Open-access A infância urbana nas ciências sociais: problemáticas e desafios metodológicos

Urban childhood in the social sciences: problems and methodological challenges

Infancia urbana en las ciencias sociales: problemas y desafíos metodológicos

Resumo:

Este texto apresenta o dossiê “A infância Urbana nas ciências sociais: problemáticas e desafios metodológicos”. Seu objetivo é situar as principais questões que caracterizam os estudos das relações entre a infância e a cidade. Em uma primeira parte, indicamos como os estudos urbanos (Seixas 2003; Harvey 2008; Fernandez Martorell 2009) e os estudos da infância (Balagopalan 2019; Castro Seixas 2021; Sarmento 2018) assumem interfaces na análise de temáticas como: o direito à cidade pelas crianças; apropriação do espaço e participação infantil na cidade; desigualdades socioterritoriais e infância; e as crianças como atores políticos na cidade. Na segunda parte, sugerimos uma breve sistematização dos textos, em diálogo com pesquisadores portugueses, espanhóis, brasileiros, argentinos e ingleses colocando em evidência a interdisciplinaridade e a denúncia. Busca-se, com este trabalho, colaborar nos debates contemporâneos sobre as múltiplas infâncias urbanas que se constroem nos diferentes espaços da cidade e nas diferentes cidades do mundo evidenciando desafios metodológicos e epistemológicos e éticos.

Palavras-chave: Estudos da infância; Estudos urbanos; Ciências sociais

Abstract:

This text presents the dossier “Urban childhood in social science: problems and methodologic challenges”. It aims to situate the main questions which characterizes the works on the relation between childhood and city. In the first part, we indicate how urban studies (Seixas 2003; Harvey 2008; Fernandez Martorell 2009) and childhood studies (Balagopalan 2019; Castro Seixas 2022; Sarmento 2018) have interfaces in the analysis of some topics: the right for the city; appropriation of the public space and children participation in the city; socio-territorial inequality and childhood, and the children as political actors in the city. In the second part, we suggest a brief systematization of articles, dialoguing with Brazilian, Spanish, Argentinean, and British researchers. It points out interdisciplinarity and denouncements. We seek to collaborate in the contemporary debates about the multiple urban childhood built in different spaces in the city and in different city in the world, highlighting methodological, epistemological, and ethical challenges.

Keywords: Childhood studies; Urban studies; Social sciences

Resumen:

Este texto presenta el dossier “La infancia urbana en las ciencias sociales: cuestiones metodológicas y desafíos”. Su objetivo es situar las principales cuestiones que caracterizan los estudios de la relación entre infancia y ciudad. En una primera parte, indicamos cómo los estudios urbanos (Seixas 2003; Harvey 2008; Fernandez Martorell 2009) y los estudios de infancia (Balagopalan 2019; Castro Seixas 2022; Sarmento 2018) asumen interfaces en el análisis de temas como: el derecho a la ciudad por los niños; apropiación del espacio y participación infantil en la ciudad; las desigualdades socioterritoriales y la infancia y los niños como actores políticos en la ciudad. En la segunda parte, sugerimos una breve sistematización de los textos, en diálogo con investigadores portugueses, españoles, brasileños, argentinos e ingleses, destacando la interdisciplinariedad y la denuncia. El objetivo de este trabajo es colaborar en los debates contemporáneos sobre las múltiples infancias urbanas que se construyen en diferentes espacios de la ciudad y en diferentes ciudades del mundo, destacando desafíos metodológicos, epistemológicos y éticos.

Palabras clave: Estudios de la infancia; Estudios urbanos; Ciencias sociales

A sociedade, tal como é atravessada por clivagens de classes sociais, dicotomias de gênero, identidades étnicas etc., assenta-se também em uma ordem geracional, em que coexistem adultos e crianças. Entretanto, a criança não está passivamente submetida a uma estrutura social, como sujeito ativo, ela exerce uma “agência” nas relações sociais e isto que implica que pode ser envolvida e considerada importante e capaz de construir e apreender o mundo de forma singular e relevante. Esses pressupostos fundam o campo dos estudos da infância nas ciências sociais desde o final do século 20. A paradigmática produção de Florestan Fernandes, na década de 1930, já destacava a importância da presença infantil no espaço público e a necessidade do rompimento de uma visão criminalizadora das crianças das camadas populares nas cidades latino-americanas.4 Contudo, desde então, as investigações que se dedicaram às relações entre a infância e a cidade assumiram novos e amplos contornos.

