Open-access Desenvolvimento e caracterização de concreto sustentável com resíduos de conchas marinhas

Development and characterization of sustainable concrete with marine shell waste

Resumo

As atividades de mariscagem e malacocultura produzem uma grande quantidade de resíduos sólidos compostos por conchas marinhas. O impacto ambiental do descarte inadequado pode ser atenuado com estratégias de reaproveitamento. O objetivo deste trabalho é investigar a viabilidade do uso de resíduo de conchas marinhas com substituintes parciais de agregados no concreto. As características físicas do agregado reciclado foram investigadas através das técnicas de Microscopia de Força Atômica (MFA) e Microscopia Eletrônica de Varredura (MEV) a fim de esclarecer aspectos da superfície de contato com a pasta; as características químicas e mineralógicas foram investigadas por meio dos ensaios de fluorescência de raios-X e difração de raios-X; e o ensaio de resistência à compressão foi conduzido em amostras de concreto foram moldadas para avaliação do comportamento destes materiais do comportamento destes materiais como agregado (concha tipo A) e fíler (concha tipo B). Concluiu-se que o uso de até 20% de substituição de concha marinha como agregado graúdo e 10% como filer mostrou viabilidade para aplicações em concretos estruturais e, de forma complementar, teores de até 30% podem ser direcionados à concretos não estruturais.

Palavras-chave: Concha marinha; Concreto; Rugosidade; Agregado; Resíduo

Abstract

The improper disposal of this waste poses environmental challenges, which can be addressed through effective reuse strategies. This study aims to explore the potential of utilizing marine shell waste as partial substitutes for aggregates in concrete. The research involves investigating the physical characteristics of the recycled aggregate using Atomic Force Microscopy (AFM) and Scanning Electron Microscopy (SEM) techniques to elucidate the contact surface with the paste. Additionally, chemical and mineralogical characteristics are analyzed through X-ray fluorescence and X-ray diffraction tests. The compressive strength test is conducted on concrete samples to assess the performance of these materials as both aggregate (shell type A) and filler (shell type B). The findings indicate that replacing up to 20% of marine shells as coarse aggregate and 10% as filler demonstrates feasibility for applications in structural concrete. Furthermore, up to 30% replacement can be directed towards non-structural concrete, providing a comprehensive understanding of the potential applications of marine shell residues in concrete production.

Keywords:  Marine shell; Concrete; Roughness; Aggregate; Residue

Introdução

A malacocultura (criação de moluscos bivalves, ostras e mexilhões) tem sido reconhecida mundialmente como uma importante atividade de geração de empregos, renda e alimentação, além de ser uma atividade sustentável que ajuda a estabelecer comunidades tradicionais em seu local de origem (Barbieri et al., 2014). No entanto, existem alguns problemas relacionados à disposição dos resíduos sólidos pois as conchas não são facilmente aproveitadas depois de todo o processo. A destinação incorreta desses resíduos e a ausência de incentivo ao reaproveitamento tem sido os principais desafios encontrados pelos municípios e que buscam minimizar os impactos causados ao meio ambiente e ao bem-estar público (Wolf, 2018).

Os resíduos advindos das atividades de mariscagem e malacocultura são responsáveis pela produção de uma grande quantidade de resíduos sólidos (conchas) que podem causar assoreamento nos oceanos ou rios, além de mudanças na comunidade de fitoplânctons naturais. Ao serem descartados em terrenos baldios, atraem animais e insetos que se alimentam da matéria orgânica remanescente e propagam doenças, além da emissão de um odor desagradável no processo de decomposição(Araújo, 2020).

Neste cenário, os crustáceos e moluscos bivalves oferecem várias aplicações para os seus subprodutos e que podem minimizar o impacto ambiental do descarte aliado a lenta degradação natural das conchas. Existem vários métodos alternativos que podem ser usados para minimizar esse impacto, como por exemplo a reciclagem do material através do artesanato local. Portanto, a principal solução para esse problema ambiental é desenvolver pesquisas e tecnologias alternativas para a reciclagem desses resíduos de uma forma mais expressiva(Silva, 2017). Os resíduos provenientes da concha marinha podem ser utilizados como fonte potencial de substâncias antimicrobiana, tratamento de águas residuais, cosméticos, alimentos, bebidas, produtos farmacêuticos. Alguns pigmentos também podem ser extraídos desses resíduos para aplicações biomédicas (FAO, 2020). Outra aplicação menos usual é o reaproveitamento de resíduos de conchas trituradas em substituição aos agregados miúdo e graúdo na produção de concretos e argamassas. A introdução desse tipo de resíduo na matriz cimentícia tem sido explorada em vários estudos através da incorporação em argamassas (Edalat-Behbahani et al., 2019; Hasan et al., 2021; Hasnaoui et al., 2021), concretos convencionais(Bamigboye et al., 2021), concretos porosos(Kong et al., 2022) e concretos de alta resistência (Ahsan et al., 2022; Rahul Rollakanti et al., 2021; Sangeetha et al., 2022). O resíduo de conchas como material para construção pode ser algo promissor devido a sua composição química favorável, composto basicamente por carbonato de cálcio (Islam, 2015; Wang et al., 2013).

