Resumo:
Este artigo reflete sobre o trabalho de jovens paulistas, entregadores por aplicativo durante a pandemia. É parte da pesquisa “Trajetórias/Práticas Juvenis nos tempos de Covid-19”, desenvolvida por meio de entrevista semiestruturada, em profundidade, na modalidade online, com 26 jovens de 15 a 29 anos, cujo critério de escolha foi ser entregador por aplicativo. A análise foi norteada pelas categorias: (a) precarização do trabalho; e (b) juventude; e, pelas subcategorias: autonomia/autogerenciamento vs. controle, risco, tempo e empreendedorismo. Dentre as conclusões, destacam-se: a intensificação da precarização; o aumento da concorrência; a diminuição da taxa de pagamento de entrega; o aumento do controle; e o aumento dos riscos e da jornada de trabalho mascarados pela ideologia do empreendedorismo.
Palavras-chave:
Juventudes; Trabalho precário; Pandemia; Condição juvenil
Abstract:
This article reflects on the work of young people from São Paulo, delivery men per application during the Pandemic. It is part of the Youth Trajectories/Practices in the times of Covid-19, developed through semi-structured interview, in depth, in the online modality, with 26 young people from 15 to 29 years, whose criterion of choice was to be delivery man per application. The analysis was guided by the precarious categories of work and youth and by the subcategories: autonomy/self-management x control, risk, time and entrepreneurship. Among the conclusions stands out: the intensification of precariousization; increased competition; the decrease in the delivery payment rate; increased control; increased risks and increased working hours masked by the ideology of entrepreneurship.
Keywords:
Youths; Precarious work; Pandemic; Juvenile condition
Resumen:
Este artículo reflexiona sobre el trabajo de los jóvenes de São Paulo, repartidores por aplicación durante la Pandemia. Forma parte de las Trayectorias/Prácticas Juveniles en tiempos del Covid-19, desarrolladas a través de entrevista semiestructurada, en profundidad, en la modalidad online, con 26 jóvenes de 15 a 29 años, cuyo criterio de elección fue ser repartidor por solicitud. El análisis se guió por las categorías precarias de trabajo y juventud y por las subcategorías: autonomía/autogestión x control, riesgo, tiempo y emprendimiento. Entre las conclusiones destacan: la intensificación de la precariedad; aumento de la competencia; la disminución de la tasa de pago de la entrega; mayor control; aumento de los riesgos y aumento de las horas de trabajo enmascaradas por la ideología del emprendimiento.
Palabras clave:
Jóvenes; Trabajo precario; Pandemia; Condición juvenil
Introdução
Nos últimos anos, intensificaram-se os processos de transformações no mundo do trabalho em decorrência do desenvolvimento tecnológico, do padrão de produção e da acumulação do capital, modificando as formas de produção e relações de trabalho. São processos ancorados na incorporação da tecnologia com vistas à maximização do lucro, por meio da mecanização de vários setores de produção, tornando o trabalho cada vez mais precário. Fenômeno marcado pela redução da incorporação de trabalhadores, da retirada de direitos e de condições dignas de trabalho que atinge, principalmente, os jovens.
Nesse contexto, o trabalho se configura: flexibilizado, terceirizado e desregulamentado; uma lógica que privilegia o capital em detrimento do trabalho: um projeto de destruição que causa prejuízos ao trabalho vivo, impossível de ser realizado. Parte-se da centralidade do trabalho na sociedade, como fundante dos processos ontológicos e históricos do homem enquanto ser social (Antunes 2013Antunes, Ricardo. 2013. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. Coimbra: CES-Almedina.). Em uma perspectiva crítico-dialética, o capital se apropria do trabalho como instrumento de dominação e controle social, explicitando as contradições presentes nessas relações e os processos de exploração, exclusão, pobreza, dentre outros.
A perda de direitos trabalhistas, a terceirização e o aumento da informalização contribuíram para a ascensão dos modelos Uberizados como forma de geração de renda. Uma dinâmica de trabalho, marcada pela flexibilização, já existente na periferia antes de ser assimilada pelas empresas-aplicativo que, com o algoritmo, foi difundida, modernizada e transformada em modelo legítimo de empregabilidade. Abílio (2020)Abílio, Ludmila. C. 2020. Uberização: gerenciamento e controle do trabalhador just in time. In Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0., organizado por Ricardo Antunes, 111-24. São Paulo: Boitempo. aponta como sendo as principais características da uberização a falta de vínculo empregatício, a responsabilização do trabalhador por seus meios e instrumentos de trabalho, a disponibilidade conforme as necessidades do mercado (just-in-time, o tempo não pago, o tempo disponível para o trabalho) e o desconhecimento do valor a receber pela hora/dia trabalhado. Autogerenciamento e transformação do trabalhador em trabalhador just-in-time andam juntos. Por fim, a “possibilidade” ilusória de gerenciar sua jornada. Nesta perspectiva, a uberização é propagada como uma forma de se conquistar a autonomia pela via do trabalho, no entanto, é uma forma de controle via tecnologia e das empresas-aplicativo. Verifica-se, assim, o aumento do trabalho informal, por oferecer e prometer a ilusória liberdade de que o trabalhador tem o controle do trabalho, com isso, o trabalhador está disponível para encontrar formas de sobrevivências, mesmo ante a insegurança e vulnerabilidade em relação ao trabalho e à renda (Krein 2018Krein, José D. 2018. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva consequências da reforma trabalhista. Tempo Social 30 (1): 77-104. https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2018.138082.
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).
