Open-access OBSERVANDO CIDADES: RAUL MOURÃO E A CAPTURA DAS RUAS

OBSERVING CITIES: RAUL MOURÃO AND THE CAPTURE OF THE STREETS

OBSERVANDO CIUDADES: RAUL MOURÃO Y LA CAPTURA DE LAS CALLES

RESUMO

O artigo focaliza os trabalhos de Raul Mourão voltados para a observação das cidades e para a captura da visualidade das ruas. Trata-se de um eixo da produção do artista que ele considera dedicado à documentação do real. A análise de sua obra é feita a partir de uma entrevista com o artista e diálogos com outros pesquisadores interessados na sua produção artística sobre este tema.

PALAVRAS-CHAVE  Cópia fiel ; Cinema contemporâneo; Campo; Abbas Kiarostami; Imagem-tempo

ABSTRACT

The article focuses on Raul Mourão’s artworks produced by observing cities and capturing the visuality of the streets. It is an axis of the artist’s production that he considers dedicated to the documentation of reality. The analysis of his work is based on an interview with the artist and dialogues with other researchers interested in his artistic production on this topic.

KEYWORDS  Certified Copy ; Contemporary Cinema; Field; Abbas Kiarostami; Time-image

RESUMEN

El artículo se centra en las obras de Raul Mourão direccionadas a la observación de las ciudades y en la captura de la visualidad de las calles. Este es un eje de la producción del artista que considera dedicado a la documentación de lo real. El análisis de su obra es realizado a partir de una entrevista con el artista y diálogos con otros investigadores interesados en su producción artística sobre este tema.

PALABRAS CLAVE  Copia certificada ; Cine contemporáneo; Campo; Abbas Kiarostami; Imagen-tiempo

Tudo se inicia numa tarde de fevereiro, ensolarada e quente, no Rio de Janeiro, mais precisamente no bairro boêmio e histórico da Lapa, onde fica o ateliê do artista Raul Mourão. Faltam poucos dias para o carnaval e conversamos informalmente sobre um aspecto específico do seu trabalho, o impacto da estética das ruas nas suas obras. Concordamos que seria importante um registro da nossa conversa sobre esse tema e resolvemos que gravaríamos uma entrevista após o carnaval. De repente, um corte abrupto. Trancafiados cada um em sua casa, conversamos por FaceTime, cumprindo um isolamento que se iniciara cerca de duas semanas após nosso último encontro. Gravamos a entrevista à distância, sem deixar de pontuar a ironia daquilo tudo. Falávamos sobre as ruas no momento em que estávamos apartados delas, confinados em casa, impossibilitados de vagar pela cidade, por suas esquinas, calçadas e becos devido à pandemia do Covid-19. 1 Um problema que continuaríamos vivendo um ano e meio depois, quando eu finalizava este texto. Ainda que tenham sido retomadas e que a vacinação da população tenha avançado, as ruas se mantinham como um espaço marcado pelo medo da possibilidade iminente do contágio. Refletir sobre a importância das ruas, nesse cenário, tornava o trabalho do artista ainda mais relevante.

Ao lançar seu olhar, muitas vezes também irônico, para as banalidades cotidianas, seus vestígios e traços corriqueiros, Raul Mourão criou, em múltiplos suportes, diversos trabalhos voltados para uma apropriação da visualidade das grandes cidades. Dedicado ao tema da rua como espaço de criação e, ao mesmo tempo, documentação do real, interessa a Raul um desvelar de estéticas construídas e desfeitas na medida em que as cidades impõem seu ritmo de transformação às ruas.

A imagem da cidade como um palimpsesto, portanto, cabe à forma como Raul encara as ruas. Bruno Carvalho explicou que “um palimpsesto designa um manuscrito no qual o primeiro texto é raspado, permitindo que o pergaminho ou tabuleta de argila seja usado para uma nova escrita”. Por isso, Carvalho (2013, p. 29–30) acredita que os “espaços urbanos são como palimpsestos num sentido palpável; físico”.

