Resumo:
Neste texto apresenta-se uma proposta teórico-metodológica para pesquisar movimentos e estado tomando como base as associações que estabelecem a partir de três pesquisas: sobre as transformações do Landless People's Movement (LPM) da África do Sul, as interações entre movimentos rurais brasileiros e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na implementação da política de reforma agrária, e a transnacionalização da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). O principal efeito do artigo é uma definição ontológica de movimentos e do estado como coletivos cuja existência é marcada por contínuos agenciamentos de elementos heterogêneos e instáveis. Não sendo possível tomá-los como unidades analíticas fechadas, cabe às pesquisas observar construções contínuas de grupos e coletivos contingentes às associações contextuais que se formam – desde antes, portanto, de sua expressão pública. Para tanto, propõe-se que sejam compreendidos quais elementos, agenciados de forma específica e descritível, permitem que as coisas tomem os cursos que normalmente observamos e analisamos. Sugere-se ainda o emprego metodológico das controvérsias como categorias analíticas e a observação dos processos na longa duração.
Palavras-chave:
Movimentos sociais; Estado; Teoria social; Política ontológica; Heterogeneidade
Abstract:
This paper presents a theoretical-methodological proposal to research movements and the state based on the associations they establish. It is grounded in three investigations: the first one about the transformations of the Landless People's Movement (LPM) of South Africa, the second about interactions between Brazilian rural movements and the National Institute of Colonization and Agrarian Reform (Incra); the third focuses on the transnational ties of the National Confederation of Agricultural Workers (Contag). The main effect of the article is an ontological definition of movements and the state as collectives whose existence is defined by continuous assemblages of heterogeneous and unstable elements. Since it is not possible to take them as enclosed analytical units, it is up to the research to observe continuous constructions of groups and collectives which are contingent and contextual. Researchers will often follow these processes before their public expression. The proposal is to understand which elements allow things to take the courses we normally observe and analyze. It is also suggested the methodological use of controversies as analytical categories and the observation of the processes in the long term.
Keywords:
Social movements; State; Social theory; Ontological politics; Heterogeneity
Resumen:
Este texto presenta una propuesta teórico-metodológica para investigar movimientos y el estado basada en las asociaciones que establecen a partir de tres investigaciones: sobre las transformaciones del Landless People's Movement (LPM) de Sudáfrica, las interacciones entre movimientos rurales de Brasil y el Instituto Nacional de Colonización y Reforma Agraria (Incra) en la implementación de la política de reforma agraria, y, por ende, la transnacionalización de la Confederación Nacional de Trabajadores Agrícolas (Contag). El efecto principal del artículo es una definición ontológica de los movimientos y del estado como colectivos cuya existencia está marcada por conjuntos continuos de elementos heterogéneos e inestables. Dado que no es posible tomarlos como unidades analíticas cerradas, corresponde a las investigaciones observar construcciones continuas de grupos y colectivos supeditados a las asociaciones contextuales que se forman, desde antes de su expresión pública. Con este fin, se propone comprender qué elementos, organizados de manera específica y descriptiva, permiten que las cosas tomen los cursos que normalmente observamos y analizamos. También se sugiere el uso metodológico de controversias como categorías analíticas y la observación de los procesos a largo plazo.
Palabras clave:
Movimientos sociales; Estado; Teoría social; Política ontológica; Heterogeneidad
Introdução4 4 Agradecemos aos comentários, críticas e sugestões de três pareceristas anônimos. Advertimos que, apesar de termos incorporado diversos pontos, não houve espaço suficiente para inserir esclarecimentos teóricos específicos e, ainda, conservar as descrições de pesquisa. As lacunas não preenchidas aqui serão objeto de um texto especificamente teórico-metodológico no futuro instigado pelas competentes leituras críticas. Agradecemos a Sonia Alvarez pela primeira leitura crítica desse texto, pelas sugestões e comentários que nos levaram a publicá-lo. E aos colegas do Laboratório de Sociologia Não-Exemplar (UnB) pela atenta revisão crítica.
Este artigo parte de três pesquisas independentes que combinam heterogeneidade e instabilidade e, a partir delas, propõe ferramentas teórico-metodológicas para acompanhar o processo de formação de objetos com essas características. Na primeira, descrevemos um movimento de sem terras na África do Sul que ganhou rápida visibilidade espelhando um movimento brasileiro para, pouco depois, desaparecer da atenção de ativistas e pesquisadores que buscavam por formas específicas de identificá-lo. No segundo, tratamos da política pública de reforma agrária que, longe de ser o resultado do planejamento estatal, é construída na interação entre burocratas, movimentos e gestores e nas instáveis disputas e alianças entre eles. Por fim, tratamos de uma organização sindical rural que construiu uma trajetória internacional, em várias frentes simultâneas e cambiantes, contrariando a expectativa de enfraquecimento do sindicalismo e de sua irrelevância em disputas transnacionais.
Em cada uma das pesquisas, fomos nos deparando com coletivos que, observados de perto e ao longo do tempo, nem sempre se mostravam coesos, estáveis e cabendo nas categorias analíticas com as quais tentamos analisá-los. Cada um deles, à sua maneira, nos carregou até o diálogo com teorias que tomam essas características como constitutivas dos fenômenos sociais. Nas aproximações teóricas e empíricas, inspirados em Mol (1999)Mol, Annemarie. 1999. Ontological politics. A word and some questions. The Sociological Review 47 (S1): 74-89. https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1999.tb03483.x.
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, Latour (2005)Latour, Bruno. 2005. Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory. Oxford: Oxford University Press., Law (2004)Law, John. 2004. After method. Mess in social science research. London: Routledge. https://doi.org/10.4324/9780203481141.
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, DeLanda (2006)DeLanda, Manuel. 2006. A new philosophy of society. Assemblage theory and social complexity. London: Continuum., De la Cadena (2015)De la Cadena, Marisol. 2015. Earth beings: ecologies of practice across Andean worlds. Durham: Duke University Press. https://doi.org/10.1215/9780822375265
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e Alvarez (2014)Alvarez, Sonia. 2014. Para além da sociedade civil : reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu 43: 13-56. https://doi.org/10.1590/0104-8333201400430013.
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, terminamos por entendê-los como ontologicamente heterogêneos e instáveis em permanente transformação. Essas características, defenderemos ao longo do texto, contribuem para pensarmos que certos coletivos teriam propriedades existenciais diferentes daquelas que mormente encontramos nas teorias hegemônicas sobre movimentos e Estados.
Neste texto, apresentamos algumas das respostas que construímos para o desafio teórico-metodológico de estudar coletivos que nos acostumamos a chamar de movimentos sociais, os sindicatos, e as suas interações com o estado. Em vez de tomá-los como prontos e estáveis e, logo em seguida, analisar os seus efeitos, defendemos a pesquisa por meio da descrição de seu contínuo processo de formação. Formação que poderia ser metodologicamente observada nos agenciamentos das controvérsias nas quais se envolvem ou que os permeiam e, por meio dos quais, cada grupo ganha existência pública (DeLanda 2006DeLanda, Manuel. 2006. A new philosophy of society. Assemblage theory and social complexity. London: Continuum.; Deleuze e Guattari 1980Deleuze, Giles, e Felix Guattari. 1980. Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit.).
