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O novo espírito da depressão: imperativos de autorrealização e seus colapsos na modernidade tardia

The new spirit of depression: imperatives of self-realization and their collapses in late modernity

El nuevo espíritu de la depresión: imperativos de autorrealización y sus colapsos en la modernidad tardía

Resumo:

O artigo arrisca uma interpretação sociológica da suposta “pandemia de depressão” que assola a contemporaneidade. Os mal-estares psíquicos comumente descritos como experiências depressivas são compreendidos à luz das formas de subjetividade produzidas ou, pelo menos, encorajadas pela modernidade tardia. Com base no retrato sócio-histórico do “novo espírito do capitalismo” formulado por Boltanski e Chiapello, o texto defende que os atributos de iniciativa, empreendedorismo e adaptabilidade tornaram-se imperativos da individualidade contemporânea não somente no mundo do trabalho, mas também em diversos outros domínios existenciais, tais como o cuidado com o corpo e as relações erótico-afetivas. Sem desconsiderar a inflação de diagnósticos psiquiátricos como parte das causas por trás da alegada pandemia de depressão na atualidade, o trabalho sustenta que as formas muito reais de sofrimento psíquico classificadas nesses termos são a moeda reversa, por assim dizer, de demandas sistêmicas pela autorrealização individual: o colapso depressivo da iniciativa e a ausência de “projetos” substituem o “empreendedorismo de si”; a interrupção do movimento sobrepuja a adaptabilidade flexível do self a uma sociedade de mudanças aceleradas; e a experiência do isolamento existencial substitui a esperada comunicabilidade do sujeito-trabalhador contemporâneo como infatigável networker. O trabalho conclui com uma reflexão sobre os limites que a civilização contemporânea coloca à “ecologia psíquica” e à “economia energética” dos indivíduos nela imersos.

Palavras-chave
Depressão; Modernidade tardia; Capitalismo; Individualização; Aceleração

Abstract:

The article puts forward a sociological interpretation of the supposed “pandemics of depression” that assails the contemporary world. It approaches the modes of psychic suffering commonly described as depressive experiences in the light of an analysis of the forms of subjectivity produced or, at least, encouraged by late modernity. Based on the social-historical diagnosis of the ‘new spirit of capitalism’ formulated by Boltanski and Chiapello, the text defends that the attributes of initiative, entrepreneurship and adaptability have become normative imperatives for contemporary individuality, not only in the world of labor but in various other existential domains, such as the care of one's body and erotic-affective relationships. Without neglecting the inflation of psychiatric diagnoses as part of the causes behind the alleged pandemics of depression nowadays, the paper sustains that the very real forms of psychological suffering portrayed in such terms are the reverse coin, as it were, of contemporary demands for individual self-realization: the depressive collapse of initiative and the absence of “projects” replace the “entrepreneurship of the self”; the interruption of movement overwhelms the flexible adaptability of the self to a society of accelerated changes; and the experience of existential isolation replaces the expected communicability of the contemporary self as a restless networker. The text concludes with a reflection of the limits that contemporary civilization places on individuals’ “psychic ecology” and the “energetic economy”.

Keywords
Depression; Late Modernity; Capitalism; Individualization; Acceleration

Resumen:

El artículo busca una interpretación sociológica de la supuesta “pandemia de depresión” que azota la contemporaneidad. Los malestares psíquicos comúnmente descritos como experiencias depresivas son investigados a la luz de formas de subjetividad producidas o, al menos, alentadas por la modernidad tardía. Partiendo del retrato sociohistórico del “nuevo espíritu del capitalismo” formulado por Boltanski y Chiapello, el texto establece que los atributos de la iniciativa, emprendimiento y adaptabilidad se han convertido en imperativos de la individualidad contemporánea no solo en el mundo del trabajo, pero también en otros dominios existenciales, como el cuidado corporal y las relaciones erótico-afectivas. Sin desestimar la inflación de los diagnósticos psiquiátricos como parte de las causas de la supuesta pandemia de depresión en la actualidad, el trabajo sostiene que las formas muy reales de sufrimiento psicológico clasificadas en estos términos son la moneda inversa, por así decirlo, de las demandas sistémicas de autorrealización individual: el colapso depresivo de la iniciativa y la ausencia de “proyectos” reemplazan al “autoemprendimiento”; la interrupción del movimiento supera la adaptabilidad flexible del self a una sociedad de cambios acelerados; y la experiencia del aislamiento existencial reemplaza la comunicabilidad esperada del trabajador-sujeto contemporáneo como incansable networker. El artículo concluye con una reflexión sobre los límites que la civilización contemporánea establece a la “ecología psíquica” y a la “economía energética” de los individuos inmersos en ella.

Palabras clave
Depresión; Modernidad tardía; Capitalismo; Individualización; Aceleración

Introdução: o capitalismo e seus descontentes2 2 Com agradecimentos a Artur Perrusi, Christiane Girard, Cibele Barbosa, Diogo Corrêa, Leonardo Almeida, Mariana Cavalcanti, Mariana Pimentel, Simone Gomes e Tania Mara Almeida.

No seu livro O novo espírito do capitalismo, os sociólogos franceses Luc Boltanski e Éve Chiapello (2007Boltanski, Luc e Ève Chiapello. 2007. The new spirit of capitalism. London: Verso.) investigam as mutações estruturais do sistema capitalista a partir da inter-relação dinâmica entre suas gramáticas de autojustificação ideológica, de um lado, e as críticas a ele dirigidas ao longo da sua história, de outro. Assim, por exemplo, a reestruturação do capitalismo nas sociedades do Atlântico Norte a partir da década de 1930 poderia ser parcialmente interpretada, segundo os autores, como resposta à “crítica social” (2007, 38-40) que vicejara na fase anterior (i.e., industrial-liberal) do sistema. Na medida em que a crítica social atacava o capitalismo como um regime gerador de desigualdades distributivas injustas, muito da potência dessa crítica terminou neutralizado, por seu turno, pelo arranjo fordista-keynesiano que vigorou nos “Trinta anos gloriosos” (1945-1973). Diminuindo aquelas desigualdades através da combinação entre economia de mercado e estado de bem-estar social robusto, tal arranjo propiciou, no entanto, o desenvolvimento de uma modalidade de anticapitalismo que Boltanski e Chiapello designam por “crítica artística” (2007, 38-40). Diferentemente do que acontecia com a crítica social, a crítica artística, fosse feita em um idioma mais aparentado ao do Foucault (1977)Foucault, Michel. 1977. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes. analista da “sociedade disciplinar” ou ao do Marcuse (2006)Marcuse, Herbert. 2006. One-dimensional man. London: Routledge. crítico da “sociedade administrada”, dirigia os seus ataques primordiais aos mega-aparatos da economia industrial e da burocracia estatal, os quais garantiriam a conformidade dos indivíduos às custas de um sufocamento de sua autonomia, inventividade, espontaneidade etc. (Boltanski e Chiapello 2007Boltanski, Luc e Ève Chiapello. 2007. The new spirit of capitalism. London: Verso., 440).