O autor se refere aos sinais visíveis e tangíveis que são tragados pelas reformas e mudanças pelas quais passa uma cidade contemporânea. Um bom exemplo é o Rio de Janeiro, uma metrópole marcada e constituída por diversas intervenções urbanas, sem que, mesmo assim, seu passado tenha sido totalmente “raspado”, mantendo-se na superfície, de forma apagada, mas não completamente, revelando-se ainda presente nas reformulações da cultura carioca. É o que mostra a presença de uma Lapa histórica, repleta de significados, na configuração atual do bairro, no qual Raul atua como um dos principais agentes culturais, promovendo diversos eventos públicos assinados pelo Rato Branko, uma iniciativa artística e multimídia criada por ele e pelo também artista Cabelo.

Nesse sentido, Raul se volta, principalmente, para aspectos mais banais da contínua (re)construção das cidades, que por esse motivo passam desapercebidos. Ainda assim, possuem um lugar político importante, como aquele que o artista percebe nas grades e setas que permeiam o Rio de Janeiro.

Os trabalhos do artista voltados para a visualidade das ruas partem de uma observação obsessiva das cidades. O olhar de Raul entende a cidade como um palimpsesto, escavando suas ruínas e violências, conectando seu passado histórico com a sua superfície contemporânea, desvelando aspectos invisibilizados tanto em meio ao caos urbano quanto em espaços vazios e ermos. Rua (1997), Cão Leão (2002), Drama.doc (2003), Setas (2014) e Timeline (2013) são obras e séries que evidenciam esses aspectos.

Neste artigo, detenho-me numa reflexão sobre esses trabalhos, os quais fazem parte de um eixo específico da obra de Raul Mourão, voltado para as ruas. Encerro com uma breve digressão sobre trabalhos mais recentes do artista, que passa a utilizar garrafas de vinho vazias em suas esculturas cinéticas de ferro, produzindo composições híbridas entre o documental e a ficção.

Imagens das ruas

A observação das cidades foi deflagrada pelos movimentos do artista quando jovem. 2 Um período marcado pela descoberta do centro do Rio, seus botequins, mesas de sinuca, ovos coloridos exibidos nos balcões e vasto repertório visual, que entrelaçam vertiginosamente a sua arquitetura colonial, moderna e contemporânea. Nesse momento, há a descoberta das crônicas de João do Rio, o flâneur que transitava entre a belle époque carioca e os submundos da cidade, sempre encantado por suas ruas. Também é nesse contexto de juventude que surge o livro Rua, composto por uma série de frases escritas pelo artista, que também eram capturas de cenas que ele observava no cotidiano da cidade.

Ver algo sobre o trabalho das joias / 28 frases prontas. O material é entregue finalmente. / Agora aguardo pelos desenhos. 1 semana é suficiente. / Mudança de pobre. / Cerveja no balcão. / No espelho do bar, a cabeça de um policial. / De costas para a rua. Drogado. Droga leve. / Droga leve bem pesada. / Se chegar depois das 18, o dono já foi embora e ele (Milton) pode fazer outro preço. / 2 irmãos gêmeos numa sala. Um chupa o pau do outro. / Andava pensando. / Homem pede copo. / Sonho. Para comer rãs o que é mais importante: penetração ou ejaculação? / Ou o contrário? / Diálogo entre um casal em volta de uma piscina. / Uma minissaia com muito pouco pano. / Figura negra e fundo bastante escuro. / Uma ideia a partir da borracha. / Poesia come tudo. / Agradece: muito obrigado. / Tenho dois filhos e ninguém sabe. / Ninguém conhece. / A mulher da loja que vende canos. / Ele precisa dela. / 5 minutos. / Acordo de paz. / Viajando pelo mundo. Jogando a vida fora. / Não comeu ninguém. / Bebeu todas. / Aguardando sol para lavagem. (MOURÃO, 2007, p. 79)

Rua foi o primeiro trabalho voltado para a documentação do real, um minilivro com tiragem de 100 exemplares, permeado por diversas frases fragmentadas, escritas a partir de cenas capturadas pelo artista, impactadas principalmente pela vivência das ruas. Ao mesmo tempo, muitas delas eram cenas imaginadas por Raul, beirando o surrealismo e o ambiente dos sonhos.

