nesse gênero, é fundamental que os interlocutores sejam fiéis ao tema proposto. Como Fávero, Andrade e Aquino (2005FÁVERO, L. L.; ANDRADE, M. L. da C. V. de O.; AQUINO, Z. G. O. de. Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino da língua materna. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2005., p. 34) explicam, “[...] para que haja entendimento entre os interlocutores, é preciso que eles sejam coerentes no que dizem e, principalmente, saibam sobre o que dizem (tópico discursivo)”.

Enfim, nosso quadro teórico estrutura-se a partir de uma perspectiva dialógica da linguagem e da construção do significado por meio de eventos. Vejamos como isso se dá no contexto de um exercício memorialístico entre entrevistador e entrevistados.

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O corpus deste estudo consiste em seis entrevistas orais realizadas com idosos de 66 a 84 anos, como parte de um Projeto de Extensão “Memória e Cultura dos Ofícios” desenvolvido, em 2013, pela professora Heloisa Guaracy Machado, do Instituto de Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). O objetivo principal do projeto foi estabelecer conexões entre o público e memórias e culturas associadas aos ofícios artesanais e manufatureiros, por meio de depoimentos, seguindo as práticas da História Oral (Delgado, 2010DELGADO, L. de A. N. História oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. (Leitura, escrita e oralidade).; Thompson, 1992THOMPSON, P. A voz do passado: história oral. Trad. de Lólio Lourenço de Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.). Os entrevistados são identificados na discussão como “Entrevistado” ou pelo tipo de ofício que exerciam, respeitando questões éticas e mantendo em sigilo seus nomes. Na pesquisa documental, examinei as entrevistas orais disponíveis em vídeo e transcritas pelos bolsistas do Projeto de Extensão “Memória e Cultura dos Ofícios”, que contou com a participação de três bolsistas e oito voluntários além de cinco docentes, todos vinculados a cursos da PUC Minas (Machado, 2013).

O gênero entrevista oral aqui consiste em conversas ou eventos de fala nas quais os interlocutores compartilham um foco comum: a construção e reconstrução colaborativa de narrativas relacionadas aos ofícios artesanais e manufatureiros. Esse tipo de evento, conforme Rodrigues (1999RODRIGUES, A. C. S. Língua falada e língua escrita. In: PRETI, D. (org.). Análise de textos orais. 4. ed. São Paulo: Humanitas Publicações FFLCH/USP, 1999. cap. 1, p. 13-32. (Projetos Paralelos, v. 1)., p. 31), “[...] constitui uma atividade num contexto específico, resultado da tarefa cooperativa de dois interlocutores num mesmo momento e num mesmo espaço”.

A História Oral foi o método empregado na formação e análise do corpus, pois ela representa a história construída a partir dos relatos de indivíduos. Enfatize-se que o corpus foi exclusivamente utilizado para a análise das narrativas emergentes da interação entre entrevistador e entrevistados. Como afirma Delgado (2010DELGADO, L. de A. N. História oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. (Leitura, escrita e oralidade).), a História Oral é um método que registra, por meio de narrativas induzidas e estimuladas, as versões, interpretações e testemunhos da História, abrangendo aspectos factuais, temporais, espaciais, conflitantes e consensuais. O autor destaca que a História Oral não é “[...] o registro de depoimentos sobre essa história vivida” (Delgado, 2010, p. 16).

No estudo, investigo como os seis idosos reconstroem seu passado laboral. Analiso momentos específicos da interação com o objetivo de descrever a operação fundamental da topicalização discursiva, bem como suas suboperações, como o assalto a turno (que é uma forma de interrupção), alongamento de sílabas e repetição de palavras.

Em relação ao tópico discursivo, adoto a seguinte definição: trata-se da unidade textual em torno da qual os interlocutores realizam o diálogo. É o elemento que direciona o texto falado, concentrando o foco de atenção naquilo que está sendo discutido ou predito quando um evento é desenvolvido. A organização do texto falado é a maneira como o tópico discursivo é estruturado, dividindo-o, como já antecipado, em tópico principal, tópico constituinte e tópico menor. Conforme Jubran (2015JUBRAN, C. S. Tópico discursivo. In: JUBRAN, C. S. (org.). A construção do texto falado. São Paulo: Contexto, 2015. p. 85-126. (Gramática do português culto falado no Brasil, v. 1)., p. 86), “[...] o tópico discursivo torna-se um elemento decisivo na constituição de um texto falado, e a estruturação tópica serve como fio condutor da organização textual-interativa [...]”.