Na primeira parte do artigo, descrevemos nossas três pesquisas e as suas peculiaridades, apontando o que há de heterogêneo e instável nesses fenômenos. Na segunda, retomamos cada uma dessas ideias em quatro tópicos teórico-metodológicos: heterogeneidade e instabilidade, agenciamentos, controvérsias e observação dos processos na longa duração. A composição entre as duas partes nos leva a construir a hipótese de que movimentos, políticas públicas e órgão do estado que se mantém ativos na longa duração são resultado de agenciamentos de elementos internos e externos heterogêneos permitindo seu contínuo envolvimento em novas controvérsias públicas.
Três pesquisas
Nesta primeira seção, apresentamos estudos sobre o Movimento Sem-Terra – Landless People's Movement (LPM) da África do Sul (Rosa 2015Rosa, Marcelo Carvalho. 2015. A journey with the Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) across Brazil and on to South Africa. Études Rurales 196: 43-56. https://doi.org/10.4000/etudesrurales.10371.
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); o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) (Penna 2015Penna, Camila. 2015. Conexões e controvérsias no Incra de Marabá. Rio de Janeiro: Garamond.) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) (Carvalho 2018Carvalho, Priscila Delgado. 2018. A produção do transnacional: compilações da agricultura familiar e camponesa na Contag e no MPA. Tese em Ciência Política, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil.). Indicamos as diferentes condições nas quais se deram as pesquisas, bem como as maneiras pelas quais fomos levadas a articular teoria e metodologia. As três mostram diferentes aspectos das interações entre os movimentos e deles com o estado e são aproximadas aqui como pontos de partida para a reflexão indutiva proposta no artigo.
Sem terras e apartheid na longa duração
O LPM e seus ativistas
O Landless People's Movement da África do Sul foi organizado oficialmente em 2001. A sua formação ocorre a partir de comitês locais de reparação organizados por Organizações não governamentais (ONGs) ainda durante o apartheid para mitigar os efeitos Natives Land Act de 1913, que reservou 90% das terras do país para a população branca (Ntsebeza e Hall 2007Ntsebeza, Lungisile, e Ruth Hall, eds. 2007. The land question in South Africa: the challenge of transformation and redistribution. Cape Town: HSRC Press.).
Os acordos que permitiram o fim do apartheid em 1994 cristalizaram-se na Constituição de 1996. Nela foi prevista uma política oficial de reparação e redistribuição das terras rurais do país. A cifra presente nos documentos previa transferir a propriedade de 30% destas terras para a população negra. Em 2005, dez anos após o fim do apartheid, os números sobre a redistribuição eram divergentes, mas estavam abaixo de 3% (Greenberg 2007Greenberg, Stefen. 2007. The landless people's movement and the failure of post-apartheid land reform. In Voices of protest: social movements in post-apartheid South Africa, organizado por Richard Ballard, Adam Habib e Imraan Valodia, 133-154. Scottsville: University of KwaZulu-Natal Press.).
A frustração com os governos do Congresso Nacional Africano (ANC) contribuiu para que uma rede de ONGs, o National Land Committee (NLC), reunisse os comitês de reparação locais em um mesmo grupo.5 5 Os comitês de reparação locais foram formados no período final do apartheid para denunciar a remoção forçada da população rural para as áreas de reserva étnica, os chamados bantustões (Rosa 2012a). O último estágio desse processo foi a formação do Landless People's Movement, com representantes de todas as 11 províncias do país, no ano de 2001.
A forma mais comum de descrever a formação do movimento foram as frustrações e promessas não cumpridas de uma reforma agrária que reparasse os efeitos do apartheid (James 2007James, Deborah. 2007. Gaining ground? Rights and property in South African land reform. Abingdon: Routledge-Cavendish. https://doi.org/10.4324/9780203945391.
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; Rosa 2012bRosa, Marcelo Carvalho. 2012b. A terra e seus vários sentidos: por uma sociologia e etnologia dos moradores de fazenda na África do Sul contemporânea. Sociedade e Estado 27: 361-385. https://doi.org/10.1590/S0102-69922012000200008.
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). No entanto, é preciso considerar que o movimento foi formado poucos meses antes da Conferência Mundial Contra o Racismo de 2001, em Durban. Durante as demonstrações públicas daquele evento, o movimento foi visto pela primeira vez nas ruas. A sua segunda aparição pública foi no ano seguinte (2002), dessa feita nas ruas de Joanesburgo na Cúpula Mundial de Desenvolvimento Sustentável.
Nos dois eventos, que atraíram a atenção global para a África do Sul, se formaram redes de apoio internacional, ONGs locais e indivíduos participantes dos comitês de reparação para performar o landless sul-africano. Para quem observou in loco ou pesquisa as imagens de arquivo, foi possível notar que nesses eventos o LPM performou para o mundo um landless que associava racismo, desenvolvimento rural e apartheid.
Esta pesquisa teve início em 2005, momento no qual ocorreu a primeira cúpula nacional da terra na África do Sul (National Land Summit). Naquele evento, participamos de marchas e protestos do LPM dentro e fora do centro de convenções em Joanesburgo. No início da pesquisa, o movimento colhia ainda os frutos de 2001 e 2002, ocupando sempre um lugar central nos eventos e na mídia. Em 2016, na Conferência Internacional da FAO sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural, em Porto Alegre, Brasil, o LPM participou tanto do evento oficial quanto do evento alternativo promovido por movimentos sociais.
Naquele momento, o movimento possuía uma sede em Joanesburgo e outra na província de Kwazulu-Natal, no escritório de uma das ONGs. As performances do movimento rendiam também recursos financeiros para manutenção das ONGs e para as atividades de pesquisadores que tomavam o LPM como objeto.
O LPM se tornou membro da Via Campesina e passou a receber visitas de militantes do MST. Os militantes dos dois movimentos se conheciam pela ação de ONGs (uma delas, baseada na Inglaterra, financiou as visitas de militantes brasileiros à África do Sul) nos Fóruns Sociais Mundiais ocorridos em Porto Alegre.
Em 2006, a sede nacional do movimento foi fechada em meio a disputas internas ao National Land Committee sobre a continuidade das relações com o estado, com o governo do Congresso Nacional Africano (ANC) e o apoio à reforma agrária radical do vizinho Zimbábue. Reuniões nacionais eram eventualmente realizadas com recursos de ONGs locais e, poucos meses depois, o próprio National Land Committee deixou de existir (Mngxitama 2006Mngxitama, Andile. 2006. The taming of land resistance: lessons from the National land committee. Journal of Asian and African Studies 41 (1-2): 39-69. https://doi.org/10.1177/0021909606061747.
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). Daquele ano em diante, concentramos a pesquisa com as lideranças do movimento em Kwazulu-Natal, onde a sede local do LPM ainda se manteve até 2010, quando o apoio financeiro da ONG local foi também suspenso.
