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O self no armário: uma teoria fundamentada sobre o silêncio de gays e de lésbicas no ambiente de trabalho

El self en el armario: una teoría fundamentada sobre el silencio de gays y de lesbianas en el ambiente de trabajo

Resumo

Estudos anteriores sugerem que a ocultação da orientação homossexual no trabalho pode levar a sentimentos de inautencidade, baixo comprometimento e depressão. Entretanto, diversos são os profissionais homossexuais que, após realizarem uma análise de risco e retorno da decisão de “sair do armário”, optam pelo silêncio. Diante disso, mostra-se necessário compreender como ocorre a decisão de ocultar a orientação sexual. Este estudo objetiva desenvolver uma teoria fundamentada sobre o silêncio de gays e lésbicas no ambiente de trabalho como resposta a ameaças ao self no cotidiano organizacional. Realizamos entrevistas semiestruturadas com empregados gays e lésbicas, e apresentamos uma teoria fundamentada na qual sustentamos que esse silêncio no trabalho não é explicado somente por motivações de ordem racional e calculativa, mas também por processos menos intencionais intra e intersubjetivos. A originalidade deste estudo reside em sua ênfase na Teoria da Identidade Social para explicar o fenômeno da revelação da orientação sexual no ambiente de trabalho. No modelo construído, identificamos motivos para o silêncio associados a distintos níveis do self, características dos próprios indivíduos homossexuais e das pessoas com quem eles interagem que tendem a influenciar a decisão pelo silêncio. Adicionalmente, compreendemos táticas individuais adotadas de modo a aumentar a segurança para a saída do armário. Tais descobertas contribuem para a superação do problema vivenciado por homossexuais em decorrência da ocultação da orientação sexual no trabalho.

Palavras-chave:
Ameaças à Identidade; Orientação Sexual; Silêncio; Voz; Diversidade

Resumen

Estudios anteriores sugieren que la ocultación de la orientación homosexual en el trabajo puede llevar a sentimientos de inautenticidad, bajo compromiso y depresión. Sin embargo, son varios los profesionales homosexuales que, después de realizar un análisis de riesgo y retorno de la decisión de “salir del armario”, optan por el silencio. Por ello, se hace necesario comprender cómo ocurre la decisión de ocultación de la orientación sexual. Este estudio se propone desarrollar una teoría fundamentada sobre el silencio de gays y lesbianas en el ambiente de trabajo como una respuesta a amenazas al self en la rutina organizacional. Realizamos entrevistas semiestructuradas con empleados gays y lesbianas, y presentamos una teoría fundamentada en la que sostenemos que ese silencio en el trabajo no es solo explicado por motivaciones de orden racional y calculativo, sino también por procesos menos intencionales intra e intersubjetivos. La originalidad de este estudio reside en su énfasis en la teoría de la identidad social para explicar el fenómeno de la revelación de la orientación sexual en el ambiente de trabajo. En el modelo construido, identificamos motivos para el silencio asociados a distintos niveles del self, características de los propios individuos homosexuales y de las personas con quienes estos interactúan que tienden a influir en la decisión por el silencio. Adicionalmente, comprendemos tácticas individuales adoptadas para aumentar la seguridad para “salir del armario”. Tales hallazgos contribuyen a la superación del problema vivido por homosexuales como consecuencia de la ocultación de la orientación sexual en el trabajo.

Palabras clave:
Amenazas a la identidad; Orientación sexual; Silencio; Voz; Diversidad

Abstract

Previous studies have suggested that concealment of same-sex orientation at work can lead to feelings of inauthenticity, low commitment, and depression. However, there are several people who, after performing a risk-return analysis of the decision to come out as openly gay, decide to conceal. Therefore, it is necessary to understand how the decision to conceal sexual orientation occurs. This study aims to develop a grounded theory about the silence of gays and lesbians in the workplace as a response to threats in the workplace. We conducted semi-structured interviews with gay and lesbian employees and presented a grounded theory in which we maintain that this silence at work is not only explained by rational and calculative motivations but also by less intentional intra and intersubjective processes. The originality of this study lies in its emphasis on the theory of social identity to explain the phenomenon of disclosure of sexual orientation in the workplace. In the constructed model, we identify reasons for silence associated with different levels of the self, characteristics of the gay or lesbian individuals themselves and the people with whom they interact, who tend to influence the decision by silence. In addition, we understand individual tactics adopted in order to increase safety for sharing sexual orientation. Such discoveries contribute to overcoming the problem experienced by gays or lesbians as a result of the concealment of sexual orientation at work.

Keywords:
Identity threats; Sexual Orientation; Silence; Voice; Diversity

INTRODUÇÃO

A revelação intencional da orientação sexual no trabalho é um tema que se mostra complexo e relevante no contexto laboral contemporâneo. Por um lado, há indicativos de que algumas empresas começam a se tornar mais inclusivas em relação à diversidade e, mais especificamente, à orientação sexual de empregados (RUMENS e BROOMFIELD, 2012RUMENS, N.; BROOMFIELD, J. Gay men in the police: identity disclosure and management issues. Human Resource Management Journal, v. 22, n. 3, p. 283-298, 2012.). Por outro lado, há pressões pelo silêncio, como a que se manifesta na máxima “don’t ask, don’t tell” (não pergunte, não diga), que inibem a revelação da orientação sexual (BELL, ÖZBILGIN, BEAUREGARD et al., 2011BELL, M. P. et al. Voice, silence, and diversity in 21st century organizations: strategies for inclusion of gay, lesbian, bisexual, and transgender employees. Human Resource Management, v. 50,n. 1, p. 131-146, 2011.; SCHNEIDER, 2016SCHNEIDER, K. G. To be real: antecedents and consequences of sexual identity disclosure by academic library directors. The Journal of Academic Librarianship, v. 42, n. 6, p. 719- 731, 2016.). Neste estudo, adota-se uma perspectiva recorrente ao entender por silêncio a ocultação da orientação homossexual (FELIX, MELLO, VON BORELL et al., 2016FELIX, B.; MELLO, A.; VON BORELL, D. Voices unspoken? Understanding how gay employees co-construct a climate of voice/silence in organizations. The International Journal of Human Resource Management, v. 29, n. 5, p. 1-24, 2016.; PRIOLA, LASIO, SIMONE et al., 2014PRIOLA, V. et al. The sound of silence. Lesbian, gay, bisexual and transgender discrimination in ‘inclusive organizations’. British Journal of Management, v. 25, n. 3, p. 488-502, 2014.; MOREIRA e HALLAL, 2017MOREIRA, M. G.; HALLAL, D. R. As viagens e as experiências de fronteira na transgressão do armário gay. Turismo e Hospitalidade, v. 9, n. 1, p. 133-155, 2017.). Essas forças opostas, que simultaneamente motivam a voz e o silêncio de gays e lésbicas no trabalho, criam uma tensão que tem despertado o interesse de acadêmicos e práticos sobre o tema. Se a escolha pela voz traz o risco de estigmatização e descriminação (GARCIA e SOUZA, 2010GARCIA, A.; SOUZA, E. M. Sexualidade e trabalho: estudo sobre a discriminação de homossexuais masculinos no setor bancário. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 44, n. 6, p. 1353-1377, 2010.), o silêncio também apresenta consequências indesejadas, como as ameaças ao senso de autovalor dos indivíduos em questão (RAGINS, 2008RAGINS, B. R. Disclosure disconnects: antecedents and consequences of disclosing invisible stigmas across life domains. Academy of Management Review, v. 33, n. 1, p. 194-215, 2008.).