Na análise, destaquei a perspectiva de Candau (2014CANDAU, J. Memória e identidade. Trad. de Maria Leticia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2014.) sobre a criação de cenas, enfatizando que a memória envolve a atualização do passado. Ao conectar os conceitos de Candau (2014) e Edelman e Tononi (2000EDELMAN, G. M.; TONONI, G. A Universe of Consciousness: How Matter Becomes Imagination. New York: Basic Books, 2000.), mostrei como os entrevistados resgatam o passado ao criar e recriar cenas. Nesse processo de memoração, reitero, não se trata de reproduzir uma memória estática e representacional, mas uma ação dinâmica em que os interlocutores consideram os sinais que emanam do corpo, do mundo e do cérebro. Portanto, as cenas construídas colaborativamente revelam a história de vida, a experiência incorporada e a identidade construída por um indivíduo inserido em uma comunidade.

Minha abordagem se fundamentou em Jubran (2015JUBRAN, C. S. Tópico discursivo. In: JUBRAN, C. S. (org.). A construção do texto falado. São Paulo: Contexto, 2015. p. 85-126. (Gramática do português culto falado no Brasil, v. 1).) para reforçar a importância da topicalização discursiva, explorando como os interlocutores aplicam seus conhecimentos linguísticos e extralinguísticos para construir significado na interação. Nesse contexto, concentrei-me em suboperações discursivas fundamentais, que desempenharam um papel central na pesquisa.

Conforme sugerido por diversos pesquisadores da análise da conversação, incluindo Castilho (2014CASTILHO, A. T. de. A conversação. In: CASTILHO, A. T. de. A língua falada no ensino de português. 8. ed. São Paulo: Contexto, 2014. cap. 1, p. 27-51. (Coleção Caminhos da Linguística).) e Marcuschi (2007MARCUSCHI, L. A. Análise da conversação. 6. ed. São Paulo: Ática, 2007. (Série Princípios, 82).), o corpus foi construído com base em interações focadas na prática cotidiana, considerando elementos essenciais para compreender a organização do ato de conversar. Tais elementos, conforme destacado por Brait (1999BRAIT, B. O processo interacional. In: PRETI, D. (org.). Análise de textos orais. 4. ed. São Paulo: Humanitas Publicações FFLCH/USP, 1999. cap. 9, p. 189-214. (Projetos Paralelos, v. 1)., p. 193), englobam “[...] a situação, as características dos participantes da interação em foco e as estratégias por eles utilizadas durante o diálogo”. No contexto das entrevistas orais, ocorre uma interação verbal concentrada na criação e construção de cenas que têm o ofício artesanal ou manufatureiro como tópico principal.

Quanto à hipótese central de que a topicalização discursiva desempenha um papel fundamental na construção de eventos memorialísticos e afeta as funções do entrevistador e do entrevistado, abordo as suboperações discursivas presentes nas entrevistas orais que compõem o corpus. Em cada trecho analisado, as siglas L1 e L2 serão utilizadas, referindo-se, respectivamente, ao entrevistador e ao entrevistado.

4 ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

Nesta seção, apresento a análise das cenas recordadas, conforme remodeladas com base em um tópico discursivo proeminente. Destaco que, em todas as entrevistas, observam-se suboperações discursivas como assalto a turno, predominantemente conduzido pelo entrevistador, alongamento de sílabas e repetição de palavras. Esses elementos evidenciam a construção da fala dos interlocutores por meio do gerenciamento e do sequenciamento dos tópicos introduzidos e conduzidos pelo entrevistador, conforme identificado no Fragmento 1.

Fragmento 1

Ao usar a técnica de alongamento de sílabas, o entrevistador explicita para o entrevistado as duas alternativas de resposta (“a mais ve::lha ou a mais no::va”), assumindo o papel de alguém que possui conhecimento prévio sobre a família de L2. Ademais, ao se posicionar como a principal condutora das respostas que surgem na interação, L1, ao perceber a possibilidade de uma digressão, assalta o turno e conclui a cena discursiva em andamento.