Estudos anteriores abordaram o uso, principalmente, de resíduos de conchas em concretos e argamassas como substituinte ao agregado miúdo utilizando processos de lavagem para retirada de resíduos na superfície da concha e trituração para obter uma granulometria semelhante ao agregado convencional.Siqueira (2021) mostra a viabilidade da utilização de conchas como agregado miúdo na produção de argamassas para revestimentos e o aumento da resistência à compressão desse material após a incorporação. Em adições no concreto, Kong et al. (2022) reportaram que a substituição de concha de ostras pelo agregado natural é viável e pode aumentar a resistência à compressão em teores de até 20% em relação ao agregado miúdo. De forma similar, Liao et al. (2022) através de propriedades mecânicas e de durabilidade, recomendam o uso desse resíduo como substituinte da areia de rio em argamassas nos teores de 10 a 30%.

Diante desse cenário, o objetivo desse trabalho é investigar a viabilidade do uso de conchas marinhas trituradas como substituinte do agregado miúdo no concreto ecológico. Além disso, foram utilizadas técnicas de Microscopia para entender o papel da rugosidade superficial da concha nas propriedades macroscópicas do concreto. Portanto, foram utilizadas as técnicas de Microscopia de Força Atômica e Microscopia Eletrônica de Varredura como ferramentas de visualização da superfície interna e externa da concha que tem o contato direto com a pasta de cimento na Zona de Transição Interfacial pasta-agregado. Também foi investigado o comportamento mecânico do material com a inserção desse resíduo na estrutura do compósito cimentício. Essa investigação promoveu uma elucidação do comportamento do resíduo na matriz cimentícia e o papel de análises de microscopia para a caracterização dos agregados ecológicos.

Materiais e métodos

Análise das matérias primas

Para esse trabalho foi utilizado o cimento CP-V ARI RS (cimento Portland de alta resistência inicial e resistente a sulfatos), sugerível para obtenção de um concreto de alta resistência em poucos dias, pois apresenta alta reatividade nas primeiras horas de aplicação e alta resistência em um curto período. O aditivo utilizado foi o Tecplus 1 da marca Quartzolit e plastificante para concretos e argamassas da marca Weber-Saint-Gobain. Este material é utilizado para concretos submetidos a severas condiçõesde umidade, infiltração ou pressão d'água, que aperfeiçoa a qualidade do concreto em relação a fluidez.

O agregado miúdo utilizado nesta pesquisa foi a areia média fina, cuja curva granulométrica está representada na Figura 1(a). Inicialmente o agregado miúdo passou por um tratamento de lavagem com sete trocas sucessivas de água. Posteriormente, a areia foi colocada em estufa na temperatura entre 100 e 105°C por 24 h e, em seguida, foi realizado o ensaio de granulometria por peneiramento conforme a NBR 248 NM (ABNT, 2003). Semelhante ao tratamento prévio da areia, o agregado graúdo também passou pelo mesmo procedimento de lavagem e secagem em estufa. A curva granulométrica do agregado graúdo está representada na Figura 1(b).

Os resíduos de concha foram disponibilizados por marisqueiros da comunidade do Bode, localizada no bairro litorâneo Pina na cidade do Recife/PE. Os resíduos passaram por um processo de limpeza com água e solução a base de hipoclorito de sódio durante 24 horas e exposição ao ar livre por 48 horas para que houvesse a remoção das impurezas provenientes do descarte inadequado e a total ou parcial eliminação de sais ou elementos danosos ao concreto. Nesta pesquisa foram utilizados dois tipos de resíduos de conchas denominadas conchas tipo A e tipo B de acordo com a Figura 2. A concha do tipo A foi utilizada como substituinte ao agregado graúdo, enquanto as conchas do tipo B foram acrescentadas à mistura como fíler.