As reflexões aqui desenvolvidas estão ancoradas nos resultados da pesquisa: “Trajetórias/práticas juvenis em tempos de pandemia de Covid-19”, realizada no Brasil pelo Instituto de Saúde de São Paulo, Universidade Federal do Piauí (UFPI) e Flacso-Brasil, incorporando as Sedes Flacso da Argentina, do Chile, de Cuba, do Equador e do México, que teve por objetivo refletir sobre trajetórias/práticas de jovens em tempos de Covid 19, desde a interface de sua condição/subjetividades, práticas sociais.
Na condição juvenil, a inserção no trabalho faz parte dos processos de reconhecimento coletivo ante às demandas impostas pelas relações sociais capitalistas.
A pesquisa foi desenvolvida por meio de metodologia qualitativa, utilizando como recurso estratégico a entrevista semiestruturada em profundidade, na modalidade online, realizadas junto a 26 jovens de 15 a 29 anos, cujo critério de escolha foi ser entregador por aplicativo. O acesso aos jovens foi orientado pela técnica snowball ou “bola de neve”, uma técnica de amostragem não probabilística, que utiliza cadeias de referência (Vinuto 2014Vinuto, Juliana 2014. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: Um debate em aberto. Temáticas 22 (44): 203-20. https://doi.org/10.20396/tematicas.v22i44.10977.
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). A partir da seleção de informantes-chave, “sementes da amostra” (Dewes 2013Dewes, João O. 2013. Amostragem em bola de neve e respondent – driven sampling: uma descrição dos métodos. Monografia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul., 7), identificaram-se jovens com o perfil necessário à pesquisa, até alcançar “ponto de saturação” (Minayo 2017Minayo, Maria Cecília de S. 2017. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Revista Pesquisa Qualitativa 5 (7): 01-12., 4), quando os conteúdos já obtidos nas entrevistas passaram a se repetir. Em atenção à ética em pesquisa os entrevistados foram informados sobre os objetivos da pesquisa, sigilo e, mediante o aceite em participar, foi preenchido e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Este artigo tem por objetivo responder a seguinte pergunta: como foi o trabalho de jovens entregadores por aplicativo durante a pandemia? Os 26 entregadores por aplicativos, residiam em São Paulo, tinham idade entre 15 e 28 anos, assim distribuída: 12% de 25 a 28 anos; 23% de 15 a 19 e 65% de 20 a 28. Todos do sexo masculino, negros, moradores de bairros periféricos de São Paulo (zona leste, oeste e sul). Entre esses entregadores, tinham aqueles que já trabalhavam antes da pandemia. Não obstante, a maior parte começou a partir do desemprego acirrado pelo fechamento de serviços, ou seja, muitos passaram a ser arrimo de família.
Quanto à análise das entrevistas, a técnica utilizada foi a “análise de conteúdo” (Bardin 2016Bardin, Laurence. 2016. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70.). A codificação de registro foi o temático e a categorização foi semântica, a partir das categorias: (a) precarização do trabalho de entregadores; e (b) da juventude; o que nos possibilitou elencar as subcategorias: autonomia/autogerenciamento vs. controle, risco, tempo, empreendedorismo. O critério de seleção dos depoimentos foi construído com base na exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência (Bardin 2016Bardin, Laurence. 2016. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70.).
A investigação produziu reflexões sobre trajetórias juvenis durante o período de isolamento, relacionadas à vida laboral, em uma realidade marcada pela recessão econômica, aumento do desemprego, da informalidade e agravada pela Pandemia, gerando ainda mais incertezas aos jovens. Este artigo tem por objetivo refletir sobre a precarização do trabalho de jovens paulistas entregadores por aplicativo durante a pandemia, evidenciando a complexidade desse universo, focando na administração do tempo, custos, riscos, entre outros.
A realidade do trabalho na pandemia
A pandemia se prolifera no contexto da crise estrutural do capital, implicando na morte de milhões de pessoas e, também, no desemprego em escala global. Segundo IBGE,3
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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 2022. Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad contínua). Acessado 20 jul.2022. https://bit.ly/2ZSfdHo.
no Brasil, no primeiro trimestre de 2022, foram registrados 11,9 milhões de desempregados, correspondendo a 11,1% da população em idade produtiva. Entre os jovens com idades entre 18 e 24 anos, o percentual de desempregados foi de 22,8% – consequência da potencialização da redução da incorporação do trabalho e sua substituição por ferramentas automatizadas e robotizadas. De acordo com Antunes (2020Antunes, Ricardo, e Vitor Filgueiras. 2020. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Contracampo 39 (1): 27-43. https://doi.org/10.22409/contracampo.v39i1.38901
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, 23) “[…] a confluência entre uma economia destruída, um universo societal destroçado e uma crise política inqualificável converteu o Brasil em um forte abismo humano, um verdadeiro cemitério coletivo”.
Nesse contexto, desencadeiam-se crises que impactam o trabalho, aprofundando a desigualdade social, o empobrecimento e a fome. Aumentam as condições de informalidade, desregulamentação das relações de trabalho, que favorecem as grandes empresas e o setor financeiro.
A adoção do distanciamento físico redefine os espaços de trabalho para garantir segurança e saúde da população, transferindo várias atividades consideradas emergenciais para o home office. O fechamento de empresas e a sedimentação de formas de ocupação da força de trabalho mediada pelo uso de tecnologias reduziram a oferta de emprego, resultando no aumento do subemprego e do desemprego. Essa situação impôs, principalmente ao jovem, um trabalho sob condições precárias, com baixa remuneração, jornada extensa, alta taxa de rotatividade e informalidade, situação acirrada em decorrência da falta de experiência laboral. Ou seja, experiências ocupacionais informais, inseguras e incertas.