Diante desse cenário, a literatura sobre o fenômeno do silêncio de homossexuais tem apresentado algumas características dominantes. Nota-se que uma parte relevante dos estudos sobre o tema é de natureza quantitativa e busca identificar antecedentes e consequentes do (não) “sair do armário” (p. ex., SCHNEIDER, 2016SCHNEIDER, K. G. To be real: antecedents and consequences of sexual identity disclosure by academic library directors. The Journal of Academic Librarianship, v. 42, n. 6, p. 719- 731, 2016.; ARANDA, MATTHEWS, HUGHES et al., 2015ARANDA, F. et al. Coming out in color: racial/ethnic differences in the relationship between level of sexual identity disclosure and depression among lesbians. Cultural Diversity and Ethnic Minority Psychology, v. 21, n. 2, p. 247, 2015.). Além disso, a decisão de revelar ou não a orientação sexual tem sido frequentemente interpretada como instrumental/racional, na qual os indivíduos avaliam a relação risco/retorno de tal revelação. A lógica encontrada é a de que quanto menores os riscos percebidos, mais o sujeito se dirige ao polo da revelação explícita em um continuum em que o extremo oposto seria a ocultação plena (BUTTON, 2004BUTTON, S. B. Identity management strategies utilized by lesbian and gay employees a quantitative investigation. Group & Organization Management, v. 29, n. 4, p. 470-494, 2004.). Em estudos realizados sob abordagem qualitativa, percebe-se uma abertura a encarar as nuances do fenômeno em uma visão multifacetada e não linear (IRIGARAY e FREITAS, 2013IRIGARAY, H. A.; FREITAS, M. E. Estratégia de sobrevivência dos gays no ambiente de trabalho. Revista Psicologia Política, v. 13, n. 26, p. 75-92, 2013.; DUGUAY, 2016DUGUAY, S. “He has a way gayer Facebook than I do”: investigating sexual identity disclosure and context collapse on a social networking site. New Media & Society, v. 18, n. 6, p. 891-907, 2016.).

No entanto, mesmo nesses artigos, nota-se uma necessidade de melhor explorar o tema sob a ótica do self, dado que processos de gestão da identidade no ambiente de trabalho parecem estar alicerçados na preservação ou promoção do senso de autovalor de indivíduos (LEAVITT e SLUSS, 2015LEAVITT, K.; SLUSS, D. M. Lying for who we are: an identity-based model of workplace dishonesty. Academy of Management Review, v. 40, n. 4, p. 587-610, 2015.; PETRIGLIERI, 2011PETRIGLIERI, J. L. Under threat: responses to and the consequences of threats to individuals’ identities. Academy of Management Review, v. 36, n. 4, p. 641-662, 2011.). Aqui, entende-se o self como uma definição socialmente construída que um indivíduo faz a seu respeito ao buscar compreender quem é individual e coletivamente (ASHFORTH e SCHINOFF, 2016ASHFORTH, B. E.; SCHINOFF, B. S. Identity under construction: how individuals come to define themselves in organizations. Annual Review of Organizational Psychology and Organizational Behavior, v. 3, p. 111-137, 2016.). Para preencher essa lacuna, objetivamos desenvolver uma teoria sobre o silêncio de gays e lésbicas no ambiente de trabalho como uma resposta a ameaças ao self no cotidiano organizacional. Construímos uma teoria fundamentada (CHARMAZ, 2014CHARMAZ, K. Constructing grounded theory. 2. ed. Los Angeles: Sage, 2014.), desenvolvida a partir de entrevistas realizadas com gays e lésbicas com diferentes graus de declaração pública de orientação sexual. Argumenta-se, aqui, que indivíduos homossexuais buscam adotar táticas de minimização das ameaças ao self de modo a aumentar a segurança para a saída do armário e que o silêncio pode manifestar-se em diferentes níveis do self (pessoal, relacional e coletivo).

A partir da construção teórica desenvolvida com fundamento sensibilizador na Teoria da Identidade Social (TAJFEL e TURNER, 1979TAJFEL, H.; TURNER, J. C. An integrative theory of intergroup conflict. The Social Psychology of Intergroup Relations, v. 33, n. 47, p. 74, 1979.), este artigo apresenta contribuições teóricas para a literatura sobre o silêncio no ambiente de trabalho e implicações práticas para empregados homossexuais, gestores e organizações. Para a literatura sobre o silêncio do trabalhador, o estudo contribui no sentido de possibilitar uma análise intra e intersubjetiva do silêncio como um comportamento construído socialmente e ao adotar um olhar processual para como a decisão de ocultar ou revelar a orientação sexual é construída. Em termos práticos, o estudo colabora com indivíduos gays e lésbicas para a superação do problema vivenciado em função da ocultação da orientação homossexual no trabalho e auxilia gestores e organizações no alcance de seus objetivos em situações e ambientes afetados negativamente por consequências da não revelação da homossexualidade dos indivíduos participantes.

REVISÃO DA LITERATURA

Silêncio de gays e lésbicas no ambiente de trabalho: o que sabemos até agora?

A literatura sobre o silêncio de gays e lésbicas no ambiente de trabalho se desenvolve em duas principais correntes: a de relações do trabalho (RT) e a de comportamento organizacional (CO). Enquanto na literatura de RT o silêncio tem sido explorado como um comportamento decorrente da ausência ou escassez de mecanismos de voz propiciados no âmbito organizacional (BELL, ÖZBILGIN, BEAUREGARD et al., 2011BELL, M. P. et al. Voice, silence, and diversity in 21st century organizations: strategies for inclusion of gay, lesbian, bisexual, and transgender employees. Human Resource Management, v. 50,n. 1, p. 131-146, 2011.; PRIOLA, LASIO, SIMONE et al., 2014PRIOLA, V. et al. The sound of silence. Lesbian, gay, bisexual and transgender discrimination in ‘inclusive organizations’. British Journal of Management, v. 25, n. 3, p. 488-502, 2014.), no campo do CO ele tende a ser tratado como uma decisão discricionária individual, consciente e intencional (MORRISON, 2011MORRISON, E. W. Employee voice behavior: integration and directions for future research. The Academy of Management Annals, v. 5, n. 1, p. 373-412, 2011.). Em linha com o chamado recente por trabalhos que superem essa dicotomização de ênfases em estrutura (RT) ou agência (CO) (KAUFMAN, 2015KAUFMAN, B. E. Theorizing determinants of employee voice: an integrative model across disciplines and levels of analysis. Human Resource Management Journal, v. 25, n. 1, p. 19-40, 2015.; MOWBRAY, WILKINSON e TSE, 2007MOWBRAY, P. K.; WILKINSON, A.; TSE, H. H. M. An integrative review of gender identity discrimination. Los Angeles: The Williams Institute, 2007.), neste trabalho se adota um posicionamento integrativo, no qual estrutura e ação são vistos como interdependentes (FELIX, MELLO, VON BORELL et al., 2016FELIX, B.; MELLO, A.; VON BORELL, D. Voices unspoken? Understanding how gay employees co-construct a climate of voice/silence in organizations. The International Journal of Human Resource Management, v. 29, n. 5, p. 1-24, 2016.), ainda que a atenção esteja dominantemente direcionada aos aspectos individuais desse processo.