Os resíduos de conchas tipo A foram utilizadas como substituinte ao agregado graúdo. O processo de peneiramento ocorreu através do conjunto de peneiras de 12,5mm a 2,4 mm que foram fixadas ao peneirador mecânico e o material foi peneirado por 2 minutos com o intuito de separar a parcela grossa e fina do resíduo. O material passante na peneira 4,75 mm foi considerado agregado miúdo e posteriormente foi descartado. O material retido na peneira de 12,5 mm foi triturado manualmente com o molde CBR e o soquete de compactação de 4,5 Kg, já que a granulometria do agregado graúdo nessa peneira teve uma pequena quantidade de massa retida.Em seguida para uma melhor definição das dimensões das conchas depois de trituradas em relação à brita, foi realizado novamente o ensaio comas peneiras correspondente a brita 0, utilizando duas amostras de 1kg do material, realizado o registro da massa retida e obtido na Figura 3.

Figura 1
Curva granulométrica do agregado miúdo (a) e do agregado graúdo natural (b)

Figura 2
Conchas do tipo A e conchas do tipo B

De acordo com a Figura 3(a), a maioria do material ficou retido nas peneiras com abertura de malha 6,3 mm e 4,75 mm, o que se aproxima dos percentuais da brita. A diferença entre o acumulado médio e olimite mínimo da peneira com abertura 6,3 mm foi superior a 5% do limite exigido pela NBR 7211 (2005). Em compensação, a peneira com abertura de 4,75 mm atendeu a esse limite e adotou-se como ótima toda a faixa granulométrica.

Para os resíduos de conchas tipo B que foram utilizados como fíler, após o processo de lavagem e secagem, foram quebrados em fragmentos menores com a ajuda de um soquete e depois submetidos ao moinho de facas, conforme mostra a Figura 4. Em seguida foi realizado o ensaio de peneiramento fino de acordo com a NM NBR 248 (ABNT, 2003) nas peneiras que compreendem a malha de 2,36 mm a 75 μm. O material foi colocado no peneirador mecânico por 2 minutos, foi realizada a pesagem e o registro de cada material retido (Figura 3b).

Além dos ensaios de caracterização física, foram conduzidos ensaios de caracterização química e mineralógica nas amostras de concha tipo A e B. Para estes ensaios, as amostras foram moídas em um moinho analítico modelo IKA A11 e a porção passante na peneira n° 200 (75 µm) foi reservada para os ensaios de fluorescência de raios-X (FRX) e difração de raios-X (DRX).

Preparação e dosagem da mistura

A definição da composição foi baseada na NBR 5739 (ABNT, 2018) resultando na dosagem 1:1,5:2,6 (cimento:areia:brita). Optou-se por uma relação água/cimento de 0,5 e a quantidade de aditivo foi de 1% em relação à massa de cimento. Assim foram elaborados sete traços distintos, com um de referência (sem adições de conchas) e os demais com diferentes teores de substituição em relação ao agregado graúdo e ao fíler (Tabela 1). O objetivo foi analisar a influência da substituição do agregado graúdo e do fíler em comparação com o concreto de referência. Para todas as misturas a quantidade de água e aditivos se mantiveram nas proporções, com exceção da composição 4 que teve sua quantidade de aditivo alterada para garantir a trabalhabilidade da mistura. As misturas de 1 a 3 não contém fíler (Tipo B),variando de 10% a 30% os teores de substituição da brita por resíduo de conchas (Tipo A). Assim é possível avaliar melhor a influência do resíduo nas propriedades do concreto. Da mesma forma, a mistura de 4 a 6 contém fíler a 10% em relação amassa de cimento a fim de analisar se há um maior preenchimento dos vazios com este resíduo.

Métodos de teste

Microscopias de superfície

Uma amostra da concha tipo B foi caracterizada pelas técnicas de AFM e MEV. Na preparação da amostra para este ensaio buscou-se utilizar uma amostra de casca plana e na mesma estrutura que foi utilizada na preparação do concreto neste trabalho. Foi utilizado o microscópio da marca NanoSurf EasyScan de grandes áreas no modo contato intermitente (modo dinâmico). Os softwares utilizados para tratamento de dados e imagens foram o Gwyddion e Mountains. A face escolhida para análise de AFM foi a interna, comum aos dois tipos de concha utilizados nesse estudo, chamado de madrepérola ou nácar. A face externa, com rugosidade elevada, não permitiu a realização do ensaio devido às limitações da técnica. A microestrutura da parte interna e externa da casca foi analisada pela técnica de Microscopia Eletrônica de Varredura (MEV) com o equipamento da marca Tescan, modelo MIRA3, conectado a um analisador de raios X por dispersão de energia (EDS), filamento FEG e detector de elétrons secundários. Para o MEV, foi utilizada a mesma casca da análise de AFM, com recobrimento da amostra por deposição de íons metálicos de ouro-paládio.