A pandemia de Covid-19 potencializou a expansão do processo de uberização do trabalho, principalmente, pelas plataformas digitais. A uberização está no cerne da flexibilização, principalmente, quando o empregador transfere de si para o trabalhador/empreendedor a administração de seu trabalho, dos custos e dos riscos, sem perder o controle sobre a produção. A economia digital é o novo campo que conecta atividades de trabalhadores, consumidores e empresas-aplicativo, com o difícil acesso às informações sobre o processo. O gerenciamento do trabalho é realizado com meios novos e difusos, a partir do mapeamento do processo de trabalho e outro tipo de subordinação. A possibilidade tecnológica desse mapeamento é um dos elementos do capitalismo de vigilância, transformando a forma como o trabalho e a vida cotidiana podem ser organizados em dados a serem processados em função do maior lucro de empresas-aplicativo (Zuboff 2019Zuboff, Shoshana. 2019. The age of surveillance Capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power. Nova York: Public Affairs.).
As empresas-aplicativo são as promotoras da uberização, se eximem da responsabilidade inerente aos vínculos empregatícios, dos riscos e custos do trabalho e, ao mesmo tempo, eliminam proteções, direitos e garantias. São gerenciadas por meio de softwares e plataformas online, que conectam trabalhadores de aplicativos aos consumidores. Controlam e administram as regras da transação, o que inclui custos, gastos, horário e local de entrega, retirada etc. A mediação entre os consumidores e os trabalhadores é realizada pela empresa-aplicativo, que define a forma de organização, remuneração do trabalhador, os instrumentos de avaliação, a distribuição em uma lógica obscura e cambiante. Por meio do aumento de empresas-aplicativo e do gerenciamento do trabalho por algoritmos é possível controlar diversos prestadores de serviços, dispersos, mas centralizados e com baixo custo (Abílio 2020Abílio, Ludmila. C. 2020. Uberização: gerenciamento e controle do trabalhador just in time. In Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0., organizado por Ricardo Antunes, 111-24. São Paulo: Boitempo.). O trabalhador trabalha para si, para empresa-aplicativo e para o cultivo da marca que, por sua vez, depende de trabalhadores para se propagar. Esses últimos, administram a forma de trabalho, arcam com os riscos e os custos referentes ao trabalho, à empresa, e ao consumidor. O contrato trabalhista é substituído pelo aplicativo, o acesso à plataforma é realizado após cadastro no aplicativo, sendo necessário ter meios de trabalho.
As plataformas digitais são cooperativas, vinculadas ao capital financeiro, estruturadas por três elementos que articulados garantem eficácia: utilização de Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC); uma massa de trabalhadores em busca de formas de sobrevivência e falta de perspectivas de vínculos empregatícios. Assim, produzem metamorfoses nas relações de trabalho, transformando o trabalhador em microempreendedor e a empresa em parceira que media e fornece a infraestrutura para que o trabalho ocorra. Desta forma, configura-se uma “economia do compartilhamento” (sharind economy), em que o aplicativo é a empresa, a programação é realizada por software e o trabalhador é um parceiro. Isso, em um ambiente de alta competitividade, em que os trabalhadores “parceiros” se transformam em empreendedores e os outros trabalhadores em concorrentes, sob subordinação do algoritmo (Antunes e Filgueiras 2020Antunes, Ricardo, e Vitor Filgueiras. 2020. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Contracampo 39 (1): 27-43. https://doi.org/10.22409/contracampo.v39i1.38901
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).
Na pandemia, o trabalho de entregadores de aplicativos tornou-se ainda mais precarizado, crescendo de 25 mil, no início de 2016, para 322 mil, no quarto trimestre de 2021.4 4 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). 2022. Nota de Conjuntura, 55. Nota 14, 2° Trismestre de 2022. 10 de maio 2022. Acessado em 20 jul. 2022. https://bit.ly/3NA9fEt. O aumento da jornada de trabalho, o risco inerente ao trabalho somado ao da pandemia, são condições que evidenciam a fragilidade dessa categoria. Um trabalho que se tornou essencial, a partir das medidas de distanciamento físico que afetaram a dinâmica social em todo o mundo, garantindo a distribuição de alimentos, medicamentos e compras realizadas pela internet, no entanto, consolidou-se em forma de trabalho muito arriscada e precarizada. O crescimento do desemprego impulsionou o aumento de jovens trabalhadores nas plataformas digitais, o que intensificou a concorrência, um dos pilares do neoliberalismo, e a diminuição da taxa de pagamento das entregas, aumentando o lucro das empresas dos aplicativos.
Dardot e Laval (2016)Dardot, Pierre, e Christian Laval. 2016. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo. apresentam o neoliberalismo como um sistema jurídico, político, institucional baseado em uma lógica normativa constitutiva de uma racionalidade capitalista. Um intervencionismo governamental que afeta a esfera econômica, política e cultural. Uma racionalidade, em que o princípio da concorrência permeia todas as relações sociais, constituindo-se em uma injunção imposta a todos os seres humanos, que devem funcionar como empresas, um capital a ser administrado, com a tarefa de acumular valor – autovalorização. É uma racionalidade política, mundial, que consiste em estabelecer por parte dos governos, na economia, na sociedade e no próprio Estado, a lógica do capital até se transformar na forma das subjetividades e na norma das existências.
É nessa lógica que, no Brasil, se ancoram as contrarreformas trabalhistas dos últimos anos, alterando profundamente a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), pois criam-se mecanismos para regulamentar essas formas de trabalho (Antunes 2022Antunes, Ricardo. 2022. Capitalismo pandêmico. São Paulo: Boitempo.). Na pandemia, o governo Bolsonaro institui mecanismos para favorecer o Microempreendedor Individual (MEI), regulariza as startups e Empreendedorismo Inovador, e disciplina a relação dessas com a administração pública. Contudo, o MEI tem servido ao mercado formal que deixou de contratar trabalhadores garantindo direitos.
