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Análise de um estilingue e espirais de caderno: um estudo de caso

Analysis of a slingshot and helicoidal plastic springs: a studied case

Resumos

As constantes de mola de espirais de caderno e de tubos de látex foram determinadas utilizando procedimentos experimentais acessíveis à maioria dos laboratórios. Mostramos que as espirais de caderno seguem a lei de Hooke enquanto o tubo de látex tem uma força de restauração não linear com a deformação. Determinou-se a velocidade que um projétil de alguns gramas pode atingir ao ser arremessado por um estilingue feito com tubos de látex. A quantidade de movimento adquirida por pequenos projéteis arremessados desta maneira pode ser fatal.

constante elástica; estilingue; lei de Hooke


The elastic constants of helicoidal plastic springs used in notebooks and latex tubes were determined through simple experimental procedures available in most laboratories. We show that the notebook spirals obey the Hookes law while the latex tubes have a non-linear restoring force under deformation. We determine also the velocity of a projectile of a few grams thrown by a slingshot made of latex tubes. The momentum acquired by the projectile using such apparatus could be lethal.

elastic constant; slingshot; Hookes law


ARTIGOS GERAIS

Análise de um estilingue e espirais de caderno: um estudo de caso

Analysis of a slingshot and helicoidal plastic springs: a studied case

Pablo Ferreira; José Pedro Rino1 1 E-mail: djpr@df.ufscar.br.

Departamento de Física, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil

RESUMO

As constantes de mola de espirais de caderno e de tubos de látex foram determinadas utilizando procedimentos experimentais acessíveis à maioria dos laboratórios. Mostramos que as espirais de caderno seguem a lei de Hooke enquanto o tubo de látex tem uma força de restauração não linear com a deformação. Determinou-se a velocidade que um projétil de alguns gramas pode atingir ao ser arremessado por um estilingue feito com tubos de látex. A quantidade de movimento adquirida por pequenos projéteis arremessados desta maneira pode ser fatal.

Palavras-chave: constante elástica, estilingue, lei de Hooke.

ABSTRACT

The elastic constants of helicoidal plastic springs used in notebooks and latex tubes were determined through simple experimental procedures available in most laboratories. We show that the notebook spirals obey the Hookes law while the latex tubes have a non-linear restoring force under deformation. We determine also the velocity of a projectile of a few grams thrown by a slingshot made of latex tubes. The momentum acquired by the projectile using such apparatus could be lethal.

Keywords: elastic constant, slingshot, Hookes law.

1. Introdução

Recentemente fomos procurados por um repórter que nos contou uma pequena história. Em uma penitenciária os presos fabricavam estilingues utilizando tubos de látex, destes utilizados pelos enfermeiros/médicos para prender a circulação do braço antes da coleta de sangue. Além disso, estes mesmos presidiários tinham acesso a bolas de chumbo de 20 g cada utilizados como peso em redes de pescaria. A preocupação do repórter, e matéria de sua reportagem, era saber qual seria a velocidade com que essas massas de chumbo poderiam atingir com esse tipo de estilingues, e se seria possível matar uma pessoa com tal ''arma''. Este fato levou-nos a nos questionar qual seria a constante elástica de tais borrachas, se elas obedecem à lei de Hooke e como seria possível medir tais velocidades de maneira simples.

Este trabalho se propõe a analisar esse e outros questionamentos sob aspectos físicos quantitativos. Resolveu-se primeiramente explorar um pouco mais alguns conceitos básicos acerca do tema para então aplicá-los a materiais de uso e acesso facilitados. Utilizou-se para isso de métodos experimentais simples - apontados hoje por professores e alunos como uma das maneiras mais frutíferas de se minimizar as dificuldades no aprendizado e ensino dessa disciplina [1]. Dois experimentos foram realizados: a) primeiramente foi verificado a resposta de molas helicoidais de espirais de caderno e tubos de látex a uma tensão externa; b) posteriormente, através de uma montagem simples, foi determinado a velocidade adquirida por um corpo arremessado por um estilingue feito com tubos de látex.

