Open-access Participação popular na criação de unidades de conservação marinha: o caso da Reserva Extrativista de Canavieiras

Popular participation in the creation of marine protected area: the case of the canavieiras extrativist reserve

Resumo

O artigo tem o objetivo de analisar a aplicabilidade do ordenamento jurídico pátrio no que se refere à legitimidade, tendo como foco a participação popular, para a criação e gestão da Reserva Extrativista de Canavieiras. A motivação deste estudo encontra-se alicerçada na política mundial para a conservação do bioma costeiro/marinho, que consiste principalmente na instituição de Áreas Marinhas Protegidas (AMPs). A Carta Magna de 1988 impôs, no art. 225, § 1°, III, a responsabilidade de criação dessas Áreas Protegidas ao poder público, com a finalidade da proteção da biodiversidade costeiro/marinha, desde que cumpra os critérios relacionados à legalidade e à legitimidade, por se estar em um Estado Democrático de Direito. Faz-se uma pesquisa no âmbito do Direito Ambiental e dos Direitos Humanos, com o objetivo de verificar inicialmente quais as exigências normativas e se estas foram cumpridas quanto à participação popular das populações diretamente atingidas na criação e na gestão da Unidade de Conservação referida. Portanto, os resultados obtidos demonstram que, apesar da descentralização das normas existentes, estas estabelecem os critérios que devem ser observados para o fortalecimento e desenvolvimento adequado da AMP, cumprindo os princípios da legalidade e da legitimidade, para que esta se torne uma política ambiental legal e legítima. Assim, faz-se um percurso de análise dos referidos princípios a partir da perspectiva da Reserva Extrativista de Canavieiras que, por ser mais recente, e apesar de ter atingido grandes interesses econômicos na área, cumpriu os requisitos no que tange à legalidade e à legitimidade, apesar de passar por vários questionamentos quanto à sua criação. O método utilizado inicialmente foi a pesquisa qualitativa, com coleta de informações de dados secundários, utilizando-se inicialmente da pesquisa bibliográfica e documental, visando traçar os requisitos legais necessários no que tange à participação popular para a criação e gestão de uma Unidade de Conservação Marinha. Já no que tange à verificação da participação popular quando da criação e gestão da AMP de Canavieiras, além da utilização do método de entrevista semiestruturada com a gestora da Unidade do período de 2015, com o fito de verificar o cumprimento dos requisitos referentes à participação popular, também foram analisados documentos institucionais, como atas do Conselho da Unidade.

Palavras-chave Direito; legitimidade; SNUC; Área Marinha Protegida; RESEXCanavieiras

Abstract

The article aims to analyze the applicability of the Brazilian legal system, with regard to legitimacy, focusing on popular participation, for the creation and management of the Extractive Reserve of Canavieiras, a /marine Protected Area (MPA). The motivation for this study is based on the global policy for the coastal/marine biome conservation, which mainly consists on the establishment of Marine Protected Areas. The magna carta of 1988 imposed, in art. 225, § 1°, III, the responsibility of creating these Protected areas to the Government, with the purpose of coastal/marine biodiversity protection, as long as it complies the criteria related to legality and legitimacy, for being in a Democratic state of Law. a research on Environmental law and Human Rights was made, with the aim of checking initially which regulatory demands and if these were fulfilled, as the popular participation of the populations directly affected in the creation and management of the conservation unit. therefore, the results obtained shows that in spite of decentralisation of the existing rules, these set out the criteria that must be observed for the strengthening and adequate development of MPA, complying with the principles of legality and legitimacy, so it can become a legal and legitimate environmental policy. thus, a review was made of those principles from the perspective of Canavieiras Extractive Reserve for being the latest and despite having achieved major economic interests in the area, it has fulfilled the requirements regarding the legality and legitimacy, although it has been going through several questions about the regard of your creation. The first method applied was qualitative research, with collected information of secondary data, using initially of bibliographic and documentary research in order to draw the necessary legal requirements, with regard to popular participation, for the creation and management of a Marine conservation unit. For the verification of the popular participation when setting up and managing the MPA of canavieiras, in addition to the use of the method of semi-structured interview with the manager of the area for the period of 2015, with the purpose of verifying compliance with the requirements regarding popular participation, institutional documents such as minutes of the Council of Unit were also examined.

Keywords Law; legitimacy; SNUC; Marine Protected Areas; RESEXCanavieiras

Introdução

O presente artigo apresenta resultados de uma pesquisa desenvolvida no âmbito do Direito Ambiental e dos Direitos Humanos que analisa o critério da legitimidade nas práticas regulatórias ambientais, com ênfase na participação popular. A pesquisa também pretendeu observar os conflitos decorrentes da criação dessas unidades junto às comunidades diretamente atingidas, tomando como estudo de caso a Reserva Extrativista (RESEX) de Canavieiras, instituída pela União em 2006. O destaque da pesquisa se deu no processo de verificação da problemática em torno do princípio ambiental da legitimidade e o funcionamento deste como fortalecimento de Unidades de Conservação Marinhas (UCMs), na medida em que permite a participação popular.

Inicialmente, com a finalidade compreender a legitimidade e delimitá-la à participação popular, foi realizada a pesquisa bibliográfica. Com o fito de fixar critérios de avaliação na UCM quanto à observância do critério acima, além da pesquisa bibliográfica, a pesquisa documental também foi indispensável, sobretudo quando foram interpretadas, utilizando-se o método exegético, as principais leis, decretos e regulamentos.

No que tange ao princípio da legitimidade para a criação e implantação da UCM, foram examinados critérios operacionalizadores da participação pública, que, segundo Sarlet e Fensterseifer (2014a, p. 48), são:

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    “participação pública na tomada de decisões”, sendo que o foco recairá no processo de criação e implantação de uma UCM, avaliando se, no caso da RESEX-Mar houve mobilização da população tradicional;

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    consulta pública para a criação da Unidade estudada;

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    conselho consultivo ou deliberativo na Unidade e se este é atuante;

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    Plano de Manejo e se este foi levado à aprovação do Conselho Deliberativo da Reserva Extrativista (BRASIL, 2000).