Como resultado, surgem formas de trabalho como um meio para se manter na escassez do trabalho formal. Segundo o IBGE,5 5 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 2022. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad contínua). Acessado 20 jul. 2022. https://bit.ly/2ZSfdHo. no primeiro trimestre de 2022, o mercado de trabalho registrou 38,203 milhões de trabalhadores atuando na informalidade, correspondendo a uma taxa de informalidade de 40,1% no mercado de trabalho. A inserção do jovem no trabalho informal é parte dessa realidade, demandas impostas pelas relações sociais capitalistas e empresas startups como Uber, 99, Apple, as quais incorporam jovens nos denominados processos de uberização.
A exacerbação da desigualdade social durante a pandemia é explicitada nos depoimentos de jovens desempregados, em consequência da recessão da economia. Em especial, os que, ao perderem o emprego por causa do fechamento de serviços, buscaram alternativas com o trabalho informal, como os jovens entregadores por aplicativos.
Os entregadores por aplicativos/plataformas
A partir da categoria “precarização do trabalho”, pôde-se perceber uma crescente demanda contextual por serviços de entregadores por aplicativos, especialmente, por conta do isolamento social. Somando a isso, o desemprego já existente, resultou em um aumento exponencial de entregadores e, por conseguinte, em uma maior concorrência, debilitando ainda mais o trabalho, inclusive no que se refere a sua remuneração: “Iniciei o trabalho como entregador por aplicativos antes da pandemia, porém neste momento estão pagando menos e observo que tem muito mais entregadores nas ruas” (G., 22 anos, com. pess., 2020); “Eu trabalhei dos 18 aos 20 anos como garçom, mas como fechou o lugar onde eu trabalhava, comecei a trabalhar como motoboy e continuo até hoje” (C., 21 anos, com. pess., 2020). Outro jovem afirmou:
Eu sempre fui acostumado a andar de bicicleta, agora que estou trabalhando com isso […]. Ano passado estava melhor do que esse ano, tinha mais entrega perto de onde eu moro, atualmente, tem muitos lugares que fecharam. (F., 23 anos, com. pess., 2021).
Importante ressaltar que as entregas por aplicativo podem ocorrer de vários meios: motocicleta, bicicleta e algumas ocorrem a pé. Identificou-se, a partir dos relatos, a diminuição da idade dos entregadores e do uso da bicicleta como meio de trabalho, considerando que este é um instrumento muito mais barato do que uma moto e que não exige manutenção constante, nem uso de combustível, mas seu uso resulta em muito mais risco para o trabalhador.
A análise empreendida evidencia que esses jovens constituem uma parte mais vulnerável da classe trabalhadora; sem direitos trabalhistas e sob condições de extrema precariedade, com jornadas extenuantes de trabalho. A configuração do trabalho, desse modo, mostra como os jovens experienciam o processo de uberização durante a pandemia.
Uma característica do trabalhador uberizado é que ele assume os riscos e os custos de seu ofício, perdendo as garantias essenciais, como segurança, saúde e remuneração fixa (Abílio 2020Abílio, Ludmila. C. 2020. Uberização: gerenciamento e controle do trabalhador just in time. In Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0., organizado por Ricardo Antunes, 111-24. São Paulo: Boitempo.). A não responsabilização das empresas em relação aos direitos trabalhistas, torna esses jovens vulneráveis diante das condições climáticas ou qualquer imprevisto que ocorra no trabalho. Em tempos pandêmicos, pôde-se constatar que esses trabalhadores estão ainda mais expostos a riscos de saúde, como contrair o vírus, já que seu cotidiano nas ruas e com os consumidores, os torna alvo fácil para o contágio: “Os riscos que eu corria era de estar exposto ao vírus, por causa da Pandemia, o trânsito de moto é um pouco perigoso porque pode ocorrer acidentes, mas eu acredito que o risco maior é do vírus”. (V., 24 anos., com. pess., 2021).
Os relatos referem-se a inúmeras situações de extrema vulnerabilidade quanto à falta de segurança e cuidado de si, naturalizando, assim, a precarização do trabalho. A suscetibilidade do trabalho de entregador por bicicleta é escancarada quando as mínimas condições de segurança inexistem; não são garantidas, como por exemplo, o uso obrigatório do capacete. As empresas não fornecem os instrumentos de trabalho e nem de proteção aos trabalhadores, se desresponsabilizando e depositando no trabalhador a incumbência de garantir sua segurança. No entanto, o trabalhador, como no caso do entrevistado V. e de vários jovens moradores da periferia, não tem condições de comprar seus instrumentos de segurança, no caso, o capacete. O resultado é uma exposição constante ao risco e ao sentimento de insegurança:
Não ando de capacete, porque não tenho, mas também nunca procurei comprar para usar. […] Sei que me coloca em uma condição mais frágil, mas é uma irresponsabilidade minha, quem quiser usar que use. Eu entendo que isso aumenta a chance de morrer, mas não sou transgressor, se eu tivesse capacete, talvez usasse, mas é caríssimo. Além disso, não é obrigatório, se fosse as empresas precisariam nos dar. A maioria das pessoas que conheço, os moleques de quebrada não usam. (B., 21 anos, com. pess., 2021).
