Open-access A montagem como espaço de jogo no filme El mar la mar: limiares e lampejos de uma travessia migratória

The montage as a game space in the film El mar la mar: thresholds and glimpses of a migratory crossing

Resumo.

A partir de El mar la mar, documentário que narra as histórias e os testemunhos dos migrantes que se arriscam na travessia do México para os EUA através do deserto de Sonora, o artigo sondará como esse exercício cinematográfico permite abertura de veredas, de alguns “espaços outros” constituídos pelo filme na imensidão desértica: neles, consideraremos as singularidades das vidas que fazem a difícil travessia rumo à fronteira. Nos avizinharemos dessas existências através das vozes que nos interpelam a partir dos objetos deixados para trás, dos relatos de si ofertados entre lágrimas, das palavras de incentivo escritas aos que continuarão vindo em busca de um sonho. Junto a tais questões, também exploraremos os conceitos de Spielraum, constelação e imagem dialética (Benjamin), as noções de limiares e heterotopias (Foucault) e o conceito de fabulação crítica (Hartman) e como todos eles se vinculam à luz das vidas migrantes.

Palavras chave: Migrantes; constelação; formas de vida; heterotopias

Abstract.

From El mar la mar, a film documentary that narrates the stories and testimonies of migrants who take the risk of crossing from Mexico to the USA through the Sonoran desert, the article will probe how this cinematographic exercise allows opening of paths, of some “other spaces” constituted by the film in the desert immensity: in them, we will try to consider the singularity of the lives that make the difficult crossing towards the border. We will approach these existences through the voices that challenge us from the objects left behind, the reports of themselves offered between tears, the words of encouragement written to those who will continue to come in search of a dream. Along these questions, we will also explore some concepts: Spielraum, constellation and dialectical image (Benjamin), the notions of thresholds and heterotopias (Foucault) and the concept of critical fabulation (Hartman) and how all of them are linked to the light of migrant lives.

Keywords: Migrants; constellation; forms of life; heterotopias

Introdução

Entre os anos de 2017 e 2021 o governo norte-americano, sob a presidência de Donald Trump, implementou medidas severas e desumanas para conter os fluxos migratórios de pessoas latino-americanas que buscavam cruzar a fronteira entre o México e os Estados Unidos. Acompanhamos vários registros jornalísticos (Biondi, Marques, 2020) que documentavam a brutalidade da ação policial e institucional, sobretudo com relação às mulheres e crianças migrantes. Agentes de fiscalização da fronteira e soldados geralmente impediam, com o uso abusivo de força, a travessia de grupos latino-americanas que arriscam suas vidas deixando para trás, não raro, histórias de violência, precariedade, insegurança e perseguição. Atravessar o deserto à noite (e cruzar rios desconhecidos e perigosos), em situações de penúria extrema, para entrar nos EUA em busca de melhores condições de vida: esse sonho de cruzar a fronteira é também o sonho de cruzar um limiar que marca e distingue as vidas dignas de proteção e cuidado, das vidas apontadas como descartáveis.

As várias ações de abordagem e captura de migrantes na divisa estadunidense com o México terminam na separação entre pais e filhos, em mortes durante as travessias, falta de apoio institucional, além de vigilância, detenção, atendimento médico insuficiente, ofensas pessoais e deportações solitárias. O governo Trump amplificou as interdições a famílias migrantes que, impedidas de entrar no país, são separadas em condições brutais: os pais são deportados desacompanhados de seus filhos e filhas, que permanecem cativos por semanas ou meses em campos de detenção1 para imigrantes e, muitos deles, sem qualquer documento.

Neste contexto, o filme que escolhemos para a elaboração deste artigo revela diferentes aspectos da violência dos EUA para com os povos latinos, fronteiriços, com todas as implicações problemáticas de assujeitamento que esta relação de poder ainda apresenta. Contudo, ao lado da tematização da opressão está também a construção de uma narrativa capaz de suscitar uma experiência transformadora. O filme El mar la mar (2017), de J. Bonnetta e J. P. Sniadecki trata das migrações de pessoas latino-americanas no deserto de Sonora, localizado entre o Arizona e a Califórnia, dando a ver, experimentalmente, sensorialidades complexas ao evocar a terrível desorientação e solidão dos migrantes: os sons assustadores da areia triturando-se sob os pés - às vezes tão semelhante a ossos humanos; as garrafas d’água deixadas pelos seres migratórios como numa espécie de algum pedido, de algum desejo, mas também para marcar uma presença, uma passagem; fragmentos de vozes ouvidas através de transmissões de rádio.

Contada em três movimentos (ou partes), intituladas “Rio”, “Costas” e “Tormenta” (sendo a segunda a mais longa e menos enigmática), o filme de Bonnetta e Sniadecki está preocupado com as possibilidades do dispositivo cinematográfico tanto quanto com as travessias “ilegais” no deserto de Sonora. A presença humana é em grande parte limitada a testemunhos vocalizados, e são tantos e angustiantes que não nos cabe aqui descrevê-los em sua totalidade, embora seja impossível ignorar quando uma moradora norte-americana, por exemplo, fala sobre o encontro e acolhimento de um jovem trêmulo, faminto e desnorteado, ou quando ouvimos uma patrulheira falar das experiências dos migrantes que se perderam, do encontro com um cadáver abandonado durante alguma das inúmeras travessias guiadas pelos “coyotes” e de como ficaram abalados ao registrarem esse corpo em fotos, como permaneceram em silêncio até chegar o carro que o recolheria, enquanto alguns choravam. Entre sons e imagens desencontrados, vemos também as torres de rádio e escutamos a comunicação entre os patrulheiros norte-americanos, mas também algumas conversas em espanhol, o que sugere a atuação do exército mexicano na região.

