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O nível sérico de Fas solúvel é preditor da necessidade de transfusão de hemácias em pacientes gravemente enfermos

Resumos

OBJETIVO: Investigar a relação entre a transfusão de hemácias e os níveis séricos de Fas solúvel, eritropoietina e citocinas inflamatórias em pacientes gravemente enfermos, com e sem insuficiência renal aguda. MÉTODOS: Os seguintes grupos foram estudados: pacientes gravemente enfermos com insuficiência renal aguda (n=30) e sem insuficiência renal aguda (n=13), pacientes portadores de doença renal crônica terminal em hemodiálise (n=25) e indivíduos saudáveis (n=21). Os níveis séricos de Fas solúvel, eritropoietina, interleucina 6, interleucina 10 e ferro, além da concentração de hemoglobina e de hematócrito, foram analisados em todos os grupos. A associação entre tais variáveis foram estudadas nos pacientes gravemente enfermos. RESULTADOS: Os níveis séricos de eritropoietina mostraram-se mais elevados nos pacientes gravemente enfermos do que nos dos demais grupos. Concentrações mais baixas de hemoglobina foram documentadas nos pacientes com insuficiência renal aguda em relação aos demais. Níveis séricos mais elevados de Fas solúvel foram observados nos pacientes com insuficiência renal aguda e doença renal crônica terminal. Pacientes gravemente enfermos transfundidos apresentaram níveis séricos mais elevados de Fas solúvel (5.906±2.047 e 1.920±1.060; p<0,001), interleucina 6 (518±537 e 255±502; p=0,02), interleucina 10 (35,8±30,7 e 18,5±10,9; p=0,02) e ferro, além de maior mortalidade em 28 dias. Os níveis séricos de Fas solúvel mostraram-se independentemente associados ao número de transfusões (p=0,02). O nível sérico de Fas solúvel foi um preditor independente da necessidade de transfusão de hemácias em pacientes gravemente enfermos (p=0,01). CONCLUSÃO: O nível sérico de Fas solúvel é um preditor independente da necessidade de transfusão de hemácias em pacientes gravemente enfermos, com ou sem insuficiência renal aguda. Mais estudos clínicos e laboratoriais são necessários para confirmar tal resultado.

Anemia; Pacientes internados; Transfusão de eritrócitos; Estado terminal; Hemoglobinas; Unidades de terapia intensiva


OBJECTIVE: To investigate the relation between the need for red blood cell transfusion and serum levels of soluble-Fas, erythropoietin and inflammatory cytokines in critically ill patients with and without acute kidney injury. METHODS: We studied critically ill patients with acute kidney injury (n=30) and without acute kidney injury (n=13), end-stage renal disease patients on hemodialysis (n=25) and healthy subjects (n=21). Serum levels of soluble-Fas, erythropoietin, interleukin 6, interleukin 10, iron status, hemoglobin and hematocrit concentration were analyzed in all groups. The association between these variables in critically ill patients was investigated. RESULTS: Critically ill patients (acute kidney injury and non-acute kidney injury patients) had higher serum levels of erythropoietin than the other groups. Hemoglobin concentration was lower in the acute kidney injury patients than in other groups. Serum soluble-Fas levels were higher in acute kidney injury and end-stage renal disease patients. Critically ill patients requiring red blood cell transfusions had higher serum levels of soluble-Fas (5,906±2,047 and 1,920±1,060; p<0.001), interleukin 6 (518±537 and 255+502; p=0.02) and interleukin 10 (35.8±30.7 and 18.5±10.9; p=0.02), better iron status and higher mortality rates in the first 28 days in intensive care unit. Serum soluble-Fas levels were independently associated with the number of red blood cell units transfused (p=0.02). Serum soluble-Fas behaved as an independent predictor of the need for red blood cell transfusion in critically ill patients (p=0.01). CONCLUSIONS: Serum soluble-Fas level is an independent predictor of the need for red blood cell transfusion in critically ill patients with or without acute kidney injury. Further studies are warranted to reconfirm this finding.