Outra suboperação que reforça a função do entrevistador é a repetição de palavras. Conforme Marcuschi (2015MARCUSCHI, L. A. Repetição. In: JUBRAN, C. S. (org.). A construção do texto falado. São Paulo: Contexto, 2015. p. 207-240. (Gramática do por-tuguês culto falado no Brasil, v. 1)., p. 239), essa suboperação é “[...] uma estratégia valiosa para o processo textual-interativo, seja na sua contribuição para o processamento informacional, seja na preservação da funcionalidade comunicativa”.

É evidente que, com base nessas indicações, o entrevistado não faz uma escolha autoral, uma vez que o entrevistador conduz constantemente a interação, restringindo o controle sobre o tema discutido pela entrevista semiestruturada. A gestão e a falta de opção tornam-se perceptíveis nos trechos a seguir, nos quais o entrevistador, por meio do prolongamento de sílabas, delimita o tópico da conversa: (a) “A senhora morou em Piumhi sempre? Ou a senhora mudou:: na sua infân::cia.”; (b) “Marcenaria não tem mulher::, seu X? O senhor já viu alguma mulher marceneira?”; (c) “A reforma que o senhor faz, o senhor faz reformas de outros objetos também:: ou só sapatos?”.

Outra manifestação (Fragmento 2, mais adiante) que reforça a definição do tema discursivo pelo entrevistador são as transições de turno (sejam consentidas ou não), evidenciando o alinhamento de perguntas e respostas a partir de uma dinâmica especular entre o entrevistador (como condutor) e o entrevistado (como conduzido).

No Fragmento 2, há dois pareamentos que mais evidenciam a relação especular entre L1 e L2. O primeiro é: “L1: É./ L2: Na parte de construção hoje em dia tá tendo.../ [/ L1: É./ [/ L2: muita mulher/ [/ L1: É./ [/ L2: trabalhando”.

Apesar de sobrepor a fala, L1 está gradualmente construindo, por meio de um indicador que enfatiza a resposta desejada (“É”), a cena que expressa a perspectiva sobre a participação da mulher na indústria da construção civil. No segundo emparelhamento, pela extensão da resposta iniciada por L1 e complementada pelo entrevistado, fica claro que este percebe a expectativa e acrescenta, especulando que a concordância sem interrupções seria para a afirmação: “As filhas mesmo não se interessaram, não”.

Fragmento 2

Na interação dialógica entre L1 e L2, à medida que buscam resgatar a história dos ofícios pelo exercício da memória, a topicalização discursiva assume um papel crucial. Na coordenação dos eventos ou eventivação, os interlocutores criam e recriam cenas colaborativamente a partir de experiências conceituais e de linguagem, elementos intrínsecos à existência humana, conforme destacado por Edelman e Tononi (2000EDELMAN, G. M.; TONONI, G. A Universe of Consciousness: How Matter Becomes Imagination. New York: Basic Books, 2000.) no contexto da consciência de ordem superior. Por meio dessas operações discursivas, observamos a eventivação memorialística sobre a experiência de trabalho; L1 guia L2 ao longo da interação, estabelecendo a dinâmica dialógica entre um EU e um TU, conforme a abordagem de Benveniste (1995BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral I. Trad. de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995., 1989).

Uma instância semelhante pode ser identificada no Fragmento 3, no qual a recordação sobre o ofício se desenvolve a partir da escolha e da abordagem de um tema ou tópico discursivo. Os interlocutores coconstroem a memória relacionada ao ofício, corroborando a visão de Candau (2014CANDAU, J. Memória e identidade. Trad. de Maria Leticia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2014.) de que a eventivação é um processo dialógico, e a memória é construída na interação. O alongamento de sílabas e a repetição de palavras evidenciam a construção coletiva de cenas vivenciadas exclusivamente pelo entrevistado.

Fragmento 3

No Fragmento 4, observamos três conjuntos de mecanismos característicos do discurso oral, os quais indicam a participação ativa do entrevistador, simultaneamente à construção colaborativa do evento, no manejo do tópico discursivo, a saber: paráfrase e tematização, marcadores discursivos, hesitação e interrupção.

O primeiro conjunto de estratégias está relacionado à organização textual. No trecho “Bom, e aí:: o senhor ficou lá em Piumhi:: uns quatro anos né, que o senhor falou?”, percebemos a utilização de uma paráfrase, na qual o entrevistador recapitula uma declaração do entrevistado: “[...] que o senhor falou?”. A tematização é evidenciada pela introdução do tópico relacionado ao trabalho realizado em uma específica marcenaria. Ao longo do fragmento, esse tema se torna o ponto central da conversa, lembrando que foi estabelecido pelo entrevistador no início do diálogo. (“Uhum. Bom, e aí:: o senhor ficou lá em Piumhi:: uns quatro anos né, que o senhor fa-lou? Nessa marcenaria...”).