2. Experimentos A: Medidas das constantes elásticas

Com o intuito de se verificar a aplicabilidade das leis físicas para certos corpos não ideais, montou-se um esquema para análise das constantes elásticas de molas usadas em encadernação. A experiência mostra que todos os materiais podem ser deformados quando submetidos a uma carga externa e que, até certos limites, retirada essa carga, o corpo recupera suas dimensões originais. Ao valor limite de carga a partir do qual o material não se comporta mais elasticamente denomina-se limite elástico. Para a maioria dos materiais a deformação é linearmente proporcional à tensão. Define-se então constante elástica como sendo o valor da relação entre essa tensão aplicada e a deformação por ela provocada [2].

Para se encontrar os valores das constantes elásticas, utilizou-se um esquema convencional simples (vide Fig. 1): quatro espirais de diferentes diâmetros foram sucessivamente acopladas a um suporte com um fundo milimetrado S.


Na montagem, um suporte para outras massas de peso inicial P0 provoca uma elongação x0 na espiral. A P0 puderam ser então adicionadas novas massas conhecidas e os valores das respectivas elongações computados com auxílio da escala de fundo.

A mesma montagem serviu para coleta dos dados para um tubo elástico de borracha de comprimento determinado (tubo de látex), desses usados por enfermeiros quando da retirada de sangue e também usados na fabricação de estilingues.

2.1. Experiência A1: Constante elástica de espirais de caderno

Utilizando-se da montagem ilustrada acima, estudou-se quatro molas separadamente, dentro do regime elástico de cada uma delas. Mediu-se a elongação sofrida em cada mola para cinco diferentes massas.

A Fig. 2 abaixo mostra que, de fato, para cada uma das molas a distensão provocada é linearmente proporcional à carga. As curvas tracejadas representam uma regressão linear cujo coeficiente angular resulta no valor da constante elástica procurada. Importante notar que para a mola número 3 o limite elástico foi ultrapassado já com o terceiro peso de modo a termos de considerar apenas seus dois primeiros resultados.


A Tabela 1 abaixo sumariza os valores das constantes elásticas bem como os diâmetros médios e números de espiras para cada uma das molas estudadas.

Pode-se demonstrar [3] que, para molas desse tipo (molas helicoidais), a constante elástica depende do diâmetro da mola, do número de espiras, do diâmetro do fio e do material propriamente dito, ou seja:

sendo G o módulo de elasticidade do material, do diâmetro do mesmo, Dm o diâmetro médio da circunferência da mola e Ne o número de espiras úteis e C a constante elástica.

Considerou-se em nossos experimentos espiras de encadernação com d ~ 1 mm. Com o auxílio da expressão acima foi possível então estimar seus módulos de rigidez. Os valores obtidos estão entre 6.109 e 14.109 dina/cm2, revelando a diferença existente entre suas composições, muito provavelmente devido a diferentes tempos expostos a luminosidade solar. Para se ter uma idéia da magnitude deste valor, vale ressaltar que para molas amortecedoras de automóveis Gaut é da ordem de 8.1011 dina/cm2 [4], o que resulta em uma constante elástica da ordem de 8.104 N/m. Desconsiderando outros efeitos nesses amortecedores, enquanto necessitam-se de alguns gramas para provocar uma elongação de centímetros nestas molas, nas de um automóvel para se elongar o mesmo tanto seria necessário um corpo de massa até 104 vezes maior.

2.2. Experiência A2: Constante elástica do estilingue

Ainda com a mesma aparelhagem, substituiu-se a mola por um par de elásticos em paralelo (como utilizado na construção do estilingue), procedendo da mesma maneira com o acréscimo das massas. Notou-se, porém, a necessidade de objetos mais pesados pela grande resistência do material à tração. Dessa forma, foram feitas oito medições além da considerada massa inicial m0 de 140 g, utilizando-se duas borrachas de L = 30 cm cada de comprimento. Apesar de satisfazer as condições de um corpo elástico, notou-se, porém que a borracha não apresenta comportamento linear entre tensão e deformação, mas sim uma relação que pode ser aproximada a uma função quadrática, conforme apresentado na Fig. 3. Os valores entre parênteses são os respectivos erros ou desvios padrão dos parâmetros. A Tabela 2 sumariza os valores que deram origem a esse gráfico.


Variando-se em seguida este comprimento, mantendo-se a mesma carga, pôde-se notar uma relação linear entre L e a elongação provocada por uma dada massa conforme mostrado na Fig. 4.