Anemia; Inpatients; Erythrocyte transfusion; Critical illness; Hemoglobins; Intensive care units


ARTIGO ORIGINAL

O nível sérico de Fas solúvel é preditor da necessidade de transfusão de hemácias em pacientes gravemente enfermos

Ilana Levy KorkesI; Gustavo SchvartsmanI; Ilson Jorge LizukaII; Beata Marie QuintoI; Maria Aparecida DalboniI; Maria Eugênia CanzianiI; Sergio Antonio DraibeI; Virgilio Gonçalves PereiraI; Bento Fortunato Cardoso dos SantosII; Julio Cesar Martins MonteII; Marcelino de Souza Durão JuniorII; Marcelo Costa BatistaII; Oscar Fernando Pavão dos SantosII; Miguel Angelo de Góes JuniorI; Miguel Cendoroglo NetoII

IUniversidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

IIHospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Ilana Levy Korkes Disciplina de Nefrologia, Universidade Federal São Paulo Rua Pedro de Toledo, 781, 14 o andar, frente - Vila Clementino CEP: 04039-000 - São Paulo, SP, Brasil Tel.: (11) 5084-6836 E-mail: ilanakorkes@hotmail.com

RESUMO

OBJETIVO: Investigar a relação entre a transfusão de hemácias e os níveis séricos de Fas solúvel, eritropoietina e citocinas inflamatórias em pacientes gravemente enfermos, com e sem insuficiência renal aguda.

MÉTODOS: Os seguintes grupos foram estudados: pacientes gravemente enfermos com insuficiência renal aguda (n=30) e sem insuficiência renal aguda (n=13), pacientes portadores de doença renal crônica terminal em hemodiálise (n=25) e indivíduos saudáveis (n=21). Os níveis séricos de Fas solúvel, eritropoietina, interleucina 6, interleucina 10 e ferro, além da concentração de hemoglobina e de hematócrito, foram analisados em todos os grupos. A associação entre tais variáveis foram estudadas nos pacientes gravemente enfermos.

RESULTADOS: Os níveis séricos de eritropoietina mostraram-se mais elevados nos pacientes gravemente enfermos do que nos dos demais grupos. Concentrações mais baixas de hemoglobina foram documentadas nos pacientes com insuficiência renal aguda em relação aos demais. Níveis séricos mais elevados de Fas solúvel foram observados nos pacientes com insuficiência renal aguda e doença renal crônica terminal. Pacientes gravemente enfermos transfundidos apresentaram níveis séricos mais elevados de Fas solúvel (5.906±2.047 e 1.920±1.060; p<0,001), interleucina 6 (518±537 e 255±502; p=0,02), interleucina 10 (35,8±30,7 e 18,5±10,9; p=0,02) e ferro, além de maior mortalidade em 28 dias. Os níveis séricos de Fas solúvel mostraram-se independentemente associados ao número de transfusões (p=0,02). O nível sérico de Fas solúvel foi um preditor independente da necessidade de transfusão de hemácias em pacientes gravemente enfermos (p=0,01).

CONCLUSÃO: O nível sérico de Fas solúvel é um preditor independente da necessidade de transfusão de hemácias em pacientes gravemente enfermos, com ou sem insuficiência renal aguda. Mais estudos clínicos e laboratoriais são necessários para confirmar tal resultado.

Descritores: Anemia; Pacientes internados; Transfusão de eritrócitos; Estado terminal; Hemoglobinas; Unidades de terapia intensiva

ABSTRACT

OBJECTIVE: To investigate the relation between the need for red blood cell transfusion and serum levels of soluble-Fas, erythropoietin and inflammatory cytokines in critically ill patients with and without acute kidney injury.

METHODS: We studied critically ill patients with acute kidney injury (n=30) and without acute kidney injury (n=13), end-stage renal disease patients on hemodialysis (n=25) and healthy subjects (n=21). Serum levels of soluble-Fas, erythropoietin, interleukin 6, interleukin 10, iron status, hemoglobin and hematocrit concentration were analyzed in all groups. The association between these variables in critically ill patients was investigated.