Depois disso, lideranças locais ainda mobilizaram recursos financeiros vindos diretamente da mesma ONG que bancou as visitas do MST, e criaram uma sede em outra cidade. Quando os recursos acabaram, a sede fechou restando apenas lideranças e trabalhos locais. Sem o apoio de ONGs, as colaborações com o MST deixaram de ocorrer e o movimento brasileiro passou a orientar seu foco no intercâmbio para o Moçambique.6 6 No Moçambique o MST estabeleceu laços com a União Nacional de Camponeses (Unac), que possuía estruturas organizacionais permanentes e que compartilhava de um modelo de formação política alinhado aos valores e termos usados pela Via Campesina.
As escalas foram sendo alteradas, conforme o movimento se transformava. A pesquisa mudou das estruturas e eventos públicos para os militantes. Sem eventos públicos e grandes encontros, o movimento foi declarado morto pelos acadêmicos locais (Ntsebeza 2013Ntsebeza, Lungisile. 2013. South Africa's countryside: prospects for change from below. In The promise of land. Undoing a century of dispossession in South Africa, organizado por Fred Hendricks, Lungisile Ntsebeza e Kirk Helliker, 130-156. Auckland Park: Jacana.).
Entre 2011 e 2014 visitamos as casas de indivíduos diferentes que faziam parte do LPM. Aqueles que tiveram posições de representação ou liderança no movimento continuavam envolvidos com a mediação de conflitos por terra e ainda se identificavam como parte do LPM, interagindo individualmente com ONGs, igrejas e o estado. Os grupos, heterogêneos, eram formados por pessoas com múltiplas conexões que nunca estiveram limitadas ao LPM ou a ONGs. Esses indivíduos transportavam e modificavam o conteúdo do movimento em cada contexto, figuração e escala que ajudavam a formar.
Seguindo os rastros do movimento
Ao declarar o LPM morto, pesquisadores constatavam que os actantes7
7
O termo actante é tomado das obras de Bruno Latour. Em nosso diálogo teórico, o termo se mostra relevante porque descreve elementos de pesquisa que somente existem e têm efeitos na medida em que estão associados a outros elementos. Quando mudam as conexões, mudam também as propriedades de todos os actantes envolvidos. O termo é central para o estabelecimento da noção de ator-rede.
e as associações agregadas na sua formação já não eram mais observados. Não existiram mais eventos globais na África do Sul, tampouco eventos nacionais para debater o tema da terra. Os conflitos entre ONGs descritos por Mngxitama (2006)Mngxitama, Andile. 2006. The taming of land resistance: lessons from the National land committee. Journal of Asian and African Studies 41 (1-2): 39-69. https://doi.org/10.1177/0021909606061747.
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e a diminuição dos recursos internacionais, afetaram a capacidade de tornar o LPM visível para além de os seus ativistas. Ao mesmo tempo, a mudança de planos do MST para África afetou o apoio e a visibilidade internacional do movimento.
Quem seguia as conexões acima já não encontrava o agregado heterogêneo que chamaram de LPM. O ponto central é que nossos projetos trataram, no início, do LPM como um agregado de todos os objetos acima. Escrevemos sobre o LPM como se os seus ativistas fossem parte de uma metafísica política homogênea que era o sem-terra produzido pelo apartheid (Latour 2005Latour, Bruno. 2005. Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory. Oxford: Oxford University Press., 117).
O interesse sociológico sobre o quê de fato agregava o LPM e as ONGs, começa a surgir após a desagregação daquela díade. O movimento deixa lentamente de ser visto como resultado natural da revolta contra o apartheid para se converter em um agregado frágil, específico, localizado no tempo e no espaço. A descrição do movimento passou a depender dos efeitos e da estabilidade de muitos outros actantes. Para além de descrever os seus manifestos ou as suas performances em eventos públicos, a pesquisa precisou acompanhar lentamente todos os elementos que geraram efeitos no e do movimento ao longo do tempo e do espaço.
A descrição na longa duração desses elementos e os seus efeitos teve que lidar com a instabilidade e efemeridade das conexões e, eventualmente, encontrar elementos mais estáveis. A explicação presente nos textos sobre o LPM (Ntsebeza e Hall 2007Ntsebeza, Lungisile, e Ruth Hall, eds. 2007. The land question in South Africa: the challenge of transformation and redistribution. Cape Town: HSRC Press.; James 2007James, Deborah. 2007. Gaining ground? Rights and property in South African land reform. Abingdon: Routledge-Cavendish. https://doi.org/10.4324/9780203945391.
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; Greenberg 2007Greenberg, Stefen. 2007. The landless people's movement and the failure of post-apartheid land reform. In Voices of protest: social movements in post-apartheid South Africa, organizado por Richard Ballard, Adam Habib e Imraan Valodia, 133-154. Scottsville: University of KwaZulu-Natal Press.) que conectava naturalmente apartheid e frustração com o não cumprimento das promessas pós-apartheid de redistribuição da terra, como o efeito que produziu o coletivo do movimento, não se sustentou na pesquisa. Os efeitos do apartheid persistiram no tempo, ao contrário do movimento. Nem um, nem outro podem ser descritos como determinantes da existência do LPM e da sua não continuidade.
Acompanhar o LPM nos levou às seguintes conclusões teórico-metodológicas:
-
se os elementos da controvérsia inicial ainda existem, o trabalho de conectá-los já não era mais feito ou não produzia o mesmo efeito. Nesse contexto, foi necessário reconstituir e descrever o modo de compilar (Law 2004Law, John. 2004. After method. Mess in social science research. London: Routledge. https://doi.org/10.4324/9780203481141.
https://doi.org/10.4324/9780203481141... ; Rosa 2015Rosa, Marcelo Carvalho. 2015. A journey with the Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) across Brazil and on to South Africa. Études Rurales 196: 43-56. https://doi.org/10.4000/etudesrurales.10371.
https://doi.org/10.4000/etudesrurales.10... ; Carvalho 2018Carvalho, Priscila Delgado. 2018. A produção do transnacional: compilações da agricultura familiar e camponesa na Contag e no MPA. Tese em Ciência Política, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil.) que os tornou eficazes para produzir o contexto inicial do movimento. -
os efeitos de outros actantes posteriormente inativos contribuíram para produzir o efeito de agregação que permitiu a curta existência do movimento nacional LPM;
-
os efeitos constituintes e os desagregadores do LPM são o resultado das conexões desiguais de actantes heterogêneos que produzem efeitos recíprocos.
Essas conclusões somente se tornaram possíveis porque a pesquisa seguiu o movimento e alguns dos seus elementos heterogêneos por mais de uma década. Período no qual se modificaram os efeitos, as performances e as condições do trabalho de agregação dos elementos heterogêneos observados.
Incra, movimentos sociais e heterogeneidade
As relações entre estado e movimentos sociais vêm sendo estudadas tomando-se como ponto de partida analítico a interação entre os atores estabilizados. A agenda de pesquisa nesse campo tem se dedicado a compreender a relação entre os atores da sociedade civil e os atores estatais e os seus efeitos para a produção de políticas públicas e para as organizações. Em diálogo com esse campo de estudos, realizamos, entre 2011 e 2013, uma pesquisa etnográfica no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), na Superintendência de Marabá, buscando compreender como movimentos influenciavam políticas.