Um dos aspectos mais originais da abordagem de Boltanski e Chiapello (2007Boltanski, Luc e Ève Chiapello. 2007. The new spirit of capitalism. London: Verso., 165-342) à reestruturação do capitalismo ao longo de linhas neoliberais, a partir da década de 1970, consiste em mostrar a influência paradoxal que teve a crítica artística naquela reestruturação. O desmonte dos mecanismos regulatórios e dos modelos de organização que alicerçavam o “capitalismo organizado” valeu-se, para fins de orientação prática e legitimação ideológica, das demandas outrora ventiladas pela crítica artística em prol de autonomia, flexibilidade, espontaneidade e criatividade nos âmbitos da economia e do trabalho. Tais atributos passaram a ser exigidos não somente das organizações, mas também dos participantes individuais do mundo do trabalho que desejassem permanecer valiosos no novo capitalismo. A preocupação de Boltanski e Chiapello com “gramáticas normativas” e “ordens de justificação” transborda para a sua análise do novo espírito do capitalismo na forma de um exame dos critérios pelos quais indivíduos adquirem valor ou “grandeza” nesse contexto de ação. Sob esse aspecto, a obra estabelece continuidade com o modelo analítico de sociologia da moral que Boltanski estabelecera anteriormente em parceria com Thévenot em De la justification (1991Boltanski, Luc e e Laurent Thévenot. 1991. De la justification. Paris: Gallimard.). Em diálogo com textos clássicos da filosofia política no Ocidente, os autores mobilizam a alegoria filosófica da “Cidade” para tratar das gramáticas axiológicas com base nas quais indivíduos podem ser tidos como “grandes” ou “pequenos” de acordo com seu grau de integração aos valores de uma ordem de grandeza particular (uma Cidade, com “c” maiúsculo e no sentido alegórico da filosofia política). A reestruturação do capitalismo pela incorporação criativa de motifs da crítica artística à sua própria lógica de funcionamento é evidenciada, segundo Boltanski e Chiapello (2007Boltanski, Luc e Ève Chiapello. 2007. The new spirit of capitalism. London: Verso., 103-164), pela emergência de uma “Cidade projetiva” ou “por projetos”. A ordem de grandeza dessa Cidade baseia-se essencialmente no critério da atividade (2007Boltanski, Luc e Ève Chiapello. 2007. The new spirit of capitalism. London: Verso., 109).

Em compasso com a mutabilidade radical do cenário de trabalho, a pessoa valorizada no novo capitalismo é aquela dotada de recursos que a permitem ser ativa para além de empregos, projetos e colaborações específicas. O indivíduo deve possuir (Boltanski e Chiapello 2007Boltanski, Luc e Ève Chiapello. 2007. The new spirit of capitalism. London: Verso., 103-164): a) a adaptabilidade necessária para ajustar continuamente as suas expectativas e competências às demandas de um mundo do trabalho no qual a mudança é a regra; b) a flexibilidade para lidar, simultaneamente ou em sequência, com tarefas bastante distintas entre si, no tocante às habilidades requeridas, ao perfil dos colaboradores etc. (2007, 122); c) a autonomia para formular os seus próprios projetos, bem como para se apropriar de tarefas propostas de maneira mais ou menos difusa; d) a disposição para assumir riscos, tomados como a contraparte necessária de uma atividade profissional caracterizada pelo incremento de autonomia; e) a postura sociável de alguém pronto para trabalhar em colaboração com diferentes grupos e perfis de profissionais, o que faz com que sua “personalidade” inteira (gentileza, “bom humor” etc.) se torne um atributo importante da sua empregabilidade; f) uma orientação inovadora, relacionada ao fato de que a empregabilidade do indivíduo depende também da sua capacidade de oferecer ao mercado competências raras e diferenciadas.

Autorrealização individual como imperativo sistêmico

O último ponto merece destaque. Em um texto perspicaz, Anders Petersen (2009)Petersen, Anders. 2009. Depression: a social pathology of action. Irish Journal of Sociology, 17 (2): 56-71. https://doi.org/10.7227/IJS.17.2.5.
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conecta o modelo normativo de individualidade hegemônico no novo capitalismo à ideia, formulada por Charles Taylor (1991)Taylor, Charles. 1991. The ethics of authenticity. Cambridge: Harvard University Press., de que a modernidade ocidental abriga uma “cultura da autenticidade” segundo a qual cada indivíduo deve realizar-se segundo uma concepção própria de boa vida. A crítica artística ao capitalismo estatalmente organizado sustentava que essa autorrealização autêntica da própria individualidade era impedida ou sufocada pelas forças do complexo industrial-burocrático, aquelas mesmas para as quais a teoria social crítica cunhou um rico vocabulário descritivo – da “gaiola de ferro” ou “rija crosta de aço” (Weber 2004Weber, Max. 2004. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes., 165) até a “sociedade disciplinar” (Foucault 1977Foucault, Michel. 1977. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes.), passando pelo “mundo administrado” (Adorno e Horkheimer 1985, 10) e o “homem unidimensional” (Marcuse 2006Marcuse, Herbert. 2006. One-dimensional man. London: Routledge.). Com a incorporação dos valores da crítica artística ao capitalismo, no entanto, a autorrealização autêntica da própria individualidade, antes reclamada por essa crítica como um direito ou oportunidade, tornou-se uma demanda. A exigência normativa de autorrealização dirigida aos indivíduos se conecta ao fato de que ela é um imperativo sistêmico do próprio modo de funcionamento do novo capitalismo – o ponto que Honneth (2004)Honneth, Axel. 2004. Organised Self-Realization: Some Paradoxes of Individualization. European Journal of Social Theory, 7 (4): 463-78. https://doi.org/10.1177/1368431004046703.
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pretendeu enfatizar com a noção um tantinho desajeitada de “autorrealização organizada”.

O trabalhador valorizado no terceiro espírito do capitalismo, empreendedor nomádico quanto às suas posições e aos seus contatos, assim como avesso a compromissos de longo prazo que atrapalhem o seu movimento contínuo, contrasta fortemente com o modelo de empregado típico do seu espírito anterior. No arranjo fordista-keynesiano da segunda fase, a ocupação segura de um posto profissional ao longo de vários anos dotava um indivíduo de “grandeza” moral, ao passo que o novo espírito do capitalismo impinge aos trabalhadores uma trajetória profissional muito mais incerta e desorganizada, em virtude da qual o valor do indivíduo no mundo do trabalho não está determinado de maneira estável, mas em contínua reavaliação. A crônica instabilidade do valor do indivíduo aos olhos do mercado é o que conecta o novo espírito do capitalismo a uma ética da autorrealização autêntica transformada em imperativo. A transição de um regime fordista de produção para um capitalismo de acumulação flexível significou também uma passagem da produção em massa de mercadorias homogêneas para uma exploração mercadológica de consumos, gostos e estilos de vida diferenciados. Em compasso com a crítica artística da homogeneização forçada dos indivíduos qua consumidores (e cidadãos), o novo capitalismo “celebra” a heterogeneidade como oportunidade comercial, conforme as mercadorias passam a ser produzidas e vendidas segundo nichos de mercado diferenciados (Hamlin e Peters 2018Hamlin, Cynthia e Gabriel Peters. 2018. Consumindo como uma garota: subjetivação e empoderamento na publicidade voltada para mulheres. Lua Nova, 103: 167-202. https://doi.org/10.1590/0102-138/103.
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). O princípio válido para as mercadorias, de maneira geral, é aplicável também às propriedades que determinam a empregabilidade de um indivíduo. O valor competitivo das suas capacidades produtivas não se mede apenas nas quantidades de uma mesma medida homogênea, mas também, e sobretudo, segundo características que o singularizem e o distingam em face de outros competidores (Boltanski e Chiapello 2007Boltanski, Luc e Ève Chiapello. 2007. The new spirit of capitalism. London: Verso., 461).