Na literatura de RT, diversos estudos têm sugerido ações de nível macro e meso que podem ser adotadas no sentido de facilitar a revelação da orientação sexual de homossexuais no ambiente de trabalho. A criação de uma legislação específica para a punição de atos discriminatórios contra gays e lésbicas se revela um elemento crítico (COLGAN, CREEGAN, MCKEARNEY et al., 2007COLGAN, F. et al. Equality and diversity policies and practices at work: lesbian, gay and bisexual workers. Equal Opportunities International, v. 26, n. 6, p. 590-609, 2007.), dado que pode inibir ações hostis que em tempos recentes não seriam tratadas de modo específico. Apesar dos avanços já obtidos na regulação que pune a homofobia, há muito progresso a ser alcançado, inclusive no Brasil (ECCEL, SARAIVA e CARRIERI, 2015ECCEL, C. S.; SARAIVA, L. A. S.; CARRIERI, A. P. Masculinidade, autoimagem e preconceito em representações sociais de homossexuais. Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, v. 9, n. 1, p. 1-15, 2015.; SOUZA, MARTINS e SOUZA, 2015SOUZA, E. C. P.; MARTINS, C. B.; SOUZA, R. B. As representações sociais de secretários executivos gays: questões de gênero e diversidade no trabalho. Gestão & Conexões, v. 4, n. 1, p. 116-139, 2015.; SOUZA e PEREIRA, 2013SOUZA, E. M.; PEREIRA, S. J. N. (Re)produção do heterossexismo e da heteronormatividade nas relações de trabalho: a discriminação de homossexuais por homossexuais. Revista de Administração Mackenzie, v. 14, n. 4, p. 76-105, 2013.; FELIX, MELLO, VON BORELL et al., 2016FELIX, B.; MELLO, A.; VON BORELL, D. Voices unspoken? Understanding how gay employees co-construct a climate of voice/silence in organizations. The International Journal of Human Resource Management, v. 29, n. 5, p. 1-24, 2016.). No ambiente interno às organizações, outras ações também se mostram facilitadoras da revelação da orientação sexual de gays e lésbicas no trabalho, como a criação de canais formais e informais de expressão de insatisfações individuais e coletivas (DUNDON, WILKINSON, MARCHINGTON et al., 2005DUNDON, T. et al. The management of voice in non-union organizations: managers’ perspectives. Employee Relations, v. 27, n. 3, p. 307-319, 2005.; PRIOLA, LASIO, SIMONE et al., 2014PRIOLA, V. et al. The sound of silence. Lesbian, gay, bisexual and transgender discrimination in ‘inclusive organizations’. British Journal of Management, v. 25, n. 3, p. 488-502, 2014.), um comprometimento explícito para a inclusão de empregados gays e lésbicas nos processos de tomada de decisão (BELL, ÖZBILGIN, BEAUREGARD et al., 2011BELL, M. P. et al. Voice, silence, and diversity in 21st century organizations: strategies for inclusion of gay, lesbian, bisexual, and transgender employees. Human Resource Management, v. 50,n. 1, p. 131-146, 2011.; FELIX, MELLO, VON BORELL et al., 2016FELIX, B.; MELLO, A.; VON BORELL, D. Voices unspoken? Understanding how gay employees co-construct a climate of voice/silence in organizations. The International Journal of Human Resource Management, v. 29, n. 5, p. 1-24, 2016.) e a punição de atos homofóbicos por parte do gestor (DINIZ, CARRIERI, GANDRA et al., 2013DINIZ, A. P. R. et al. Políticas de diversidade nas organizações: as relações de trabalho comentadas por trabalhadores homossexuais. Economia & Gestão, v. 13, n. 31, p. 93-114, 2013.).

A discriminação com base na revelação da orientação homossexual no trabalho também tem sido explorada sob uma ótica micro, especialmente na literatura de CO. Adotando uma perspectiva racional/calculativa, Bell, Özbilgin, Beauregard et al. (2011BELL, M. P. et al. Voice, silence, and diversity in 21st century organizations: strategies for inclusion of gay, lesbian, bisexual, and transgender employees. Human Resource Management, v. 50,n. 1, p. 131-146, 2011.) sugerem que, em ambientes hostis à revelação da orientação homossexual, a decisão pelo silêncio pode ser considerada razoável, em razão das diversas consequências negativas que tal revelação traria ao indivíduo. No entanto, há evidências de que a ocultação da orientação sexual no trabalho também gera consequências indesejáveis em termos de bem-estar psicológico dos sujeitos em questão (BELL, ÖZBILGIN, BEAUREGARD et al., 2011BELL, M. P. et al. Voice, silence, and diversity in 21st century organizations: strategies for inclusion of gay, lesbian, bisexual, and transgender employees. Human Resource Management, v. 50,n. 1, p. 131-146, 2011.). Por essa razão, entendemos que a abordagem racional/calculativa se mostra limitada para contribuir com desbravamentos teóricos alternativos que colaborem para a superação do problema vivenciado em decorrência da ocultação da orientação homossexual no trabalho.

Diante disso, notam-se evidências preliminares de que a intrassubjetividade do indivíduo homossexual deve ser mais profundamente explorada nesse processo. Isso significa que se mostra necessário problematizar o que faz com que o indivíduo considere um ambiente hostil ou não e como ele age diante de tal interpretação. Em uma visão interacionista, pode-se entender que a hostilidade do ambiente não é uma variável objetiva e absoluta, mas percebida e que, portanto, depende de interpretações por parte do indivíduo. Por exemplo, Ragins e Cornwell (2001RAGINS, B.; CORNWELL, J. Walking the line: fear and disclosure of sexual orientation in the workplace. Academy of Management Proceedings, v. 2001, n. 1, p. 1-1, 2001.) sugerem que indivíduos apresentam distintos graus de percepção de discriminação quanto à orientação sexual no trabalho e que tal diferença influencia a decisão de sair do ou permanecer no armário. Aqui, adotamos essa lente mais direcionada ao indivíduo para compreender a decisão de revelar ou não a orientação sexual no trabalho.

Revelação da orientação sexual: fundamentos para uma visão baseada no self

Neste tópico, apresenta-se uma revisão argumentativa de conceitos que foram utilizados como sensibilizadores para a teoria desenvolvida. Estes foram derivados da Teoria da Identidade Social (TAJFEL e TURNER, 1979TAJFEL, H.; TURNER, J. C. An integrative theory of intergroup conflict. The Social Psychology of Intergroup Relations, v. 33, n. 47, p. 74, 1979.), perspectiva que se encontra no conjunto de abordagens teóricas de relações intergrupo, o qual inclui conceitos como processos de (auto)categorização, pertença ao endogrupo e o favoritismo a ele associado (TAJFEL, 1982TAJFEL, H. Social psychology of intergroup relations. Annual Review of Psychology, v. 33, n. 1, p. 1-39, 1982.). Neste artigo, fundamentamo-nos nos seguintes conceitos da teoria citada: identidade social; motivos e níveis do self; e ameaças ao self.

Identidade social

Parte-se, aqui, do pressuposto de que o ambiente corporativo e as interações e decisões que nele ocorrem, como a de revelar ou não a orientação sexual, são negociadas por meio de uma identidade social (HOGG e TERRY, 2000HOGG, M. A.; TERRY, D. I. Social identity and self-categorization processes in organizational contexts. Academy of Management Review, v. 25, n. 1, p. 121-140, 2000.; COLARES e SARAIVA, 2016COLARES, A. F. V.; SARAIVA, L. A. S. O processo de construção identitária em organizações: uma releitura sobre identidade. Revista Alcance, v. 23, n. 4, p. 568-577, 2016.). Diante da pluralidade de perspectivas teóricas a respeito de identidades, mostra-se necessário delimitar nesta revisão o entendimento adotado para o termo. Considera-se apenas a identidade social individual e não as grupais ou coletivas. Além disso, emprega-se o conceito de identidade (social individual) de modo intercambiável com o termo “self”, assim como em trabalhos anteriores alicerçados na Teoria da Identidade Social de Tajfel e Turner (1979TAJFEL, H.; TURNER, J. C. An integrative theory of intergroup conflict. The Social Psychology of Intergroup Relations, v. 33, n. 47, p. 74, 1979.) (p. ex., ASHFORTH e SCHINOFF, 2016ASHFORTH, B. E.; SCHINOFF, B. S. Identity under construction: how individuals come to define themselves in organizations. Annual Review of Organizational Psychology and Organizational Behavior, v. 3, p. 111-137, 2016.; LEAVITT e SLUSS, 2015LEAVITT, K.; SLUSS, D. M. Lying for who we are: an identity-based model of workplace dishonesty. Academy of Management Review, v. 40, n. 4, p. 587-610, 2015.; PETRIGLIERI, 2011PETRIGLIERI, J. L. Under threat: responses to and the consequences of threats to individuals’ identities. Academy of Management Review, v. 36, n. 4, p. 641-662, 2011.). Assim, tal identidade é uma autodefinição do agente, construída em suas interações sociais, no processo de buscar responder às questões “quem sou eu?” ou “quem somos nós?” (ASHFORTH e SCHINOFF, 2016). Entendemos que identidades individuais sociais têm três propriedades centrais, a saber: são fontes de autovalor (buscam aumentar a autoestima); são múltiplas (indivíduos têm distintas definições a respeito de quem são); e dinâmicas (mudam ao longo do tempo) (PETRIGLIERI, 2011TAJFEL, H.; TURNER, J. C. An integrative theory of intergroup conflict. The Social Psychology of Intergroup Relations, v. 33, n. 47, p. 74, 1979.).