Figura 3
Curva granulométrica da concha tipo A (a) e tipo B(b)

Figura 4
(a) Conchas do tipo B lavadas e secas; (b) Conchas trituradas com o auxílio de soquete; e (c) Conchas trituradas no moinho de facas

Tabela 1
Composições dos concretos

Termogravimetria

A análise termogravimétrica (TG) é uma técnica de acompanha a perda e/o ganho de massa da amostra em função do tempo e temperatura. O equipamento utilizado foi o STA 449F3 Jupiter Netzsc através de uma análise termogravimétrica simultânea e forno de calorimetria de varredura diferencial. Foi utilizado o N2 como gás de purga e a amostra foi aquecida de 25°C e 900°C a uma taxa de aquecimento de 10ºC min-1. Durante o teste de TG, as faixas de temperatura correspondentes à decomposição térmica das diferentes fases da amostra foram identificadas por DSC.

Fluorescência de raios-X

O ensaio de fluorescência de raios-X (FRX) foi conduzido em um espectrômetro da marca Rigaku modelo ZSX Primus II. Por meio deste ensaio foi obtida a análise semiquantitativa dos óxidos presentes nas amostras.

Difração de raios-X

O ensaio de DRX foi realizado num difractômetro da marca Bruker modelo D2 Phaser, utilizando-se a geometria Bragg-Brentano com os seguintes parâmetros: intervalo de varredura = 5 - 80° (2θ), velocidade de varredura = 5,1°/min, velocidade de rotação = 15 rpm, passo angular = 0,05°, corrente = 10 mA e tensão = 30 kV. A identificação das fases mineralógicas foi obtida por meio do software DIFFRAC.EVA v. 5.2.

Resistência à compressão e ensaio de consistência

Para a obtenção das resistências à compressão aos 7 e 28 dias doscorpos de prova de concreto como descrito na NBR 7215 (ABNT, 2019), utilizou-se a prensa hidráulica modelo HD com capacidade de 200 toneladas. A velocidade aplicada neste ensaio é de (0,45 ± 0,15) MPa/s. O ensaio de abatimento, ou slump test, é utilizado para avaliar a consistência ou fluidez do concreto no seu estado fresco e é regulamentado pela NBR 16889 (ABNT, 2020). Para realização deste ensaio, foi necessário utilizar uma base metálica quadrada plana, um molde de tronco cônico e uma haste de metal com seção transversal circular. Após situar o molde de tronco-cônico na base metálica sobre a superfície plana, adicionou-se 3 camadas de concreto, cada uma com aproximadamente 1/3 da altura do molde, e cada camada foi compactada com 25 golpes distribuídos uniformemente em cada seção. Logo após o preenchimento do molde, mediu-se o abatimento do concreto que corresponde à diferença entre a altura do molde e a altura média do corpo de prova desmoldado.

Resultados e discussões

Caracterizações por microscopias de superfície

A rugosidade da camada externa da concha pode ser facilmente visualizada a olho nu e remete uma superfície que pode apresentar menor aderência à matriz cimentícia ao ser adicionado no concreto. Maiores valores de rugosidade podem remeter a um material com porosidade elevada (Peled; Castro; Weiss, 2013). Em contrapartida, a camada interna (madrepérola) não apresenta rugosidade aparente e é objeto de estudo quanto à aderência diante da matriz cimentícia. A técnica de AFM permitiu analisar a rugosidade desta face da concha a nível nanométrico, como pode-se observar na Figura 5 que mostra uma perspectiva em 3D da superfície da casca analisada que possui 403,23 μm2 de área horizontal e 195.738 μm2 considerando a área da superfície dos vales. Para a área apresentada na Figura 5, a rugosidade média da área estudada é de 0,0389 μm e o gráfico da rugosidade linear e perspectiva em 2D está representada na Figura 6. Durante as primeiras idades do concreto a resistência mecânica pode ser afetada pela textura do agregado. A rugosidade fornece, aparentemente, uma aderência física mais fraca entre a pasta de cimento e o agregado devido ao aumento da superfície de contato na zona de transição. Em contrapartida, em idades mais avançadas, a aderência química adquirida pode prevalecer em relação a aderência física e fornecer ao compósito uma resistência mecânica mais elevada( Metha; Monteiro; Rasparyk, 2014).