As ilustrações aventadas acima indicam que as capacidades demandadas dos indivíduos pelo novo capitalismo são, ao mesmo tempo, mentais e corpóreas, cognitivas e emocionais. Tais capacidades devem ser manejadas de modo tão harmônico quanto possível, mediante uma administração criativa que as faça favorecerem umas às outras em vez de se prejudicarem entre si. Boltanski e Chiapello (2007Boltanski, Luc e Ève Chiapello. 2007. The new spirit of capitalism. London: Verso.) apontam para a convivência tensa entre os imperativos da singularidade e da adaptabilidade: o indivíduo deve ser suficientemente distinto e independente para trazer algo novo e de valor para a organização, mas suficientemente adaptável para se inserir na organização de modo eficaz. A luta contínua para manter-se em movimento na dança do novo capitalismo envolve a habilidade malabarística de responder a exigências que implicam vários outros “trade-offs ” arriscados: horas suficientes de sono reparador, exercício físico, tempo de trabalho, ocasiões de sociabilidade que permitam o cultivo de habilidades relacionais etc.

Tomada como um “capital pessoal” (Petersen 2009Petersen, Anders. 2009. Depression: a social pathology of action. Irish Journal of Sociology, 17 (2): 56-71. https://doi.org/10.7227/IJS.17.2.5.
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, 61) passível de conferir ao indivíduo vantagens competitivas, a realização da própria individualidade é crescentemente vista como algo a ser cultivado ao longo da trajetória biográfica e profissional. Toda uma indústria bibliográfica de livros de autoajuda, vários dos quais escritos por gurus da literatura gerencial, entram em cena como auxílios “pedagógicos” nesses esforços de autocultivo voltados à manutenção do próprio valor empregatício. Não foi a troco de nada, nesse sentido, que Vandenberghe (2013Vandenberghe, Frédéric. 2013. What's critical about critical realism? London: Routledge., 286) viu nas implicações do trabalho de Boltanski e Chiapello (2007Boltanski, Luc e Ève Chiapello. 2007. The new spirit of capitalism. London: Verso.) uma convergência com os estudos da “governamentalidade neoliberal” liderados por Nikolas Rose (1999)Rose, Nikolas. 1999. Governing the Soul. London: Free Association Books.. Um montante significativo da energia intelectual que anima esse movimento neofoucaultiano se dirige precisamente a todo o repertório de técnicas e tecnologias, saberes e dispositivos pelos quais o capitalismo tardio “governa” os indivíduos, não pela supressão de sua liberdade, mas pela canalização e orientação de suas livres aspirações subjetivas. Em compasso com o acento de Foucault (1977Foucault, Michel. 1977. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes., 172) sobre o caráter “produtivo” (lato sensu) do poder, os regimes neoliberais não se exercem tanto sobre os indivíduos “a partir de fora”, mas “através” dos indivíduos, mediante a moldagem de seus desejos e competências subjetivas. O novo espírito do capitalismo depende, nesse sentido, da produção histórica de uma certa forma de subjetividade, cujos custos psíquicos aparecem como que em imagem reversa na condição depressiva.

O mal-estar na individualização

É contra esse pano de fundo sócio-histórico que podemos investigar a conexão entre o modelo normativo de individualidade no qual se ancora o novo capitalismo, de um lado, e um punhado de formas tipicamente contemporâneas de sofrimento psíquico, de outro (Bergh 2013Bergh, Bert van der. 2013. Self-fulfillment or self-erosion? Depression as key pathology of late modernity. In Rethinking madness, organizado por Gonzalo Araoz, Fátima Alves e Katrina Jaworski, 1-23. Oxford: Inter-Disciplinary Press.). Pioneira dentre esses estudos é a tematização sociológica da depressão, levada a cabo pelo autor francês Alain Ehrenberg (2009)Ehrenberg, Alain. 2009. The weariness of the self. Montreal: McGill-Queen's University Press.. Desde o título de seu primeiro livro sobre a síndrome por ele descrita como “la fatigue d’être soi ” (A fadiga de ser você mesmo), o autor já transmite um senso agudo da experiência depressiva como contraparte do modelo normativo de individualidade hegemônico nas sociedades contemporâneas. Centrada sobre as transformações nos critérios de diagnóstico psiquiátrico da depressão, a análise ehrenberguiana vai ao encontro de diversas outras perspectivas na sua apreensão de uma mudança nos regimes sócio-históricos de individualidade que vigeram na primeira e na segunda metade do século 20; ou, diria Zygmunt Bauman (1998)Bauman, Zygmunt. 1998. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., nas etapas “sólida” e “líquida” da modernidade.

O sociólogo polonês (Bauman 1998Bauman, Zygmunt. 1998. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.) descreve uma inversão na relação pendular entre “segurança” e “liberdade”, como ilustra a passagem da repressão vitoriana sobre o “id” para o imperativo do gozo na era do “amor líquido” ou, ainda, a transição do trabalho estável e fixo no período áureo do Estado de bem-estar para o trabalho instável e flexível no capitalismo neoliberal. De modo análogo, no que toca às formas de subjetividade com maior força normativa na moderna sociedade francesa, Ehrenberg (2009Ehrenberg, Alain. 2009. The weariness of the self. Montreal: McGill-Queen's University Press., 101) pinta uma transição de tempos neuróticos a “pós-neuróticos”. Em contraste com o sofrimento psíquico oriundo de uma repressão interiorizada que esmaga implacavelmente os próprios desejos do indivíduo, como no cenário de hipertrofia do superego que Freud (2013Freud, Sigmund. 2013. Luto e melancolia. São Paulo: CosacNaify., 57) encontrara na “melancolia”, o indivíduo moderno-tardio é menos contido por proibições do que exortado a realizações. Ele não é tanto dilacerado por conflitos interiores como por um hiato entre quem ele é e quem ele “poderia ser” (a “melhor versão possível de si mesmo”). Finalmente, a subjetividade moderna-tardia sente menos a culpa por suas aspirações do que a vergonha por não corresponder às expectativas nela depositadas por outros e por ela mesma (Ehrenberg 2009Ehrenberg, Alain. 2009. The weariness of the self. Montreal: McGill-Queen's University Press., 129).

Não por acaso, a imagem contemporânea da depressão na psiquiatria consiste praticamente na inversão da concepção de individualidade tornada imperativa na modernidade tardia. Ehrenberg (2009Ehrenberg, Alain. 2009. The weariness of the self. Montreal: McGill-Queen's University Press., 180) demonstra em detalhes como o entendimento da psiquiatria contemporânea, ao longo do último meio século, passou a apreender a condição depressiva, sobretudo como inação. O indivíduo deprimido é, nesse sentido, aquele indisposto para –ou incapaz de – atender à interpelação típica do ideal normativo de individualidade vigente na modernidade tardia. Nele, a letargia substitui a iniciativa; o encolhimento no senso de futuro substitui a formulação e a implementação de projetos de vida; a terrível experiência de si como fardo, frequentemente vivenciada no próprio corpo, toma o lugar do ânimo motivacional que possibilitaria persistir em um ou mais empreendimentos; a imobilidade prática e a rigidez expulsam a mobilidade e a flexibilidade versátil demandadas das subjetividades contemporâneas; e, por fim, o isolamento existencial sobrepuja a comunicabilidade que torna possível a participação em múltiplos e diversificados círculos sociais de apoio e influência (Fuchs 2014Fuchs, Thomas. 2014. Depression, Intercorporeality and Interaffectivity. In Depression, emotion and the self, organizado por Matthew Ratcliffe, 219-238. Exeter: Imprint Academic.; Ratcliffe 2015Ratcliffe, Matthew. 2015. Experiences of depression. Oxford: Oxford University Press.; Solomon 2014Solomon, Andrew. 2014. Noonday demon: an atlas of depression. New York: Scribner.).