Motivos e níveis do self

O processo de construção de identidade e do desenvolvimento do senso de autovalor advindo dela pode ser influenciado por distintas motivações específicas. Estudos anteriores exploraram as razões pelas quais indivíduos constroem suas identidades (motivos do self) (SLUSS e ASHFORTH, 2007SLUSS, D. M.; ASHFORTH, B. E. Relational identity and identification: defining ourselves through work relationships. Academy of Management Review, v. 32, n. 1, p. 9-32, 2007.; LEAVITT e SLUSS, 2015LEAVITT, K.; SLUSS, D. M. Lying for who we are: an identity-based model of workplace dishonesty. Academy of Management Review, v. 40, n. 4, p. 587-610, 2015.).

Essa exploração realizada por pesquisadores a respeito dos motivos do self revela as bases da premissa presente na Teoria da Identidade Social de que indivíduos se definem segundo três níveis da identidade individual - ou self (LEAVITT e SLUSS, 2015LEAVITT, K.; SLUSS, D. M. Lying for who we are: an identity-based model of workplace dishonesty. Academy of Management Review, v. 40, n. 4, p. 587-610, 2015.). O primeiro nível é o pessoal, que se refere a características individuais próprias altamente valorizadas por um sujeito - o que lhe confere distintividade pessoal (COOPER e TATCHER, 2010COOPER, D.; THATCHER. Identification in organizations: the role of self-concept orientations and identification motives. Academy of Management Review, v. 35, n. 3, p. 516-538, 2010.; BREWER e GARDNER, 1996BREWER, M. B.; GARDNER, W. Who is this “we”? Levels of collective identity and self representations. Journal of Personality and Social Psychology, v. 71, n. 2, p. 83-93, 1996.) -, como ser competente, discreto ou autêntico (ASHFORTH e MAEL, 1989ASHFORTH, B. E.; MAEL, F. Social identity theory and the organization. Academy of Management Review, v. 14, n. 1, p. 20-39, 1989.). O segundo nível é o relacional e refere-se a relacionamentos a partir dos quais o indivíduo se define - o que proporciona um senso de pertencimento personalizado (BREWER e GARDNER, 1996BREWER, M. B.; GARDNER, W. Who is this “we”? Levels of collective identity and self representations. Journal of Personality and Social Psychology, v. 71, n. 2, p. 83-93, 1996.) -, tais como gerente, cliente e esposo (SLUSS e ASHFORTH, 2007SLUSS, D. M.; ASHFORTH, B. E. Relational identity and identification: defining ourselves through work relationships. Academy of Management Review, v. 32, n. 1, p. 9-32, 2007.). O terceiro é o coletivo e refere-se à identificação com coletividades que possuem atributos que o indivíduo deseja atrelar a si, o que confere um senso de pertencimento despersonalizado (BREWER e GARDNER, 1996BREWER, M. B.; GARDNER, W. Who is this “we”? Levels of collective identity and self representations. Journal of Personality and Social Psychology, v. 71, n. 2, p. 83-93, 1996.). Esse nível se manifesta na atuação de indivíduos como membros de grupos sociais, tais como uma empresa, uma equipe de trabalho ou uma igreja (ASHFORTH e MAEL, 1989).

Ameaças ao self

Seria razoável sugerir que o autovalor que emerge das identidades individuais construídas nos níveis pessoal, relacional e coletivo do self pode ser afetado de alguma forma? O conceito de “ameaças ao self”, que se refere a experiências individuais assimiladas como potencialmente danosas à identidade de uma pessoa e ao autovalor que dela advém (PETRIGLIERI, 2011PETRIGLIERI, J. L. Under threat: responses to and the consequences of threats to individuals’ identities. Academy of Management Review, v. 36, n. 4, p. 641-662, 2011.), indica que sim. Tais ameaças podem ser originadas com base em reflexões que o indivíduo faz a partir de interações sociais (como uma crítica ou ofensa) e de processos intrassubjetivos (como resultado de autoquestionamentos) (LEAVITT e SLUSS, 2015LEAVITT, K.; SLUSS, D. M. Lying for who we are: an identity-based model of workplace dishonesty. Academy of Management Review, v. 40, n. 4, p. 587-610, 2015.). Seja qual for a origem da ameaça ao self, caso ela não seja gerenciada, pode causar danos relevantes à identidade do sujeito, ao afetar a estabilidade e o valor da definição que faz de si (ELSBACH e KRAMER, 1996ELSBACH, K. D.; KRAMER, R. M. Members’ responses to organizational identity threats: encountering and countering the Business Week rankings. Administrative Science Quarterly, n. 41, n. 3, p. 442-476, 1996.).

Propõe-se que os conceitos sumarizados da literatura de identidades nas organizações (identidade, motivos e níveis do self e ameaças ao self) sirvam como sensibilizadores para o avanço teórico que aqui se propõe para as literaturas sobre silêncio do trabalhador e revelação da orientação sexual no ambiente de trabalho. A referida teoria fundamentada foi construída com base nas seguintes questões de pesquisa (QP):

  • QP1: Que formas de silêncio podem se manifestar quando um homossexual entende que a revelação de sua orientação sexual no ambiente de trabalho pode ameaçar seu self?

  • QP2: Que fatores individuais influenciam a chance de que indivíduos optem por não revelar sua orientação homossexual no trabalho?

  • QP3: Que características dos atores sociais com quem empregados homossexuais interagem no trabalho podem contribuir para a escolha pelo silêncio?

  • QP4: Que táticas individuais homossexuais adotam para diminuir as chances de que a revelação da orientação sexual gere ameaças ao seu self? E quais são suas consequências?

METODOLOGIA

A abordagem adotada neste estudo foi a da teoria fundamentada, por se tratar de alicerce metodológico que se adapta ao caráter exploratório em questão. Utilizamos os procedimentos metodológicos da construção de uma teoria fundamentada (CHARMAZ, 2014CHARMAZ, K. Constructing grounded theory. 2. ed. Los Angeles: Sage, 2014.) para os processos de coleta, codificação e análise teórica dos dados, o que detalhamos nos parágrafos a seguir.

Para a seleção inicial dos entrevistados foi enviado um convite para uma lista de trabalhadores que se declaram homossexuais e que atuam em São Paulo - SP, Rio de Janeiro - RJ e Vitória - ES. Tal lista foi construída em eventos de discussão de assuntos relacionados à diversidade no ambiente de trabalho realizados por uma instituição de Ensino Superior. A partir desse contato inicial foram realizadas 12 entrevistas, incluídas na primeira rodada de análise dos dados. Em seguida, de acordo com o princípio da amostragem teórica, buscamos explorar as quatro questões apresentadas no referencial teórico como orientações para a condução de entrevistas semiestruturadas, que se tornaram mais detalhadas ao passo que o estudo avançou. A busca de novos sujeitos foi operacionalizada por meio da técnica denominada bola de neve.

Nas etapas consecutivas de coleta de dados, buscamos indivíduos de diferentes faixas etárias, ocupações, gênero e segmentos de mercado; também procuramos entrevistar trabalhadores de organizações com regras explícitas de inclusão de empregados homossexuais, assim como aquelas sem regras declaradas a respeito da orientação sexual de seus funcionários, indivíduos com diferentes graus de revelação da orientação sexual, incluindo desde empregados gays e lésbicas não declarados no local de trabalho até trabalhadores amplamente reconhecidos como homossexuais. Os participantes foram adicionados até o alcance do ponto de suficiência teórica (CHARMAZ, 2014CHARMAZ, K. Constructing grounded theory. 2. ed. Los Angeles: Sage, 2014.), atingido na 37ª entrevista.