Os custos são responsabilidade do entregador, os instrumentos de trabalho são adquiridos por ele: equipamento de proteção individual (Epis), celular, mochila, moto ou bicicleta – sem auxílio algum para a manutenção. Os entregadores arcam com a reposição e a manutenção dos instrumentos de trabalho quando necessário, inclusive, seu próprio corpo, que exige um cuidado especial frente ao desgaste cotidiano. Para garantir o trabalho, muitas vezes, privilegiam o instrumento de locomoção para a encomenda e desprezam o corpo e a saúde de quem possibilita a locomoção: “[…] todavia, temos problemas graves. Na maior parte do tempo, cuidamos mais da bicicleta do que do nosso próprio corpo, não temos equipamentos de proteção, não nos alimentamos de forma saudável” (D., 21 anos, com. pess., 2020). No que se refere à segurança pessoal, um jovem destaca: “priorizo cuidar da bicicleta, porque ela precisa estar em perfeito estado de funcionamento para evitar acidentes. Por exemplo, realizo manutenções constantes, o que gera custo que saem do meu bolso” (B., 20 anos, com. pess., 2021).
Para que a bicicleta possa ser utilizada como instrumento de trabalho, a força e a resistência são imprescindíveis para que as entregas possam ser realizadas, conforme destaca o depoimento de um entregador: “O entregador que utiliza bike ou entrega a pé tem a força de trabalho […], usa o próprio corpo, o que nos torna mais frágeis e vulneráveis. Nós damos um suor maior!” (V., 16 anos, com. pess., 2021).
Destarte, o trabalho do entregador com bicicleta é o mais desgastante, tanto em relação às horas trabalhadas, ao peso das bags nas costas, quanto aos grandes percursos e à falta de acesso nas ruas e avenidas para bicicleta, “as subidas”, e ao trânsito. E, principalmente, ao cansaço físico de andar pela cidade aguardando um pedido ou na entrega dele:
Antes deste trabalho, eu quase não andava de bicicleta, então nos 6 primeiros dias me senti exausto, me deu até febre de tanta dor, mas agora me sinto adaptado. Trabalho em torno de 12 ou 13 horas no máximo. Eu paro para comer, compro um salgado, às vezes levo bolacha ou algo assim. (C., 20 anos, com. pess., 2020).
O entregador por aplicativo que utiliza a bicicleta deve ter a atenção voltada para inúmeras variáveis, como dirigir a bicicleta, olhar o trânsito, seguir o GPS, além de sua segurança:
Enquanto eu trabalho, eu preciso olhar o celular e controlar a bicicleta, ao mesmo tempo, por isso cai. Eu estava saindo de uma entrega e estava olhando o GPS para saber onde virar para poder pegar o próximo pedido. Precisa ter atenção nas duas coisas. (V., 24 anos, com. pess., 2021).
Assim, os depoimentos também relatam dilemas: garantir a vida ou garantir o instrumento de trabalho. O receio de o instrumento de trabalho ser roubado é uma constante nas entrevistas: “O medo de roubarem minha bicicleta, porque é meu instrumento de trabalho” (V., 24 anos, com pess., 2021). Mas, também, o medo de sofrer acidente de trânsito:
Nós temos que olhar o trânsito, o GPS, estarmos atentos a diversas coisas. Um dia quase bati em um carro parado por estar olhando para o GPS. Antes eu deixava o celular no bolso porque tinha medo de ser roubado, porém comprei um suporte para pôr o celular no guidão da bike, onde é possível olhar para o celular rápido e para frente. Infelizmente, fica nítido para quem quiser me roubar. (S., 22 anos, com. pess., 2021).
Em relação à categoria tempo, observou-se que o tempo de trabalho ocupa quase todo o tempo da vida, expressando-se na: disponibilidade para um possível pedido; espera do cliente; compra no supermercado; espera da entrega dos restaurantes. Como destacam os jovens: “Há pessoas que levam cerca de 30 minutos para me atender, pois muitas moram em condomínios e demoram muito para descer do prédio” (M., 21 anos, com. pess., 2021); “O problema é que precisamos realizar toda a compra no mercado, o que leva mais tempo” (R., 17 anos, com. pess., 2020); “[…]. Semana passada eu fiquei aqui no Burguer King, 1h30 pra pegar [o pedido] [o pedido]” (Vi., 24 anos, com. pess., 2021). Estes depoimentos refutam a ideia de autonomia concernente ao tempo livre, pois se referem ao tempo não pago, o just-in-time, o tempo disponível para o trabalho. Situações desgastantes que provocam ansiedade, stress: ser just-in-time é adoecer de ansiedade e burnout (Bergvall-Kareborn e Howcrofft 2014Bergvall-Kareborn, Birgitta, e Debra Howcrofft. 2014. Amazon mechanical turk e a mercantilização do trabalho. New thecnology, work and employment 29 (3): 2013-223. https://doi.org/10.1111/ntwe.12038.
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).
A lógica neoliberal perpassa o cotidiano destes jovens, pois os enreda de todos os modos: por um lado, os captura pela promessa do tempo livre, que não é concretizada. Por outro, ecoa a necessidade do preenchimento de todos os hiatos de tempo, reforçando a ideia do empreendedorismo, de potencializar a empresa de si mesmo (Dardot e Larval 2016Dardot, Pierre, e Christian Laval. 2016. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo.). O tempo livre deve ser preenchido para produção, na sociedade que prima a competição, assim, pode significar perda de tempo:
A bicicleta pra mim acarretou em outras coisas, quando eu estou num domingo, não fazendo nada, eu pego uma bag com um amigo que faz entrega e eu não quero perder meu tempo, eu falo isso pra mim o tempo todo, que eu não posso perder meu tempo. Quando eu vejo que estou perdendo tempo, que não estou tendo o resultado que eu quero, vou ficando ansioso […]. (J., 19 anos, com. pess., 2021).