No segundo conjunto, relacionado à estruturação do texto, observamos diversos marcadores discursivos que visam continuar, introduzir, retomar ou concluir tópicos, conectando os segmentos do discurso oral. Os mais frequentemente utilizados nessa interação foram “uhum”, “né” e “é”. L2 inicia e encerra sua intervenção com marcadores que, respectivamente, indicam (“É”) e solicitam (“né”) reforço em relação ao tema em discussão, sendo o último uma transição de turno consentida de L2 para L1. Por sua vez, este emprega o marcador (“Uhum”) para expressar concordância com a construção da cena, demonstrar atenção à representação, reforçar seu papel como condutor do processo e do tópico, e passar o turno para o entrevistado.

O terceiro conjunto envolve fenômenos essenciais ao discurso oral, frequentemente ocorrendo de maneira simultânea durante a interação. Isso pode ser exemplificado no trecho: “L1: Cinco anos.../ L2: É, nessa marcenaria foi”. L1 faz uma pausa silenciosa e é logo interrompido por L2, que confirma inicialmente por um marcador discursivo (“É”) a informação proposta por L1. Mais à frente, ocorrem duas hesitações: uma com pausa preenchida (“L2: Não, Lá eh... eu mesmo fui lá, procurei.”) e outra silenciosa (“L2: É. Cheguei, fui procurar, eles estavam precisando, né? Na época. Mas é difícil.../ L1: E o senhor já gostava, então?”). Na primeira situação, o L2 sustenta sua intervenção ao preencher a pausa, não cedendo o turno ao entrevistador e impedindo interrupção ou assalto. Já na segunda, L2 introduz uma pausa silenciosa e, reforçando o controle sobre o processo e o tópico discursivo, L1 o interrompe, estabelecendo um novo tópico secundário: “o sentimento de satisfação pelo trabalho na marcenaria”.

Fragmento 4

Constatamos, dessa forma, que os recursos discursivos são constantemente usados para delinear a segmentação temática e fortalecer o controle contínuo exercido pelo entrevistador sobre todo o processo e a focalização discursiva, consolidando sua posição como o principal (co)construtor do evento memorialístico.

Outros dispositivos explorados pelos interlocutores foram a tematização e os indicadores discursivos, evidenciados no Fragmento 5. No início do trecho, L1 introduz, pela prolongação de sílabas, o ponto de interesse a ser explorado, o tópico menor “sindicalização”, estabelecendo interdependência entre o entrevistador e a entrevistada. Além disso, são frequentes os marcadores intratópicos, utilizados para articular as unidades textuais, como visto em “L2: Não, assim, de sindica..., não, não, não, não, não participei não”. Com a expressão “Não, assim”, L2 retoma a pergunta inicial de L1, delineando a divisão do diálogo no tópico discursivo.

Fragmento 5

Quanto ao indicador temporal centrado no locutor, no Fragmento 6, são apresentados eventos que se organizam em relação ao EU estabelecido na enunciação e às experiências vividas pelo entrevistado.

Fragmento 6

Ao utilizar as expressões “quando a senhora casou” e “quando eu casei”, o indicador temporal concentra-se na entrevistada, sugerindo que os eventos são organizados com base no EU estabelecido na enunciação e nos acontecimentos significativos derivados de sua experiência. Porém essa centralização não concede primazia ao entrevistado como determinante na interação. Toda a focalização discursiva é conduzida pelo entrevistador.

Ademais, o fator tempo não coloca o entrevistado como o elemento decisivo na interação. Conforme Candau (2014CANDAU, J. Memória e identidade. Trad. de Maria Leticia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2014.), em geral, o indicador temporal centrado no locutor é uma das principais dinâmicas na (co)construção de tópicos constituintes de um evento. Essa dinâmica se manifesta no corpus; no entanto, argumento que, mesmo quando o indicador temporal destaca o entrevistado como o locutor central, o entrevistador reafirma continuamente sua função como (co)construtor principal da conversação.