No total foram entrevistados 22 homens e 15 mulheres e as idades dos participantes variaram entre 23 e 49 anos. Além disso, 13 entrevistados ocupavam posições de liderança e 24 não se encontravam em tais posições durante a coleta dos dados. A distribuição de nossa amostra envolveu estes segmentos de mercado: tecnologia (5); entretenimento (5); cuidados de saúde (4); produtos de consumo (3); propaganda (3); manufatura (3); financeiro (3); educacional (3); construção (2); hospitalar (2); mineração (2); transporte (1); e público (1). As entrevistas ocorreram em locais de preferência dos entrevistados, variando entre uma sala particular na universidade em que um dos pesquisadores leciona, ambientes privados de trabalho e a residência dos entrevistados. Por se tratar de um tema sensível, sempre buscamos recomendar espaços que nos oferecessem privacidade. Os momentos iniciais das entrevistas foram usados para criar uma ambientação e um clima de confiança que permitisse que os entrevistados se sentissem à vontade para compartilhar questões delicadas e frequentemente de cunho emocional, em razão da própria opção temática da pesquisa. As entrevistas duraram, em média, 57 minutos e ocorreram entre fevereiro e dezembro de 2016.

A análise de dados foi realizada a partir dos procedimentos descritos por Charmaz (2014CHARMAZ, K. Constructing grounded theory. 2. ed. Los Angeles: Sage, 2014.) em sua versão construtivista da teoria fundamentada. A análise foi realizada em três fases. Na primeira fase, denominada codificação inicial, os dados coletados foram transcritos e categorizados incidente por incidente em expressões que geralmente envolviam verbos no gerúndio, de modo a preservar o caráter da ação do dado. Esses códigos iniciais, aderentes aos dados, foram analisados e categorizados segundo os princípios da codificação focalizada (GLASER, 1978GLASER, B. G. Theoretical sensivity. San Francisco: Sociology Press, 1978.), que são mais conceituais e seletivos que os obtidos na codificação incidente por incidente. Em seguida, realizou-se a codificação teórica, na qual buscamos criar categorias de maior nível de abstração e organizá-las em um modelo teórico baseado em proposições que permite “contar uma história analítica de forma coerente” (CHARMAZ, 2014CHARMAZ, K. Constructing grounded theory. 2. ed. Los Angeles: Sage, 2014., p. 94). A derivação de tais proposições se deu ao buscar, após a geração de códigos teóricos, evidências nos dados a respeito de como tais códigos se relacionam (p. ex., causalidade, mediação, moderação, propriedades, manifestações, contexto ou ciclo de reforço). Apresentamos no tópico a seguir os resultados da pesquisa.

RESULTADOS

Neste tópico, inicialmente, argumentamos que indivíduos homossexuais, ao interpretar a existência de preconceito de outros significantes, podem vivenciar ameaças a distintos motivos do self e que tais ameaças tendem a ser gerenciadas por meio de uma ocultação da orientação sexual (silêncio), que é baseada nos níveis pessoal, relacional e coletivo do self (QP1). Além disso, nós apontamos características dos próprios indivíduos homossexuais (QP2) e das pessoas com quem interagem (QP3) que influenciam as chances de que as ameaças ao self sejam gerenciadas por meio do silêncio. Finalmente, nós apresentamos algumas táticas antecipatórias que indivíduos homossexuais usam para amenizar as ameaças ao self e apresentamos suas consequências para a decisão de revelar ou não a orientação sexual no trabalho (QP4).

Formas de silêncio como respostas a ameaças ao self

Para responder à primeira QP, buscamos compreender quais formas de silêncio podem se manifestar quando um indivíduo homossexual entende que a revelação de sua orientação sexual no trabalho pode ameaçar seu self. No processo de codificação, encontramos três motivos do self.

Primeiro, os dados mostraram ocasiões em que o senso de distintividade individual, necessidade de afirmação pessoal diante de outrem a partir de características que despertam no sujeito o senso de ser único, foi considerado como ameaçado quando a revelação da orientação sexual foi cogitada. Nessas situações, alguns relataram entender que auto definições que eram fontes de autovalor, como “discreto”, “certinho” e “religioso”, poderiam ser consideradas inconsistentes caso eles revelassem sua orientação homossexual:

Eu sempre me vi como certinho, o “CDF” da turma, o menino exemplo em tudo o que fazia. Era isso o que me fazia especial, diferente. De uma forma ou de outra, eu via que ser gay era uma coisa que para muitas pessoas fazia com que eles me vissem como menos certinho, o menino exemplo e tal. Para essas pessoas, são duas coisas meio que incompatíveis. E isso colaborou para que eu não falasse [a respeito da orientação sexual] por muitos anos e ainda hoje não falo em certos ambientes profissionais por isso (H18, 28 anos, engenheiro).

Nesse relato, o entrevistado se define como especial e diferente dos demais por ser “certinho” e o “CDF da turma”, de modo que essas características o fazem sentir-se bem consigo mesmo, gerando autovalor. Entretanto, a incompatibilidade percebida entre o significado social de ser gay e suas características pessoais foi interpretada como redutora do autovalor do indivíduo, o que o levou a optar pelo silêncio em dado momento. Agrupamos relatos similares como silêncio baseado na identidade pessoal. Desse modo, temos a:

  • Proposição 1a: Quando a revelação da orientação sexual ameaça o senso de distintividade individual, aumentam as chances de que se adote o silêncio baseado na identidade pessoal.

Segundo, em algumas entrevistas, notamos que os participantes entenderam que a revelação da orientação sexual poderia afetar o senso de autovalor proveniente de relações de papel (p. ex., “como meus clientes vão reagir?”) ou de conexões mais específicas (p. ex., “como meu colega de trabalho, Marcelo, vai reagir?”). Nessas situações em que o nível relacional do self se mostrou saliente, a revelação da orientação sexual poderia afetar o senso de autoestima que o indivíduo obtém na relação com seus clientes e com uma pessoa específica. Essa ameaça de identidade foi categorizada como derivada do motivo de pertencimento personalizado pelo fato de representar uma necessidade de sentir-se parte de relações direcionadas a pessoas ou relações específicas. O relato abaixo ilustra esse achado:

Esse chefe era meu melhor amigo e andar com ele me fazia bem. Eu tinha orgulho dessa amizade, desse vínculo. Só que esse cara era meio tradicional, o chefe de família, tradicional, da família brasileira. Eu nunca falei na empresa, ele não sabe quem eu sou. [...] Porque eu acho que ia dar uma abalada na relação, e de alguma forma isso ia me deixar meio down. Não tenho certeza de que ele reagiria assim, mas na dúvida, fico na minha (M6, 34 anos, administradora).

Em casos semelhantes, outros entrevistados também revelaram que essa interpretação os fez escolher manter suas identidades baseadas nas orientações sexuais ocultas. Assim, os relatos de silêncio motivados pela preservação do pertencimento personalizado foram classificados como silêncio baseado na identidade relacional. Assim, temos a:

  • Proposição 1b: Quando a revelação da orientação sexual ameaça o senso de pertencimento personalizado, aumentam as chances de que se adote o silêncio baseado na identidade relacional.

Terceiro, também encontramos casos em que entrevistados sugeriram que seu senso de pertencimento despersonalizado, necessidade de desenvolver conexões com coletividades que tenham características desejáveis pelo indivíduo, seria ameaçado caso eles revelassem suas identidades baseadas na orientação sexual. Em alguns desses eventos, participantes da pesquisa sugeriram que se apresentar como homossexual poderia ser visto como incompatível com características da empresa em que trabalhavam. Isso causava certa angústia pelo fato de que eles, ao assumir sua orientação sexual, colocariam em xeque suas posições de personificação de atributos coletivos admirados:

Olha, eu adoro trabalhar aqui. Esse banco é meio tradicional, bem careta. É só você ver a cara de quem trabalha aqui. Todo mundo com pinta de hétero, religioso, cabelinho bonitinho, cara lisa, vários recém-casados. [...] imagina falar que sou homossexual? Ia afetar o eu fazer parte do grupo sim. Então, eu não falo nada abertamente na empresa e não tento não emitir sinais. É uma empresa vista como muito séria, e eu gosto que isso respingue na visão que eu tenho de mim também (H31, 45 anos, administrador).