Ao longo da pesquisa, foi ficando evidente que as fronteiras que demarcam os diversos atores são cambiantes e estão em constante processo de constituição. A compreensão das relações entre o Incra e os movimentos exigia tomar como ponto de partida sua heterogeneidade e instabilidade. A resposta para a questão de pesquisa demandava mais do que a explicação de como atores estabilizados interagem e geram efeitos uns sobre os outros. Tornou-se necessária a compreensão de como esses atores se conformam na medida em que se conectam entre si e com diversos outros actantes. É essa configuração que está na raiz das suas ações em momentos e contextos diversos.
Metodologia: seguindo os atores e as controvérsias
Foi adotada como estratégia metodológica a orientação da teoria do ator-rede de seguir os actantes a partir das pistas que deixam ao se relacionarem com outros actantes (Latour 2005Latour, Bruno. 2005. Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory. Oxford: Oxford University Press.). Começamos a acompanhar servidores que interagiam diretamente com representantes de organizações e a buscar documentos que continham traços da interação com as diferentes organizações que se conectavam com o Incra. A região estudada é caracterizada por forte atuação dos três principais movimentos rurais, Contag, Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf) e MST, e a interação com os diferentes setores da Superintendência era intensa e frequente.
Essa interação se dava de forma multifacetada e heterogênea. As múltiplas conexões que os servidores estabeleciam com representantes de movimentos variavam de acordo com contexto e situação, levando a cambiantes formatos de relação. A heterogeneidade era verificada não apenas olhando-se para os diferentes perfis de servidores responsáveis por executar tarefas similares. Ela também ficava evidente quando os mesmos servidores estavam em situações e espaços diferentes e se conectavam com os mesmos actantes (no assentamento ou na Superintendência; em reunião menor ou em reunião maior; em situações de contato face a face ou em resposta a um ofício). A pesquisa no arquivo do órgão regional permitiu constatar que as variações ao longo do tempo também eram significativas e expressavam diferentes agenciamentos das relações entre o Incra e os movimentos que se estabilizaram em diferentes períodos históricos (Penna 2018Penna, Camila. 2018. Gênese da relação de parceria entre Incra e movimentos sociais como modelo para implementação de políticas de reforma agrária. Lua Nova: Revista de Cultura e Política 105: 115-48. https://doi.org/10.1590/0102-115148/105.
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).
Para trabalhar com essa instabilidade, buscamos tratá-la não como possível ruído, mas como dado de pesquisa relevante. A ausência de um padrão identificável e mais ou menos permanente impossibilitava trabalhar analiticamente os dados por meio de uma classificação simples. Optamos por uma explicação na forma de uma descrição densa, que pudesse dar conta da heterogeneidade característica da interação entre o Incra e os movimentos. É importante ressaltar que descrever também é explicar (Geertz 2008Geertz, Clifford. 2008. Thick description: Toward an interpretive theory of culture. In The cultural geography reader, organizado por Timothy Oakes e Patricia L. Price, 41-51. London: Routledge.). Uma descrição capaz de traçar as conexões que conformam os agentes e os levam a ser e a agir de determinada forma em determinado contexto (sempre temporário) é uma explicação sociológica extremamente potente, notadamente para a apreensão de contextos sociais não estabilizados (Latour 2005Latour, Bruno. 2005. Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory. Oxford: Oxford University Press.).
Além de seguir os atores buscando identificar as conexões e os seus efeitos, foi adotado como estratégia metodológica o mapeamento de controvérsias. Controvérsias ou disputas públicas são objetos de pesquisa interessantes porque nelas as pessoas e os coletivos buscam se situar, trazem argumentos e provas para justificar a sua posição, expõem posicionamentos que nem sempre estariam explícitos em situações estabilizadas ou pacificadas (Boltanski e Thévenot 1999Boltanski, Luc, e Laurent Thévenot. 1999. The sociology of critical capacity. European Journal of Social Theory 2: 359-378. https://doi.org/10.1177/13684319922224464.
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; Latour 2005Latour, Bruno. 2005. Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory. Oxford: Oxford University Press.). O estudo na Superintendência levou à identificação de três grandes disputas públicas que atravessavam o seu cotidiano de trabalho e que tinham impacto direto ou indireto na relação com os movimentos sociais: o corte geracional e a concepção de cada geração sobre o trabalho na autarquia; as atribuições dos movimentos sociais na implementação de políticas; e a influência da política partidária no órgão. Há diferenças entre servidores mais velhos e mais novos quanto à percepção do papel do Incra e o significado de se trabalhar nele. A relação entre Incra e os beneficiários da reforma agrária foi sendo ressignificada ao longo do tempo, o que se faz evidente na disputa entre servidores novos e antigos, permitindo-nos constatar como a relação com os movimentos é central para a história institucional do órgão. Existem fortes divergências sobre o papel dos movimentos no processo de implementação da política de reforma agrária. Das mais reticentes às mais entusiastas posturas em relação à cooperação com os movimentos, os servidores têm concepções distintas pautadas por uma percepção normativa da técnica como orientadora do seu ofício, em oposição ao que entendem como uma conduta política. A controvérsia em torno da influência político-partidária na Superintendência tem caráter mais público que as outras porque assume formato de denúncia e é explicitada de forma mais frequente. As posições dos servidores estão relacionadas à utilização política do órgão em oposição à técnica como horizonte normativo da conduta na administração pública.
Movimentos e Incra ao longo do tempo
Por meio de pesquisa aos processos de colonização e de desapropriação arquivados no acervo local foi possível seguir as pistas deixadas pelos diferentes actantes que se conectaram com o Incra ao longo do tempo. Entre 1970 e 2012 as conexões que conformam o órgão estatal vão se alterando e ele vai se tornando uma coisa diferente. Até o final do regime militar predominam as conexões com as Forças Armadas e Policiais, com empresas, e com indivíduos pleiteantes de regularização de posse de terra, grandes e pequenas, sem mediação de organizações sociais. Com a redemocratização, organizações como sindicatos, entidades religiosas e associações de trabalhadores rurais passam a se conectar com o Incra, compondo um novo agenciamento caracterizado pelo reconhecimento de organizações representativas dos trabalhadores rurais.
Esse novo agenciamento, ainda que instável, implicou mudança na natureza do órgão estatal. O Incra passou a incorporar, paulatinamente, novos actantes em sua lógica organizativa e as conexões que caracterizam sua existência e prática vão se alterando ao longo do tempo (Penna 2018Penna, Camila. 2018. Gênese da relação de parceria entre Incra e movimentos sociais como modelo para implementação de políticas de reforma agrária. Lua Nova: Revista de Cultura e Política 105: 115-48. https://doi.org/10.1590/0102-115148/105.