No transcorrer da pesquisa, utilizei os conceitos de Edelman e Tononi (2000EDELMAN, G. M.; TONONI, G. A Universe of Consciousness: How Matter Becomes Imagination. New York: Basic Books, 2000.) para destacar que a memória é um mecanismo crucial na formação da consciência. Ela se desenvolve durante o processo de criação de imagens e cenários cognitivos, e como tal não é de natureza representacional ou armazenada (Edelman; Tononi, 2000). Quando os interlocutores constroem e reconstroem eventos memoráveis, dando origem à habilidade de realizar projeções, simulações e imaginações criativas, compreendo que o cérebro não opera como um simples arquivo; ao contrário, ele é um conjunto integrado de sistemas (como o auditivo, o visual, o perceptual e o conceitual) que se interligam para conceber cenas, situações e ações vivenciadas.

Na realidade, a experiência humana é moldada pelo processo de interação, em que os eventos compartilhados dão origem a, integram e configuram as lembranças memoráveis. No contexto da entrevista oral, as experiências pessoais do entrevistado são transformadas de individuais para eventos compartilhados quando o entrevistador interage por meio de um tópico discursivo. De acordo com Thompson (1992THOMPSON, P. A voz do passado: história oral. Trad. de Lólio Lourenço de Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.), a entrevista propicia que uma história seja narrada novamente, mas de maneira diferente para pessoas distintas e em contextos diversos. Os interlocutores colaboram na construção dos eventos que revelam a memória de um acontecimento específico.

Ao abordarem um tópico discursivo, os interlocutores estabelecem um foco de atenção, isto é, aquilo que concentra a atenção quando constroem o evento, o conteúdo e a referencialidade textual. Trata-se do elemento que constitui e define uma conversação, conforme Jubran (2015JUBRAN, C. S. Tópico discursivo. In: JUBRAN, C. S. (org.). A construção do texto falado. São Paulo: Contexto, 2015. p. 85-126. (Gramática do português culto falado no Brasil, v. 1).). Esse foco é subdividido em tópico principal, tópico constituinte e tópico menor, os quais são interdependentes para a formação de um evento mais amplo (a rememoração sobre o ofício).

Nas entrevistas orais, a interação verbal se inicia desde a primeira palavra, possibilitando ao ouvinte concordar, discordar, sugerir alterações, interromper, complementar, entre outras ações, estabelecendo assim a construção colaborativa do significado que emerge das vivências humanas no mundo. A linguagem concede a habilidade de narrar, proporciona a consciência, permitindo-nos construir passados e futuros vinculados a nós mesmos - em suma, possibilita a rememoração de nossa própria existência por meio da focalização discursiva.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, examinei a configuração de eventos memorialísticos em entrevistas orais. Minha hipótese foi a de que a focalização discursiva exerce papel direto na construção de eventos memorialísticos e atribui funções distintas para entrevistador e entrevistado. Ambos desempenham papéis colaborativos na interação em que os turnos de conversação se alternam e se complementam. Contudo, cabe ao entrevistador estabelecer uma relação especular com o entrevistado, e ao entrevistado compartilhar suas experiências memorialísticas e atualizar o passado relacionado ao ofício artesanal ou manufatureiro.

Durante a evocação das lembranças relacionadas ao ofício, os interlocutores deram forma aos eventos, assumindo papéis como EU e TU e centrando-se na focalização discursiva, uma operação básica intrínseca a qualquer atividade verbal. Ao narrarem sobre um tópico, as cenas do passado foram trazidas para o presente linguístico sem o objetivo da reprodução exata do que foi experimentado, uma vez que a memória não é replicativa ou representacional. Resultam disso cenas que consideraram a experiência incorporada e a construção cognitiva de um mundo experimentado. Embora o entrevistado tenha sido o protagonista ou testemunha dos eventos, ele não se mostrou como o principal construtor das cenas emergentes.

O respaldo para a conclusão advém das suboperações examinadas, a saber: assalto a turno, alongamento de sílabas e repetição de palavras. Essas suboperações evidenciaram que o controle da interação e a determinação do direcionamento da discussão e do tema abordado são atribuições do entrevistador, que exerce influência deliberada na conversação, apesar de os eventos memorialísticos se fundamentarem em fatos vivenciados pelo entrevistado como ator ou testemunha. Destaque-se a construção colaborativa dessas lembranças: ambos os interlocutores contribuíram, conjunta e discursivamente, para a formação da memória sobre as experiências laborais passadas.