O modelo de individualidade empreendedora que o novo espírito do capitalismo encoraja, quando não o exige sob pena de severas privações materiais e simbólicas, encontra a sua imagem reversa na figura do sujeito em depressão tal qual pintada pela psiquiatria contemporânea. Ao utilizar a terminologia psiquiátrica, não estou tomando a sua validade científica e a sua utilidade terapêutica como questões não problemáticas, mas apenas dirigindo meu foco para as formas de conduta e experiência que o vocabulário psiquiátrico pretende (bem ou mal) retratar. Se tivéssemos de esperar pela resolução das controvérsias quanto à credibilidade científica e à adequação terapêutica da noção de “depressão”, estaríamos até agora sem acessar as experiências efetivas às quais a noção se refere (correta ou incorretamente). Tais vivências individuais, bem como as circunstâncias sócio-históricas que contribuem para engendrá-las, terminam por escapar a interpretações da pandemia hodierna de depressão concentradas exclusivamente no fenômeno da “inflação de diagnósticos psiquiátricos”.3 3 Uma das interpretações sociológicas do significado da atual “pandemia de depressão” foi avançada por Horwitz e Wakefield (2007) em The loss of sadness (“A perda da tristeza”). Como o título de seu livro já sugere, os autores sustentam que o discurso sobre a “pandemia de depressão” não é referência fidedigna a um aumento efetivo nas ocorrências de tal psicopatologia, mas consequência de “uma transformação no pensamento psiquiátrico” (Horwitz e Wakefield 2007, 40). Através de um estudo dos critérios diagnósticos elencados pelos documentos mais influentes na atual definição clínica de distúrbios mentais, a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM-V) e a décima edição da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (ICD-10), eles concluem que a psiquiatria contemporânea tende crescentemente a enquadrar a tristeza “normal” na categoria patológica do transtorno depressivo. A suposta pandemia de depressão seria, nesse sentido, a resultante de uma inflação infundada no número de diagnósticos psiquiátricos. O trabalho de Horwitz e Wakefield capta um aspecto importante da relação entre a psiquiatria e a sociedade contemporâneas, mas perde em nuance e complexidade ao deixar de lado a pergunta sobre em que medida os modos de vida condicionados pela atual civilização capitalista produzem formas particulares (e particularmente intensas) de sofrimento psíquico, independentemente de como queiramos chamá-las.

Sim, não resta dúvida de que a psiquiatria contemporânea traz uma forte tendência a tomar como patológicas certas modalidades de conduta e experiência outrora tidas por normais, como o luto, a distração, a impulsividade e assim por diante (Türcke 2016Türcke, Christopher. 2016. Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. Rio de Janeiro: Paz e Terra.). Clara também é a poderosa influência da indústria farmacêutica sobre a pesquisa e a clínica psiquiátricas, influência que tende a se refletir no recurso de psiquiatras aos neurofármacos como modo privilegiado, quando não exclusivo, de tratamento do sofrimento psíquico nas suas diversas formas (Rose 2003Rose, Nikolas. 2003. Neurochemical selves. Society, 41(1): 46-59.). IsSo dito, lançar sobre a psiquiatria a maior fatia de responsabilidade pelo senso público quanto a uma proliferação de quadros depressivos em boa parte do mundo pode obstar uma investigação, acredito, sobre os laços efetivos entre tendências sociais e tribulações individuais na contemporaneidade. Haja ou não “pandemia de depressão” em um sentido medicamente justificável, cabe à sociologia reconhecer a realidade indisfarçável das formas de sofrimento psíquico produzidas, precipitadas e/ou reforçadas por certas forças estruturais da sociedade contemporânea, a começar pela tendência à individualização em função da qual problemas sistêmicos são abandonados a incertas tentativas de “solução” biográfica. O foco sobre o componente societal do sofrimento psíquico, como na conexão entre o “culto da performance” (Ehrenberg 2010Ehrenberg, Alain. 2010. O culto da performance. Aparecida: Ideias & Letras.) e o colapso da iniciativa individual na depressão (ou ainda, para dar um exemplo relacionado, no laço entre o aumento de transtornos de ansiedade e o crescimento da instabilidade no mundo do trabalho), é tanto mais urgente na medida em que frequentemente escamoteado, no senso comum e nos tratamentos psicoterapêuticos, por compreensões hiperindividualistas da “doença mental”. A discussão delineada aqui e alhures, graças às iniciativas pioneiras de autores como Alain Ehrenberg, procura evidenciar que o sofrimento depressivo, longe de redundar apenas de idiossincrasias individuais, é uma espécie de subproduto coletivo de um modo de vida que as sociedades contemporâneas impõem, em larga medida, aos seus membros individuais. Se a “atividade” é o critério axiológico decisivo para que um indivíduo seja imbuído de valor segundo o novo espírito do capitalismo, não surpreende que a depressão emerja na consciência pública como uma pandemia, sobretudo quando vista sob o prisma da “incapacitação” para o trabalho.

À luz de uma análise sociológica, a “subjetividade empreendedora” e “subjetividade depressiva” se revelam verso e reverso de uma mesma moeda sócio-histórica: o indivíduo excitadamente disposto a novas e variadas experiências dá lugar a um sujeito cuja suscetibilidade à experiência de prazeres e alegrias foi corroída; a orientação contínua para empreendimentos e projetos futuros dá lugar à dissolução da esperança de que o futuro venha a se distinguir do presente, sobretudo na medida em que tal futuro dependa da iniciativa “empreendedora” do próprio indivíduo; o “conexionismo” (Boltanski e Chiapello 2007Boltanski, Luc e Ève Chiapello. 2007. The new spirit of capitalism. London: Verso.) graças ao qual a atividade do indivíduo se entrelaça a redes de outros indivíduos aptos a conferir a ele “benefícios” diversos (dinheiro, reconhecimento, satisfação afetiva) dá lugar a uma experiência de solidão intransponível, como se a pessoa contemplasse, através de uma “redoma de vidro” (Plath 2019Plath, Sylvia. 2019. A redoma de vidro. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul.), um mundo de sujeitos e atividades que ela busca, mas é incapaz de alcançar; por fim, a disposição à atividade mental e corpórea, cognitiva e emocional, sem a qual não se adquire valor no novo capitalismo dá lugar a um corpo e a uma mente que resistem obstinadamente a agir, a despeito das tentativas crescentemente desesperadas do seu próprio “dono”, o qual termina por desistir do esforço e experimentar a sua existência corporal e psíquica como uma fonte exclusiva de limitação e sofrimento. Segundo essa grade interpretativa, em suma, o indivíduo em depressão é uma espécie de “empreendedor colapsado”.