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). Defendemos que a compreensão desse processo fluido de formação do estado a partir das conexões que o compõem requer uma premissa ontológica que o tome como um objeto heterogêneo e instável, cujos efeitos (na forma de políticas públicas) são sempre contingentes a agenciamentos estabilizados em determinados momentos no tempo.
Controvérsias e a transnacionalização da Contag
Em geral, estudos sobre transnacionalização veem potencial limitado na ação sindical (Keck e Sikkink 1998Keck, Margaret, e Kathryn Sikkink. 1998. Activists beyond borders. Ithaca: Cornell University Press.; Borras e Edelman 2016Borras Jr., Saturnino, e Marc Edelman. 2016. Political dynamics of transnational agrarian movements. Nova Scotia: Fernwood Publishing,). Porém, desde quando foi criada em 1963, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Conta-g) manteve articulações internacionais, que foram ampliadas e transformadas. Como foi possível, a um actante cujo perfil parecia não favorecer a inserção transnacional, construir articulações diversas e em constante reconfiguração? Para responder a isso, nossa pesquisa sistematizou um conjunto de interações que tiveram como efeito a inserção transnacional da Contag. Partindo do entendimento amplo de transnacionalização como práticas e enquadramentos inspiradas pelo engajamento com atores além das fronteiras nacionais (Alvarez 2000Alvarez, Sonia. 2000. A globalização dos feminismos latino-americanos. In Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos. Novas leituras, organizado por Sonia Alvarez, Evelina Dagnino e Arturo Escobar, 383-426. Belo Horizonte: UFMG., 3), a pesquisa descreveu a experiência da Contag por meio das controvérsias nas quais ela se inseriu (Latour 2005Latour, Bruno. 2005. Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory. Oxford: Oxford University Press.).
Observando controvérsias para ver associações
A investigação, realizada entre 2014 e 2017, teve como fontes documentos e publicações da Contag, entrevistas e observação de atividades. Nessas fontes, identificamos conexões – associações – estabelecidas com questões, temas e atores internacionais. Essa lista de associações foi, então, reorganizada aproximando temas e ações correlatos e identificando a quais disputas as controvérsias estavam relacionadas. Foram sistematizadas as seguintes controvérsias: a) sindicais, b) sobre condições de trabalho, c) sobre a liberalização do comércio internacional, d) sobre modelos de agricultura, e e) sobre a presença de mulheres. Em cada uma delas, foram descritos agenciamentos – a ação de colocar elementos em relação –, e como foram transformados ao longo do tempo.
Na controvérsia sindical, na década de 1960, relações eram atravessadas por disputas geopolíticas e possibilitavam acesso a recursos internacionais. Anos depois, quem procurasse por esses elementos não encontraria mais conexões fortes nem eventos relevantes, mas as conexões sindicais permaneceram transformadas, nos 1990 e depois, em alianças sobre temas como condições de trabalho em atividades vinculadas a empresas multinacionais (cana de açúcar e pecuária, entre outras) ou por via da realização de campanhas transnacionais. Mudaram temas, aliados, modos de se relacionar e o tipo de troca que permeava as conexões, bem como a própria composição da Contag, formada por grupos com origens políticas distintas e que equilibram forças dentro da confederação (Medeiros 2014Medeiros, Leonilde S. 2014. O sindicalismo rural nas últimas décadas: mudanças e permanências. In O sindicalismo na era Lula: paradoxos, perspectivas e olhares, organizado por Roberto Véras de Oliveira, Maria Aparecida Bridi e Marcos Ferraz, 247–282. Belo Horizonte: Fino Traço Editora.).
Das controvérsias aos modos de compilar
Neste texto, porém, não descreveremos cada uma das controvérsias; enfocaremos aquelas sobre liberalização do comércio internacional e sobre modelos de agricultura. A primeira ganhou relevância para Contag, inicialmente, nas disputas em torno das normas para agricultura na Organização Mundial do Comércio, depois adicionadas articulações da sociedade civil brasileira contra a Área de Livre Comércio das Américas e as tentativas iniciais de pautar o tema do trabalho rural no Mercosul. Foi nesses debates que a Contag começou a carregar um novo termo – a agricultura familiar – para suas demandas internacionais, refletindo mudanças importantes em sua plataforma política em meio a intensas disputas nacionais sobre o perfil do sindicalismo rural. Seu posicionamento internacional foi marcado pela busca de melhores condições para agricultores familiares nas negociações, aliada à presença discreta em protestos. Com apoio financeiro e político de ONGs, a Contag estabeleceu novas conexões, não sindicais, em debates internacionais.
Importante disputa permeia esse tema. No Brasil pós-redemocratização, movimentos sociais rurais emergiram e protagonizaram suas próprias articulações internacionais. Contag, MST e Comissão Pastoral da Terra (CPT) estiveram juntos na fundação da Coordenadora Latino-Americana de Organizações do Campo (Cloc), mas divergências em alguns posicionamentos, entre eles em como lidar com o nascente Mercosul, contribuíram para que essas associações se desfizessem. Como efeito desse processo, a Contag passou a buscar caminhos próprios para incidir sobre o Mercosul.
Ela foi, então, central na construção de uma organização regional, a Coordenadora de Organizações de Produtores Familiares do Mercosul (Coprofam). Aliada a esse novo actante que passou a povoar o ambiente internacional (por vezes, modificando-o), a Contag pode falar em nome de um coletivo mais amplo do que a sua representação nacional. Com a Coprofam, ajudou a construir um espaço no Mercosul para tratar de questões específicas da agricultura familiar, estabelecendo o que consideramos uma nova controvérsia, sobre o modelo de agricultura a ser priorizado nos países.
Na experiência da Contag, essa última controvérsia passa pela defesa de que agricultura familiar tem características específicas que precisam ser tomadas em conta em acordos internacionais e em políticas públicas nacionais por eles influenciados, sempre com a participação dos próprios agricultores e agricultoras. A Contag, junto com a Coprofam, carregou para o Mercosul a sua articulação entre agricultura familiar, políticas públicas e participação. Tendo sido capaz de produzir efeitos como a criação de uma instância do Mercosul para o tema – a Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar (Reaf) – e influência sobre políticas públicas para a agricultura em países do bloco, a articulação desses elementos passou a ser um novo “modo de compilar” (Law 2004Law, John. 2004. After method. Mess in social science research. London: Routledge. https://doi.org/10.4324/9780203481141.
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; Rosa 2015Rosa, Marcelo Carvalho. 2015. A journey with the Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) across Brazil and on to South Africa. Études Rurales 196: 43-56. https://doi.org/10.4000/etudesrurales.10371.
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). Uma maneira de agregar elementos que foi testada, rendeu frutos e passou a ser reproduzida, empregada em outras disputas. Mesmo não sendo possível saber de antemão quais efeitos teria ao ser associados a novos elementos, foi possível usá-la como ponto de partida.
Agricultura familiar, participação e políticas públicas foram carregadas pela Contag para outras articulações e também a carregaram, pois contribuíram para abrir novos caminhos internacionais. Sindicalistas rurais, homens e mulheres, passaram a frequentar espaços internacionais como a Comissão de Países de Língua Portuguesa; fizeram alianças com ativistas de outros países articulando-se ao Foro Rural Mundial e tornaram-se parte da coalizão que demandou à FAO um Ano Internacional da Agricultura Familiar (Aiaf), realizado em 2014.