No início dos anos 2000, Raul instalou seu ateliê na Lapa, conhecido por ser um dos berços do samba e da malandragem. Nesse mesmo período, os reality shows ganhavam força na mídia, mostrando a capacidade da televisão de exibir a privacidade das pessoas para um grande público, monitorando todos os seus movimentos 24 horas por dia.

Movido por uma crítica aos reality shows, Raul decidiu seguir Leão – um cão vira-lata que vagava pelas ruas da Lapa como um de seus personagens famosos – e filmar 12 horas ininterruptas da sua vida. Muitas histórias eram contadas sobre Leão e suas aventuras pela cidade. O vídeo Cão Leão, além da ironia, traz outro tema que interessa a Raul: a banalidade. Incomodado com a filmagem, Leão se movimenta pouco, fica muito tempo parado, enquanto a câmera o acompanha no seu não movimento ou no seu lento perambular pela Lapa.

Figura 1.
Raul Mourão. Cão/Leão, 2002. Fotografia.

Interessado em diversos suportes para documentar o real, como a escrita e o vídeo, outro aspecto importante do trabalho do artista é a fotografia. Raul começa a fotografar como forma despretensiosa de documentar a cidade, ou melhor, de colecionar determinados aspectos das ruas. Sua produção de imagens sobre as grades que passam a tomar conta do espaço público também parte de uma observação das cidades. Nesse ponto, o artista destaca a fotografia como forma de anotação ou caderno de campo de suas observações: “as fotos das grades eram como se fossem anotações da transformação da paisagem urbana ao meu redor, eu fui acompanhando e fui documentando”. 3

Como colecionador de imagens da cidade, Raul tirou cerca de 1000 fotografias das grades que proliferavam pelo espaço urbano. Incialmente, faziam parte de sua coleção particular, até que, ao digitalizar acidentalmente as fotografias em baixa resolução, o artista chegou a uma imagem granulada e em preto e branco das grades. Conforme Raul explicou: “Elas não eram originalmente em preto-e-branco. Um dia digitalizei imagens em baixa resolução, imprimi também em baixa, fiz uma xerox da imagem numa máquina ordinária e depois levei ao Photoshop para manipular” ( MOURÃO, 2007, p. 79).

A manipulação das imagens das grades levou o artista a produzir uma contundente crítica ao problema da segurança pública não apenas no Rio de Janeiro, mas também em todo o país. “Raul Mourão trata de uma geometria do medo em contexto histórico preciso. O medo é o sintoma da violência social brasileira, da exclusão social e da miséria surgindo como reação ao furto, ao roubo e ao latrocínio”, escreveu Paulo Herkenhoff (2007, p. 37).

Trata-se, como Herkenhoff apontou, de um problema que tem um “contexto histórico preciso”, especificamente o final dos anos 1980 e início dos anos 2000, quando a intensa desigualdade social e o racismo estrutural do país produziram uma série de episódios marcadamente violentos, que tinham como palco as principais cidades do Brasil. Ainda que esses problemas persistam, naquele período houve uma escalada da violência urbana no país, permeada por chacinas, massacres, sequestros, guerras do tráfico de drogas, formação de milícias e latrocínios cada vez mais frequentes.

Outro aspecto importante apontado por Herkenhoff é a “geometria do medo” presente no trabalho de Raul com as grades. As imagens evidenciam o óbvio: o gradeamento dos espaços da cidade, mais do que garantir a segurança das pessoas, demonstra a profunda insegurança que paira sobre o Rio de Janeiro. Formas agressivas, como as extremidades pontiagudas de determinadas grades, surgem nas fotografias do artista como estética marcante da geometria do medo.