O colapso do empreendedor

Estribado tanto na literatura psiquiátrica quanto em narrativas pessoais de indivíduos afligidos pela depressão, Matthew Ratcliffe (2015)Ratcliffe, Matthew. 2015. Experiences of depression. Oxford: Oxford University Press. elencou alguns dos traços mais comuns nessa condição existencial, já sugeridos logo acima: a diminuição severa da capacidade de experimentar prazeres e alegrias (“anedonia”); a desesperança quanto à chance de que o estado psíquico doloroso em que se está venha a terminar eventualmente; uma vivência de solidão e isolamento radical diante dos outros, como se uma barreira existencial difusa se interpusesse entre a pessoa e os ambientes sociais em que ela circula; uma experiência do próprio corpo não mais como instrumento prático da projeção de si no mundo, mas, ao contrário, como um fardo que é preciso carregar, o que faz com que as atividades mais ordinárias (como, por exemplo, levantar da cama, trocar de roupa ou escovar os dentes) sejam vividas como esforços hercúleos. A literatura interdisciplinar sobre tais vivências depressivas, sobretudo quando se ocupa com a descrição minuciosa de tais vivências, já coligiu uma quantidade impressionante de contundentes depoimentos pessoais acerca delas. Os relatos evidenciam também que as dolorosas experiências mencionadas ocorrem frequentemente de modo entrelaçado:

Você nomeia coisas para si mesma que costumava amar fazer. Comer! Sexo! Até ler um livro. Sair para dar uma volta na mata. Você…não pode sequer se lembrar como é sair para fazer alguma coisa e sentir prazer nisso. […] Já que você não pode tirar nenhum prazer ou satisfação de algo, você…chega neste ponto terrível em que não há razão para se mover porque não há nada lá fora para você. (citado por Karp 1997Karp, David A. 1997. Speaking of sadness: Depression, disconnection, and the meanings of illness. Oxford: Oxford University Press., 32).

É como se alguém estivesse segurando um fósforo que está aceso […] e a chama está muito quente […] e você tenta suportar […] e ela apenas te consome mais e mais até o fim, […] e a parte que está consumindo é a desesperança completa. […] a coisa mais fácil a fazer é deitar e se deixar ser consumida. (citado por Karp 1997Karp, David A. 1997. Speaking of sadness: Depression, disconnection, and the meanings of illness. Oxford: Oxford University Press., 29).

Eu não podia alcançar outros seres humanos. Havia…uma distância insondável entre mim e qualquer outro ser humano, e era desesperadoramente importante ser capaz de preencher aquele hiato. (citado por Ratcliffe 2015Ratcliffe, Matthew. 2015. Experiences of depression. Oxford: Oxford University Press., 10).

Com a depressão, […] o ar parece espesso e resistente, como se estivesse cheio de massa de pão. […] É como sentir a roupa em seu corpo lentamente transformando-se em madeira, uma rigidez nos cotovelos e joelhos que progride em direção a um peso terrível e a uma imobilidade isolante que irá atrofiá-lo e, com o tempo, destruí-lo. (Solomon 2014Solomon, Andrew. 2014. Noonday demon: an atlas of depression. New York: Scribner., 50).

Conexão e desconexão

Talvez o ponto de partida mais conveniente para uma análise sociocientífica da depressão seja o da experiência de desconexão com os outros que marca diversos quadros depressivos. Como vimos acima, o indivíduo valorizado no novo espírito do capitalismo é dotado de conexões sociais ricas e variadas, um empreendedor (lato sensu) cuja atividade se atrela ao ritmo das redes interpessoais e interorganizacionais nas quais ele se insere e às quais ele continuamente se (re)adapta. Em contraste, um dos aspectos comumente reportados da vivência depressiva consiste em um senso difuso e global de separação diante do mundo das outras pessoas. A ideia de “senso” indica que tal experiência é inseparavelmente mental e corpórea, alterando não tanto o conteúdo das percepções que o indivíduo tem do real, mas a “aura” ou “atmosfera” geral na qual aquelas percepções estão banhadas. Não surpreende, nesse sentido, que tais vivências sejam resistentes à expressão linguística, forçando os indivíduos afligidos a uma linguagem tateante e repleta de metáforas, várias das quais orbitam próximas ao que Sylvia Plath (2019)Plath, Sylvia. 2019. A redoma de vidro. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul. chamou de “redoma de vidro” em um magnífico livro de mesmo nome. Ratcliffe coligiu diversos depoimentos ilustrativos:

Eu estava terrivelmente sozinho, perdido em…um terreno horrível reservado apenas para mim. (citado por Ratcliffe 2015Ratcliffe, Matthew. 2015. Experiences of depression. Oxford: Oxford University Press., 15).

Me sinto como se estivesse assistindo ao mundo ao meu redor e não tenho como participar. (citado por Ratcliffe 2015Ratcliffe, Matthew. 2015. Experiences of depression. Oxford: Oxford University Press., 32).

Me sinto como se estivesse em uma bolha. (citado por Ratcliffe 2015Ratcliffe, Matthew. 2015. Experiences of depression. Oxford: Oxford University Press., 32).

Me sinto como se fosse um fantasma – não posso tocar ou ver o mundo claramente, e ele se torna todo cinza. (citado por Ratcliffe 2015Ratcliffe, Matthew. 2015. Experiences of depression. Oxford: Oxford University Press., 32).

No que toca ao modo como a (des)conexão existencial com outros afeta os estados psíquicos, as considerações de Durkheim (2000Durkheim, Émile. 2000. O suicídio. São Paulo: Martins Fontes., 205-269) acerca do “suicídio egoísta” em seu estudo clássico se mostram relevantes, ao evidenciarem o quão frequentemente a participação intensa do indivíduo na dinâmica de uma coletividade o imbui de justificativas e razões para viver, a tal ponto que o enfraquecimento daquela participação no social carrega consigo, ceteris paribus, o enfraquecimento dos motivos que a sociedade oferece ao indivíduo para se levantar da cama, engajar-se com o mundo e, no limite, continuar vivo. A despeito do ânimo antipsicologista da obra durkheimiana, trata-se de um genuíno insight psicológico refletido em diversos depoimentos pessoais nos quais vínculos sociais intensos são apresentados como escudos motivacionais contra ato tão extremo, mesmo em cenários de imenso sofrimento: “pensei que, caso me matasse, estaria destruindo não só a minha vida, mas também a de minha mãe”; “não me mato porque meus filhos dependem de mim”; e assim por diante. Se o “jovem” Durkheim, analista do suicídio, for lido com os óculos analíticos do Durkheim maduro, teórico da “efervescência coletiva” n’As formas elementares da vida religiosa (1999Bauman, Zygmunt. 1999. In search of politics. Cambridge: Polity.), torna-se patente que as razões para viver geradas pelos laços sociais não são somente justificações conscientes como as que acabam de ser citadas. A imersão em relações sociais que engajam os afetos do indivíduo também o motiva a permanecer vivo em um sentido visceral, isto é, na medida em que o anima e o energiza para engajar-se na sua existência cotidiana.4 4 São também os efeitos de uma conexão “interafetiva” que dão sentido ao fato de que narrar o próprio sofrimento a indivíduos cuja escuta é acolhedora, mesmo tratando-se de desconhecidos (por exemplo, voluntários de um centro de prevenção ao suicídio como o CVV: https://www.cvv.org.br/o-cvv/), alivia em parte aquele sofrimento.