A fértil aproximação entre os estudos da infância e os estudos urbanos nos convoca a refletir sobre a cidade como o espaço público de convivência da diferença (Fernandez Martorell 2009) e sobre o direito ao espaço público como um direito de cidadania, ou seja, o direito de todos os que vivem e querem viver na cidade. O direito à cidade como consciência da injustiça urbana e direito a um espaço público é claro em Jacobs (1961 [2000]), Lefèbvre (1968) e Harvey (1973, 2008), mas muitos outros autores se centraram nessa problemática. O “anoptismo” por oposição a “panoptismo” de Foucault (1987) é um poder (Dale 2019) que produz socialmente “populações invisíveis”, de certo modo o que Goffman (1983) denominou “não pessoas”. No caso da cidade, são aquelas que por não terem direito à cidade não são tidas em conta no seu planejamento e ainda que possam ser visíveis em espaços públicos, este não foi feito pensando nelas nem para elas.

As crianças têm sido vítimas desse anoptismo urbano de inúmeras formas, sendo populações invisibilizadas e silenciadas. Entre a casa, a escola e as atividades de lazer as crianças circulam, muitas vezes, por e uma cidade-tela, mediada pelo celular e pelo automóvel, gerida psicologicamente pela insegurança e medo em que a mixofobia se sobrepõe à mixofilia (Bauman 2006). A criança tornou-se, assim, o exemplo por excelência do “viajante enclausurado” (Seixas 2003). Assim, se efetivamente queremos mudar as cidades, devemos olhar para as crianças, ouvi-las e conseguir mudar a sua vida na cidade: conseguir que tenha direito a participar do desenho e do planejamento da cidade e de seus distintos espaços e equipamentos públicos. O direito à cidade pode ser entendido como um direito coletivo de cocriação urbana, como nos refere Harvey (2008, 23):

O direito à cidade é muito mais do que a liberdade individual de acesso aos recursos urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos mudando a cidade. Além disso, é um direito coletivo e não individual, uma vez que essa transformação depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo para reformular os processos de urbanização. A liberdade de fazer e refazer nossas cidades e nós mesmos é, quero argumentar, um dos mais preciosos, porém mais negligenciados, de nossos direitos humanos.

É preciso considerar, contudo, que a cidade é muito mais que a sua morfologia ou conjunto de infraestruturas e que a questão da mobilidade, muito embora central para uma reflexão sobre a relação das crianças com a cidade, não constitui o único desafio para a construção de cidades mais “amigas das crianças”. Podem ser identificados, na realidade, uma série de constrangimentos a uma efetivação do direito da criança à cidade, que passam, em primeiro lugar por um necessário reconhecimento das crianças como atores sociais e políticos. A este respeito, Sarmento (2018) caracteriza os fatores de restrição da cidadania da infância em seis dimensões: domesticação, institucionalização, insularização, dualização, fragmentação e restrição da autonomia de mobilidade. Se a restrição à mobilidade surge efetivamente como um dos fatores que limitam a cidadania da infância, a domesticação, institucionalização e insularização das crianças são fatores tão ou mais importantes, que estão associados a determinadas imagens culturais das crianças – mais prevalentes nas sociedades pós-industriais e na classe média e média-alta – como seres que temos de proteger e controlar (Tomás 2007), assim como a uma imagem da cidade e dos espaços públicos urbanos como lugares de risco (Gill 2007).