A exaustão física causada pelas várias horas trabalhadas faz com que eles definam o trabalho por um sentimento de cansaço. Eles têm consciência corporal desta realidade, no entanto, buscam estratégias para recompensar o esforço. Em vários depoimentos os entregadores afirmaram que buscam compensar as condições do trabalho, por ganhos secundários que, na verdade, escamoteiam todo o processo de exploração deste tipo de trabalho:
O meu trabalho como entregador de bike é definido pelo sentimento de cansaço, porque tem ocasiões em que eu pego muita subida. Por outro lado, eu também tenho lazer por gostar de andar de bicicleta, eu ando sem escutar nada, porque pode atrapalhar a atenção do trânsito. (V., 15 anos, com. pess., 2021).
O controle dos aplicativos, realizado pelo algoritmo e pelos clientes, foi outra categoria analisada. O mapeamento pleno da distribuição para os entregadores, a avaliação de sua produtividade, o rastreamento das dinâmicas de sua produtividade é gerenciado pelos algoritmos. Isso possibilita procedimentos, que organizam a forma de distribuição dos entregadores por aplicativo no tempo e no espaço, favorecendo os trabalhadores mais “produtivos” e punindo os que não correspondem às regras:
Eu aceitei a entrega, sem noção alguma do que estava por vir, mas não podemos negar três entregas ao longo do dia, mesmo que os restaurantes estejam localizados a uma longa distância do meu local, porque ficamos bloqueados no aplicativo, sem receber pedidos de entrega por 1 hora. Todas as vezes que neguei chamadas de entrega no aplicativo rappi, fiquei horas sem ser chamado novamente. Então buscava aceitar a maior parte. (W., 22 anos, com. pess., 2021).
O trabalhador não opina em relação a remuneração, a captação de clientes, a escolha de locais e corre risco todo tempo de ser desligado (Antunes e Filgueiras 2020Antunes, Ricardo, e Vitor Filgueiras. 2020. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Contracampo 39 (1): 27-43. https://doi.org/10.22409/contracampo.v39i1.38901
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). Cabe ressaltar que as reduzidas possibilidades ofertadas para esses trabalhadores, no que se refere aos dias e horários de trabalho ou mesmo o aceite ou recusa de pedidos, não interfere no controle e fiscalização das plataformas: “Recebo pelo que eu faço, algumas vezes levam em consideração onde estou, outras não, assim não sei quanto vou ganhar… fico sempre em dúvida. Quanto mais entregadores aparecem para trabalhar… os valores mudam mais ainda” (J., 19 anos, com. pess., 2021).
Com o aumento da concorrência, o tempo de espera nos restaurantes aumenta. Aceitam essa situação, pois são cientes que a avaliação do seu trabalho é realizada pelos consumidores. A avaliação/pontuação é a maior forma de controle desses trabalhadores, pois qualquer ato do entregador considerado desviante pelo consumidor, pode implicar em uma punição:
Há momentos que fico entre 50 minutos e 1 hora esperando para pegar o lanche da pessoa e levar. Porém, não ganho nada pela espera, apenas pela entrega. Por essa razão, passamos 12 horas no trabalho e há dias que realizamos 8 ou 10 entregas. No aplicativo, aparece o nome da pessoa que fez o pedido, então eu mostro para atendente do restaurante, ela anota e se tiver 20 pedidos antes desse, tenho que esperar. […] Há motoboys que discutem, mas não podemos fazer isso, porque somos avaliados no aplicativo e podemos ser prejudicados. Além disso, se as atendentes ficam com raiva, elas atrasam ainda mais propositalmente. (P., 18 anos, com. pess., 2020).
O entrevistado aponta um elemento determinante para compreender o mecanismo de gerenciamento dos aplicativos, que fazem a mediação entre os consumidores e trabalhadores – a avaliação. A avaliação ocorre pelo usuário, que passa a fiscalizar e a vigiar de forma permanente, obscura e cambiante o trabalhador: “Se o pedido demora, alguns clientes cancelam. Essa semana aconteceu, […]. Com outros já aconteceu mais vezes, acho que depende da ocasião, outros até dão gorjeta e agradecem” (G., 19 anos, com. pess., 2020).
Alguns depoimentos apontam o controle da empresa-aplicativo, no que refere à remuneração, distribuição dos entregadores no tempo e espaço, no controle da produtividade (Antunes e Filgueiras 2020Antunes, Ricardo, e Vitor Filgueiras. 2020. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Contracampo 39 (1): 27-43. https://doi.org/10.22409/contracampo.v39i1.38901
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). Uma das formas de fazer o controle é o bloqueio do entregador quando não corresponde às expectativas da empresa e dos consumidores. São relatos que corroboram a ideia de servidão desses jovens pelos aplicativos, que vão sendo colocados em encruzilhadas de controle total:
O bloqueio acontece se eu ficar um dia sem trabalhar. Somos obrigados a trabalhar todos os dias, […] se eu não for na segunda-feira e for na terça, posso ficar cerca de 3 ou 4 horas sem receber nenhuma chamada. Eles querem que as pessoas fiquem com o aplicativo ligado todos os dias.. Porém, quando o aplicativo vê que estamos fazendo muitas entregas, nos enviam coisas absurdas para nos explorar. (B., 28 anos, com. pess., 2021).
Ontem recusei algumas entregas, me mandaram a seguinte mensagem: “Parece que no momento você não quer fazer entregas.” Então desligaram minha conta e eu liguei de novo…. tive que esperar um tempão. Inclusive, minha bicicleta está quebrada, estava usando a do meu amigo. As entregas apareciam para ser feitas extremamente longe por um valor mínimo […]. Fiquei indignado (C., 27 anos, com. pess., 2021).