Como método de avaliação de nível de legitimidade, foi utilizada a “escada de participação” desenvolvida por Arnstein (1969) e utilizada por diversos autores, mesmo na seara ambiental, quando tratam de Unidades de Conservação - UC (DALTON, 2005; SEIXAS et al., 2009). A escada de participação caracteriza-se pela divisão da participação popular em oito degraus, que se agrupam em três níveis, sendo o nível A considerado como “não participativo” (I. Manipulação; e II.Terapia); o nível B seria nível de “pouca participação” (III. Informação; IV. Consulta; e V. Pacificação); o nível C seria o de “participação efetiva” (VI. Parceria; VII. Delegação de poder; e VIII. Controle pelo cidadão). Com base em tais critérios foi analisado o nível de participação que efetivamente ocorreu na unidade estudada.

Em razão dos critérios já definidos para averiguar se o ente federado criador respeitou os pressupostos básicos da participação popular, foi utilizado o estudo de caso, que consiste em método que deveria ser usado “quando desejasse entender um fenômeno da vida real em profundidade, mas esse entendimento englobasse importantes condições textuais - porque eram altamente pertinentes ao seu fenômeno de estudo” (YIN, 2010, p. 39). O estudo de caso também pode ser conceituado como “estratégia metodológica [que] tem como objetivo uma descrição detalhada de grupos, instituições, programas sociais e sócio-jurídicos” (GUSTIN; DIAS, 2005, p. 52). Tal método foi realizado na RESEX Marinha de Canavieiras.

Para a criação e gestão de uma Reserva Extrativista Marinha, a legislação exige uma representação expressiva da população tradicional, sendo essencial a participação popular, para que se cumpram os requisitos da legalidade e da legitimidade, desde a mobilização para a criação até a gestão, em razão da importância do Conselho Gestor Delibertativo da Unidade.

Após a escolha da Reserva Extrativista de Canavieiras para a realização da pesquisa, algumas exigências legais tiveram de ser cumpridas:

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    Aprovação pelo Comitê de Etica da Pesquisa da Universidade Estadual de Santa Cruz, n. 21176614.5.0000.5526, de 28/07/2014.

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    Autorização para atividades com finalidade científica n. 35.991-1, de 06/9/2012, concedida pelo Ministério do Meio Ambiente/Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (MMA/ICMBio).

Passada essa etapa de requerimento de autorização e conhecimento da área, foram coletados documentos, junto aos órgãos responsáveis por cada área, sobre a criação e a implantação das Unidades de Conservação sob análise, principalmente atos de criação das áreas, processos extrajudiciais e indicação de processos judiciais.

Como documentos selecionados como bases foram catalogadas todas as normas jurídicas pertinentes às UCs Marinhas pesquisadas, com a finalidade de verificar a efetividade no que se refere à participação popular, o que já está disposto acima.

Quanto à Reserva Extrativista de Canavieiras, a pesquisa baseou-se nos seguintes documentos:

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    Um processo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) que retrata também a criação da RESEX de Canavieiras;

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    Doze processos extrajudiciais encontrados na sede do ICMBio que se encontravam findos, tratando sobre diversas questões, principalmente carcinicultura e autorização para construção no entorno da RESEX;

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    Vinte e quatro atas de reuniões do Conselho Deliberativo da RESEX de Canavieiras;

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    Documentos catalogados pela Associação Mãe dos Extrativistas de Canavieiras (AMEX), que retratam a criação conflituosa da Reserva Extrativista de Canavieiras.

Por fim, após a coleta dos documentos, verificou-se a necessidade de confirmar as informações com a gestora da Unidade, que assinou, à época (2015), termo autorizando a divulgação. A gestora da Unidade, Taina Menegasso, é bióloga, servidora do ICMBio. Foi utilizada a entrevista semiestruturada, pautada principalmente em responder se a Resex Marinha, quando de sua criação e implantação, atendeu ao requisito da legitimidade, com ênfase na participação popular, de acordo com os critérios identificados, quais sejam: a) quando da criação da UC: C2 - Mobilização da comunidade tradicional; C3 - Consulta popular - audiência pública; b) durante a gestão, a participação popular no: C4 - Conselho Gestor; C5 - Plano de Manejo.

Visando uma proteção ao meio ambiente e a amenização dos problemas sociais com a instauração dos modelos económicos que têm implicações sobre a sociedade e as legislaturas, a Constituição Federal de 1988, no art. 225, concedeu, seguindo a orientação internacional, tratamento sem precedentes ao meio ambiente, ao elevá-lo à categoria de direito fundamental de terceira dimensão ou geração (direitos coletivos, transindividuais) (ANTUNES, 2012), atribuindo ao poder público, conforme o §1°, III, a obrigação de “definir, em todas as unidades da federação, espaços territoriais e seus componentes” (BRASIL, 1988, s/p), entre os quais, as UCs.

A União Mundial para a Conservação da Natureza (DUDLEY, 2008, p. 2) aborda que as Areas Protegidas são consideradas “a pedra angular de praticamente todas as estratégias nacionais e internacionais de conservação”, tanto para a proteção dos entornos terrestres quanto marinhos. Assim, o estabelecimento das áreas protegidas tem sido uma das políticas internacionais mais significativas para a conservação da natureza, sendo que, em 2001, tais espaços já cobriam mais de 12% da área global (SIMS, 2010).

Nesse sentido, com o intuito de regular esses espaços territoriais, o Brasil promulgou a Lei n. 9.985/00, fomentando um Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) (BENSUSAN, 2009). Esse sistema dividiu as áreas protegidas em UCs de Proteção Integral (sendo permitido apenas o uso indireto dos recursos) ou UCs de Uso Sustentável (admitindo graus de uso direto, em alguns casos, com aceitação da presença das populações tradicionais) (SCHENNI et al., 2004; SILVA, 2007).