Ao se ver diante de uma coletividade “tradicional, bem careta”, o entrevistado H31, similarmente a outros participantes, afirmou que revelar sua orientação sexual iria afetar seu sentimento de “fazer parte do grupo”. Como ele vê a empresa como “séria” e sente a necessidade de conectar-se à organização de modo que esse atributo também se aplique à sua definição de si, sair do armário poderia criar um conflito entre suas auto definições de “sério” e “gay”. Assim, temos a:

  • Proposição 1c: Quando a revelação da orientação sexual ameaça o senso de pertencimento despersonalizado, aumentam as chances de que ele(a) adote o silêncio baseado na identidade coletiva.

É importante ressaltar que os conceitos de pertencimento personalizado e despersonalizado são encontrados na literatura sobre níveis da identidade (COOPER e TATCHER, 2010COOPER, D.; THATCHER. Identification in organizations: the role of self-concept orientations and identification motives. Academy of Management Review, v. 35, n. 3, p. 516-538, 2010.; BREWER e GARDNER, 1996BREWER, M. B.; GARDNER, W. Who is this “we”? Levels of collective identity and self representations. Journal of Personality and Social Psychology, v. 71, n. 2, p. 83-93, 1996.), por isso o uso desses códigos não foi empregado na condição de códigos in vivo, mas sim conceitos sensibilizadores.

Fatores individuais

Na segunda QP, buscamos explorar as características de indivíduos homossexuais que podem influenciar a probabilidade de que, diante das já descritas ameaças ao self provocadas pela possibilidade de sair do armário, eles optem pelo silêncio. Os resultados apontaram dois fatores individuais centrais: a suscetibilidade a ameaças ao self e a saliência da orientação homossexual.

Suscetibilidade a ameaças ao self

Nossos dados mostraram que as ameaças ao self são um processo subjetivo, que é assimilado pelo indivíduo e não objetivo e concreto. Assim, os processos de autorreflexão (intrassubjetivos) ou de interação com outras pessoas (intersubjetivos) que podem levar à percepção de que revelar a orientação sexual poderia ameaçar o self variam de pessoa para pessoa. Dentre os entrevistados, alguns proveram evidências de que o self estaria altamente vulnerável caso escolhessem sair do armário, enquanto outros mostraram baixa sensibilidade a ameaças nos distintos níveis do self descritos nas proposições 1a a 1c.

O caso a seguir se refere a um indivíduo que, com o tempo, passou a apresentar menor sensibilidade às ameaças à identidade que poderiam ser derivadas da revelação da orientação sexual. O entrevistado relatou ter-se tornado “menos sensível a essas coisas”. Fundamentados em casos como esse, podemos sugerir que a tendência de um indivíduo interpretar um evento potencialmente danoso à identidade como uma ameaça (aqui codificada como suscetibilidade a ameaças ao self) tende a fazer com que ele opte pelo silêncio:

Durante 17 anos trabalhei em 4 escritórios e nunca tinha me assumido. Ficava especulando na minha cabeça as pancadas que eu iria levar e, nessas, eu ficava na minha. Tinha medo mesmo. Mas há uns 2 anos eu comecei a ver que isso já não acontecia tanto. Liguei o botãozinho do dane-se [sinal de aspas com dedos das duas mãos], quem me viu, me viu, fiquei menos sensível a essas coisas. Isso não iria mudar como me vejo (H5, 37 anos, advogado).

Diante dessa análise, temos a:

  • Proposição 2a: A suscetibilidade a ameaças ao self aumenta as chances de que indivíduos homossexuais optem pelo silêncio como resposta a ameaças ao self.

Saliência da identidade relativa à orientação homossexual

Indivíduos têm diversas definições a respeito de quem são e, portanto, têm diferentes identidades, as quais podem variar em termos de importância relativa. Nossos dados sugerem que a saliência da identidade relativa à orientação homossexual (grau em que o self representativo do “ser gay ou ser lésbica” é considerado relativamente mais importante que outros selves que o indivíduo constrói) tende a diminuir as chances do sujeito adotar o silêncio como resposta a ameaças ao self. Segundo diversos entrevistados, a saliência da identidade relativa à orientação homossexual pode variar ao longo da vida e quanto mais central a posição desse self em relação aos demais (p. ex., “gostar de rock”, “ser corredora de rua”), maior a chance de que se manter no armário gere uma sensação de inautenticidade. Assim, a revelação da orientação sexual se torna mais provável, porquanto possibilita que o indivíduo elimine a sensação pouco sustentável de estar “vivendo uma mentira”:

Eu nunca me abri nos trabalhos, e algumas pessoas me criticam. Acham que eu deveria ser mais aberta em relação a isso. Mas olha, eu sei que existe esse discurso de que a gente tem que falar, não pode se calar, isso, aquilo. Mas ser lésbica não é uma parte tão importante da minha vida. Eu não ando só com homossexuais, não escuto necessariamente música de artistas engajados na causa LGBT. Entende? Gostar de viajar ou ser corredora de rua são mais importantes do que ser gay para mim (M20, 31 anos, advogada, gay declarada em alguns contextos profissionais).

Com base na análise apresentada, temos a:

  • Proposição 2b: A saliência da orientação homossexual diminui as chances de que indivíduos gays e lésbicas optem pelo silêncio como resposta a ameaças ao self.

Característica da audiência

Na terceira QP, buscamos explorar as características de outros significantes com quem empregados gays e lésbicas interagem e que podem influenciar a chance de que as ameaças ao self sejam gerenciadas por meio do silêncio. Nos processos de codificação emergiu uma característica central da audiência: a personificação da identidade ameaçada.

Personificação da identidade ameaçada

Em diversos casos, entrevistados revelaram que, quando as pessoas com quem interagiam no trabalho apresentavam dominantemente características similares às de sua identidade que estaria sendo ameaçada caso revelassem sua orientação sexual, eles tendiam a optar pelo silêncio. Agrupamos os trechos de entrevistas nas quais participantes declararam ter vivenciado essa situação sob o código personificação da identidade ameaçada. O relato abaixo ilustra essa categoria:

Eu só me abri quando vim para a empresa em que trabalho agora, porque aqui o pessoal é bem descolado e tolerante. Na empresa anterior era complicado. Eu tinha medo de deixar de ser visto como “CDF”, dedicado, coisa e tal. E meus chefes eram justamente tudo isso, pessoas estudiosas, gente do ITA, top mesmo. [...] Me assumir foi mais difícil quando eu era rodeado por gente assim (H18, 28 anos, engenheiro).

No fragmento apresentado, o entrevistado relata que possuía um receio de “deixar de ser visto como ‘CDF’, dedicado” ao assumir sua orientação sexual para um grupo com semelhantes características. No entanto, ao interagir com pessoas mais “descoladas”, a revelação se tornou mais simples. Depoimentos similares sugeriram que isso ocorre em razão do fato de que, ao interagir com alguém que personifica a identidade ameaçada, há um desconforto psicológico com a ideia de não corresponder às expectativas que o indivíduo supõe serem desejadas pela audiência. Portanto, temos a:

  • Proposição 3a: Quando a audiência é prototípica da identidade ameaçada pela revelação, aumenta a probabilidade de que indivíduos homossexuais optem pelo silêncio como resposta a ameaças ao self.

Táticas de minimização das ameaças ao self

Na quarta QP, movemos o foco das características dos sujeitos para o processo de minimização das ameaças ao self. Nessa questão, procuramos identificar as táticas comportamentais que os entrevistados usam para minimizar as chances da revelação da orientação sexual gerar ameaças ao seu senso de autovalor, assim como as consequências dessas ações.