As contradições desses “disparadores da paranoia” que são as grades também ficam evidentes na sua violência explícita, exercitada sob o pretexto justamente de proteger determinados espaços e indivíduos. Raul acredita que por trás de uma ideia de proteção de patrimônios públicos e privados há uma agressão física aos projetos arquitetônicos originais, subitamente assaltados por gradeamentos de todas as formas. Há, portanto, uma violência contra a arquitetura da própria cidade.

Como resultado dessa pesquisa, Raul também produziu desdobramentos do seu olhar para as grades e de seu interesse pelas construções geométricas da cidade, que incluiu na série Drama.doc. A pesquisa sobre as grades o levou a produzir conexões com outras formas que traçavam vazios e ausências, como as estruturas das barracas de camelôs após o dia de serviço, deixadas nas ruas durante a noite, destituídas das coberturas de lona, do balcão de madeira e dos produtos ofertados como em pregões pelos vendedores. Despidas de seus ornamentos, esvaziadas das sonoridades e dos produtos, as armações das barracas surgiam como esqueletos que denunciavam a precariedade da cidade, sua produção de ruínas e vazios.

Figura 2.
Raul Mourão, Drama.doc/Barraca, 2003. Imagem digital sobre papel fotográfico, 150 x 90 cm.

Os vazios produzidos pelos “disparadores de paranóia” permitiram a Raul fazer conexões com as barracas de camelô esvaziadas de seus ornamentos e sentidos. A série Drama.doc também tornou célebres as diversas imagens de Raul em preto e branco, completamente estouradas e granuladas, em que se percebe a ausência de aparelhos de ar-condicionado nas casas, supostamente protegidos pelas grades, que na verdade apenas protegem uma lacuna, uma ausência deflagrada pelo ar-condicionado inexistente, somente presumível pelo espaço ainda aberto a recebê-lo, que conta agora com uma grade inútil. Herkenhoff (2007, p. 37) descreveu essas grades do vazio como “melancólicos fantasmas que teimam em moldar uma ausência. A melancolia é não ter o eletrodoméstico, a propriedade do objeto”.

É comum nos trabalhos do artista diversos suportes entrecruzarem-se em torno de uma série. No caso de Drama.doc, Raul produziu esculturas das grades e das armações das barracas de camelôs, criando outras materialidades para esses elementos das ruas que inicialmente capturou por meio da fotografia, promovendo outras leituras de suas agressivas extremidades pontiagudas e das grades do vazio ou “molduras de uma ausência” do ar-condicionado.

Figura 3.
Raul Mourão, Drama.doc/Ar, 2003. Imagem digital sobre papel fotográfico, 150 x 90 cm.

Em 2004, convidado pelo crítico de arte e curador Agnaldo Farias para a exposição coletiva SP 450 Paris, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, Raul Mourão criou ENTONCES, a maior instalação da série sobre as grades até aquele momento. As esculturas tomavam conta do espaço expositivo, separadas por pequenos corredores, forçando o público a um andar “lento e cauteloso por entre as celas de ferro de dimensões variadas de 'ENTONCES', como se caminhasse pelas ruas de uma cidade em escala reduzida e hostil” (FARIAS, 2007, p. 63). Conforme explicou Agnaldo Farias (2007, p. 63):

Apresentado em primeira versão no Instituto Tomie Ohtake, ENTONCES compreende um sem número de esculturas ocas, realizadas a partir de vergalhões de ferro cru, soldados e limados nos pontos de encontro. ENTONCES, trabalho pertencente a um raciocínio maior – a serie GRADES -, que envolve esculturas, instalações, serigrafias, vídeos e fotografias, nasceu aparentemente da constatação do avanço dos sistemas de controle sob o corpo da grande cidade brasileira, o que é o mesmo que dizer sobre o cidadão...

Figura 4.
Raul Mourão, Entonces, 2002. Dimensões variadas.

A obsessão por fotografar grades fez com que Raul adquirisse o hábito de levar uma máquina fotográfica a tiracolo nas suas andanças pelas ruas. Em meio aos refazimentos de uma cidade movediça, em que o espaço público é sempre ocupado com obras e intervenções urbanas, o artista passou a se interessar pelas setas que buscavam organizar o trânsito de carros e pedestres.