Figura 5
Perspectiva em 3D da superfície interna da concha

Figura 6
Perspectiva em 2D da superfície interna da concha coma utilização do software Mountains (a) e rugosidade do eixo transversal com a utilização do software Gwyddion (b)

A Microscopia Eletrônica de Varredura evidenciou a estrutura externa e interna da concha marinha bivalve, composta basicamente pela biomineralização do CaCO3 com uma quantidade de matéria orgânica que mantém a estrutura unida (Figuras 7 e 8). A espectroscopia de energia dispersiva de raios-X (EDS) da parte externa ainda evidenciou a presença de diatomácea (Figura 9) aderida à casca e composta basicamente por silício. De acordo com a estrutura de mexilhões, como todos os bivalves, são compostos por duas conchas calcárias unidas por um ligamento e esse sistema de proteção cresce à medida que o mexilhão se desenvolve. Dessa forma, as conchas são divididas em uma camada externa (perióstraco), uma camada intermediária (prismática) e uma camada interna (nácar). Uma das partes analisadas, o perióstraco (Figura 7), é uma camada extremamente rígida, não mineralizada, composta principalmente por uma proteína com espessura em torno de 40 μm e com função de proteger a camada intermediária de solicitações abrasivas e dissolução por ácidos. A outra parte analisada, nácar (Figura 8), pode ser classificada como um compósito biomineralizado com aproximadamente 10 μm de largura. Essa camada é composta basicamente por aragonita laminar, orientada paralelamente à superfície, juntamente com uma matriz orgânica de polissacarídeos, proteínas e glicoproteínas (El Biriane; Barbachi, 2021; Martínez-García et al., 2017).

Análise termogravimétrica

A análise termogravimétrica do pó de concha está representada na Figura 10. O gráfico de perda de massa em relação à temperatura, mostra uma perda contínua até 500 °C que deve estar relacionada a perda de substâncias orgânicas. A redução de massa é inferior a 6% até essa temperatura. Entre 600 °C e 800 °C ocorre o fenômeno de descarbonatação do carbonato de cálcio e a perda representa um valor acima de 40% (Martínez-García et al., 2017).

Figura 7
MEV da parte externa da casca Tipo B (a) e da parte interna da casca (madrepérola) (b)

Figura 8
EDS da parte externa da casca (Tipo B)

Figura 9
EDS da parte interna da casca (madrepérola) (Tipo B)

Figura 10
Perda de massa da concha tipo B

Fluorescência de raios-X

Observa-se na Tabela 2 que as amostras apresentam composição química semelhante, sendo compostas majoritariamente por CaO e por uma perda ao fogo (PF) elevada. Isto ocorre porque o CaO está presente na forma de CaCO3 (CaO.CO2), que possui uma perda ao fogo característica entre aproximadamente 700 e 800 °C devido à reação de descarbonatação. Nesta reação, o dióxido de carbono se desprende da estrutura do carbonato de cálcio ocorrendo uma perda de massa da ordem de 44 %, valor próximo da perda ao fogo observada nas amostras. Também é possível observar valores minoritários significativos para a presença de SiO2 e Al2O3 por eventuais contaminações com areia e outras impurezas durante o processo de coleta.

Difração de raios-X

Observa-se na Figura 11 que as conchas do tipo A e B apresentaram difratogramas semelhantes e a principal fase mineralógica encontrada em ambas as amostras foi a aragonita. Este mineral é um polimorfo do CaCO3, que é encontrado na natureza principalmente na forma de calcita. A calcita é encontrada em rochas calcárias, sendo utilizada como fíler calcário quando moída e como a matéria prima do cimento para produção do clínquer. A aragonita, por outro lado, é a fase mineralógica que compõem as conchas de animais marinhos, sendo menos comum sua utilização como material de construção civil.

Li, Cao e Yin (2019) compararam o comportamento da calcita e aragonita no estado fresco e na hidratação de pastas de cimento Portland. Os autores concluíram que, apesar da calcita apresentar ligeira superioridade no aumento da fluidez e na aceleração da hidratação da pasta, ambas as fases do CaCO3 podem ser utilizadas como fíler em pastas de cimento. De acordo com Yoshioka e Kitano (1985), a aragonita pode ser convertida em calcita quando calcinada sob temperaturas entre 300 e 400 °C.