1 Unidade de conservação no Estado Democrático de Direito

A instituição de Unidade de Conservação é destacada como a estratégia mais difundida para a defesa do meio ambiente, incluindo o marinho, que foi conceituado internacionalmente de Area Marinha Protegida (AMP). Entretanto, as UCMs não podem ser criadas de forma indiscriminada pelos entes federativos, uma vez que o mar territorial é um bem de uso comum do povo, sob a gestão da União, como dispõe a Constituição Federal, art. 20, incisos VI e VII (BRASIL, 1988), sendo tal dispositivo reforçado pelo Código Civil, art. 99 (BRASIL, 2002).

A competência ambiental na seara administrativa é comum, portanto, aplica-se o federalismo cooperativo, no qual as três esferas de entes federativos devem atuar na defesa do meio ambiente. Todavia, a Lei Complementar n. 140, editada em dezembro de 2011 (BRASIL, 2011), dispôs que, em relação ao mar territorial, cabe à União a promoção do licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades localizadas ou desenvolvidas no mar territorial (MELO et al., 2013).

Modernamente, o Estado Democrático de Direito caracteriza-se pela submissão de todos - Administração Pública e administrados - ao ordenamento jurídico, que precisa ser construído de maneira a respeitar os pilares da democracia, com eleições livres, periódicas e pelo povo, além da implantação das novas formas de participação popular, exigidas pela própria dinâmica do sistema democrático (MARQUES, 2010). Em decorrência disso, a observância dos princípios da legalidade e da legitimidade é extremamente necessária para que se alcance o Estado Democrático de Direito, mas para fins didáticos este artigo discorrerá apenas sobre a situação da legitimidade.

Observa-se que a UC representa um instrumento ambiental de suma importância para o Estado Democrático de Direito, mas para a sua criação e gestão o poder público deve observar os requisitos da legalidade e da legitimidade. Consoante Wolkmer (2000, p. 81), a legitimidade é entendida como “a transposição da simples detenção do poder e a conformidade com o justo, advogadas pela coletividade”. Esse critério é imprescindível no âmbito da proteção ambiental, que elegeu a participação popular como princípio, sem o qual não pode se conceber qualquer política ambiental.

A participação popular é considerada como expressão da legitimidade, Sarlet e Fensterseifer (2014a) enfocam três elementos-chave para se verificar a participação popular na política ambiental: participação pública na tomada de decisões (administrativas), acesso à informação e acesso à Justiça. A teoria da escada de participação de Arnstein (1969) subdivide a participação popular em níveis que se iniciam com a não participação e crescem até a participação total, quando há o controle da decisão pelos principais interessados com a política.

Para Weber (1998), a legitimidade seria a obediência ao procedimento legal pelo qual a norma passou. Enquanto que o positivista Kelsen, em sua obra intitulada Teoria pura do Direito, a legitimidade seria simplesmente um requisito da legalidade (KELSEN, 1999; TROPER, 2008; KEMMERER; KELSEN, 2010), pois a legalidade seria condição suficiente do Estado de Direito. Já segundo Habermas (1997), os requisitos da legalidade e da legitimidade são imprescindíveis ao Estado Democrático de Direito, pois o processo democrático de criação do Direito depende, para sua legitimação, da teoria racional do discurso, ou seja, haveria a prevalência dos ideais que mais estivessem em consonância com a comunidade. No artigo intitulado “Pluralidade, justiça e legitimidade dos novos direitos”, publicado em 2007, Antônio Carlos Wolkmer apresenta a legitimidade como expressão de liberdade, igualdade e emancipação dos cidadãos, que passaram a ser respeitados coletivamente e não apenas individualmente, e descreve que as decisões políticas não podem ser mais tomadas por políticos que não estão envolvidos com as questões cotidianas das comunidades, sob pena de serem legais, mas não legítimas.

Os reflexos da exigência dos requisitos quanto à legalidade e à legitimidade atingem as UCs, que precisam tanto responder aos critérios de legalidade quanto aos critérios de legitimidade. Essas exigências são indissociáveis para a criação e a manutenção das UC, necessitando-se de informação às comunidades afetadas, consulta popular, participação popular, inclusive com Conselhos Gestores que, no caso da Reserva Extrativista, é deliberativo.

2 Legitimidade na Reserva Extrativista de Canavieiras

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 1°, parágrafo único, assinala que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. A participação popular, direta ou indiretamente, elegeu o nosso sistema como democracia participativa, possibilitando, autorizando e exigindo a intervenção direta dos cidadãos nas decisões participativas (SARLET; FENSTERSEIFER, 2014a).

Para que seja cumprido o requisito da legitimidade, deve-se assegurar principalmente o princípio da participação popular desde a mobilização da população tradicional para a criação da própria área protegida; a consulta pública das comunidades atingidas pela criação da UC; a participação de vários setores da sociedade civil na construção do plano de manejo; a exigência da participação da sociedade civil e do poder público nos conselhos consultivo ou deliberativo, a depender do tipo de UC (AYALA, 2014). No caso das políticas ambientais sobre as áreas protegidas, há uma exigência maior para a participação direta das comunidades envolvidas, principalmente quando se tratar de UC de uso sustentável, sob pena de nulidade das decisões administrativas, quando tal exigência não é cumprida (SEGUIN, 2006).

Com o fito de estabelecer critérios mais objetivos no que se refere à participação popular, foi utilizada a teoria da escada da participação cidadã (ARNSTEIN, 1969), por ser considerada a mais adequada para a análise da legitimidade, principalmente por envolver a implementação de políticas que visem resguardar os ideais democráticos, destacando o grau de participação da comunidade envolvida nas decisões (PORTER-BOLLAND et al., 2012). Tal teoria se alicerça em oito degraus da participação-cidadã, sendo que podem ser concentradas em três níveis de participação popular: (1) níveis de não participação (1 - manipulação; 2 - terapia; e 3 - informação); (2) níveis de concessão mínima de poder (4 - consulta; 5 - pacificação); (3) níveis de poder cidadão (6 - parceria; 7 - delegação de poder; e 8 - controle cidadão).