Nesses debates a Contag fortaleceu sua presença internacional, com efeitos também internos, engajando mais sindicalistas em atividades além das fronteiras e intensificando novas controvérsias. Descrever esse percurso passa por acompanhar a ação da Contag em diversos espaços e escalas, sem definir a priori o que é a ação sindical transnacional. A ação, aqui, emerge como efeito dos agenciamentos, do contínuo trabalho de reunir coisas. Por vezes, elementos reunidos são capazes de produzir efeitos esperados pelos actantes. Quando isso ocorre, passam a se esforçar para manter tais elementos associados e a tentar usá-los em novas disputas, mesmo sem saber exatamente quais serão os efeitos em novas situações. Neste caso, o envolvimento da Contag em controvérsias internacionais produziu efeitos estabelecendo novas associações – corpos, objetos, debates, ideias – que passaram a compor tanto o que entendemos por transnacional como o que entendemos pela ação do movimento sindical. Os elementos mesmos que compõem o que é a Contag foram sendo disputados e transformados nessa trajetória.
Agenda teórico-metodológica para temas instáveis e heterogêneos
Descrever nossas três pesquisas teve como objetivo reconstruir heterogeneidades e mudanças durante processos de pesquisa. A análise conjunta das descrições nos conduziu a pensar movimentos e estado a partir das associações que estabelecem e dão existência aos coletivos. Isso implica que eles se transformam no curso de sua ação, na medida em que estabelecem novas articulações produzindo efeitos. Defendemos a ideia de que movimentos e estado existem na média e longa duração por serem coletivos heterogêneos e instáveis. Nesta segunda seção, retomamos quatro tópicos centrais para este tipo de pesquisa: heterogeneidade e instabilidade, agenciamentos, controvérsias e a observação de processos na longa duração.
Heterogeneidade e instabilidade
A compreensão da heterogeneidade do estado e da sociedade civil é parte importante da literatura sobre ativismo político contemporâneo na América Latina, incorporando as organizações da sociedade nos processos de construção democrática e disputa por projetos políticos (Dagnino, Olvera, e Panfichi 2006Dagnino, Evelina, Alberto Olvera e Aldo Panfichi, orgs. 2006. A disputa pela construção democrática na América Latina. São Paulo: Paz e Terra.). Nesta senda, estudos recentes têm apontado para a fragilidade analítica da demarcação de fronteiras rígidas entre estado e movimentos sociais (Abers e Von Bülow 2011Abers, Rebecca e Marisa Von Bülow. 2011. Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre estado e sociedade? Sociologias 13 (28): 52-84. https://doi.org/10.1590/S1517-45222011000300004.
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). Nesses casos, a heterogeneidade descreve a diversidade de perfis e de formatos interativos entre organizações da sociedade civil e diferentes esferas do estado (Abers, Serafim, e Tatagiba 2014Abers, Rebecca, Lizandra Serafim e Luciana Tatagiba. 2014. Repertórios de interação estado-sociedade em um estado heterogêneo: a experiência na era Lula. Dados 57 (2): 325-357. https://doi.org/10.1590/0011-5258201411.
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; Abers, Silva, e Tatagiba 2018Abers, Rebecca, Marcelo Kunrath da Silva e Luciana Tatagiba. 2018. Movimentos sociais e políticas públicas: repensando atores e oportunidades políticas. Lua Nova: Revista de Cultura e Política 105: 15-46.).
Em nossas pesquisas, porém, a heterogeneidade foi sendo encontrada no interior do estado e na própria existência dos coletivos que estudamos. Em outras palavras, nossas pesquisas entendem esse conceito para além da consequência empírica da pluralidade das interações, mas relacionado à formação e existência dos atores coletivos, à sua ontologia. Ela se refere à forma como entendemos a composição destes atores por meio das contínuas e desiguais associações que estabelecem interna e externamente.
Instabilidade, por sua vez, foi sendo observada na medida em que reunimos materiais sobre a longa duração dos objetos, como será descrito a seguir. Do nosso ponto de vista, ela pode ser observada nos períodos de maior ou menor atividade – na organização interna e nas expressões públicas –, e também no engajamento em novas controvérsias que podem ser consideradas como contraditórias em relação ao passado.
Encontramos essa articulação entre heterogeneidade e instabilidade no trabalho de Alvarez (2014)Alvarez, Sonia. 2014. Para além da sociedade civil : reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu 43: 13-56. https://doi.org/10.1590/0104-8333201400430013.
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que, descrevendo a complexidade do campo e dos movimentos feministas, demonstra a tensão entre a hegemonia discursiva homogeneizadora e a composição heterogênea dos diversos coletivos de mulheres desde a década de 1970. A autora explora como a questão racial e a geracional multiplicaram as possibilidades de articulação e lançaram luz sobre as desigualdades das articulações feministas. Articulações que envolveram agendas de ONGs, de organizações internacionais, de partidos políticos e do estado. A análise teórica de Alvarez (2014Alvarez, Sonia. 2014. Para além da sociedade civil : reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu 43: 13-56. https://doi.org/10.1590/0104-8333201400430013.
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, 45-46) demonstra que a permanência dos movimentos feministas se deve, como sugerimos para as pesquisas que aqui reunimos, à própria miríade de elementos e às transformações das “teias e discursos articuladores” de um momento e espaço para outro.
A necessidade de adequação de foco, observada em nossas pesquisas e na descrição de Alvarez (2014)Alvarez, Sonia. 2014. Para além da sociedade civil : reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu 43: 13-56. https://doi.org/10.1590/0104-8333201400430013.
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, conduzem a autora a sugerir uma mudança, com implicações epistemológicas, também na unidade de análise. Os focos recairiam justamente nos universos parciais de compartilhamento que se montam em cada contexto.
É neste ponto que vislumbramos a interlocução com as propostas de Mol (1999)Mol, Annemarie. 1999. Ontological politics. A word and some questions. The Sociological Review 47 (S1): 74-89. https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1999.tb03483.x.
https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1999...
e Law (2004)Law, John. 2004. After method. Mess in social science research. London: Routledge. https://doi.org/10.4324/9780203481141.
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em favor da política ontológica como postura epistemológica na ciências sociais. Acreditamos que o conjunto de pesquisas apresentado sugere a existência e a necessidade de produção teórico-metodológica de uma ontologia política específica que seria constituída por elementos heterogêneos e instáveis, com pesos e consequências desiguais ao longo do tempo. Considerar a existência de coletivos nesses termos significa enunciar outra forma legítima de fazer e descrever a pesquisa. Na média e longa duração, cada contexto de pesquisa, sempre parcial, teria diferentes elementos agregadores (Latour 2005Latour, Bruno. 2005. Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory. Oxford: Oxford University Press.), como indivíduos, discursos, legislações, cargos na burocracia, corpos, terra e cor da pele produzindo efeitos mais e menos significativos sobre a existência do coletivo.