As táticas de minimização de ameaças ao self são comportamentos antecipatórios de baixo risco que os indivíduos usam para buscar diminuir ou eliminar a percepção de que a declaração da identidade afetará o senso de autovalor. Três das quatro táticas identificadas buscam construir condições mais favoráveis para que o indivíduo saia do armário. Na tática de ressignificação da identidade relativa à orientação homossexual, os sujeitos buscam influenciar outros significantes de forma que eles atribuam significados mais positivos ao “ser gay ou ser lésbica”, de modo que, caso a revelação da orientação sexual ocorra, ela não gere ameaças à identidade do indivíduo. Na tática de prototipicidade do respeito, busca-se alcançar o mesmo ao adotar comportamentos respeitosos e inclusivos com pessoas que também podem sentir-se compelidas a inibir suas características identitárias por receio de sofrer discriminação no trabalho. A intenção, nesse caso, é fazer com que a fonte da ameaça interprete o caráter socialmente desejável de comportamentos inclusivos da diversidade. Já na tática de apelo à autenticidade, o indivíduo busca construir a ideia de que a coerência entre discurso e ação seria uma fonte de autovalor, de tal modo que a sinceridade a respeito de quem se é seja mais valorizada do que o que alguém é ou deixa de ser. Por meio dessa tática, os sujeitos buscam contestar uma suposta hipocrisia por parte das fontes das ameaças à identidade relativas à orientação homossexual, especulando sobre a possibilidade da existência de ações não reveladas por parte dessas pessoas (p. ex., infidelidade conjugal).

Enquanto nessas três primeiras táticas o indivíduo busca criar condições mais adequadas para a revelação da identidade, na quarta tática o mecanismo usado para amenizar ou eliminar as ameaças ao self é o de negação da identidade ameaçada. Ao sentir que seu senso de self é fortemente afetado pela possibilidade de revelação da orientação sexual, alguns participantes relataram que buscaram convencer a si mesmos de que não eram homossexuais. Ao negar tal identidade, o indivíduo eliminaria a ameaça ao self e o desconforto psicológico que dela deriva. Esses resultados nos levam à:

  • Proposição 4a: Indivíduos homossexuais adotam táticas de minimização de ameaças ao self, como renegociação da identidade relativa à orientação sexual, prototipicidade de respeito, apelo à autenticidade e negação da identidade ameaçada para amenizar as ameaças ao self.

As quatro táticas apresentadas buscam minimizar ameaças ao self por meio da alteração das crenças de outros significantes interpretados como fontes da ameaça ou das próprias crenças a respeito de “quem sou”. Nos casos em que o uso de táticas que visam a influenciar a fonte da ameaça foi interpretado como bem-sucedido, os participantes relataram que a ameaça ao self havia diminuído e, portanto, a expressão da orientação sexual se tornou mais viável. Como entrevistamos apenas homossexuais que se definem como tais, em nenhum dos casos a tática de negação da identidade ameaçada foi vista como bem-sucedida.

No entanto, os relatos incluem diversos casos em que o indivíduo interpretou que as crenças dos atores sociais envolvidos não foram alteradas e que, portanto, a ameaça ao self permanecia. Além disso, também foram frequentes os relatos de sujeitos que afirmaram que a tentativa de negação da identidade relativa à orientação sexual foi malsucedida, uma vez que o indivíduo interpretava que estava “tentando tapar o sol com a peneira” (H22, professor universitário). Nesses casos de interpretação da ameaça ser inegociável foi recorrente uma percepção mais intensa sobre a ameaça que permanecia e, portanto, de que o silêncio seguia como a solução mais adequada (ver Proposição 2a e Proposição 3a). A revelação da orientação sexual só ocorreu em tais condições quando os fatores individuais e da audiência influenciaram em direção à revelação. Assim, temos:

  • Proposição 4b: Quando as táticas de minimização de ameaças ao self são interpretadas como bem-sucedidas, a ameaça ao self é diminuída e, por consequência, a chance das formas de silêncio ocorrerem tornam-se menores.

  • Proposição 4c: Quando as táticas de minimização de ameaças ao self são interpretadas como malsucedidas, a ameaça ao self cresce e, por consequência, a chance das formas de silêncio ocorrerem tornam-se maiores.

A Figura 1 sintetiza as QP e suas respectivas respostas, por meio de proposições teóricas (1a a 4c).

Figura 1
Modelo baseado em identidade sobre o silêncio de gays e lésbicas no ambiente de trabalho

DISCUSSÃO

Apesar das contribuições realizadas pela literatura sobre o silêncio de homossexuais no ambiente de trabalho, estudos anteriores deixaram uma lacuna ao adotar uma abordagem essencialmente instrumental e calculativa para compreender tal assunto. Neste estudo, apresentamos um modelo teórico construído pela abordagem de uma teoria fundamentada (CHARMAZ, 2014CHARMAZ, K. Constructing grounded theory. 2. ed. Los Angeles: Sage, 2014.), que buscou ampliar a compreensão de tais comportamentos do indivíduo, introduzindo conceitos e proposições sobre como se manifesta o silêncio de homossexuais no trabalho em função da interpretação de ameaças ao senso de self. A seguir, apresentamos quatro aspectos centrais que sintetizam os avanços desta pesquisa vis-à-vis o que até então se conhecia sobre o tema.

Primeiro, identificamos o silêncio como possível resposta a ameaças ao self em seus diferentes níveis. Estudos anteriores sobre a ocultação da orientação homossexual no trabalho abordaram o tema entendendo tal decisão como fundamentada em uma análise explícita e racional (PRIOLA, LASIO, SIMONE et al., 2014PRIOLA, V. et al. The sound of silence. Lesbian, gay, bisexual and transgender discrimination in ‘inclusive organizations’. British Journal of Management, v. 25, n. 3, p. 488-502, 2014.; BELL, ÖZBILGIN, BEAUREGARD et al., 2011BELL, M. P. et al. Voice, silence, and diversity in 21st century organizations: strategies for inclusion of gay, lesbian, bisexual, and transgender employees. Human Resource Management, v. 50,n. 1, p. 131-146, 2011.). Neste estudo, ao adotar uma visão interacionista, contribuímos ao identificar que o silêncio pode ser influenciado não só por motivações de ordem racional, mas também por processos intrassubjetivos e menos intencionais, tais como percepção de risco potencial de dano à identidade individual e ao senso de autovalor (PETRIGLIERI, 2011PETRIGLIERI, J. L. Under threat: responses to and the consequences of threats to individuals’ identities. Academy of Management Review, v. 36, n. 4, p. 641-662, 2011.). A Teoria da Identidade Social proporcionou suporte para identificação dos conceitos sensibilizadores do modelo teórico desenvolvido neste estudo e eles nos permitiram compreender e destacar formas de silêncio baseado em identidade que podem manifestar-se quando um indivíduo homossexual entende que a revelação de sua orientação sexual no trabalho pode ameaçar seu self. Desse modo, este estudo amplia a compreensão do assunto identificando situações e eventos vivenciados por tais indivíduos.

Segundo, estudos anteriores sinalizaram que diferentes indivíduos apresentam distintos graus de percepção de discriminação quanto à orientação sexual no ambiente de trabalho e que tais diferenças influenciam sua decisão de revelar ou não sua orientação sexual (RAGINS e CORNWELL, 2001RAGINS, B.; CORNWELL, J. Walking the line: fear and disclosure of sexual orientation in the workplace. Academy of Management Proceedings, v. 2001, n. 1, p. 1-1, 2001.). Isso sugere a necessidade de melhor compreender de que maneira as características dos indivíduos homossexuais podem influenciar sua decisão pelo silêncio. Desse modo, ao identificar características individuais (suscetibilidade a ameaças ao self e saliência da identidade relativa à orientação homossexual), as quais influenciaram as chances de ameaças ao self serem respondidas por meio da não revelação da orientação sexual, destacamos a importância de considerar fatores intrassubjetivos para compreender o silêncio e introduzimos elementos teóricos subjacentes às argumentações. O conceito de suscetibilidade de ameaças ao self se apresentou de modo muito recorrente nas entrevistas como um antecedente relevante da decisão de sair ou não do armário e, por essa razão, pode ser caracterizado como um avanço relevante para a compreensão do fenômeno aqui estudado.