Dinamismo e estagnação

Um dos modos centrais pelos quais as sociedades humanas integram as atividades de seus membros individuais é, sem dúvida, o de mecanismos normativos que sincronizam aquelas atividades entre si. Cada indivíduo enfrenta o desafio de adaptar-se, em um âmbito inseparavelmente orgânico e psíquico, aos ritmos intersubjetivamente estabelecidos que regulam sua integração mais ou menos harmoniosa ao seu contexto societário – os horários de entrada e saída do trabalho oferecem somente o mais imediato exemplo desses imperativos normativos de sincronização. Apontar para o caráter socialmente sustentado dos ritmos temporais das condutas e experiências humanas já significa sugerir que tais ritmos – contanto que respeitados certos universais biológicos relativamente elásticos, mas por ora intransponíveis (por exemplo, o tempo necessariamente alocado ao sono) – variam conforme as culturas e os períodos históricos.5 5 A recalcitrância de necessidades como o sono (Crary 2013) e a alimentação vem a lume de modo mais nítido justamente em face dos esforços persistentes em contorná-los por vias diversas (mediante auxílios neurofarmacológicos, por exemplo). Em sua reflexão sobre as consequências da aceleração social como tendência-chave da modernidade, Rosa (2013) mostra a dialética entre limites postos pela fisiologia humana, de um lado, e as tentativas humanas de superá-los, de outro. Ainda que reconheça alguns parâmetros universais inerentes às faculdades biológicas do anthropos, o autor se debruça sobre uma série de trabalhos que, no mínimo desde o clássico ensaio de Simmel (2005) sobre a metrópole e a psique, evidenciam a variedade e a historicidade da capacidade humana de tolerar estímulos. Por exemplo, a experiência de acompanhar a paisagem mutável pela janela de um trem pareceu, a muitos dos primeiros usuários dessa forma de transporte, exigir da percepção humana mais do que ela podia suportar – “o fato de que ela conte hoje como um meio lento e pacífico de transporte” (Rosa 2013, 82) diz muito sobre a transformação de nossa experiência perceptual em resposta adaptativa aos estímulos com que nossos ambientes tecnológicos nos bombardeiam.

Com base na hipótese acima mencionada quanto à sincronização temporal como crucial ao laço do indivíduo com a sociedade, Hartmut Rosa (2013)Rosa, Hartmut. 2013. Social acceleration. New York: Columbia University Press. propôs um diagnóstico da modernidade tardia centrado na hipótese de uma aceleração sem precedentes das estruturas temporais normativamente impostas ao ritmo da existência individual. Tornada um mecanismo que se alimenta de si próprio, a aceleração social forçaria os indivíduos a um modo de existência presentista e situacional (Rosa 2013Rosa, Hartmut. 2013. Social acceleration. New York: Columbia University Press., 224-250). Na medida em que os contextos sociais de experiência se transformam tão radical e abruptamente, os indivíduos não mais podem se fiar nem nas lições do passado nem em previsões estáveis quanto ao futuro. Um indivíduo orientado para o mundo de maneira radicalmente situacional pressupõe que cada contexto atual de experiência será discrepante dos anteriores, bem como destinado a ser deixado para trás pelos seus sucessores. Uma vez que a orientação em relação ao cenário social se torna altamente flexível e aberta a transformações aceleradas, o mesmo se dá, por conseguinte, na relação do indivíduo consigo mesmo: os seus papéis sociais e atribuições profissionais, o seu status de relacionamento e local de residência, as suas aspirações e competências.

A administração do tempo se torna um projeto reflexivo, simultaneamente ancorado em diversos recursos de apoio (como despertadores, calendários, manuais de autoajuda) e ameaçado por uma diversidade de demandas e estímulos (como uma montanha de e-mails, um seriado viciante). A aceleração social dos ritmos da atividade humana caminha a par e passo, de qualquer maneira, com estímulos contínuos ao cultivo da adaptabilidade individual à mudança. O fato de que esses estímulos funcionam frequentemente como exigências quase inescapáveis revela-se nos custos infligidos a indivíduos que não “flexibilizam” a si próprios diante de um ambiente em constante mudança e, assim, ficam para trás (a exemplo de um trabalhador cuja competência é tornada obsoleta por uma nova tecnologia).6 5 A tentação de desacelerar durante um período mais ou menos significativo (por exemplo, dois ou três anos) se confronta sempre com a consciência dos riscos de “ficar para trás”: o capital de competências profissionais valorizado no princípio do intervalo pode haver se tornado obsoleto no ponto de retorno. Mesmo em prazo mais curto (por exemplo, duas ou três semanas), o indivíduo que resolve “desligar-se” da rede para desacelerar o ritmo da própria experiência pode ser internamente atacado seja pela ansiedade de estar perdendo as mais recentes novidades daquela rede (o chamado “fear of missing out ”), seja pela consciência de que o “crédito” temporal adquirido (por exemplo, duas benditas semanas sem checar o e-mail) terá de ser “pago” eventualmente (por exemplo, um acúmulo extraordinário de mensagens na caixa de entrada). Salvo engano, Rosa (2013Rosa, Hartmut. 2013. Social acceleration. New York: Columbia University Press., 16, 43, 46, 249-250) não chega a realizar uma discussão mais sistemática da depressão, mas borrifa a sua obra com menções de passagem a essa condição psíquica. Interpretada como a irrupção da estagnação em meio ao desenfreado dinamismo da vida atual, a depressão instaura um contraste entre a condição estacionária do indivíduo (como no caso em que a pessoa passa a maior parte do seu dia dentro do quarto) e a agitação da existência “lá fora”. Em um contexto caracterizado por diversas plataformas digitais de apresentação de si e da própria vida, como Facebook e Instagram, o indivíduo em depressão pode ter seu sofrimento intensificado ao comparar-se com “personalidades virtuais” de sua rede que se apresentam como profundamente autorrealizadas e bem-sucedidas (sejam relações amorosas perfeitas, famílias harmoniosas, viagens frequentes, sucessos profissionais empilhados uns em cima dos outros etc).

Recorrendo a um símile poético, Sylvia Plath (2019)Plath, Sylvia. 2019. A redoma de vidro. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul. capturou bem essa experiência dolorosa de discrepância entre a própria estase, de um lado, e um mundo exterior percebido como repleto de atividade e agitação, de outro:

É como ver Paris de um trem expresso que avança na direção contrária — a cidade vai ficando menor a cada segundo, mas você sente que é você quem está encolhendo, ficando cada vez mais solitária, afastando-se a um milhão de quilômetros por hora de todas aquelas luzes e agitação (Plath 2019Plath, Sylvia. 2019. A redoma de vidro. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul., 24).

Segundo a análise sociológica da contemporaneidade desenhada por Ehrenberg (2009)Ehrenberg, Alain. 2009. The weariness of the self. Montreal: McGill-Queen's University Press., como vimos, o indivíduo “pós-neurótico” não é corroído pela culpa diante dos próprios desejos, mas, ao contrário, instigado a diversificá-los e realizá-los. Nesse sentido, o contraste entre aceleração e estagnação se estende não apenas à questão da (in)atividade, mas também à diferença entre riqueza/variedade de experiência, de um lado, e ausência/pobreza de experiência, de outro. A diversificação das opções de consumo material (como comida, vestuário, artefatos tecnológicos etc.) e simbólico (como músicas, filmes, seriados etc.) se atrela à inculcação, nas subjetividades modernas-tardias, de uma sede de experiências excitantes e variadas (Türcke 2010Türcke, Christopher. 2010. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Unicamp.). Ao mesmo tempo, o hiato entre a consciência de experiências potenciais (como, lugares para viajar, séries para assistir, pessoas para conhecer) e aquelas factíveis em função dos limites da existência individual (de tempo, espaço, dinheiro, competências etc.) engendra nos atores um forte senso de insuficiência, um hiato sentido entre o que experienciam e o que poderiam experienciar, o qual frequentemente se sobrepõe à diferença incômoda entre quem são e quem “poderiam ser”. Com frequência, tal senso se atrela a uma experiência de inferioridade diante da riqueza experiencial da vida de outros, ao menos tal como é apresentada em plataformas digitais de “administração da impressão” (Goffman 1975Goffman, Erving. 1975. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes., 191) como o Facebook e o Instagram.