Novamente, o procedimento utilizado foi a fotografia. Raul começou a fotografar diversas setas que encontrava pelo caminho. O artista logo percebeu que aqueles símbolos universais incrustados na cidade, cuja visualidade o atraía profundamente, na verdade, eram pinturas.

No caso das setas havia uma curiosidade sobre aquele elemento gráfico no meio da rua. Se a seta é feita manualmente, então, é uma pintura, alguém pintou isso e virou um diálogo com a rua. São pinturas que tinham uma potência gráfica. Minha atração era puramente visual, o encanto com aquele branco e vermelho que vai tomando conta da cidade aleatoriamente. 4

Atraído pela potência visual desse branco e vermelho encarnado nas ruas, o artista iniciou a série Setas. Não deixa de ser curioso e sugestivo que as cores do terno do malandro carioca, representado na figura de Zé Pilintra, entidade que baixa nos terreiros de umbanda do Rio, sejam as mesmas das setas que encantaram o artista.

Figura 5.
Raul Mourão, Seta de rua (4 isósceles), 2014. Acrílica sobre tela, 80 x 80 cm.

Mais uma vez, diversos procedimentos se cruzaram em torno de uma série de Raul. Interessado nas setas que encontrou nas ruas como pinturas-objeto, ele passou a pintar as setas de forma tradicional, tornando-as elementos de suas composições geométricas, marcadamente construtivas. As setas se tornam objetos produzidos no ateliê, apropriados pelo artista, desdobrando-se também em outras proposições, suportes e formatos.

Um exemplo desse “jogo de ambiguidades” é a seta que Raul pinta em seu ateliê como um painel, a partir de uma imagem capturada nas ruas, para onde volta como lambe-lambe, tornando-se uma pintura urbana, impressa no muro em frente ao seu ateliê. Interessado em acompanhar o desgaste do lambe-lambe, do papel corroído pelo tempo, sujeito às intervenções das ruas, Raul se apropria do resultado dessas ações. “Um ano depois, começo a achar essa intervenção interessante, contrato um fotógrafo, da rua volta para o ateliê, o objeto que pintei e que sofreu ação do tempo na cidade, um jogo de ambiguidades”. 5

A obsessão de lançar o olhar sobre as banalidades da cidade e de fotografá-las ganhou um movimento radical com a série Timeline. Desta vez, a deambulação de Raul alcança outras cidades, mais precisamente São Paulo e Nova York. Outro aspecto novo é que Timeline não se desdobra em novas proposições, nem cruza diversos suportes. A fotografia ganha uma centralidade que não possuía nas demais séries voltadas para a captura das ruas.

Para Raul, Timeline se inscreve num momento recente da história da arte, em que a fotografia se populariza, a partir dos anos 1960, e artistas começam a fotografar e a priorizar justamente uma produção de imagens voltada para as “pequenas estranhezas”, como gosta de dizer, que marcam a visualidade das ruas. Como parte desses artistas, podemos citar Cao Guimaraes, Luiza Baldan, Marcos Chaves, Richard Wentworth, Wolfgang Tillmans, Rui Calçada Bastos, entre outros.

Em certo sentido, há uma conexão com a discussão proposta por André Rouillé, na qual o crítico francês distingue a arte dos fotógrafos da fotografia dos artistas. É nesta segunda posição que Raul se coloca. Conforme Rouillé ( 2009, p. 287) explicou: “O principal projeto da fotografia dos artistas não é reproduzir o visível, mas tornar visível alguma coisa do mundo, alguma coisa que não é, necessariamente, da ordem do visível”.

Talvez não sejam da ordem do visível as imagens que Raul e outros artistas que utilizam a fotografia como suporte, interessados nas “pequenas estranhezas”, trazem a partir do seu olhar lançado para as ruas. Em Timeline, são justamente as imagens invisibilizadas que interessam ao artista, como as dos diversos cones de sinalização que encontra pelas ruas em situações distintas, alguns, inclusive, deteriorados. Há ali alguma conexão com as setas, como as cores vermelho e branco e a tentativa de impor alguma coerência ao caos urbano e às suas muitas formas de apagamento e invisibilização.