3. Experimento B: Medida da velocidade do projétil

Estudar o lançamento de um projétil lançado por um estilingue pode ser feito de diversas formas. O método descrito a seguir foi entendido como mais eficaz tanto no sentido de minimizar os erros, ao se dispensar a medição manual de tempo, quanto por se preocupar em deixá-lo acessível para que professores e alunos reproduzam-no em um laboratório simples, provido apenas de um computador com componentes básicos de som e software instalado [5,6].

Conhecidos a distância de disparo (S) e massa do projétil (m), vários arremessos com o estilingue foram realizados. Os disparos sobre um alvo fixo e massivo foram praticamente retilíneos e considerados como tal. A experiência consiste em capturar, por meio do microfone conectado ao computador, os momentos exatos de disparo e impacto para diferentes elongações do elástico e calcular, a partir das leituras gráficas apresentadas pelo software, a velocidade média alcançada pelo corpo arremessado. Com esses dados calcula-se o valor da energia cinética alcançada pelo corpo arremessado.

3.1. Experiência B: Medida da velocidade de lançamento de um projétil por meio de um estilingue

Para este experimento utilizou-se como projétil um corpo esférico de massa m = (5,00 ± 0,05) g lançado contra uma parede distante S1 = (1,5 ± 0,1) m ou S2 = (3,9 ± 0,1) m distância dependente do estiramento (S1 para os três primeiros e S2 para os sete últimos lançamentos). Desprezaram-se os efeitos da resistência do ar. O microfone foi deixado a uma distância intermediária entre os pontos de lançamento e choque gravando qualquer som emitido durante todo o experimento.

O software é fácil de usar sendo permitidos os recursos básicos do Windows tais como as teclas Del, Ctrl+C e Ctrl+V ao longo da mídia para apagar, copiar ou colar partes capturadas. Através dessas teclas torna-se fácil separar os sinais referentes a cada lançamento colocando, para cada um, o pico referente ao lançamento no marco zero do tempo de captura como representado na Fig. 5. O pico seguinte, portanto referente ao impacto, estará representando o tempo total de lançamento para aquela elongação do estilingue.


A Tabela 3 relaciona os dados da elongação e provocada no elástico, o tempo t para atingir o alvo após a liberação do elástico e a velocidade média vm calculada.

Os dados da Fig. 3 revelaram uma força de restauração proporcional ao quadrado da elongação sofrida pelo estilingue (F ~ e2) de modo que se poderia supor uma proporção entre o quadrado da velocidade de lançamento e o cubo dessa elongação sofrida por conservação de energia. Este pressuposto - de conversão completa da energia potencial elástica do tubo de látex em energia cinética - revelou-se, porém, bastante incompatível com a prática, seja por perdas de energia mecânica devido à histerese no tubo, aquisição de energia cinética pelo estilingue ou demais fatores.

A prova final deste fato foi testada medindo-se a velocidade média do corpo como função do estiramento aplicado ao estilingue.

O gráfico da Fig. 6 permite avaliar a qualidade de dois ajustes evidenciando a maior proximidade da linha referente a uma função quadrática dos pontos experimentais, além de ter um erro da mesma ordem do seu termo independente, confirmando que a velocidade será efetivamente nula quando o estilingue não é tensionado, o que não ocorre com o ajuste cúbico que possui um erro da ordem de quatro vezes menor que seu termo independente.


Por fim, utilizou-se dos dados recolhidos para se analisar os prováveis efeitos que um projétil arremessado desta maneira poderiam ter sobre um alvo humano. Se os princípios da física referentes ao disparo da arma estão mais do que fundamentados, os efeitos desse projétil em alvo humano dependem de fatores fisiológicos e psicológicos que ainda são motivos de grande discussão entre autores especializados em armas e munições [7].

Utilizou-se aqui da comparação com outras armas de curto alcance ainda que este não seja um método inteiramente confiável para tal [8]. Considerando o lançamento de um projétil de aço de 1 cm de diâmetro (cerca de 4,1 g) com o estilingue, sua velocidade inicial poderia alcançar a cifra de até 70 m/s [9] totalizando uma Quantidade de Movimento de 0,29 kg.m/s. Para se ter uma idéia da magnitude desse valor, em uma espingarda de pressão de calibre .177 o projétil é arremessado a uma velocidade próxima de 150 m/s totalizando uma quantidade de movimento da ordem de 0,0148 kg.m/s enquanto que em um revólver policial comum .38 da ordem de 2,16 kg.m/s referente ao lançamento de um corpo de 13 g a quase 304 m/s [10-12].