RESULTS: Critically ill patients (acute kidney injury and non-acute kidney injury patients) had higher serum levels of erythropoietin than the other groups. Hemoglobin concentration was lower in the acute kidney injury patients than in other groups. Serum soluble-Fas levels were higher in acute kidney injury and end-stage renal disease patients. Critically ill patients requiring red blood cell transfusions had higher serum levels of soluble-Fas (5,906±2,047 and 1,920±1,060; p<0.001), interleukin 6 (518±537 and 255+502; p=0.02) and interleukin 10 (35.8±30.7 and 18.5±10.9; p=0.02), better iron status and higher mortality rates in the first 28 days in intensive care unit. Serum soluble-Fas levels were independently associated with the number of red blood cell units transfused (p=0.02). Serum soluble-Fas behaved as an independent predictor of the need for red blood cell transfusion in critically ill patients (p=0.01).

CONCLUSIONS: Serum soluble-Fas level is an independent predictor of the need for red blood cell transfusion in critically ill patients with or without acute kidney injury. Further studies are warranted to reconfirm this finding.

Keywords: Anemia; Inpatients; Erythrocyte transfusion; Critical illness; Hemoglobins; Intensive care units

INTRODUÇÃO

Pacientes gravemente enfermos apresentam alto risco de anemia e altas taxas de mortalidade(1,2). A transfusão de hemácias costuma ser necessária para tratar a anemia em tais pacientes(1,3).

A anemia se instala na fase inicial das doenças graves(2,3), com diversas consequências em pacientes gravemente enfermos. As opções terapêuticas são escassas e os custos de internação em unidades de terapia intensiva (UTI), altos(4).

As transfusões de hemácias podem aumentar a disponibilidade de oxigênio em pacientes gravemente enfermos, embora não aumentem seu consumo(4,5). A anemia associada às doenças graves se assemelha à observada em doenças crônicas e constitui uma entidade clínica à parte(4-6). A insuficiência renal aguda (IRA), a inflamação e a hiporresponsividade à eritropoietina (Epo) contribuem para a progressão da anemia em doenças graves(5,6).

A Epo é um fator de crescimento essencial para a eritropoiese, que é produzido pelas células renais peritubulares em resposta à baixa tensão de oxigênio(7,8).

A proteína Fas (CD95) é uma glicoproteína de membrana da mesma família do fator de necrose tumoral alfa (TNF-α)(9). A ativação do CD95 é um dos principais mecanismos apoptóticos extrínsecos em diversas doenças, inclusive na anemia de inflamação(9,10). A Fas solúvel (s-Fas) é uma proteína derivada do splicing alternativo do CD95, que impede o acoplamento do ligante-CD95 ao CD95 presente na membrana de diversas células(11), levando à sua inativação e a efeitos antiapoptóticos, principalmente em leucócitos(9-12).

Níveis séricos aumentados de s-Fas foram observados em pacientes com doença renal crônica (DRC) e pacientes crônicos em diálise, sendo associados a marcadores inflamatórios, anemia e hiporresponsividade a Epo(13). Recentemente, uma relação entre os níveis séricos de s-Fas e a anemia foi demonstrada em pacientes com IRA(14), sendo possível supor uma associação com a necessidade de transfusão de hemácias em pacientes gravemente enfermos.

OBJETIVO

Este estudo se baseia na hipótese de que os níveis séricos de s-Fas sejam capazes de prever a necessidade de transfusão de hemácias em pacientes gravemente enfermos. Para testar tal hipótese, os níveis séricos de s-Fas, Epo, citocinas inflamatórias e marcadores de anemia foram dosados e comparados em pacientes gravemente enfermos com e sem IRA, pacientes crônicos em hemodiálise e indivíduos saudáveis. As correlações entre as variáveis citadas foram investigadas em pacientes gravemente enfermos com e sem IRA.

MÉTODOS

Participantes e locais de estudo

Quarenta e três pacientes gravemente enfermos com concentrações de hemoglobina (Hb) <10g/dL e, portanto, potenciais candidatos à transfusão de hemácias, foram acompanhados prospectivamente.