Com a definição dos critérios em três níveis, para a análise do grau de legitimidade, fez-se necessário aplicá-los para averiguar a criação e a gestão nas UCs nos quatro pressupostos, inicialmente, quanto à manifestação da população tradicional para a criação da Unidade, e, posteriormente, na consulta popular para a criação da área, conselho gestor e plano de manejo. Tais requisitos são essenciais para que não haja qualquer risco de nulidade, eivando o ato administrativo de criação das UCs, bem como sua gestão.

3 Reserva Extrativista de Canavieiras

A RESEX-Mar de Canavieiras envolve o território de Canavieiras, Belmonte (margem do Rio Jequitinhonha) e Una, área no sul do estado da Bahia, medindo cerca de 100 mil hectares, sendo que, desse total, 83% é oceano, 12% é restinga e manguezal, e os 5% restantes abrangem terra firme, incluindo-se aí praias, terreno de marinha e uma pequena porção de propriedade pública e privada (CAVALCANTE et al., 2013).

No site do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (BRASIL, 2018) é possível vislumbrar os limites da Unidade de Conservação Federal Marinha, a Reserva Extrativista de Canavieiras, e pode-se observar que a maioria da área da Reserva envolve áreas de domínio da União, como mar territorial, praias, terrenos de marinha, além de Areas de Preservação Permanente, o que deveria facilitar a criação da Unidade e a consequente regularização fundiária.

Para a RESEX-Mar, por ser uma unidade de uso sustentável, é fundamental que haja uma coexistência entre a gestão sustentável dos recursos pesqueiros e a manutenção do modo tradicional de vivência. Nota-se que sete comunidades foram identificadas como beneficiárias diretas da criação da referida unidade, quais sejam: Oiticica, Puxim do Sul, Puxim de Fora, Barra Velha, Canavieiras (sede municipal), Atalaia e Campinhos (AGUIAR; MOREAU; FONTES, 2011a). Tais comunidades têm cerca de 2.300 famílias e suas principais atividades são a pesca, a coleta de mariscos e a agropecuária familiar (CARDOZO et al., 2012). Em 2006, na área da Reserva Extrativista, foram identificados vários impactos negativos, como pressões decorrentes de ocupação humana desordenada no entorno e na área de manguezal, consequente corte e aterro na área de mangue, bem como conflitos que influenciavam na pesca e no lixo disposto a céu aberto. Contudo, as principais pressões foram as advindas da carcinicultura, no entorno das áreas de mangue.

Registram-se transformações socioeconômicas ocorridas a partir de 1986, em decorrência da crise na principal atividade - a cacauicultura (AGUIAR; MOREAU; FONTES, 2011a), o que ocasionou uma migração rural-urbana com inversão da concentração populacional associada à redução da população municipal em aproximadamente 23% (42.118 habitantes em 1980 para 32.336 habitantes em 2010).

Estima-se que 80% dos pescadores praticam suas atividades nos manguezais e rios da RESEX-Mar, sendo essas áreas as principais responsáveis pela sobrevivência dos extrativistas e, em área marinha, realizam atividades de pesca do camarão e peixes (SOUZA, 2011). Ressalta-se que Canavieiras está posicionada como importante produtor da espécie caranguejouçá (Ucides cordatus cordatus), um dos principais produtos da Unidade (AGUIAR; MOREAU; FONTES, 2011b; SOUZA, 2011).

Há, porém, um dado que demonstra a pressão que a RESEX-Mar está sofrendo, bem como a sua importância, pois o município de Canavieiras liderou o desmatamento na Bahia entre 2010 e 2011, de acordo com dados recentes divulgados pelo Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica 2008-2010, monitorados pela Fundação SOS Mata Atlântica e pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (SOS MATA ATLÂNTICA, 20121 apud CARDOZO et al., 2012).

3.1 Reserva Extrativista de Canavieiras: resultados

A reserva extrativista é classificada como uma categoria de Unidade de Conservação de Uso Sustentável, conceituada pelo SNUC, no artigo 18 da Lei n. 9.985/2000:

A reserva extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade (BRASIL, 2000, p. 6).

Essa categoria de espaço protegido nasceu a partir das lutas dos seringueiros na Amazônia, com o intuito de viabilizar a extração dos recursos naturais de modo sustentável, conjugando conservação ambiental com a subsistência de populações tradicionais (ALLEGRETTI, 2002).

No Brasil, a primeira RESEX brasileira oficializou-se em 1990, no estado do Acre, e passou a chamar-se Reserva Extrativista do Alto Juruá (REAJ) (LOBÃO, 2010). Enquanto que a primeira Reserva Extrativista Marinha (RESEX-Mar) foi instituída pelo poder público em 1992: Pirajabaé (LOBÃO, 2010). Em quase 20 anos da criação da primeira RESEX-Mar, mais 21 foram criadas no âmbito federal, evidenciando uma solução teoricamente viável para resolver o problema da diminuição dos recursos pesqueiros e sobrevivência das populações tradicionais (PRATES et al., 2007).

Observa-se que na implantação de RESEX no ambiente terrestre não se discutem a constitucionalidade ou a legalidade do instituto. Porém, ao retratar o ecossistema marinho, não se discorre sobre a propriedade privada a ser desapropriada, mas, sim, em bem de uso comum do povo, que deve ter seu uso restringido a bem de uma população específica, considerada tradicional (MASCIA; CLAUS, 2008). A maioria dos trabalhos apresentados sobre as Reservas Extrativistas Marinhas (JAMESON; TUPPER; RIDLEY, 2002; BAELDE, 2005; MOURA et al., 2009) preocupa-se com a situação das populações tradicionais e com a pesca, esquecendo-se de avaliar critérios de legitimidade para a constituição dessas Unidades.