Figura 6.
Raul Mourão, 18:05 26/06/2013, série Timeline, 2013. Pigmento mineral sobre papel algodão, 34 x 34 cm.

Entre balanços e garrafas: composições híbridas

Apesar do esquema proposto por Rouillé ser um tanto rígido, considerando as porosidades que envolvem as distinções propostas pelo crítico em relação à fotografia dos artistas e à arte dos fotógrafos, não deixa de ser uma ferramenta interessante para entender o posicionamento de determinados artistas. Raul Mourão, no caso, não se considera fotógrafo, o que não significa que fotógrafos não possam se considerar artistas.

É impossível negar a importância da fotografia nos trabalhos de Raul impactados pela estética das ruas. O estatuto das imagens fotográficas em suas obras é um debate sobre o qual não me deterei aqui, mas certamente busco apontar seu papel fundamental para esse eixo da produção do artista.

Talvez o trabalho no qual Raul dialogue mais diretamente com a história da fotografia seja Metropix – To Mr. Walker. O artista se apropria da conhecida série de fotografias do norte-americano Walker Evans, realizada entre 1938 e 1941, quando fotografou pessoas, sem que elas soubessem, nos metrôs de Nova York. Décadas depois, em 2015, também como forma de homenagem a Evans, em meio ao cotidiano dos subterrâneos nova-iorquinos, Raul se dedica a capturar imagens dos passageiros nos vagões sem que eles percebam, fotografando com seu celular. Embora sejam situações aparentemente distantes, Eucanaã Ferraz conecta a experiência dos passageiros aos já citados gradeamentos em torno da ideia de “função defensiva” desenvolvida por Raul. Para o artista, “a população não enxerga as grades que cercam as construções, apreende apenas a função defensiva”. Assim, de acordo com Ferraz ( 2020, p. 173):

Ao se lançar num programa de captura em que os passageiros não sabem que estão sendo fotografados, Mourão parecer trazer em seu olhar a memória das grades, sugerindo que as levamos conosco quando nos mantemos fechados ao olhar alheio, ligados à tela dos smartphones, a salvo do que nos convidasse ao convívio, perfeitamente alienados de nosso entorno. É aí que Raul investe contar a fragilidade e a falácia da “função defensiva”.

De certa maneira, Raul equaliza seu trabalho entre um lado voltado para a documentação do real e outro dedicado à criação de ficções. Por esse motivo, não me detive em diversas outras séries da produção do artista, como seus emblemáticos “balanços”.

Quando visitei seu ateliê às vésperas do carnaval de 2020, duas semanas antes de sermos atravessados pela pandemia, Raul mostrou seus trabalhos mais recentes, nos quais equilibrava os balanços com garrafas vazias de vinho. Estas garrafas são objetos que não fazem parte da “ordem do visível”. Guardam vinhos baratos e se aboletam com diversas outras garrafas, a maioria de bebidas alcoólicas, que trazem um incrível colorido para os depósitos da Lapa que circundam o ateliê de Raul Mourão.

Mais uma vez, o artista se dedica a um “jogo de ambiguidades”. As garrafas circulam da rua para o ateliê, como objeto que ele transforma em outras proposições. Já não guardam mais o vinho tinto e são despidas de seus rótulos, o que faz com que seu tom esverdeado ganhe força estética. Além disso, acrescenta ao potencial de violência dos balanços – esculturas de ferro que podem se desiquilibrar e cair sobre o público que interage com a obra – o risco das garrafas se estilhaçarem. Um exercício que o próprio Raul já realizou no vídeo Bang Bang (2017). Luiza Duarte ( 2020, p. 242) descreveu o trabalho:

Ao longo de seis minutos, seis diferentes esculturas forjadas por essa combinação de elementos – a geometria em aço e a garrafa de vidro – têm a sua parte mais frágil alvejada por um tiro certeiro. Não sabemos de onde parte o ataque. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis obras têm a sua base estilhaçada. Ou seja, não interessa aqui o aniquilamento de um trabalho específico, mas sim nos é dado a pensar qual o sentido das sucessivas repetições de um mesmo tipo de golpe.