A concentração de Hb, o hematócrito (Ht), o estado nutricional de ferro e os níveis séricos de s-Fas, Epo e citocinas inflamatórias foram mensurados e comparados em pacientes gravemente enfermos com e sem IRA (pacientes IRA e não IRA; n=30 e n=13, respectivamente), pacientes com doença renal terminal em diálise (pacientes DRCt; n=25) e voluntários saudáveis (sujeitos saudáveis; n=21). As varáveis estudadas foram, então, comparadas entre os pacientes IRA e os demais, a fim de se determinar a influência da lesão renal sobre os níveis séricos de s-Fas, Epo e citocinas inflamatórias.

Todos os pacientes gravemente enfermos (n=43) foram tratados na UTI do Hospital Israelita Albert Einstein, obedecendo às diretrizes institucionais. Os critérios de inclusão foram idade mínima de 18 anos e pelo menos 24 horas de internação na UTI. Foram adotados os seguintes critérios de exclusão: gestação, distúrbios de coagulação, deficiência de vitamina B12 e folato, comorbidades graves (hepatite crônica tipo B ou C e infecção por HIV), enfermidades oncológicas e patologias anêmicas primárias. Pacientes em tratamento com agentes estimulantes da eritropoiese também foram excluídos.

Foram coletados dados de todos os pacientes gravemente enfermos referentes à necessidade de transfusão de hemácias nos primeiros 28 dias de internação na UTI e até o momento da alta ou óbito. Nesses pacientes, a transfusão de hemácia foi indicada na presença de concentrações de Hb <7,0g/dL (manutenção de concentrações de Hb entre 7,0 e 9,0 g/dL). Pacientes acometidos por choque séptico, lesão cerebral ou síndrome coronariana aguda foram considerados sob alto risco de efeitos colaterais relacionados à anemia e transfundidos na presença de concentrações de Hb <9,0g/dL (manutenção de concentrações de Hb entre 9,0 e 11,0g/dL).

Os pacientes DRCt em hemodiálise (n=25) foram tratados no Hospital do Rim e Hipertensão da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Os critérios de inclusão foram idade mínima de 18 anos e pelo menos 3 meses em hemodiálise. Foram adotados seguintes critérios de exclusão: gestação, distúrbios de coagulação, enfermidades hematológicas ou comorbidades graves (malignidade, doenças do colágeno, hepatite crônica tipo B ou C, e infecção por HIV), enfermidades oncológicas e patologias anêmicas primárias. Os pacientes DRCt foram dialisados durante 3 a 5 horas, 3 vezes por semana. Todos os pacientes desse grupo estavam sendo tratados com Epo recombinante humana administrada pela via subcutânea, infusão intravenosa de ferro ou complexos vitamínicos orais.

A etiologia da IRA e da DRCt foi investigada, respectivamente. Os pacientes gravemente enfermos foram estagiados de acordo com a escala Acute Physiology and Chronic Health Evaluation (APACHE II)(15). A função renal foi avaliada com base nos níveis séricos de creatinina e na diurese. A IRA foi definida e estagiada de acordo com os critérios Kidney Disease Improving Global Outcomes (KDIGO)(16,17). O balanço hídrico de 24 horas dos pacientes gravemente enfermos foi calculado antes do início do estudo. Todos os pacientes DRCt eram oligoanúricos.

O consentimento informado foi obtido de todos os pacientes ou parentes mais próximos e de todos os voluntários saudáveis. Este estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Hospital Israelita Albert Einstein e da UNIFESP.

Análises laboratoriais

Amostras sanguíneas foram coletadas de todos os participantes no início do estudo. As amostras dos pacientes DRCt foram coletadas antes da primeira sessão de hemodiálise da semana e as dos pacientes gravemente enfermos, 5±4,3 dias após a internação na UTI. Os voluntários saudáveis foram submetidos a jejum mínimo de 8 horas antes da coleta. As amostras sanguíneas foram armazenadas em gelo e centrifugadas em, no máximo, 1 hora após a coleta. As amostras de soro, assim obtidas, foram mantidas congeladas a -80o C até o momento da análise.