Diversos processos foram verificados, no âmbito extrajudicial, relacionados à carcinicultura explorada de maneira irregular, causando impactos relevantes aos recursos ambientais existentes na UC. Foram encontrados também mandados de segurança e autos de infração lavrados pelo IBAMA. Esses documentos questionaram a criação da Unidade de Conservação, principalmente no que concerne aos critérios de legalidade e de legitimidade, o que denota uma complexidade muito maior na avaliação (BRASIL, 2007a). Observa-se que a carcinicultura foi considerada, em entrevista com a gestora, como o principal conflito sofrido na criação e na implementação da UCM de Canavieiras.

Os resultados foram analisados de acordo com os critérios identificados, no que tange à legitimidade, portanto: C1 - Convênio União/Estado ou União/Município; C2 - Mobilização da comunidade tradicional; C3 - Consulta popular - audiência pública; C4 - Conselho Gestor; C5 - Plano de Manejo. Porém, entre os critérios indicados para a avaliação correspondente à legitimidade na criação e na gestão da RESEX de Canavieiras, somente não será analisado o C1, Convênio União/Estado ou União/Município, porque a RESEX de Canavieiras é gerida pela União, que já é o ente federativo responsável pela gestão do mar territorial.

3.1.1 C2 -Mobilização da comunidade tradicional

A mobilização da comunidade tradicional está prevista como exigência para a criação de dois tipos de UC: Reserva Extrativista e Reserva do Desenvolvimento Sustentável, conforme dispõe a Instrução Normativa n. 03 do ICMBio (BRASIL, 2007b).

Esse critério foi abordado em três mandados de segurança impetrados em outubro de 2006, autuados sob os números 26.188, 26.189 e 26.190, e impetrados, respectivamente, pelo estado da Bahia, por Adriana Salsasso Zomer e pela Associação dos Moradores de Barra Velha. Perante o Supremo Tribunal Federal (STF), buscava-se a decretação da nulidade da criação da Reserva Extrativista Marinha de Canavieiras. Ante as diversas informações desencontradas quanto ao apoio ou não à manifestação da população da área, o próprio IBAMA instituiu o processo 02001.005032/2007-0, em 08 de novembro de 2007 (BRASIL, 2007c), mais de um ano do Decreto s/n. de 2006, com o propósito de averiguar a regularidade do processo de criação da Reserva Extrativista de Canavieiras, Bahia.

Observa-se que apenas quatro meses após a criação da Reserva Extrativista Marinha essas ações questionando tal ato administrativo do poder público federal foram iniciadas, inclusive, uma delas pelo próprio estado da Bahia, o que é demonstrativo do grau de conflito que se instalou na região. Foi enviado, em nome dos pescadores e marisqueiras das localidades de Oitica, Poxim e da sede do município de Canavieiras, ainda em 2001, um documento contendo 118 assinaturas, por meio do qual se requereu a instauração da RESEX. A gestora da Unidade relatou na entrevista que a Reserva foi fruto da mobilização da população tradicional, mas contou com a colaboração de uma organização não governamental (ONG) parceira.

Em dezembro de 2005 (Ofício n. 124), o mesmo ente municipal requereu à ministra do Meio Ambiente a reanálise do processo de criação da RESEX antes que este fosse concluído, inclusive para que nova consulta popular fosse realizada, pois a manifestação popular não se confirmava, em razão de várias manifestações contrárias à criação da UC. Em laudo acostado ao processo administrativo, realmente foram constatadas várias assinaturas falsas, além de declarações lavradas em cartório relatando-se que não se teve ciência do que se estava assinando, o que projeta dúvida sobre a legitimidade da ação.

Nesse processo administrativo verificaram-se inicialmente várias manifestações de apoio, inclusive do poder público municipal que, ainda em 2004, expediu ofício ao Centro Nacional de Populações Tradicionais (CNPT), buscando informações sobre a criação da Unidade e confirmando a posição de colaboração para o ato. No entanto, em 2005, a manifestação favorável à criação emitida pelo poder público municipal foi retirada, ocasionando grande turbulência nas ruas de Canavieiras, devidamente noticiada no processo administrativo e na imprensa local.

Não há dúvidas de que, quanto à alínea d, há grande controvérsia se a manifestação da comunidade local foi legítima, expressando a vontade da população tradicional constante da Reserva Extrativista, ou se representou somente a comunidade influenciada por organizações governamentais, e que não sofrem influência com a criação da Unidade, como os insurgentes contra a criação da RESEX deixaram claro em documentos apresentados no referido processo.

Entretanto, como não há legislação estabelecendo qual a quantidade de assinaturas que seriam consideradas representativas da comunidade, mais de cem foram consideradas relevantes para que fosse atendido o pedido de criação da UCM, cumprindo, assim, o requisito tanto da legalidade quanto da legitimidade.

O choque entre grupos sociais e a prevalência do pluralismo são a nova tônica do conceito de Justiça, em que estes passam a expressar novos interesses, que antes eram oprimidos, mas que começam a ter voz e a ser determinantes no processo legal e legítimo (YOUNG, 20002 apud WOLKMER, 2007).

3.1.2 C3 -Consulta popular - audiência pública

A consulta pública consiste em um requisito de grande importância para se concretizar tanto o princípio da legalidade quanto o da legitimidade. Porém, como a nomenclatura do instrumento diz, refere-se à consulta pública, cujo resultado não é determinante para a atuação do poder público, que pode agir contrariamente à opinião pública, desde que mais benéfica ao meio ambiente, pois prevalece o princípio do in dubio pro natura (MILARE, 2011). Conforme dispõe o art. 22, § 2°, do SNUC, o art. 4° do Decreto n. 3.340/02 e a IN n. 5/08 do ICMBio, a consulta popular é exigência para a criação de todas as categorias de UCs, com exceção das Estações Ecológicas e das Reservas Biológicas.