Concordando com Sarmento (2018) sobre a relevância destes fatores quer para a restrição da cidadania da infância quer para a efetivação do direito das crianças à cidade nas sociedades pós-industriais notamos todavia que, dentro dos estudos das crianças, provavelmente devido ao seu foco tendencialmente mais micro do que macro, poucos autores têm se debruçado sobre o modo como estes fatores podem enquadrar e influenciar a apropriação do espaço urbano pelas crianças e as próprias experiências de planeamento urbano. Por outro lado, as questões referidas e descritas por Sarmento (2018) deixam talvez de fora, outros aspetos sociais importantes como, por exemplo: o impacto da gentrificação e turistificação; o impacto das novas tecnologias na vivência da cidade; a questão das desigualdades na cidade e seus desdobramentos no debate sobre o direito à moradia, as lutas dos movimentos sociais urbanos, a exclusão territorial, a violência urbana.

Este dossiê se dedica a todas essas temáticas, reunindo produções que revelam como a análise da relação das crianças com a cidade pode ser realizada em vários níveis, possibilitando quer a identificação de indicadores estruturais sobre os direitos e políticas para infância em um dado território urbano quer a identificação das formas pelas quais as crianças de diversos grupos e categorias sociais circulam, interagem, interpretam ou participam da cidade.

No quadro dos problemas sociais urbanos, é fundamental destacar que grande parte das metrópoles é fragmentada e desigual, e essa fratura social, na cidade, cria condições de vulnerabilidade ainda maiores para as crianças pobres. Essa perspectiva também encontra fundamento no reconhecimento das crianças como sujeitos de direitos. A apreensão das crianças no enfoque da dignidade humana se apresenta ainda mais necessária em contextos de crises e desastres como a atual situação da pandemia. Efetivamente, a pandemia por Covid-19, bem como as medidas promulgadas pelos governos dos vários países para contê-la geraram mudanças nas sociabilidades urbanas, visíveis, por exemplo, no aumento de ocorrência de conflitos sociais e de estigmatização de grupos sociais historicamente excluídos. A pandemia teve e tem ainda um grande impacto nas crianças ao restringir a sua mobilidade independente, direito a brincar ao ar livre e a socializar. Por outro lado, houve notórias diferenças na forma como os diversos países da Europa e da América Latina enquadraram a questão da infância nas políticas destinadas a conter o aumento de infeções por Covid-19.

Em outra chave de análise, os efeitos do modelo neoliberal nas cidades latino-americanas apresentam transformações distintas das cidades europeias, destacando-se a privatização dos espaços públicos, a segregação sociorracial, a violência urbana e a precarização dos transportes públicos. Nas cidades europeias e norte-americanas, a privatização dos espaços públicos e a segregação têm sido menos significativas (ainda que presentes), embora fenômenos como a gentrificação e seus efeitos de expulsão dos grupos mais vulneráveis e mesmo da classe média das zonas reabilitadas da cidade sejam cada vez mais frequentes. Por outro lado, a tendência à mercantilização dos espaços públicos e do próprio lazer nas cidades europeias tem contribuído para transformar as crianças em sujeitos consumidores, colocando em causa a efetivação dos direitos dos grupos sociais mais vulneráveis a usufruir do espaço público, da natureza e mais globalmente, o seu direito à cidade (Castro Seixas et al. 2022). Os processos de regeneração urbana tendem ainda frequentemente a criar um estilo de vida urbana – “urban lifestyle” – com o qual uma classe média ou média alta se identifica, mas que exclui simbolicamente outros grupos sociais mais desfavorecidos e com diferentes padrões culturais. A cidade tende a ser cada vez menos planejada para os seus moradores e cada vez mais tendo em vista os interesses privados das grandes empresas associadas ao setor imobiliário e turístico. Ou seja, ao analisarmos as metrópoles contemporâneas, se a globalização produz um padrão internacional de edificações e consumo, este confronta-se com tradições locais, bem como produz efeitos distintos de acordo com a posição do país no cenário econômico internacional.