Atividade e inatividade

Como notei logo acima, o sofrimento psíquico que caracteriza quadros depressivos surge, com frequência, no entrelace de diferentes sintomas. Com efeito, cada um dos contrastes entre a “subjetividade empreendedora” e a “subjetividade deprimida” pintados anteriormente – tais como conexão/desconexão, dinamismo/estagnação e “riqueza”/ “pobreza” experiencial – já inclui a discrepância fundamental entre a atividade do empreendedor valorizado no novo capitalismo, de um lado, e a inatividade que a psiquiatria contemporânea toma como sintoma fundamental da depressão, de outro. No tocante ao imperativo da atividade em função do qual, já vimos, um indivíduo se torna “grande” segundo a gramática moral da “Cidade por Projetos”, é importante lembrar que o indivíduo que age não é pura cognição, mas um corpo cujo volume de energia para agir é necessariamente finito. Quando se toma a depressão como o reverso do modelo de individualidade valorizado no novo espírito do capitalismo, o caráter corpóreo, demasiado corpóreo, das condições de manutenção da atividade individual (adaptabilidade, flexibilidade, comunicabilidade etc.) vem a lume, por assim dizer, a contrário. O psiquiatra alemão Thomas Fuchs (2014)Fuchs, Thomas. 2014. Depression, Intercorporeality and Interaffectivity. In Depression, emotion and the self, organizado por Matthew Ratcliffe, 219-238. Exeter: Imprint Academic. chamou a atenção para o quanto os depoimentos acerca da experiência depressiva enfatizam que, longe de se reduzir a uma psique “incorpórea”, a depressão é também, às vezes, fundamentalmente, uma vivência física: a própria corporeidade deixa de ser vivenciada como instrumento confiável da atividade de si no mundo, passando, ao contrário, a ser experimentada como empecilho, como se o indivíduo fosse obrigado a carregar o seu corpo como uma carga pesada.

Naturalmente, qualquer discussão sobre aspectos psíquicos e somáticos da depressão terminará por se enredar em concepções controversas quanto à relação mente/corpo. Seria a experiência da própria corporeidade como obstáculo à ação a “somatização” de um processo psíquico prévio, a saber, a corrosão “interior” do ânimo motivacional? Ou, ao contrário, as limitações primeiramente experimentadas no próprio corpo é que terminariam traduzidas a posteriori em sofrimento psíquico, sobretudo em face da consciência crescente do indivíduo quanto à sua incapacidade de responder adequadamente às demandas práticas do mundo social (trabalho, estudo, cuidado dos parentes etc.)? Estaríamos diante de uma “retroalimentação causal” entre o psíquico e somático? Ou seriam o psíquico e o somático aspectos analiticamente distintos de uma experiência integrada? Procurando resgatar a dimensão vivida-no-corpo da experiência depressiva, Fuchs (2014Fuchs, Thomas. 2014. Depression, Intercorporeality and Interaffectivity. In Depression, emotion and the self, organizado por Matthew Ratcliffe, 219-238. Exeter: Imprint Academic., 220-221) recorre a estudos de psiquiatria transcultural para defender que, em uma variedade de contextos não ocidentais, restrições corpóreas como “perda de vitalidade, apetite e motivação”, “distúrbios do sono” e “reclamações somáticas como: dor, queimação, tensão, dormência e peso” seriam bem mais frequentes em diagnósticos de depressão do que fatores “interiores” como pensamentos depressivos ou sentimentos de culpa. Longe de supor que isso revele uma diferença cultural nas próprias vivências depressivas, tese perigosamente propensa a alimentar velhos estereótipos autoindulgentes do Ocidente sobre o “Resto”, Fuchs enfatiza que a “primazia causal” da mente sobre o corpo seria mais um pressuposto das interpretações ocidentais da vivência depressiva do que um traço das próprias vivências.

Comparações interculturais à parte, creio que o psiquiatra alemão leva longe demais a sua crítica ao déficit de tratamento da dimensão corpórea da depressão na psiquiatria ocidental, torcendo excessivamente o bastão para interpretações “corporalistas” ou anticognitivistas da experiência depressiva. Ao mesmo tempo, acredito que Fuchs tem toda razão em sublinhar que o senso de limitação das próprias capacidades corporais, sobretudo em face da necessidade do indivíduo em manter seu corpo ativo para responder às demandas de um mundo social frenético, não é mera manifestação de processos “interiores”, mas um componente frequente de vários quadros depressivos nos quais o psíquico e o somático aparecem, no fim das contas, existencialmente entrelaçados. Ademais, ao apontar para a frequência com que a depressão é experienciada como limite energético ou conativo do corpo individual frente a exigências sociais por sua atividade, o autor abre caminho para uma tematização da depressão como sintoma, na famosa formulação de Byung Chul-Han (2015Han, Byung-Chun. 2015. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes., 79), de uma “sociedade do esgotamento” ou do “cansaço” – um modo de vida que, conforme gera suas vítimas individuais pelo caminho, vai se revelando estruturalmente insustentável.

Política da depressão

A interpretação sociológica da depressão como avesso do “empreendedorismo de si”, como desistência e/ou colapso frente às exigências feitas aos indivíduos pelas condições sociais de vida na modernidade tardia, pode muito bem transbordar para uma avaliação política. Sob essa lente, a depressão adquiriria o feitio de um “protesto” ético-político do indivíduo em face de demandas normativas e práticas assoberbantes e, no limite, de cumprimento impossível (por exemplo, trabalhar doze horas por dia, cuidar muito atentamente dos dois filhos, passar tempo de qualidade com o/a parceiro/a, cultivar a própria forma física com musculação e exercícios aeróbicos frequentes, estar informado acerca das últimas notícias, manter uma rede de amizades ampla com encontros periódicos etc.). Nas palavras do autor lacaniano Darian Leader (2009Leader, Darian. 2009. The new black: mourning, melancholia and depression. London: Penguin Books., 13), a depressão seria, nesse sentido, “um modo de dizer não ao que somos ordenados a ser”. Tal modo de ver o transtorno depressivo tem o seu valor, sobretudo ao mostrar a fonte macrossocial de tantas experiências individuais de sofrimento, o que também significa, por conseguinte, evidenciar que um enfrentamento responsável da “pandemia de depressão” na contemporaneidade terá de atacar a dimensão sistêmica e estrutural – portanto, política – do problema. A leitura politizante da condição depressiva é necessária e valiosa, a meu ver, contanto que não deslize para uma romantização superficial da “rebeldia” da depressão como uma espécie de “ativismo da inatividade”, romantização que leve a fazer vista grossa para o terrível sofrimento dos indivíduos afligidos por esse transtorno mental, os quais precisam ser ajudados pelas vias possíveis (inclusive, quando indispensável, a via neurofarmacológica). Se a defesa da “politização” do sofrimento psíquico está justificadamente calcada no reconhecimento de que o modo de vida exigido dos indivíduos pela sociedade contemporânea gera, como seu efeito “colateral”, um largo contingente de sofredores, a sugestão de que as formas individualizadas de tratamento psiquiátrico e psicoterapêutico desse sofrimento seriam meros dispositivos de “conformismo” societal, a serem completamente substituídos pela luta política, é também simplista e irresponsável.