Esse conflito existente entre os interesses das populações tradicionais e os contrários à criação da Unidade ficou perceptível quando, à época, os dirigentes do município se manifestaram favoráveis, mas que, por vários interesses políticos e económicos, algumas lideranças da cidade se sentiram prejudicadas e começaram a levantar dúvidas quanto às irregularidades. A motivação desses ofícios que demonstraram a contrariedade à criação da RESEX de Canavieiras foi principalmente econômica, pois retrata expressamente a instalação de dois empreendimentos que seriam atingidos: Universal Properties Ilha da Barra Velha Resort e Nautilux - Centro Náutico de Lazer, Feiras e Convenções.

Segundo os impetrantes dos mandados de segurança, para que seja legal o ato de criação da RESEX de Canavieiras, faz-se necessário que a chamada para as consultas públicas seja publicada e amplamente divulgada em jornais com impacto regional. Os impetrantes atribuíram à falta de divulgação expressiva a não participação popular dos principais interessados na consulta para a criação da Reserva.

Nota-se que a divulgação ocorreu pelo jornal A Tarde e por carro de som na cidade, segundo ofício encaminhado à Ouvidoria do IBAMA em outubro de 2007, questionando a criação da RESEX, encaminhado pela Associação dos Moradores Parceleiros de Barra Velha e Região. Assim, o STF, ao julgar os Mandados de Segurança (MS) n. 26.188, 26.189 e 26.190, entendeu que a exigência quanto à publicação foi sanada, já que o A Tarde é um jornal de grande circulação no estado da Bahia.

3.1.3 C4 - Conselho Gestor - Conselho deliberativo da RESEX de Canavieiras (CDRC)

Por sua própria natureza, a reserva extrativista tem a necessidade de instalação do conselho deliberativo, no qual os representantes das populações tradicionais tenham voz e sejam majoritários (BRASIL, 2014), pois essa categoria de unidade de conservação objetiva o uso sustentável dos recursos naturais, adornado com a proteção da vida e da cultura das populações tradicionais, garantindo o uso sustentável dos recursos naturais (ANTUNES, 2012).

Essa categoria de unidade, inclusive as constituídas em bioma costeiro/marinho, tem como órgãos gestores o ICMBio e o conselho deliberativo, caracterizando uma nova forma de arranjo institucional pautado na gestão participativa, resultante da influência da sociedade civil nas questões públicas, principalmente após a Constituição Federal de 1988 (JACOBI, 20053 apud CARDOZO et al., 2012).

As RESEX têm se acentuado pela aceitação e participação das populações residentes e representado avanços expressivos para a conservação da biodiversidade, em especial na zona costeira. No conselho deliberativo, a instância de gestão participativa favorece as negociações e o exercício da democracia (LOUREIRO; CUNHA, 2008).

A Reserva Extrativista de Canavieiras, criada em junho de 2006, teve conselho gestor deliberativo em 2009, conforme a Portaria n. 71/2009 do ICMBio, com a finalidade de contribuir para a implantação e implementação do plano de manejo e objetivos da RESEX, como dispõe o artigo 1° (BRASIL, 2009). Quando o conselho deliberativo da RESEX de Canavieiras foi criado, estava vigendo a IN n. 2/2007 do ICMBio, que veio exclusivamente para tratar da criação do conselho para as RESEX e RDS. O artigo 9°, III, apresentava o dever de se garantir maioria de representantes das populações tradicionais na composição do Conselho da Unidade (BRASIL, 2007a). Inclusive, a IN n. 9/2014 fez a mesma exigência, destacando ainda mais a imprescindibilidade do papel das populações tradicionais na gestão da Unidade (NIEDZIALKOWSKI; JOUNI; JEDRZEJEWSKA, 2012).

O conselho deliberativo da RESEX de Canavieiras é composto por 25 representantes das diversas áreas de interesses e atividades na referida UC, entre os quais representações das três esferas de governo, associações, agricultores familiares e segmentos de artesãos, colônias de pescadores, instituição de ensino e ONGs, conforme se verifica no Quadro 1.

Quadro 1
Conselho deliberativo da Reserva Extrativista de Canavieiras (CDRC)

A sociedade civil, representada pela universidade, ONGs que defendem o meio ambiente, setor da carcinicultura e setor turístico, também participou frequentemente das reuniões do conselho, desempenhando, em várias situações, o contraditório em reuniões, principalmente no que concerne ao setor turístico e à carcinicultura. A presidência do conselho é exercida pelo representante do ICMBio (Art. 2° da Portaria n. 71/ 2009, cumprindo o que dispôs a legislação já trazida à baila, como o SNUC, o Decreto n. 4.340/2002, a IN n. 2/2007 e IN n. 9/2014).

A IN n. 2/2007 só previa a participação do poder público, mas não dispunha nada sobre se deveriam ter assento no conselho os entes das três esferas. Já a IN n. 9/2014 estabeleceu, em seu artigo 13, I, que “a apresentação dos setores do Poder Público deve contemplar, quando couber, os órgãos ambientais dos três níveis da Federação” (BRASIL, 2014). Como demonstração do funcionamento do federalismo cooperativo, nota-se que, apesar de não estar obrigado legalmente à época de sua instituição, o CDRC dispôs sobre a representação dos três níveis federativos.

Apesar da recusa do poder municipal em participar do conselho - com isso houve a exclusão do poder público municipal de Canavieiras, conforme Ata de 13 de abril de 2015 - esta não anula a legitimidade deste, por causa da representatividade dos outros setores, essencialmente da população tradicional.Tal recusa apenas ratifica o que já foi constatado quando da análise dos processos pertinentes à criação da UC, ou seja, que a Prefeitura e Câmara Municipal de Canavieiras, apesar de inicialmente terem sido favoráveis à criação da RESEX, com a mudança de governo e com o estado da Bahia se manifestando de modo contrário à instalação, não aceitam a criação da Unidade, sequer querem participar da gestão. Porém, vários pontos que são resolvidos durante as reuniões do conselho, que interessam ao município de Canaveiras, acabam sendo decididos sem que a opinião dos seus conselheiros seja respeitada, como a perfuração de poço de petróleo na área da UC, ou o turismo na região da Reserva Extrativista, que foram alguns dos pontos de pauta nas reuniões do CDRC.