Os níveis séricos de s-Fas, interleucina 10 (IL-10) e 6 (IL-6 - IL-6; BD Biosciences-Pharmigen®, San Diego, CA, EUA) e Epo (R&D Systems®, Minneapolis, EUA) foram dosados por meio do método enzyme-linked immunoabsorbent assay (ELISA). Os níveis séricos de ferritina foram mensurados pelo teste immunofluorimetric assay (IFMA - AxSYM, Abbott®, North Chicago, IL, EUA).

Os níveis séricos de ureia, creatinina e ferro, assim como a saturação de transferrina, as concentrações de Hb e o Ht foram determinados por métodos automatizados padrão.

Análise estatística

A conversão logarítmica foi empregada para comparar valores com distribuição anormal (níveis séricos de citocinas inflamatórias, s-Fas e ferro, parâmetros de avaliação do estado nutricional de ferro, unidades de concentrado de hemácia transfundidas e diurese). As variáveis contínuas foram expressas em médias±DP ou porcentagens. Os grupos foram comparados empregando-se a análise de variância (ANOVA) e o teste χ2. O teste de Tukey foi utilizado para identificar quais grupos diferiam, quando diferenças significantes entre grupos foram apontadas pela ANOVA. A regressão linear (coeficiente de Pearson) foi empregada na análise multivariada.

Comparações adicionais entre os dois grupos de pacientes gravemente enfermos (IRA e Não IRA) e entre pacientes transfundidos ou não foram realizadas empregando-se o teste t de Student.

As transfusões de hemácias foram tratadas como variáveis dependentes na regressão logística binária empregada na análise dos resultados. Os valores referentes aos níveis séricos de s-Fas foram divididos por 1.000 para a equalização dos valores decimais. A adequação do modelo foi avaliada pelo teste de Hosmer-Lemeshow (goodness-of-fit) e pelo R2 de Cox & Snell.

O número de unidades de concentrado de hemácias transfundidas também foi tratado como uma variável dependente na regressão linear múltipla. Variáveis independentes foram incluídas no modelo quando p<0,05 em ambas as análises de regressão. As concentrações de Hb foram excluídas do modelo considerando-se sua relação direta com a indicação de transfusão de hemácias em pacientes em UTI. As análises de regressão foram realizadas de forma escalonada progressiva.

As diferenças foram consideradas significantes quando p<0,05 em testes de duas caudas. Os cálculos estatísticos foram realizados empregando-se o software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 20.0 for Windows® (SPSS Inc. Chicago, IL).

RESULTADOS

Os pacientes gravemente enfermos eram os mais velhos dentre os pacientes estudados. A maioria dos pacientes estudados era do gênero masculino. As principais causas de IRA identificadas foram sepse, etiologia multifatorial e necrose tubular aguda. O diabetes mellitus e a hipertensão foram as principais causas de DRCt. Pacientes IRA apresentaram maior balanço hídrico de 24 horas do que pacientes não IRA. Os níveis séricos de ureia e creatinina mostraram-se mais elevados nos pacientes DRCt. Os pacientes IRA apresentavam níveis séricos de creatinina mais elevados do que sujeitos saudáveis. Os níveis séricos de ureia mostraram-se mais altos em pacientes IRA do que em pacientes não IRA e sujeitos saudáveis. A diurese foi maior em pacientes não IRA do que em pacientes IRA. As concentrações mais baixas de Hb e os menores valores de Ht foram observados nos pacientes IRA. Contagens de leucócitos mais elevadas foram documentadas em pacientes IRA em relação a pacientes DRCt e sujeitos saudáveis (Tabela 1).