É também no bojo desse debate que apresentamos esse dossiê temático, sendo contemplados estudos desenvolvidos no Brasil, em Portugal, na Espanha, no Reino Unido e na Argentina. Visibilizando a diversidade das experiências infantis e oferecendo subsídios à formulação de políticas de educação, assistência e saúde que considerem a criança como sujeito de direitos. O conjunto de textos aqui apresentados evidencia ainda como os debates sobre a infância urbana adquirem expressões específicas e priorizam determinadas problemáticas e valores em detrimento de outras e outros, em função do contexto sociocultural e político em que se inscrevem.

Um primeiro grupo de textos centra-se na reflexão sobre questões teóricas, metodologias de pesquisa sobre/com crianças na cidade e investigação sobre crianças e políticas públicas.

Catarina Tomás e Gabriela Trevisan, no texto “A (c)idade importa! Conceções, experiências e deambulações de crianças pequenas”, focam-se no questionamento do pensamento das crianças sobre o espaço urbano, argumentando não só que as crianças têm um pensamento sobre o espaço urbano, mas que também são capazes de encontrar soluções para problemas urbanos que as afetam. O estudo de caso realizado pelas autoras é uma evidência de tal, defendendo que importa analisar a cidade como espaço das crianças e não apenas para as crianças e que as crianças, mesmo pequenas, devem fazer parte da conversa do planejamento, uma vez que elas têm competências para analisar questões de grande escala.

Já na esfera da problematização metodológica, Fernanda Muller e Emilene Leite de Sousa no trabalho: “Etnografias em movimento: deslocar-se com as crianças pela cidade”, refletem sobre a importância das etnografias, quando o foco é o(a) deslocamento/circulação de crianças na cidade. As autoras defendem que as metodologias em causa são na e sobre as mobilidades e fazem uma revisão bibliográfica sobre a etnografia, centrando-se no new mobilities paradigm e nos métodos móveis. Afirmando que não se trata de propor um método novo, mas antes de colocar o método em movimento, as autoras estabelecem uma classificação que distingue o mover-se indiretamente e o mover-se diretamente com as crianças para agregar e refletir sobre as várias técnicas.

Em uma reflexão sobre a investigação e políticas públicas, Wendy Russell, Ben Tawil, Mike Barclay no trabalho:“(At)tending to rhizomes: how researching neighbourhood play with children can affect and be affected by policy and practice in transcalar ways in the context of the Welsh Government’s Play Sufficiency Duty”, sugerem uma análise de várias dimensões da participação das crianças na produção do espaço público e do seu direito à cidade: (1) brincar como participação, (2) engajando-se em pesquisas como influência de decisões, (3) as formas como essa pesquisa afeta pesquisadores e outros; e (4) como as histórias que emergem da pesquisa se espraiam em formas rizomáticas que afetam a política e a prática em múltiplas escalas intra-relacionadas. A “participação” é entendida pela autora e autores como as formas pelas quais as crianças são afetadas e afetam as condições sociomateriais de suas vidas tanto direta quanto indiretamente através de redes de conexões e, assim, este artigo evidencia uma forte influência das pesquisas sobre crianças.

Encerra esse primeiro conjunto de textos o trabalho de Valéria Ferreira: “Um passo para trás para ver melhor a cidade: uma análise configuracional de crianças em Curitiba”. A autora parte de conceitos propostos por Norbert Elias, configurações sociais, interdependência e poder, para ir além da dicotomia indivíduo-sociedade e compreender o lugar das crianças em um quadro espacial de desigualdade urbana, na cidade de Curitiba.

Em um segundo grupo de textos, o direito à cidade e ao próprio planejamento urbano por parte das crianças é analisado. Greta Wilker, no trabalho “El lugar de los pibes y las pibas. Experiencias espaciales de niños y niñas en un barrio popular del conurbano bonaerense”, realizado a partir de uma “investigação ativista”, tem como centro um “Merendero los pibes em Villa París” na grande Buenos Aires e convoca as vozes das crianças. A autora denuncia uma intervenção urbana que foi levada a cabo nas ruas onde o Merendero estava inserido, sem considerar quer os conhecimentos das crianças sobre o envolvente, quer as suas dinâmicas próprias de apropriação dos espaços. Esta análise crítica evidencia que o termo “vazio” (urbano) ou “baldio” substitui na atualidade na Argentina o termo “deserto”, usado no tempo colonial.