Segundo o novo paradigma da conservação, áreas protegidas precisam “contribuir para o desenvolvimento socioeconômico das comunidades de acolhimento, e estas devem ser incluídas no processo de tomada de decisão participativa relativamente a essas áreas” (NIEDZIALKOWSKI; JOUNI; JEDRZEJEWSKA, 2012). Portanto, além das populações tradicionais, a sociedade civil também está representada por organizações não governamentais que têm como principais objetivos a proteção do meio ambiente, bem como, no caso da RESEX, representantes do turismo local e da carcinicultura, atividade extrativista desenvolvida no entorno da Unidade.

O Conselho Deliberativo da RESEX, desde a sua criação, em um período de novembro de 2009 a abril de 2015, reuniu-se 23 vezes, sendo que apenas uma dessas 23 vezes foi para reunião extraordinária; as demais foram para reuniões ordinárias. Foram encontradas 21 atas, sendo que das reuniões de 06/12/2011 e 29/4/2013 só foram encontradas as listas de presença na sede do ICMBio em Canavieiras. Infelizmente, essas atas, que poderiam servir para identificar as presenças dos conselheiros, na maioria dos casos, foram manuscritas, impossibilitando ter conhecimento sobre qual o segmento o conselheiro representou. Além disso, visitantes e conselheiros assinam na mesma lista, o que gerou confusão. As reuniões do CDRC demonstraram a presença sempre constante de um representante do ICMBio, como presidente do conselho, e do representante da Secretaria Estadual do Meio Ambiente da Bahia.

Na atual composição do conselho, biênio 2015-2017, houve a exclusão do município de Canavieiras em razão da ausência frequente às reuniões (Ata 11.04.2015), evidenciando uma ruptura do federalismo cooperativo que se buscou empreender na legislação federal. Já a Secretaria de Turismo de Una requisitou vaga para o CDRC, o que foi aprovado (Ata 11.04.2015). Na última reunião, que ocorreu em 11 de abril de 2015, foi feita a ressalva de falta, já que não indicaram conselheiros. O ICMBio ficou de encaminhar notificação para apresentar conselheiro em dez dias (Ata do Center for Development of Rural Community and Awareness (CDRCA), Câmara de Vereadores, IBAMA e Marinha – 11.04.2015).

Nas atas restou constatado que as populações tradicionais, nos seus diversos segmentos, conhecem o papel que desempenham na RESEX de Canavieiras, com participação determinante nas reuniões do conselho. Verificou-se que no conselho elas têm espaço para manifestarem suas posições e que estas são respeitadas, mesmo quando não acatadas.

A Associação de Moradores de Barra Velha pleiteou uma cadeira no conselho, o que não foi aprovado. Cabe ressaltar que essa associação impetrou mandado de segurança no STF questionando a criação da RESEX. A Associação de Hotéis e Turismo de Comandatuba também pleiteou uma cadeira no conselho, mas igualmente não obteve êxito. Fica constatado também que a própria comunidade, por ter maioria e ser organizada, acaba influenciando nas decisões, e, com isso, decidindo a composição do conselho. Com a saída do município e a não aceitação da Associação dos Moradores de Barra Velha, que se manifestaram contrários à criação da RESEX, além da entrada da Associação de Marisqueira de Belmonte, há a comprovação do controle cidadão da população tradicional, o que, inclusive, começa a comprometer a legitimidade do conselho.

As reuniões do conselho permitem as mais diversas discussões, em que realmente se alcança a participação popular, com grande mobilização da população tradicional. A heterogeneidade no CDRC só fortalece a discussão ambiental, permitindo que vários pontos de conflitos sejam debatidos e que, ao final, se tenha uma decisão colegiada (HOVARDAS; KORFIATIS; PANTIS, 2009).

O conselho deliberativo da RESEX de Canavieiras tem sua competência pautada pela Portaria n. 71/2009 do ICMBio, conforme a previsão legal da IN n. 2 do ICMBio de 2007, que se encontrava vigorando à época, tendo estabelecido, entre as suas atribuições, a aprovação do Plano de Manejo e dos projetos específicos de exploração sustentada de recursos naturais da RESEX e do seu entorno, além da obrigação de instituir grupo de apoio técnico/ científico, nos casos de aprovação de projetos pelo conselho.

Algumas dessas atribuições puderam ser constatadas com a análise das atas do conselho, como na reunião extraordinária ocorrida em fevereiro de 2010 (Ata 09.02.2010), convocada somente para tratar do parecer que deveria ser redigido quanto ao projeto de perfuração de petróleo da empresa Queiroz Galvão, que ocorreria fora da Reserva, conquanto em suas imediações. Os pontos mais altamente controvertidos e de maior incidência nas atas do CDRC foram discutidos e muitos já decididos pelo CDRC, o que acentua a importância desse órgão gestor, representativo da participação popular, o que pode ser demonstrado em diversas atas, por exemplo: Regimento Interno do Conselho (atas 19.07.2010; 10.11.2010; 22.11.2012; 28.06.2012); Perfil do beneficiário (atas 19.07.2010; 14.09.2010; 10.11.2010; 12.09.2012; 05.03.2013; 06.12.2013; 13.07.2014; 11.09.2014; 28.01.2015; 13.04.2015); Empreendimentos relacionados ao Hotel Transamérica, Veracel (atas 12.05.2011; 22.11.2012; 12.09.2012; 30.12.2012; 11.12.2012; 24.02.2014); Plano de Manejo (ata 14.05.2012); Carcinicultura (atas 25.03.2013; 24.02.2014; 25.04.2014; 13.07.2014).

A gestora da RESEX de Canavieiras, na entrevista, relatou, quando foi feita a pergunta sobre o Princípio da Legitimidade, n. 5 (“Como ocorre a tomada de decisão na Unidade?”) que: “Através de reuniões junto ao Conselho Deliberativo da RESEX”. Quando perguntada, em sequência, se “há algo que considere muito relevante na tomada de decisão”, a gestora respondeu: “a participação social e os pareceres dos analistas ambientais”.