4. Conclusões

A série de experimentos mostrada foi capaz de revelar, com uso de testes de fácil reprodução, que as molas usadas para encadernação podem ser considerados ideais para uso da lei de proporção, definida por Hooke. Foi possível notar também o desempenho não linear de alguns corpos elásticos como a borracha, que apresentou aqui comportamento bastante próximo a uma função quadrática na relação entre força e a subseqüente elongação. Verificou-se ainda que o pressuposto de transformação completa de energia potencial elástica do tubo de látex em energia cinética é certamente falso pelas razões apresentadas.

A montagem serve ainda como uma ferramenta extra na introdução de conceitos como constante e energia elástica, especialmente por tratar de princípios cotidianos através de métodos físicos igualmente habituais, vindo a suprir a carência de situações facilitadoras para o ensino e aprendizado da física básica nos mais diversos ambientes de desenvolvimento disciplinar.

Finalmente, a técnica usada nos lançamentos com o estilingue mostrou-se eficaz na determinação da velocidade alcançada pelo corpo arremessado, possibilitando estimarmos em pelo até 290 g.m/s a quantidade de movimento atingida por esferas de aço como as usadas em instrumentos profissionais. Ainda que para aqueles de fabricação caseira, alvo de nosso estudo, as medidas de velocidade encontradas foram consideradas capaz de avariar seriamente um alvo humano importunamente atingido, podendo afirmativamente ser fatal.

[3] Informação retirada do site www.webmolas.com.

[5] Programa executável GoldWave para gerar a curva do som capturado em função do tempo, encontrado gratuitamente para download no site http://www.goldwave.com.

[8] De fato, Oliveira defende a análise de uma série de outros fatores ao se tentar prever os efeitos de projéteis em alvo humano sem, porém, deixar de confirmar a alta probabilidade de que projéteis de qualquer calibre que venham a atingir algum componente do sistema nervoso central produzam a incapacitação imediata do alvo.

[9] Informação retirada da página www.airpistol.co.uk/slingshots_2.htm.

[12] Informação retirada de WebPath Tutorial de Armas encontrado em http://www.medlib.med.utah.edu/WebPath/TUTORIAL/GUNS/GUNBLST.html.

Recebido em 13/12/2005; Revisado em 20/3/2006; Aceito em 4/4/2006

In memoriam à maestria do educador Marcilio Flávio Rangel de Farias, da qual este trabalho é apenas um dos frutos.

  • [1] A.M. Moraes e I.J. Moraes, Rev. Bras. Ens. Fís. 22, 232 (2000).
  • [2] D. Halliday e R. Resnick, Fundamentos de Física, v. 1 (Livros Técnicos e Científicos Editora Ltda., Rio de Janeiro, 1991).
  • [4] A.L. Casillas, Máquinas: Formulário Técnico (Editora Mestre Jou, Săo Paulo, 1987), 4Ş ed., p. 438-439.
  • [6] Os requisitos do sistema operacional bem como uma detalhada explicaçăo da metodologia para aquisiçăo de dados com a placa de som do computador estăo muito bem explorados no artigo de E. Montarroyos e V.C. Magno, ''Aquisiçăo de dados com a placa de som do computador'', Rev. Bras. Ens. Fís. 23, 57 (2001).
  • [7] J.A.V. Oliveira, Efeitos dos Projéteis de Arma de Fogo em Alvo Humano Pode ser acessado pelo site http://www.geocities.com/poderdeparada/005.html
  • [10] J.A.V. Oliveira, O Poder de Parada no Brasil Pode ser acessado pelo sítio http://www.geocities.com/ poderdeparada/006.htm
  • [11] A.B. Cabral e B.P. Silva, Calibre .40 S&W para os AFRFs - Uma Abordagem Técnica (2003). Disponível em http://www.unafisco-rj.org.br/html/ Legislacao/PorteArma/A7396.DOC
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Out 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      04 Abr 2006
    • Revisado
      20 Mar 2006
    • Recebido
      13 Dez 2005
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