Raul desenvolve a sua pesquisa com esculturas cinéticas desde 2010, quando começou a produzir peças em ferro, experimentando diversas escalas. Os balanços, como são chamados, convidam o público a interagir com a obra, mas há ali a iminência de um risco, como já foi dito. Trata-se do perigo do balanço cair, de ruir o tênue equilíbrio que o trabalho propõe na interação com uma pessoa, podendo inclusive feri-la gravemente, trazendo a violência à tona como marca contundente do real. Com notou precisamente Frederico Coelho no texto para a exposição de Raul intitulada “Movimento Repouso”, o artista

passa a por (sic) em xeque um espaço confortável de ação e precisa se adaptar ao componente híbrido que se instala nas suas obras e no seu olhar para o mundo. Uma espécie de esfacelamento das certezas impele Raul a reinventar referências e não separar sua vida cotidiana nas ruas (fotos) com seu trabalho reflexivo sobre a linguagem (balanços). ( COELHO, 2012, n.p.)

Figura 7.
Raul Mourão, Bang Bang #1, 2017. Frame de vídeo, Stereo soundtrack, 6 min.

Um procedimento fronteiriço se instaura entre balanços e garrafas, composições híbridas atravessam as certezas do artista entre a ficção e o documental, ou ele mesmo as coloca em uma encruzilhada, como ensinamento aprendido nas ruas. O aspecto construtivo permanece, de qualquer maneira, de forma contundente e poética, nessa composição híbrida. O mesmo acontece com a sua captura das ruas, enquanto as cidades se mantêm como palimpsestos que Raul Mourão continua observando, atento aos seus movimentos ininterruptos de “raspagem” da superfície.

Referências bibliográficas

  • CARVALHO, Bruno. Cidade porosa: dois séculos de história cultural do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 29-30.
  • COELHO, Frederico. Aberto para balanço - 2010, Raul Mourão, n.d, 2010. Disponível em: https://archive.raulmourao.com/portfolio/aberto-para-balanco-2010/ Acesso em: 16 abr. 2023
    » https://archive.raulmourao.com/portfolio/aberto-para-balanco-2010/
  • DUARTE, Luisa. O mundo antes do disparo. In COELHO, Fred (org.). Raul Mourão. Volume 2. Rio de Janeiro: Automática, 2020, p. 242.
  • FARIAS, Agnaldo. Os signos ásperos. In MOURÃO, Raul. ARTE BRA / Raul Mourão. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Automática/Tecnopop, 2007, p. 63.
  • FERRAZ, Eucanaã. Ver-Invadir. In COELHO, Fred (org.). Raul Mourão. Volume 2. Rio de Janeiro: Automática, 2020, p. 173.
  • HERKENHOFF, Paulo. A gentil arte de burlar. In MOURÃO, Raul. ARTE BRA / Raul Mourão. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Automática/Tecnopop, 2007, p. 37.
  • MOURÃO, Raul. ARTE BRA / Raul Mourão. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Automática/Tecnopop, 2007. p. 79.
  • ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo: Editora Senac, 2009.
  • 1
    O isolamento causado pela pandemia do Covid-19 começou no Brasil em meados de março de 2020.
  • 2
    Raul Mourão nasceu no Rio de Janeiro, em 24 de agosto de 1967.
  • 3
    MOURÃO, Raul. Entrevista [concedida a Maurício Barros de Castro], 19 mar. 2020.
  • 4
    MOURÃO, Raul. Entrevista [concedida a Maurício Barros de Castro], 19 mar. 2020.
  • 5
    MOURÃO, Raul. Entrevista [concedida a Maurício Barros de Castro], 19 mar. 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2022
  • Aceito
    17 Abr 2023
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