Alguns entregadores buscam estratégias para tentar garantir sua sobrevivência com menos exploração, como deixar aplicativos de todas as empresas-aplicativo abertas, ou desligá-los durante a entrega, pois durante a entrega de um pedido é possível aceitar ou recusar outro pedido. No entanto, o gerenciamento dos pedidos é realizado pelo algoritmo:
Há a possibilidade de ligá-los simultaneamente ou usar apenas um […]. Quando os aplicativos são ligados, aparece imediatamente o endereço para entrega. Então, pode aceitar ou recusar as entregas, se for possível, pode até se programar e manter dois aplicativos abertos. (B., 21 anos, com. pess., 2021).
O autogerenciamento subordinado (Abílio 2019Abílio, Ludmila C. 2019. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas. Individuo y Sociedad 18 (3): 41-51. http://dx.doi.org/10.5027/psicoperspectivas-vol18-issue3-fulltext-1674.
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) são estratégias que o trabalhador estabelece para sobreviver e se adaptar a este gerenciamento, buscando entender, decifrar, adequar-se e se beneficiar com esta forma de organização. Entretanto, muitas dessas estratégias passam a ser integradas pelos empresários e, na realidade, o trabalhador não interfere nas formas de gestão.
Nesta relação, a empresa-aplicativo é uma marca e, consequentemente, o trabalhador é identificado com a marca, pois trabalha para empresa e para o cultivo dela. Nesta perspectiva, perde-se a identidade do trabalhador, que se transforma em mera mercadoria: “Sinto que perco a identidade, pois não chegou o entregador, chegou o rappi, o ifood, o ubereats” (F., 23 anos, com. pess., 2021).
A categoria “juventude” perpassa todos os depoimentos. A busca da experimentação, de enfrentamento aos desafios e riscos características do ser jovem, contrapõe a realidade do risco da morte iminente, que os coloca em extrema vulnerabilidade. Eles buscam estratégias para lidar com estas situações, em que o risco “vale a pena”, pois trabalham realizando algo que lhes dá prazer: andar de bicicleta e escutar música. A ideia tão propagada de liberdade, torna muitos destes jovens alvo de um risco, do qual deveriam estar protegidos pelos direitos trabalhistas:
Em relação aos medos que possuo, trabalhando nas condições que estou, só tenho medo de morrer mesmo, […] ser atropelado, mas não costumo sentir medo quando estou pedalando minha bicicleta, porque escuto música com meu fone e fico pensando na vida. (A., 20 anos, com. pess., 2021).
O risco e a adrenalina estão presentes nos depoimentos dos entregadores mais jovens, que associam a transgressão aos seus próprios limites, considerando que nesse trabalho nada é garantido, assim é necessário arriscar-se para ganhar pelo trabalho realizado e para garantir a vida:
Eu defino um risco como morrer atropelado, parar no hospital. Mas eu gosto de me arriscar, libera uma adrenalina. Eu considero o risco maior do que a adrenalina, o medo é maior. Quando estou entre meus amigos de bike, nós conversamos sobre isso. Por exemplo, há uns 2 ou 3 dias um amigo foi atropelado e está no hospital, nós ficamos nos sentindo com medo, preocupados, mas não dá vontade de desistir. (B., 25 anos, com. pess., 2021).
A ideologia do empreendedorismo e a autonomia são apresentadas no trecho da entrevista a seguir, desconsiderando o controle das empresas-aplicativo no que se refere às suas condições de trabalho: “Mas não existem restrições quanto a isso, o entregador é livre para fazer o que ele quiser” (V., 18 anos, com. pess., 2021):
Ser motoboy não é um trabalho em que ocorre privação, eu sou livre para fazer outras coisas, como mexer no celular, fumar um cigarro. Posso fazer o que eu quiser, do jeito que eu trabalho, eu consigo mexer nas redes sociais e eu também uso o celular para trabalhar, consultar as ruas de entrega, eu tenho que estar com o celular. (M., 22 anos, com. pess., 2021).
Outro jovem também reforça a ideologia do empreendedorismo:
[…] quando estava trabalhando eu esperava entrar em uma empresa grande como a Volkswagen, ser encarregado, mas nessas condições penso só em comprar minha moto, trabalhar para mim mesmo, sem ter patrão e fazer meu próprio horário. O dia que eu não quiser trabalhar, não vou. (V., 22 anos, com. pess., 2021).
A ideia do empreendedorismo atua também como uma medida das empresas-aplicativo de se isentar da responsabilidade de gerir seus trabalhadores, uma vez que seu sistema de trabalho transfere o gerenciamento de tempo para o próprio entregador (Abílio 2019Abílio, Ludmila C. 2019. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas. Individuo y Sociedad 18 (3): 41-51. http://dx.doi.org/10.5027/psicoperspectivas-vol18-issue3-fulltext-1674.
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).
Sem embargo, é possível constatar que alguns jovens têm consciência da exploração e fazem uma crítica da situação laboral: “Infelizmente, muitos acreditam no discurso do empreendedorismo, que são os próprios patrões, mas é uma exploração sofisticada, antes e durante a pandemia, os aplicativos usam minha força de trabalho para enriquecer, explorar os entregadores” (J., 24 anos, com. pess., 2021).
Apesar da concorrência, os jovens entregadores buscam estratégias de sobrevivência e, muitas vezes, é nos outros entregadores que se apoiam. Diante da necessidade, a solidariedade entre pares torna-se uma forma de resistência. Trabalhar na rua, em uma metrópole como São Paulo, perpassa vários desafios, como encontrar o endereço, um acidente ou mesmo uma desavença. Por isso, é determinante ter uma base de apoio:
Nós não passamos por dificuldades na rua, porque tem muitos entregadores e nos ajudamos. Se preciso de informações para encontrar um endereço, sofro um acidente ou brigo com alguém, tem sempre entregadores para conversar. Nas entradas dos prédios, cumprimentamos e conversamos. Somos um grupo forte que conversa bastante, seja para saber como as ruas estão, seja para conversar sobre a loucura do dia. (Br., 21 anos, M., com. pess., 2021).