O que Bauman (1999)Bauman, Zygmunt. 1999. In search of politics. Cambridge: Polity. descreve como hiato entre a boa vida e a cidade justa, entre a autonomia pessoal e a impermeabilidade dos mecanismos sistêmicos, torna imensamente custosa qualquer tentativa de escapar aos imperativos normativos da individualidade ativa. A motivação mental e física para seguir respondendo apropriadamente a tais exigências, para tornar-se ou permanecer “grande” segundo a ordem axiológica do novo capitalismo, pode ser exaurida mais cedo ou mais tarde. Não à toa, a sustentação das próprias capacidades passa a depender de toda uma série de instrumentos de apoio mobilizados pelo indivíduo ou a ele sugeridos, como vídeos motivacionais, livros de autoajuda e, para aqueles que têm os capitais econômicos e/ou relacionais para consegui-los, psicofármacos. Cada vez mais borrada e difícil de discernir torna-se, com efeito, a fronteira entre o uso de neurofármacos no combate a síndromes, de um lado, e o recurso a tais medicações como ferramenta de otimização das próprias capacidades, de outro. Em outras palavras, o “culto da performance” (Ehrenberg 2010Ehrenberg, Alain. 2010. O culto da performance. Aparecida: Ideias & Letras.) espraia-se facilmente para o florescimento da “neurofarmacologia cosmética” (Kramer 1994Kramer, Peter. 1994. Listening to Prozac. New York: Viking., 246-249) – por exemplo, no caso do acadêmico que consome Ritalina para “virar” a noite escrevendo um artigo ou do empresário que se serve de um ansiolítico (não soporífero) para acalmar-se antes de uma apresentação.

Conclusão: apocalipsicopatologia?

Assim como catástrofes ambientais diversas exibem o custo do desenvolvimento tecnoindustrial, o aumento nos casos de depressão pode ser visto, sob essa perspectiva, como o “custo”, em sofrimento psíquico, de uma civilização que exige dos corpos e mentes dos seus membros individuais mais do que eles podem dar. Ao caracterizar provocativamente os indivíduos depressivos como “refugo humano” dos imperativos do novo espírito do capitalismo, Anders Petersen (2009Petersen, Anders. 2009. Depression: a social pathology of action. Irish Journal of Sociology, 17 (2): 56-71. https://doi.org/10.7227/IJS.17.2.5.
https://doi.org/10.7227/IJS.17.2.5...
, 68) não pretendeu, por óbvio, adicionar insulto ao sofrimento já exacerbado desses indivíduos. Ao contrário, trata-se de combater a interpretação individualizante de tais distúrbios ao apontar que o vasto contingente de deprimidos é um produto sócio-histórico do tipo de dinâmica coletiva em que nos vemos mergulhados. A grosseria embutida na analogia com o gigantesco volume de resíduos gerados pela produtividade tecnoindustrial, ao aludir aos limites do ecossistema terrestre, tem, ao menos, a virtude cognitiva de chamar a atenção para certos limites biopsíquicos que o organismo humano teima em opor às exigências funcionais a ele feitas. Nesse sentido, se pensada como efeito sistêmico de um modo de vida estruturalmente imposto aos indivíduos na modernidade tardia, a atual “pandemia de depressão” é, como outras ameaças ecológicas já presentes em nosso horizonte, um alarme civilizacional. Cabe escutá-lo.

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    Com agradecimentos a Artur Perrusi, Christiane Girard, Cibele Barbosa, Diogo Corrêa, Leonardo Almeida, Mariana Cavalcanti, Mariana Pimentel, Simone Gomes e Tania Mara Almeida.
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    Uma das interpretações sociológicas do significado da atual “pandemia de depressão” foi avançada por Horwitz e Wakefield (2007Horwitz, Allan e Jerome Wakefield. 2007. The loss of sadness. Oxford: Oxford University Press.) em The loss of sadness (“A perda da tristeza”). Como o título de seu livro já sugere, os autores sustentam que o discurso sobre a “pandemia de depressão” não é referência fidedigna a um aumento efetivo nas ocorrências de tal psicopatologia, mas consequência de “uma transformação no pensamento psiquiátrico” (Horwitz e Wakefield 2007Boltanski, Luc e Ève Chiapello. 2007. The new spirit of capitalism. London: Verso., 40). Através de um estudo dos critérios diagnósticos elencados pelos documentos mais influentes na atual definição clínica de distúrbios mentais, a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM-V) e a décima edição da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (ICD-10), eles concluem que a psiquiatria contemporânea tende crescentemente a enquadrar a tristeza “normal” na categoria patológica do transtorno depressivo. A suposta pandemia de depressão seria, nesse sentido, a resultante de uma inflação infundada no número de diagnósticos psiquiátricos. O trabalho de Horwitz e Wakefield capta um aspecto importante da relação entre a psiquiatria e a sociedade contemporâneas, mas perde em nuance e complexidade ao deixar de lado a pergunta sobre em que medida os modos de vida condicionados pela atual civilização capitalista produzem formas particulares (e particularmente intensas) de sofrimento psíquico, independentemente de como queiramos chamá-las.
  • 4
    São também os efeitos de uma conexão “interafetiva” que dão sentido ao fato de que narrar o próprio sofrimento a indivíduos cuja escuta é acolhedora, mesmo tratando-se de desconhecidos (por exemplo, voluntários de um centro de prevenção ao suicídio como o CVV: https://www.cvv.org.br/o-cvv/), alivia em parte aquele sofrimento.
  • 5
    A recalcitrância de necessidades como o sono (Crary 2013Crary, Jonathan. 2013. 24/7: capitalism and the ends of sleep. London: Verso.) e a alimentação vem a lume de modo mais nítido justamente em face dos esforços persistentes em contorná-los por vias diversas (mediante auxílios neurofarmacológicos, por exemplo). Em sua reflexão sobre as consequências da aceleração social como tendência-chave da modernidade, Rosa (2013)Rosa, Hartmut. 2013. Social acceleration. New York: Columbia University Press. mostra a dialética entre limites postos pela fisiologia humana, de um lado, e as tentativas humanas de superá-los, de outro. Ainda que reconheça alguns parâmetros universais inerentes às faculdades biológicas do anthropos, o autor se debruça sobre uma série de trabalhos que, no mínimo desde o clássico ensaio de Simmel (2005)Simmel, Georg. 2005. As grandes cidades e a vida do espírito. Mana, 11(2): 577-591. https://doi.org/10.1590/S0104-93132005000200010.
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313200500...
    sobre a metrópole e a psique, evidenciam a variedade e a historicidade da capacidade humana de tolerar estímulos. Por exemplo, a experiência de acompanhar a paisagem mutável pela janela de um trem pareceu, a muitos dos primeiros usuários dessa forma de transporte, exigir da percepção humana mais do que ela podia suportar – “o fato de que ela conte hoje como um meio lento e pacífico de transporte” (Rosa 2013Rosa, Hartmut. 2013. Social acceleration. New York: Columbia University Press., 82) diz muito sobre a transformação de nossa experiência perceptual em resposta adaptativa aos estímulos com que nossos ambientes tecnológicos nos bombardeiam.
  • 5
    A tentação de desacelerar durante um período mais ou menos significativo (por exemplo, dois ou três anos) se confronta sempre com a consciência dos riscos de “ficar para trás”: o capital de competências profissionais valorizado no princípio do intervalo pode haver se tornado obsoleto no ponto de retorno. Mesmo em prazo mais curto (por exemplo, duas ou três semanas), o indivíduo que resolve “desligar-se” da rede para desacelerar o ritmo da própria experiência pode ser internamente atacado seja pela ansiedade de estar perdendo as mais recentes novidades daquela rede (o chamado “fear of missing out ”), seja pela consciência de que o “crédito” temporal adquirido (por exemplo, duas benditas semanas sem checar o e-mail) terá de ser “pago” eventualmente (por exemplo, um acúmulo extraordinário de mensagens na caixa de entrada).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2020
  • Aceito
    05 Nov 2020
  • Publicado
    07 Maio 2021
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