O trabalho de Jader Lopes e Sara Paula: “Quando uma palavra toca a outra: topogênese e ensaios sobre a espacialização da vida de bebês e crianças e o direito a (outra) cidade. O desacostumar em formas de becos” é um artigo que convoca essa realidade de muitas geografias que são os “becos”, sejam meras “ruelas” ou “vilas” ou, noutras geografias, “pátios”, “ilhas”, “corralas” etc. Esses “becos” representam não só uma falta de autonomia, mas mesmo uma falta de autoria na cidade. É a partir do mundo dos becos, que nos faz lembrar a poesia do espaço de Bachelard (1998) assim como as pesquisas de Oscar Lewis (1970) no México, que textos sobre a infância são apresentados evidenciando o “beco” uma escolha entre esse abrigo e a luta pela cidade.

Finalmente Alba Rodriguez e Marta Perez “Un lugar donde poder jugar: espacio público e infância” partem da hipótese de que a presença ou ausência de crianças em espaços públicos é uma evidência do bom ou mau funcionamento da cidade em si mesma: do seu êxito ou fracasso. Partindo quer de uma revisão da literatura sobre o desaparecimento da criança do espaço público na cidade ocidental, quer de trabalho de terreno em dois espaços públicos do centro de Madrid, as autoras perguntam-se a que é devida a ausência de crianças nos espaços públicos da cidade ocidental e como poderá ser potencializada. Terminam propondo a recuperação do conceito de “olhos da rua” (“los ojos de la calle”) de Jane Jacobs (2017) como ferramenta para a avaliação e o dimensionamento de espaços públicos na perspectiva infantil. Assim, seguindo Jacobs, mas fazendo lembrar também a teoria do Defensible Space, de Oscar Newman (1973), as ruas possibilitam o olhar ou obstaculizam o olhar em função do seu desenho, dos edifícios, dos automóveis etc. e tal desenho resulta em um espaço mais ou menos seguro para as crianças.

Um último conjunto de textos aborda a questão das desigualdades, o usufruto de condições de vida urbana e as lutas pelo direito à cidade. A análise das múltiplas infâncias e desigualdades que pautam a vida das crianças nas cidades do Norte e do Sul Global é uma questão central para uma reflexão sobre a “Infância Urbana” – vale a pena aqui lembrar a advertência de Tisdall e Punch (2012, 259) há 20 anos, de que:

[...] o foco nas perspetivas das crianças e jovens, na sua agência e participação já não é suficiente; é necessária uma maior ênfase nas dificuldades, complexidades, tensões, ambiguidades e ambivalências das vidas de crianças e jovens nos contextos do Mundo Maioritário e Minoritário”.5

Nesse horizonte, o conceito de direito à cidade, pode ser entendido como um convite para um pensamento crítico sobre as cidades e sobre a complexidade e as contradições inerentes ao processo de urbanização (Castro Seixas 2021). Como exemplifica, em seu trabalho, Leticia de Luna Freire, o texto: “Entre ruínas e muros: a perspectiva de crianças sobre a remoção de uma favela no Rio de Janeiro”, discute a perspectiva de crianças a respeito do processo de remoção da favela Metrô Mangueira, na zona norte do Rio de Janeiro. Estreitando o diálogo entre a antropologia urbana e a antropologia da criança, o trabalho evoca a pluralidade de experiências urbanas infantis e analisa o papel exercido pelo estado no referido processo de remoção que, em vez de zelar pelos direitos das crianças, atuou como violador desses direitos.