Desta forma, nestes momentos, se percebem como grupo de trabalhadores, que trocam informações e experiências relacionadas às dificuldades no trabalho, o que pode fortalecê-los coletivamente.
A contradição de uma sociedade desigual como a brasileira é explicitada neste depoimento, além do quão indecifrável é a forma de remuneração dos entregadores:
Tem muita gente que não tem o que comer e entrega comida. Certa vez fui em um lugar que vendia uma variedade de cogumelos, isso me marcou, porque nós vemos comidas que nunca provamos e não temos acesso. Por exemplo, já entreguei vinho que custava cerca de 130 reais e recebi 10 reais. (D., 22 anos, com. pess., 2021).
Os depoimentos retratam processos complexos que explicitam o cotidiano dos jovens entregadores por aplicativos durante a pandemia.
Considerações finais
As reflexões aqui desenvolvidas foram construídas com base na literatura já existente sobre a uberização dos entregadores por aplicativos. Nossa questão foi verificar como este trabalho ocorreu durante a pandemia. As entrevistas foram analisadas levando em conta duas categorias principais: (a) a precarização do trabalho; e (b) a juventude; além das subcategorias autonomia/autogerenciamento vs. controle, risco, tempo, empreendedorismo.
O diálogo contínuo com as referências teóricas e as evidências empíricas possibilitou entender por meio dos depoimentos a dinâmica desse trabalho como uma alternativa de sobrevivência para esses jovens, em que se entrelaçam diversas dimensões da precarização: a informalidade, a insegurança e a incerteza.
Na pandemia, as medidas sanitárias tiveram como consequência o fechamento de negócios, as altas taxas de desemprego e o aumento da demanda por serviços de plataformas digitais, entre outras. Nestas condições, o trabalho dos entregadores por aplicativos tornou-se essencial para o transporte de alimentação, medicamentos e outras mercadorias. Verificou-se o aumento exponencial desses trabalhadores e, por conseguinte, a concorrência, precarizando ainda mais seu trabalho, pois as empresas-aplicativo diminuíram a taxa de pagamento por entregas, aumentando seu lucro e explorando ainda mais estes trabalhadores, que se tornaram descartáveis e facilmente substituíveis dependendo dos juros do capital.
A exacerbação das mudanças no mundo do trabalho na pandemia, com o desenvolvimento de formas de horizontalização do capital produtivo, flexibilidade, expansão da informatização implicaram em condições degradantes de trabalho para os jovens entrevistados, como: jornada excessiva, baixa renda, alta vigilância e controle. E, ainda, em situações de exposição a riscos como: acidentes, agressões ou doenças associadas à violência simbólica como episódios recorrentes de discriminação. A falta de vínculo empregatício – perda de direitos/aplicações trabalhistas (tecnologia); just-in-time tornaram-se cada vez mais evidentes. Vivenciam inúmeros riscos na sua rotina, que podem resultar em danos físicos e psicológicos (Dejours 1992Dejours, Christophe. 1992. A loucura do trabalho: estudo da psicopatologia do trabalho. 3. ed. São Paulo: Cortez.).
Identificou-se que a ideologia do empreendedorismo e da autonomia mascara a imposição do gerenciamento a partir do controle massivo dos aplicativos, o que torna esses jovens reféns da lógica neoliberal em que o lucro do capital supera qualquer necessidade humana. Os entrevistados, na sua maioria, estão impregnados por essa lógica, se submetem a riscos e a condições de extrema precarização, pois acreditam que as vantagens de uma “liberdade” superam os percalços vividos no trabalho. Não obstante, existem brechas que transpõem este ideário, que oferecem possibilidades de agência e sociabilidade dos jovens. Um exemplo foi o “breque dos apps”, que com o apoio das redes sociais e de alguns dos consumidores pôde ressignificar a lógica do individualismo, uma das grandes premissas da concorrência. Nesse movimento, esses jovens deixaram de ser concorrentes e experimentaram o ser coletivo. O que também foi constatado em vários depoimentos foi que a solidariedade pode ser entendida como forma de resistência aos riscos e perigos em um trabalho de extrema vulnerabilidade.
Muitos pela condição juvenil, persistem, apesar e/ou por conta dos riscos e perigos. Relatam o incômodo das esperas nos restaurantes, mas a característica da sociabilidade juvenil faz com que nesses espaços/tempo, se conheçam, troquem experiência, dicas de trabalho e possíveis formas de organização. Enquanto jovens, persistem e resistem à perspectiva de sobreviver ou de viver intensamente o que lhes é apresentado. Vivem sob a ideologia do aqui e agora, investem seu corpo e sua alma intensamente na promessa de autonomia, mas vivem sob o controle e a vigilância constante. A adrenalina imiscui-se com o risco, a onipotência com a impotência frente à lógica obscura do gerenciamento dos aplicativos. O desejo de se arriscar, característica do ser jovem, os coloca em situações que beiram a morte.
Destarte, alguns têm ciência que a exacerbação da uberização, a informalização e o gerenciamento algorítmico estão desconstruindo a identidade de trabalhador. A identidade com a marca, os desumaniza, tornando-os uma mercadoria. O pressuposto subjacente à nossa análise é que a pandemia intensificou a desigualdade social, afetando jovens de classes sociais mais baixas, com pele negra e parda.
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Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação das autoras antes da publicação.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Ago 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Dec 2023
Histórico
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Recebido
20 Nov 2021 -
Aceito
16 Ago 2022 -
Publicado
07 Jul 2023