Apostar na ontologia da heterogeneidade carrega consigo a postura metodológica de admitir a parcialidade e o limite empírico de nossas pesquisas. Ao contrário de buscar ou de aplicar um dispositivo político social singular, utilizando os termos de De la Cadena (2015)De la Cadena, Marisol. 2015. Earth beings: ecologies of practice across Andean worlds. Durham: Duke University Press. https://doi.org/10.1215/9780822375265
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, devemos descrever as articulações que foram possíveis de traçar em nossas pesquisas admitindo que eles não são somente aquilo. Nossas pesquisas e objetos seriam sempre prescrições situadas nos efeitos políticos de conjuntos parciais de conexões limitados no tempo e no espaço (Law 2004Law, John. 2004. After method. Mess in social science research. London: Routledge. https://doi.org/10.4324/9780203481141.
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, 155).
Agenciamentos
Como sugerimos anteriormente, a pesquisa com esse tipo de objeto requer condições práticas para que voltemos uns passos antes de os coletivos chegarem às ruas ou da implementação de certa política pública. Considerando que os objetos da bibliografia consagrada são coletivos heterogêneos que, circunstancialmente, se apresentam como estabilizados ou homogêneos, nossas descrições deveriam voltar-se para o trabalho de articulação que permitiu sua formação.
Assim, a ação seria o trabalho de colocar elementos heterogêneos em relação, eventualmente produzindo um movimento ou o estado. Essa noção é epistemologicamente próxima do que se tem chamado de assemblage ou agenciamentos. Em Deleuze e Guattari (1980)Deleuze, Giles, e Felix Guattari. 1980. Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit. o termo agencement designa um esforço em não priorizar
nem o estado das coisas nem as declarações sobre elas, mas suas conexões, que implicam a produção de um sentido que as excede e do qual, transformadas, elas agora são parte” (Phillips 2006Phillips, John. 2006. Agencement/Assemblage. Theory, Culture & Society 23 (2-3): 108-109. https://doi.org/10.1177/026327640602300219.
https://doi.org/10.1177/0263276406023002... , 108).
Usado aqui no lugar da tradução mais comum para o inglês (assemblage), o termo agenciamento busca reforçar a relevância do agir, por meio do qual os elementos heterogêneos são colocados em relação, em performances cujos efeitos são visíveis e descritíveis na pesquisa. Os agenciamentos produziriam continuamente a diferença que mantém os movimentos existindo no tempo e no espaço (DeLanda 2006DeLanda, Manuel. 2006. A new philosophy of society. Assemblage theory and social complexity. London: Continuum.). Esta noção não é completamente estranha aos estudos de movimentos sociais no Brasil, tendo sido mobilizada por Doimo (1995)Doimo, Ana Maria. 1995. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70. Rio de Janeiro: Anpocs..
Descrever como, quando e onde ocorrem esses agenciamentos seria, portanto, o procedimento mais apropriado para lidar e produzir estes objetos instáveis como pode ser observado em Penna (2018)Penna, Camila. 2018. Gênese da relação de parceria entre Incra e movimentos sociais como modelo para implementação de políticas de reforma agrária. Lua Nova: Revista de Cultura e Política 105: 115-48. https://doi.org/10.1590/0102-115148/105.
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. Mas como fazer esta descrição? Ela não pode ser feita nos termos e elementos purificados da ontologia que forjou os significados estabilizados de movimento e estado. As teorias sobre movimentos sociais já nos indicam olhar além dos problemas para compreender a mobilização – algumas mais preocupadas com as dinâmicas em torno de recursos, oportunidades e repertórios (McAdam, Tarrow, e Tilly 2001McAdam, Doug, Sidney Tarrow e Charles Tilly. 2001. Dynamics of contention. Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511805431
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), outras com a construção das identidades, resultados contingentes da interação entre múltiplas forças que trocam, negociam e engajam-se em conflitos (Melucci 1996Melucci, Alberto. 1996. Challenging codes. Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511520891.
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). Compartilhando da preocupação sobre como as pessoas agem juntas, partimos, porém, de um entendimento da ação como efeito instável de coletivos heterogêneos, o que requer estudar como esses últimos são formados, parcialmente estabilizados e continuamente modificados. Essa tarefa é facilitada quando atentamos aos agenciamentos.
Nas pesquisas com o LPM, o Incra e a Contag, nos deparamos sempre com elementos inauditos. Diante dos desconcertos e das ambiguidades empíricas, precisamos nos alimentar das coisas e dos termos trazidos à cena pelos próprios objetos. Assim, os componentes dos movimentos nos auxiliaram na produção e ampliação das nossas ontologias políticas teoricamente estabilizadas. Mas quando e como estas coisas poderiam ser mais bem observadas?
Controvérsias
Pesquisadoras, em geral, não dispõem de tempo para permanecer seguindo os coletivos e seus elementos ininterruptamente, tampouco se mantêm em alerta constante para sua infinita heterogeneidade. Inspiradas em textos fundantes da teoria do ator-rede, encontramos no envolvimento dos coletivos que pesquisamos em situações de controvérsias públicas um lugar privilegiado para os observar e descrever. Nelas, os diversos envolvidos precisam constantemente trazer novas questões e elementos para a disputa (Latour e Wolgar 1997Latour, Bruno, e Steve Woolgar. 1997. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará.; Latour 2005Latour, Bruno. 2005. Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory. Oxford: Oxford University Press., 256).
Diferente da proposta de Latour, o foco que propomos não estaria no entendimento da controvérsia em si, ou seja, na controvérsia como objeto da pesquisa. O objeto são os coletivos e, sobretudo, a formação dos coletivos quando se envolvem em controvérsias – porque eles têm que demonstrar a que se associam e como. Assim, nós as tomamos como ferramentas metodológicas a partir das quais construímos as narrativas.
O coletivo agenciado, o movimento ou o estado, potencialmente se conectaria de forma ininterrupta com controvérsias produzidas em vários espaços. Como nas três pesquisas deste texto, os movimentos e os Estados podem ser seguidos no seu constante agenciamento de elementos para engajamento em controvérsias. Como pode ser observado no LPM, quando a heterogeneidade de conexões diminui, o movimento se estabiliza e corre o risco de se desagregar publicamente quando se torna dependente de uma única relação (com um grupo pequeno e homogêneo de ONGs).
Por outro lado, a internacionalização da Contag aponta para o fato de que os movimentos que perduram se envolvem em diversas controvérsias, inclusive simultâneas. Quando uma delas se estabiliza, os componentes heterogêneos do movimento agenciam o envolvimento em novas controvérsias. O mesmo ocorre com o Incra, os actantes e conexões envolvidos em sua constituição mudaram ao longo da sua existência e constituíram diferentes agenciamentos ao longo do tempo. As controvérsias são, portanto, o momento mais propício para descrever agenciamentos e as ontologias em constante processo de formação seja um movimento ou um órgão do estado.