Os pacientes IRA apresentaram maior saturação de transferrina e níveis séricos mais elevados de ferritina e IL-6 do que os demais. Os níveis séricos de s-Fas mostraram-se mais elevados em pacientes IRA e DRCt do que em pacientes não IRA e sujeitos saudáveis. Os menores níveis séricos de ferro foram observados nos pacientes não IRA. Os pacientes gravemente enfermos apresentaram maiores contagens de leucócitos e níveis séricos de Epo e IL-10 mais elevados. As médias dos escores APACHE não diferiram entre pacientes IRA e não IRA. Os pacientes IRA foram transfundidos e submetidos à ventilação mecânica e à terapia vasoativa com maior frequência, apresentando taxas de mortalidade mais elevadas em relação a pacientes não IRA (Tabela 1).

Concentrações inferiores de Hb e Ht mais baixo foram documentados nos pacientes que necessitaram de transfusão de hemácias. Os pacientes gravemente enfermos transfundidos eram mais jovens e apresentavam níveis séricos mais elevados de s-Fas (Figura 1), IL-6, ferro e ferritina, além de maior saturação de transferrina e taxas de mortalidade mais altas do que pacientes não transfundidos (Tabela 1).


Todos os pacientes IRA encontravam-se no estágio 3 da doença, de acordo com os critérios KDIGO. Os pacientes DRCt haviam iniciado a hemodiálise 1,4±0,8 anos antes do envolvimento no estudo.

As correlações potenciais entre a concentração de Hb, os níveis séricos de s-Fas, Epo, citocinas inflamatórias e creatinina, o número de unidades de concentrado de hemácias transfundidas e o estado nutricional de ferro foram investigadas em todos os pacientes gravemente enfermos.

Níveis séricos de creatinina mostraram correlação positiva com os níveis séricos de IL-10 (r=0,44; p=0,004) e a saturação de transferrina (r=0,31; p=0,04) e os níveis séricos de Epo, com os níveis séricos de IL-6 (r=0,31; p=0,04) e a saturação de transferrina (r=0,32; p=0,004). Correlações positivas foram observadas entre os níveis séricos de s-Fas e os níveis séricos de IL-6 (r=0,63; p<0,001) e ferritina (r=0,46; p=0,002), a saturação de transferrina (r=0,42; p=0,006) e o número de unidades de concentrado de hemácias transfundidas (Figura 2; Tabela 2).


O número de unidades de concentrado de hemácias transfundidas mostrou correlação positiva com a saturação de transferrina (r=0,32; p=0,04) e os níveis séricos de IL-6 (r=0,31; p=0,04), ferritina (r=0,42; p=0,006) e ferro (r=0,34; p=0,03), e negativa com a concentração de Hb (r=-0,36; p=0,02) (Tabela 2).

O nível sérico de s-Fas foi o único preditor independentemente associado à transfusão de hemácias em pacientes gravemente enfermos durante os primeiros 28 dias de acompanhamento, quando a saturação de transferrina e os níveis séricos de ferritina, IL-6 e IL-10 foram incluídos no modelo (regressão logística binária; Tabela 3), e também a única variável associada ao número de unidades de concentrado de hemácias transfundidas (regressão linear múltipla; Tabela 4).

DISCUSSÃO

O efeito independente dos níveis séricos de s-Fas sobre a indicação de transfusão de hemácias foi avaliado neste estudo prospectivo. Grupos previamente estudados de pacientes foram analisados quanto às correlações entre a concentração de Hb e os níveis séricos de s-Fas, Epo e citocinas pró e anti-inflamatórias. A influência da função renal sobre os níveis séricos desses solutos também foi investigada(13,14).

Os pacientes gravemente enfermos que necessitaram de transfusão de hemácias durante os primeiros 28 dias de internação na UTI foram analisados. Melhor estado nutricional de ferro e níveis séricos mais elevados de s-Fas, IL-6 e IL-10 foram observados nesses pacientes, mas também foram observadas maiores taxas de mortalidade.