Na pergunta 7, ainda no mesmo item, quando perguntada sobre qual interesse mais se destaca na tomada de decisão da Unidade, a gestora da RESEX de Canavieiras informou que: “O interesse das populações tradicionais em manter seu modo de vida e garantir a conservação dos recursos naturais”.

É incontestável a legitimidade do CDRC, reconhecida inclusive pelo representante do ICMBio, responsável por gerir a UCM, por representar a participação popular na tomada de decisões, alcançando o degrau oito na escada de participação (ARNSTEIN, 1969), nível C. Vilfredo Pareto, criador do princípio econômico ótimo de Pareto (DANI; OLIVEIRA; BARROS, 2010), dispôs que há um equilíbrio quando não há como melhorar, ou, se melhorar, passa a ocorrer um conflito com outro fator.

3.1.4 C5 -Plano de Manejo

Como dispõe o SNUC, art. 27, § 3° (BRASIL, 2000), é um requisito legal da gestão da Unidade a elaboração e a criação do Plano de Manejo em um prazo de cinco anos. Porém, tal preceito legal foi descumprido, visto que ainda não existe a confecção e a aprovação do Plano de Manejo da Reserva Extrativista de Canavieiras. Inclusive, este ainda nem foi para discussão no conselho, somente aparecendo a referência na Ata de 14.05.12, em questionamento sobre a sua confecção. Dessa maneira, com a inexistência do Plano de Manejo, fica comprometido verificar se este se deu de forma participativa como determina a Lei n. 9.985/2000, art. 27, § 2°.

De acordo com a própria gestora da UC, grandes conflitos seriam evitados se houvesse o Plano de Manejo, pois os beneficiários e os usuários estariam identificados, e, de igual modo, as regras para a concessão de direitos e restrições de uso já estariam estabelecidas. Assim, a importância desse instrumento de gestão ocorre em razão da possibilidade de descrever sobre a relação da Reserva no que diz respeito aos principais conflitos, quais sejam: carcinicultura, pesca e regularização fundiária.

A gestora da Unidade explicou que, no caso da Reserva Extrativista, por se tratar de um Plano de Manejo Participativo, que envolve um número muito grande de interesses e conflitos já instalados, torna-se um instrumento muito caro. Além disso, é difícil a contratação de um consultor, por faltar consenso em relação ao nome. Segundo a mesma gestora, outro obstáculo que estaria superado com o Plano de Manejo concerne à autorização direta, ou seja, uma espécie de licenciamento simplificado que permite ao órgão gestor, no caso o ICMBio, conceder ou não a autorização para determinada atividade ou empreendimento dentro da Reserva. Atualmente, o ICMBio pode autorizar poucas atividades na UC, ficando limitado a questões simplificadas e sempre passando pela decisão do CDRC.

Considerações finais

O Estado Democrático de Direito pressupõe um comportamento único e inovador de todos os seres envolvidos na questão ambiental, a partir dos critérios de legalidade e de legitimidade. Este deve ser entendido quando decisões que interessam à coletividade passam a ter a sua participação consciente, por meio da informação, consulta ou até, em último nível, da tomada de decisão (ARNSTEIN, 1969). Na seara ambiental, esse requisito é fundamental, por se tratar de um direito difuso, transindividual e que necessita de aplicabilidade constante para que se atinja o almejado em um Estado Democrático de Direito.

No Brasil existe uma política ambiental de criação de UCs alicerçada em um ordenamento jurídico que prevê instrumentos de criação e gestão das áreas, e que se torna mais efetiva quando segue o princípio da participação popular. Entretanto, o principal desafio consistiu em verificar se a legislação está suficientemente assentada para instituir UCs, tanto do ponto de vista da legalidade quanto da legitimidade, na busca de se alcançar um autêntico Estado Socioambiental do Direito.

Destarte, com base em todo o arcabouço jurídico encontrado sobre a matéria, fora analisado neste artigo se a Area Protegida do Estado da Bahia, a Reserva Extrativista de Canavieiras, cumpriu e em que grau o comprometimento com a legitimidade dessa Unidade de Conservação Federal. Fora avaliado, ainda, se os vícios quanto aos critérios porventura não cumpridos são sanáveis ou não e quais as consequências jurídicas no caso de omissão.

No desenvolvimento da RESEX de Canavieiras ocorreu um misto entre os níveis de escada de participação, Manipulação e Terapia, compreendendo o nível A, quando não há a efetiva participação. Entretanto, a mobilização para a criação da Unidade ocorreu em 2001 e foi tomando força, mobilizando a população tradicional e os contrários à sua criação, ensejando principalmente os mandados de segurança pela manutenção da criação da Reserva Extrativista.

Entende-se que restou cumprido o requisito da consulta popular para a criação da Reserva Extrativista de Canavieiras, principalmente porque houve ampla divulgação, comparecendo um grande número de interessados, alcançando o nível B, no degrau Consulta 4, quando se concede um mínimo de poder à população. Com a análise das atas, verificou-se que os conselhos realmente cumprem o papel para o qual foram criados, participando efetivamente da gestão da Unidade, chegando ao degrau 8 de participação, nível C, o que demonstra ainda mais a importância desse órgão colegiado. Porém, a ausência do Plano de Manejo da Reserva Extrativista, segundo a gestora da Unidade, por falta de verba, prejudica o estabelecimento de limites para o uso dos recursos, e em muito já foi ultrapassado o prazo estabelecido em lei para que ele fosse realizado.

Destarte, em um Estado Democrático de Direito, as exigências legais e legítimas para a criação de Áreas Protegidas Marinhas servem como garantia de que o poder público só restringirá e estabelecerá direitos quando necessário e indicado por estudos técnicos e consulta popular, com a implantação de uma gestão participativa como consagração de um Estado Socioambiental de Direito.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2017
  • Aceito
    18 Jun 2018
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