Tabela 2
Análise semiquantitativa por FRX nas amostras de concha tipo A e B

Figura 11
Resultados de DRX para amostras de concha tipo A e B mostrando a presença de aragonita (A) em ambas as amostras

Resistência à compressão dos concretos

A Figura 12 mostra os resultados de resistência à compressão média das misturas sem filer e com filer aos 7 dias. Observa-se que nenhuma porcentagem de substituição atingiu a média da resistência sem o resíduo. A mistura com 10% de RC sem filer apresentou os menores valores dentre os analisados, comportamento semelhante dessa mistura aos 28 dias (Figura 13). Essas resistências à compressão excessivamente baixas dificilmente poderiam ser compensadas com modificações de dosagem (El Biriane; Barbachi, 2021).

A partir desses resultados, pode-se observar que a resistência à compressão diminui significativamente à medida que a porcentagem de agregado de concha de mexilhão aumenta. A forma plana e escamosa dos agregados de mexilhão, especialmente a do cascalho de mexilhão, atua como uma barreira para a drenagem da água, o que aumenta a relação água/cimento na face descendente da casca. Isso torna a aderência (pasta de cimento-agregado) mais fraca e, portanto, a resistência do concreto tende a apresentar valores mais baixos em relação ao de referência (Martínez-García et al., 2017). Os resultados mostraram que substituições com 30% sem filer obtiveram a menor redução na resistência à compressão, de 9,66%, seguido das misturas com 20% sem filer, que alcançaram uma redução de 21,16% em relação a de referência. A substituição de 10% de resíduo apresentou um aumento de resistência com a adição de filer e, a partir desse teor, o comportamento foi invertido.

Figura 12
Resistência à compressão média (MPa) aos 7 dias

Figura 13
Resistência à compressão média (MPa) aos 28 dias

Conclusões

Esse estudo buscou analisar o uso de dois tipos de conchas de moluscos bivalves em concretos sustentáveis. Agregados miúdos foram substituídos parcialmente por RC e adição de filer com grãos mais finos de resíduo. As taxas de substituição utilizadas foram de 0%, 10%, 20% e 30% com filer e sem filer a fim de verificar o comportamento das diferentes granulometrias no concreto. Os agregados reciclados foram caracterizados por técnicas de microscopia e análise termogravimétrica. As seguintes conclusões podem ser feitas:

  1. para atingir um índice de consistência trabalhável e viabilizar sua utilização é necessário aumentar o fator a/c de todas as composições ou fazer o uso de um superplastificante;

  2. quanto à resistência à compressão foi possível constatar que a substituição de resíduos de conchas contribui para uma perda considerável de resistência do concreto, em que as composições com a brita alcançaram valores entre 22,2 MPa e 24,5 MPa após o 7º dia de cura. Enquanto os traços com substituição sem a presença de fíler atingiram valores mínimos de 12,8 e máximos de 20,6 e com a presença do fíler chegaram a 12,1 MPa e 20,4 MPa no 7º dia de cura. Porém, os valores médios que mais se aproximaram do traço de referência foram com a presença do fíler;

  3. de acordo com a Microscopia Eletrônica de Varredura e EDS observou-se a presença de substâncias orgânicas na superfície o que pode ter resultado numa diminuição da ligação agregado-pasta e aumento da porosidade. A análise de AFM demonstrou a rugosidade interna da concha que pode ter influenciado no desempenho mecânico. Maiores rugosidades indicam um aumento na área da zona de transição pasta-agregado, contribuindo para a redução da resistência mecânica;

  4. os resultados de análise química (FRX) expuseram a presença de carbonato de cálcio como o principal constituinte dos tipos de concha. O ensaio de DRX, por sua vez, demonstrou que o CaCO3 se apresenta na forma de antagorita, que, apesar de ser um mineral mais raro e menos estudado que a calcita, já existe registro na literatura que este mineral pode ser empregado como adição cimentícia suplementar;

  5. os resultados indicam que a interação entre os resíduos de conchas e o concreto demonstra influência positiva, com a dosagem adequada, sobre os resultados de resistência à compressão. E o uso de até 20% de substituição das conchas com 10% de acréscimos do fíler apontou-se viável para o uso em concretos estruturais; e

  6. todos os teores analisados neste trabalho podem ser utilizados para a produção de concretos não estruturais.

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Editado por

  • Editor do artigo:
    Marcelo Henrique Farias de Medeiros
  • Editora de seção:
    Ercília Hitomi
  • Editoras de seção:
    Juliana Parise Baldauf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2023
  • Aceito
    18 Ago 2023
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