Terceiro, exploramos características da audiência que influenciam as chances de indivíduos optarem pela não revelação da orientação homossexual no trabalho. Na literatura de RT, o silêncio tem sido explorado como um comportamento associado à presença ou ausência de mecanismos de promoção da voz (BELL, ÖZBILGIN, BEAUREGARD et al., 2011BELL, M. P. et al. Voice, silence, and diversity in 21st century organizations: strategies for inclusion of gay, lesbian, bisexual, and transgender employees. Human Resource Management, v. 50,n. 1, p. 131-146, 2011.; MORRISON, 2011MORRISON, E. W. Employee voice behavior: integration and directions for future research. The Academy of Management Annals, v. 5, n. 1, p. 373-412, 2011.), o que contribui para o reconhecimento de ações organizacionais que influenciam a expressão da/o voz/silêncio. Apesar desses estudos sinalizarem que o clima de silêncio existe quando há percepção de que falar não é seguro, eles limitam a abordagem da construção dessa visão de segurança à existência de práticas e políticas organizacionais. Neste estudo, ampliamos essa abordagem ao explorar características identitárias da audiência, não nos atendo às já exploradas práticas e políticas organizacionais, que também influenciam a construção dessa percepção de segurança e o clima de silêncio.

Quarto, identificamos táticas comportamentais utilizadas para minimização das ameaças ao self e suas consequências acerca da revelação da orientação homossexual no trabalho. A literatura sobre o silêncio de gays e lésbicas geralmente sugere que a revelação da orientação homossexual se torna não danosa ao self quando existe um clima de voz na organização. Esta pesquisa contribui com essa discussão ao direcionar o foco para as ações de nível individual que sujeitos podem tomar a fim de criar condições mais favoráveis para a declaração da orientação sexual. Esse achado se insere em um chamado recente por estudos que discutam o papel ativo de homossexuais na co-construção de ambientes inclusivos à diversidade (FELIX, MELLO, VON BORELL et al., 2016FELIX, B.; MELLO, A.; VON BORELL, D. Voices unspoken? Understanding how gay employees co-construct a climate of voice/silence in organizations. The International Journal of Human Resource Management, v. 29, n. 5, p. 1-24, 2016.).

Contraintuitivamente, a pesquisa mostrou que, por meio do uso de táticas de minimização do self, indivíduos podem criar condições para que a revelação da orientação sexual seja não danosa, mas promovedora do senso de autovalor de homossexuais. Nosso modelo também sugere que, às vezes, o indivíduo pode julgar que não há condições suficientemente adequadas para revelar sua identidade sem que haja danos severos ao self. Esse achado oferece um avanço à literatura ao, com base em uma visão processual da construção da revelação da orientação homossexual, descrever as condições em que o indivíduo pode optar pelo silêncio como uma tática defensiva do self. Assim como feito por Bell, Özbilgin, Beauregard et al. (2011BELL, M. P. et al. Voice, silence, and diversity in 21st century organizations: strategies for inclusion of gay, lesbian, bisexual, and transgender employees. Human Resource Management, v. 50,n. 1, p. 131-146, 2011.), reconhecemos os efeitos danosos da escolha pelo silêncio como tática de proteção do senso de autovalor dos indivíduos. Entretanto, enriquecemos a literatura ao prover uma teorização a respeito de como indivíduos lidam com o desconforto da ameaça ao self.

Desse modo, nesta pesquisa se define o silêncio (enquanto ocultação da orientação sexual no trabalho) como um processo não linear, de racionalidade limitada e influenciado tanto por fatores individuais como contextuais. A partir dessa visão integrativa das literaturas de RT e CO, almejamos proporcionar um desenvolvimento teórico que constitua uma ponte entre ambas as disciplinas e evite a perpetuação dos silos disciplinares autossuficientes acerca do silêncio de empregados.

CONCLUSÕES

Conclusão geral

Ultrapassar a lógica instrumental/calculativa para compreender o silêncio de homossexuais no ambiente de trabalho, por meio da introdução de um modelo teórico alternativo, colabora com a superação do problema vivenciado em decorrência da ocultação da orientação homossexual no trabalho. Ao reconhecer que tal ocultação como uma resposta a ameaças ao self é uma decisão que permeia interações organizacionais cotidianas, motivada por diferentes níveis de self, este estudo contribui ao superar as visões polarizadas anteriores (vide literatura de RT e CO), proporcionando avanço teórico acerca do silêncio de gays e lésbicas no trabalho e implicações práticas.

Implicações práticas

Este estudo tem implicações práticas para empregados homossexuais. A identificação de situações e eventos ameaçadores pode contribuir por tornar menos implícito tal processo de reflexão a respeito da revelação da orientação sexual. Além disso, ao definir o silêncio como um processo não linear nem tão racional, este estudo valoriza elementos intersubjetivos (características da audiência) e intrassubjetivos (decorrentes de características do próprio indivíduo) que influenciam a percepção de segurança/hostilidade e fornecem mais elementos para promover a compressão do silêncio. Por fim, empregados homossexuais podem utilizar as diferentes táticas comportamentais identificadas por essa teoria fundamentada caso queiram minimizar as ameaças ao self e, por consequência, reduzir as chances de escolha pelo silêncio.

O modelo apresentado neste estudo é útil como quadro de análise não só para trabalhadores gays e lésbicas, mas também para organizações e seus gestores. Dado que o silêncio pode gerar estresse e prejuízos psicológicos, afetando o desempenho desses trabalhadores (BELL, ÖZBILGIN, BEAUREGARD et al., 2011BELL, M. P. et al. Voice, silence, and diversity in 21st century organizations: strategies for inclusion of gay, lesbian, bisexual, and transgender employees. Human Resource Management, v. 50,n. 1, p. 131-146, 2011.), organizações e seus gestores devem se interessar por compreender como se manifesta esse silêncio no ambiente laboral e os elementos que o influenciam. Ao considerar o modelo integrativo introduzido por esta pesquisa, as organizações podem reconhecer que somente a adoção de mecanismos estruturais de promoção da voz pode ser insuficiente para gerar uma percepção de segurança.

Limitações e sugestão de futuras pesquisas

Embora a sessão anterior tenha apresentado implicações práticas inerentes aos avanços teóricos introduzidos por este estudo, ele apresenta limitações. Inicialmente, ressaltamos que a teoria fundamentada em questão tem caráter substantivo, o que significa que reflete uma narrativa teórica que se restringe ao contexto pesquisado. Isso posto, apresentamos, adicionalmente, três limitações desta pesquisa e elaboramos algumas sugestões para futuras pesquisas.

Primeiro, a amostra deste estudo se limitou à orientação homossexual, por atender aos objetivos definidos aqui, porém, ao adotar essa escolha, não considerou outras orientações sexuais, tais como bissexuais ou transexuais, que também se configuram como grupos sociais importantes. Futuras pesquisas podem buscar compreender especificidades do silêncio manifestado por essas outras identidades com base nas orientações sexuais, uma vez que estudos afirmam haver distinções observáveis (BADGETT, LAU, SEARS et al., 2007BADGETT, M. V. et al. Bias in the workplace: consistent evidence of sexual orientation and employee voice - identifying a common conceptualization and research agenda. International Journal of Management Reviews, v. 17, n. 3, p. 382-400, 2007.).

Segundo, apesar do modelo teórico construído com base nos dados apresentar algum referencial de tempo em seus resultados, em decorrência do atributo dinâmico da identidade social, não temos, aqui, uma pesquisa longitudinal. Assim, futuros estudos podem recorrer a evidências longitudinais para desenvolver uma teoria fundamentada com ênfase em transformações ocorridas ao longo do tempo no modo como os indivíduos se definem e de que forma tais mudanças interferem na compreensão do silêncio (MARKUS e WURF, 1987MARKUS, H.; WURF, E. The dynamic self-concept: a social psychological perspective. Annual Review of Psychology, v. 38, n. 1, p. 299-337, 1987.).

Terceiro, foram entrevistados apenas sujeitos homossexuais e não seus colegas de trabalho, por questão de delimitação parcimoniosa do escopo da pesquisa. Entretanto, novos esforços podem ser empreendidos para buscar explicar especificamente os aspectos intersubjetivos do modelo apresentado sob a ótica de outros significantes com quem os entrevistados interagem. Mais especificamente, a categoria de características da audiência pode ser aprofundada em estudos posteriores que incluam a participação de clientes, colegas de trabalho e superiores hierárquicos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2019

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2017
  • Aceito
    16 Out 2018
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