Duração
Em termos metodológicos, a observação e descrição de heterogeneidades, agenciamentos e controvérsias exige a organização da pesquisa de forma específica. Assim como faz Alvarez (2014)Alvarez, Sonia. 2014. Para além da sociedade civil : reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu 43: 13-56. https://doi.org/10.1590/0104-8333201400430013.
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, ao descrever o feminismo e seus movimentos, em nossas pesquisas que a heterogeneidade é perceptível em todos os espaços quando o alcance temporal da pesquisa é longo.
Nas pesquisas que aqui reunimos, o tempo nos permitiu presenciar momentos mais e menos intensos dos movimentos, assim como períodos de maior e menor visibilidade pública. Possibilitou, ainda, que interagíssemos com diversas porta-vozes, algumas que desapareceram, outras que permaneceram e novas, que se agregaram depois de muitos anos. Cada uma dessas porta-vozes trouxe elementos diferentes, lhes atribuiu diferentes pesos e, como vimos, deu visibilidade a uma controvérsia específica. As pesquisas observaram ainda as mesmas porta-vozes mudando de opinião e se associando a outras pessoas, legislações e instituições dentro o fora dos limites do movimento ou do órgão do estado inicialmente esboçado.
Seguir essa dinâmica não depende apenas da vontade das pesquisadoras e de um bom desenho de pesquisa. Isso está relacionado à disponibilidade de recursos, condições institucionais e individuais de pesquisa, além dos próprios coletivos com os quais trabalhamos. Diferente dos estudos de Alvarez (2014)Alvarez, Sonia. 2014. Para além da sociedade civil : reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu 43: 13-56. https://doi.org/10.1590/0104-8333201400430013.
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e Rosa (2015)Rosa, Marcelo Carvalho. 2015. A journey with the Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) across Brazil and on to South Africa. Études Rurales 196: 43-56. https://doi.org/10.4000/etudesrurales.10371.
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, os estudos sobre a Contag (Carvalho 2018Carvalho, Priscila Delgado. 2018. A produção do transnacional: compilações da agricultura familiar e camponesa na Contag e no MPA. Tese em Ciência Política, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil.) e o Incra (Penna 2015Penna, Camila. 2015. Conexões e controvérsias no Incra de Marabá. Rio de Janeiro: Garamond.) foram realizados no contexto de elaboração de teses e limitados pelas exigências desse tipo de pesquisa. A restrição no tempo de coleta de informações foi contornada pela combinação da pesquisa de campo, observações e entrevistas com a pesquisa documental. As porta vozes foram, em alguns momentos, documentos a partir dos quais traçamos trajetórias de longa duração dos coletivos. Neles podem ser observados os agenciamentos de novos elementos e, principalmente, as controvérsias públicas nas quais tanto movimentos quanto órgãos do estado se envolveram ao longo do tempo.
Conclusão
Termos como movimento e estado são centrais para debates e pesquisas sobre a dinâmica da vida política contemporânea. A nossa reflexão sobre esses temas emergiu do desafio colocado por pesquisas que complicavam a aplicação de propriedades sociológicas usualmente atribuídas tanto ao estado como aos movimentos. Desviar dos modelos significou observar, ontologicamente, o estado e os movimentos como coletivos que, sendo heterogêneos, são compostos e atravessados por elementos que não pertenceriam primordialmente a conjuntos conceitualmente finitos. A premissa fundamental é de que não podemos tomar como unidade analítica fechada termos como “estado” ou “movimento”. Assim, o principal efeito deste artigo foi a produção, a partir da pesquisa e diálogos teóricos, de uma definição ontológica de movimentos e do estado como coletivos cuja existência é marcada por contínuos agenciamentos de elementos heterogêneos e instáveis no fazer político.
Com esta proposição, buscamos construir condições alternativas aos modelos analíticos ancorados em perspectivas organizacionais e institucionais e, portanto, estabilizantes. Metodologicamente, defendemos ser necessário deslocar o foco do trabalho para um instante anterior ao analisado normalmente pela literatura que trata destes temas a partir de sua expressão como repertório de ação coletiva e política pública. Sugerimos assim, tomar como ponto central da pesquisa a compreensão de quais elementos, agenciados de forma específica e descritível, permitem que as coisas tomem os cursos que normalmente observamos e analisamos ao abordarmos efeitos tanto de estado como de movimentos. Dessa forma, ensejamos a possibilidade da construção de estudos sobre o trabalho ininterrupto de compilar e desagregar elementos que transformam continuamente os coletivos, permitindo sua existência de média e longa duração. Admitindo heterogeneidade e instabilidade, propomos estudar movimentos e estado na longa duração temporal, demarcando o contínuo agenciamento de elementos em diferentes engajamentos em controvérsias públicas.
De forma ampla, concluímos que quanto mais elementos um movimento tiver para se associar a controvérsias, mais condições ele terá de se manter existindo no espaço público. De forma análoga, quanto mais conexões e mais controvérsias pudermos produzir em nossa descrição, mais ampliaremos o alcance das pesquisas sobre coletivos políticos. A estabilidade de associações e de efeitos, com a qual tendemos a começar nossos textos, ganharia sentido analítico na medida em que fosse descrito o contínuo trabalho dos diversos actantes para ficarem juntos, abrindo-se a possibilidade de expandir a sociologia da vida política para lugares ainda pouco explorados e incertos.
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Agradecemos aos comentários, críticas e sugestões de três pareceristas anônimos. Advertimos que, apesar de termos incorporado diversos pontos, não houve espaço suficiente para inserir esclarecimentos teóricos específicos e, ainda, conservar as descrições de pesquisa. As lacunas não preenchidas aqui serão objeto de um texto especificamente teórico-metodológico no futuro instigado pelas competentes leituras críticas. Agradecemos a Sonia Alvarez pela primeira leitura crítica desse texto, pelas sugestões e comentários que nos levaram a publicá-lo. E aos colegas do Laboratório de Sociologia Não-Exemplar (UnB) pela atenta revisão crítica.
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Os comitês de reparação locais foram formados no período final do apartheid para denunciar a remoção forçada da população rural para as áreas de reserva étnica, os chamados bantustões (Rosa 2012aRosa, Marcelo Carvalho. 2012a. Landless: meanings and transformations of a collective action category in Brazil. Agrarian South: Journal of Political Economyhttps://doi.org/10.1177/227797601200100204
https://doi.org/10.1177/2277976012001002... ). -
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No Moçambique o MST estabeleceu laços com a União Nacional de Camponeses (Unac), que possuía estruturas organizacionais permanentes e que compartilhava de um modelo de formação política alinhado aos valores e termos usados pela Via Campesina.
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O termo actante é tomado das obras de Bruno Latour. Em nosso diálogo teórico, o termo se mostra relevante porque descreve elementos de pesquisa que somente existem e têm efeitos na medida em que estão associados a outros elementos. Quando mudam as conexões, mudam também as propriedades de todos os actantes envolvidos. O termo é central para o estabelecimento da noção de ator-rede.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Mar 2021 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2020
Histórico
-
Recebido
03 Jan 2020 -
Aceito
11 Mar 2020 -
Publicado
23 Dez 2020