A dinâmica entre os interlocutores na (co)construção de tópicos e subtemas do evento comunicacional impacta a configuração dos eventos memorialísticos. De modo intencional, o entrevistador especifica, ignora ou desvia o tópico discursivo, reafirmando que a formação dos eventos relacionados ao ofício artesanal ou manufatureiro vincula-se à dinâmica estabelecida entre o entrevistador e o entrevistado. No contexto da entrevista oral, o entrevistador se destaca como o principal (co)construtor das cenas, mesmo sem ter vivenciado diretamente as experiências. Isso contraria a perspectiva de estudiosos da História Oral, os quais defendem que o entrevistado é o principal (co)construtor, visto que o propósito desse método é reconstruir o vivido a partir da perspectiva do protagonista. Quando os interlocutores narram as experiências do passado, a construção da narrativa não é exclusiva do entrevistado; ocorre, na esfera da fala, a construção tanto pelo entrevistador quanto pelo entrevistado.

Frente a isso, destaco uma lacuna na eficácia das entrevistas orais adotadas na metodologia de História Oral quando se busca apresentar a realidade vivida. Ao dirigir o processo e definir o tópico discursivo, o entrevistador se posiciona como principal (co)construtor, e os dados coletados na entrevista para a História Oral refletirão a perspectiva por ele delineada. Com base nessa evidência, observo que, em pesquisas nas quais os dados são obtidos por meio da História Oral, o pesquisador deve assegurar que o (co)construtor principal seja realmente o entrevistado, sem a influência deliberada por parte do entrevistador.

REFERÊNCIAS

  • BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral I. Trad. de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995.
  • BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral II. Trad. de Eduardo Guimarães et al. Campinas: Pontes, 1989.
  • BRAIT, B. O processo interacional. In: PRETI, D. (org.). Análise de textos orais. 4. ed. São Paulo: Humanitas Publicações FFLCH/USP, 1999. cap. 9, p. 189-214. (Projetos Paralelos, v. 1).
  • CANDAU, J. Memória e identidade. Trad. de Maria Leticia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2014.
  • CASTILHO, A. T. de. A conversação. In: CASTILHO, A. T. de. A língua falada no ensino de português. 8. ed. São Paulo: Contexto, 2014. cap. 1, p. 27-51. (Coleção Caminhos da Linguística).
  • DELGADO, L. de A. N. História oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. (Leitura, escrita e oralidade).
  • EDELMAN, G. M.; TONONI, G. A Universe of Consciousness: How Matter Becomes Imagination. New York: Basic Books, 2000.
  • FÁVERO, L. L.; ANDRADE, M. L. da C. V. de O.; AQUINO, Z. G. O. de. Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino da língua materna. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2005.
  • JUBRAN, C. S. Tópico discursivo. In: JUBRAN, C. S. (org.). A construção do texto falado. São Paulo: Contexto, 2015. p. 85-126. (Gramática do português culto falado no Brasil, v. 1).
  • KOCH, I. G. V. A inter-ação pela linguagem. 11. ed. São Paulo: Contexto, 2010.
  • KOCH, I. G. V. Argumentação e linguagem. 12. ed. São Paulo: Cortez, 2009.
  • MACHADO, H. G. Memória e Cultura dos Ofícios. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2013. Registro PROEX-2013/7694-1S. Não paginado.
  • MARCUSCHI, L. A. Análise da conversação. 6. ed. São Paulo: Ática, 2007. (Série Princípios, 82).
  • MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividade de retextualização. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2004.
  • MARCUSCHI, L. A. Repetição. In: JUBRAN, C. S. (org.). A construção do texto falado. São Paulo: Contexto, 2015. p. 207-240. (Gramática do por-tuguês culto falado no Brasil, v. 1).
  • RODRIGUES, A. C. S. Língua falada e língua escrita. In: PRETI, D. (org.). Análise de textos orais. 4. ed. São Paulo: Humanitas Publicações FFLCH/USP, 1999. cap. 1, p. 13-32. (Projetos Paralelos, v. 1).
  • THOMPSON, P. A voz do passado: história oral. Trad. de Lólio Lourenço de Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

Editado por

Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    24 Jan 2021
  • Aceito
    14 Dez 2023
Universidade do Sul de Santa Catarina Av. José Acácio Moreira, 787 - Caixa Postal 370, Dehon - 88704.900 - Tubarão-SC- Brasil, Tel: (55 48) 3621-3369, Fax: (55 48) 3621-3036 - Tubarão - SC - Brazil
E-mail: lemd@unisul.br