Ainda sobre o tema do deslocamento forçado de crianças, os autores Ronicleici Santos da Conceição, José Antonio Herrera, Assis da Costa Oliveira analisam a “Reclusão territorial de crianças e adolescentes no Reassentamento Urbano Coletivo Jatobá em Altamira Pará: privação da liberdade face a hidrelétrica Belo Monte”. O trabalho aborda e denuncia a situação de desterritorialização causada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, tendo como escopo a violência e o medo como processos que interferem na relação social do sujeito no novo espaço e problematiza a reclusão territorial e as condições de vida das crianças e adolescentes. A pesquisa informa a complexidade do debate do direito à cidade em contextos de desigualdade e a necessidade de analisar o significado de fazer os direitos das crianças em sua vida cotidiana e a partir das experiências concretas das crianças na vida social (Liebel 2012). Contudo, o debate sobre o direito à cidade pelas crianças, no contexto latino-americano assume importante diálogo com os estudos feministas, compreendendo que a luta pelos direitos das mulheres entrecruza-se com a luta pelos direitos da criança (Lloblet 2020).

O texto “Mulheres em luta e a educação de crianças pequenas em uma ocupação urbana: perspectivas anticoloniais”, de Bárbara Ramalho, Levindo Diniz Carvalho e Luciana Maciel Bizzotto, parte da escuta de educadoras moradoras de uma ocupação urbana em Belo Horizonte e analisa as relações entre a luta por moradia e o direito à educação infantil. Sustentados pelos estudos anticoloniais e pelos estudos da infância, as análises apontam os atravessamentos da luta feminista e o papel das mulheres na reivindicação pelos direitos das crianças e para a singularidade na oferta da educação infantil no contexto de uma ocupação urbana. Também nesse horizonte, o artigo de Márcia Gobbi, “Casa da mãe solo: na cidade segregada, a produção de um lugar para mulheres e crianças que estão por vir ”, parte da criação da Casa da Mãe Solo e sua confluência com práticas de empoderamento feminino, para refletir sobre diferentes configurações de lutas de mulheres em movimentos sociais urbanos por moradia, na Ocupação Jardim da União, situada no extremo da Zona Sul paulistana. O material visa contribuir para estudos sociais da infância e estudos de gênero e mulheres na intersecção com a educação, bem como indagar políticas públicas para mulheres, infância, moradia e educação.

Estes dois últimos trabalhos, pautados na realidade das crianças que vivem no contexto do Sul global, denotam a necessidade de desconstrução de concepções sobre a infância e direitos das crianças que tenham como premissa um modelo hegemônico e universal e apontam para uma perspectiva plural que reconhece a diversidade dos sujeitos e suas experiências.6 Ao discutir a exclusão de territorial de crianças e a luta das mulheres pelo direito à moradia e à educação das crianças pequenas, os textos assumem visão historicizada dos direitos das crianças e reconhecemos o projeto de violência e conquista imposto pela modernidade (Balagopalan 2019).

Por fim, esperamos que esse dossiê, que coloca em evidência a interdisciplinaridade e a denúncia, colabore nos debates contemporâneos sobre as múltiplas infâncias urbanas que se constroem, se reproduzem e se contestam nos diferentes espaços da cidade e nas diferentes cidades do mundo evidenciando desafios metodológicos, epistemológicos e éticos.

  • 4
    Se tal discurso de criminalização da circulação da criança na cidade é histórico, sua presença inscreve-se no cenário contemporâneo e marca muitas das políticas públicas de proteção à infância. Notadamente, nas políticas de proteção, a tendência é a de reinstitucionalizar a infância (no abrigo, na escola de tempo integral, ou nos centros de ocupação de tempos livres). Nesse sentido, a compreensão das condições da infância urbana também interroga a dimensão dos direitos e impõe uma compreensão crítica dos direitos das crianças.
  • 5
    Tradução realizada pelos autores do artigo.
  • 6
    Aqui nomeamos como uma concepção hegemônica e universal de infância aquela que foi pautada por uma visão normativa que emerge da especificidade do contexto do Norte e do Ocidente e que estabeleceu um parâmetro universal de criança e, consequentemente, fronteiras de inclusão e exclusão. Propomos, aqui, reconhecer a diversidade e as profundas desigualdades e violências que afetam a infância, pensando esse tempo da vida de modo descentralizado, política e epistemologicamente, do chamado Norte global (Castro 2021; Sarmento e Tomás 2020).
  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2022
  • Aceito
    03 Nov 2022
  • Publicado
    09 Jan 2023
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