Os níveis séricos de s-Fas mostraram associação independente com a necessidade de transfusão de hemácias após o ajuste para níveis séricos de citocinas inflamatórias e estado nutricional de ferro em pacientes gravemente enfermos (regressão logística binária). O nível sérico de s-Fas se comportou como um preditor independente da necessidade de transfusão de hemácias, observando-se um aumento de oito vezes da probabilidade de transfusão a cada mil unidades adicionais de s-Fas sérico. O nível sérico de s-Fas também foi um preditor independente do número de bolsas de transfusão utilizadas (regressão linear múltipla).

A anemia é comum em pacientes gravemente enfermos internados em UTI(2,18) e os riscos associados à transfusão alogênica de concentrado de hemácias são bem conhecidos(19,20). Nesses pacientes, a transfusão tem por objetivo aumentar a disponibilidade de oxigênio e a oxigenação tecidual, uma vez que as hemácias são os principais transportadores de oxigênio(21). Em um grande estudo multicêntrico realizado nos Estados Unidos, 44% dos pacientes gravemente enfermos receberam uma ou mais unidades de concentrado de hemácias durante a permanência na UTI. Em um estudo europeu, uma taxa de transfusão de 37% foi relatada em pacientes em UTI(2,5). No presente estudo, uma porcentagem mais elevada (49%) de transfusão de hemácias foi documentada em pacientes gravemente enfermos, possivelmente devido às características inerentes ao grupo estudado (pacientes gravemente enfermos com indicação potencial de transfusão nos primeiros 28 dias de internação na UTI).

Neste estudo, os níveis séricos de IL-6 mostraram-se correlacionados com os níveis séricos de s-Fas e Epo em pacientes gravemente enfermos transfundidos. Tais pacientes apresentavam disfunções orgânicas mais graves e níveis séricos mais elevados de citocinas inflamatórias, necessitando, portanto, de transfusões de hemácias com maior frequência. A associação entre os níveis séricos de s-Fas e a necessidade de transfusão de hemácias em pacientes gravemente enfermos devido à anemia não havia sido relatada até o momento.

Os altos níveis de s-Fas nos pacientes acometidos por IRA e por doença renal crônica com necessidade de terapia de reposição renal sugerem que o nível sérico de s-Fas é indicativo da função renal.

Cabem algumas ressalvas quanto à interpretação dos resultados deste estudo. Em primeiro lugar, indicações pouco claras de transfusão de hemácias impedem a inferência de uma relação causal entre os níveis séricos de s-Fas e a necessidade de transfusão de hemácias em pacientes gravemente enfermos. A maioria dos pacientes gravemente enfermos estudados sofria da IRA e estava em terapia de reposição renal, esperando-se, portanto, deficiência no clearance renal de alguns solutos. Além disso, a associação entre os níveis séricos de s-Fas e a necessidade de transfusão não foi avaliada em todos os grupos, dado o baixo número de participantes. Finalmente, o valor dos níveis séricos de s-Fas na predição da necessidade real de transfusão de hemácias em pacientes gravemente enfermos foi baseado em um período curto de acompanhamento (28 dias).

CONCLUSÃO

Os níveis séricos de s-Fas mostraram-se associados à necessidade de transfusão de hemácias nos pacientes gravemente enfermos envolvidos neste estudo. Os pacientes gravemente enfermos transfundidos apresentaram níveis séricos mais elevados de s-Fas e IL-6, melhor estado nutricional de ferro e taxas de mortalidade mais altas. O Fas solúvel pode estar envolvido na patogenesia da anemia e ser usado como um marcador substituto na predição da necessidade de transfusão de hemácia em pacientes gravemente enfermos. Estudos clínicos randomizados mais abrangentes se fazem necessários para a confirmação da associação entre os níveis séricos de s-Fas e a necessidade de transfusão de hemácias em pacientes gravemente enfermos.

Data de submissão: 5/12/2012

Data de aceite: 31/10/2013

Conflito de interesse: não há.

Suporte financeiro: não há.

Trabalho realizado na Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil; Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP, Brasil.

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  • Endereço para correspondência:
    Ilana Levy Korkes
    Disciplina de Nefrologia, Universidade Federal São Paulo
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    o andar, frente - Vila Clementino
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      05 Dez 2012
    • Aceito
      31 Out 2013
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