Então precisamos comentar rapidamente, como gesto introdutório, a terceira e última parte (ou movimento) do filme, intitulada “Tormenta”, porque ela guiará em grande medida o nosso itinerário epistemológico e morfológico em relação ao filme e às formas de vida que ele busca inscrever, testemunhar. Uma forte chuva a inaugura. Ouvimos o barulho da tempestade, os trovões, a água que encharca o solo. Uma voz feminina declama, com grande espaçamento temporal entre os versos, partes do poema “Primero Sueño”, da poetisa mexicana Sor Juana Inês de la Cruz (1962). Em interpretação de Octavio Paz (2017), o poema de Sor Juana narra a peregrinação de sua alma em espaços desconhecidos, uma alma caminhante e sem repouso, que vaga enquanto seu corpo dorme, pelo tempo de uma noite, até as primeiras luzes da manhã. O anoitecer, a meia-noite, a madrugada e a aurora percorrem o ritmo do poema em intervalos longos, sem que no texto do poema as divisões sejam exatas e que haja “uma contínua interpenetração de temas e motivos” (2017, p. 483).

Também no filme El mar la mar o encadeamento entre dias e noites, o entrelaçamento de várias temporalidades, é um recurso que recusa a oposição noite/dia, claro/escuro, natureza/humanos. As relações traçadas entre esses elementos não são de oposição ou comparação, mas de aproximação e distanciamento, criando intervalos entre os elementos e tornando essas intermitências capazes de evidenciar “a experiência de um mundo que está além do que os sentidos podem perceber, um mundo visto pela alma” (Paz, 2017, p. 481). Tal espaço liminar é, no filme, uma mistura do deserto de Sonora com as espacialidades afetivas da memória, do desejo de futuro, do presente em meio aos espinhos e violências. O poema, assim como o filme, transcorre em três partes (ou movimentos): o dormir, o sonho e o despertar. É na travessia do espaço descentrado e desabitado percorrido pela alma de Sor Juana, e na travessia do espaço desértico e assombroso percorrido pelos corpos dos migrantes que se abre o intervalo em que sentir-se perdido reflete a busca pela luz do presente, pelos lampejos do passado, que se entrelaçam na medida em que as passagens e desvios abertos nos caminhos amplificam os limiares da fabulação de novas possibilidades de vida e de sobrevivências.

Sabemos que existem muitos trabalhos acerca de filmes dedicados a aspectos identitários, diaspóricos, representacionais e interseccionais da migração latino-americana (ver, por exemplo: Corseuil, 2016; Assis, Santos, 2020; Eurasquin, 2012; Pontes, 2012; Teixeira, 2016; D’Lugo, 2012; Maciel, 1990). Contudo, nossa abordagem será pautada por uma reflexão acerca dos processos de montagem (Didi-Huberman, 2016) e fabulação (Hartman, 2020), que permitem a produção de espaços heterotópicos (Foucault, 2004), liminares e transformadores. Acreditamos que o espaço de jogo (Benjamin, 1987) da montagem fílmica, ao abrir zonas de respiro e desaceleração, permite “tornar sensível” (Didi-Huberman, 2016) o olhar aos vestígios oferecidos pela rede formada entre imagens, sons e relatos. Assim, o olhar tornado sensível pode transportar o espectador para um espaço heterotópico, construído entre o filme e a imaginação, abrindo uma zona de aproximação que não abre mão das distâncias, mas que permite avizinhamentos, dúvidas, vontade de “estar com”, de acompanhar, de escutar e não apenas estar “diante dos” migrantes.

Pensar o filme como espaço de jogo

A vertigem que nos invade ao tomarmos contato com as primeiras cenas do filme El mar la mar nos remete a uma urgência: um veículo se desloca rapidamente levando um grupo de migrantes ao deserto de Sonora. O que se segue depois é uma sequência de sons e imagens que não necessariamente têm correspondência, mas que provocam um estranhamento, deslocam os sentidos do espectador e o convidam para um outro tipo de atenção. Ao frustrar expectativas de uma explicação, o filme nos oferece uma rede de acontecimentos inesperados e não-narrativos: ele torna legível o trabalho das sensações, torna sensível uma luta travada entre as imagens, as palavras e as emoções que despertam. Ele abre um intervalo entre o que é familiar e o que se apresenta como estranho. A vertigem produz, então, a chance da criação de relações originais nas quais borram-se as linhas entre os percursos já conhecidos, induzindo entre eles novas distâncias, novas relações, de onde surgirá uma potencial experiência estética.

O filme documental El mar la mar não se trata de mais uma narrativa na qual migrantes são posicionados como vítimas em meio ao confronto que se instaura nas fronteiras entre dois países que se veem como inimigos. O documentário busca “dialetizar o visível” (Didi-Huberman, 2016, p. 405), ou seja, fabricar outras imagens, outras montagens, incentivando-nos a olhá-las outramente, preservando a divisão e o movimento a elas associados, fazendo funcionar a emoção e o pensamento de maneira conjugada. Para ver de fato esse filme temos que “esfregar os olhos, esfregar e friccionar a representação com o afeto, o ideal com o reprimido, o sublimado com o sintomático” (Didi-Huberman, 2016, p. 405).

Didi-Huberman (2016, p. 405), dialogando com Walter Benjamin, lembra que dialetizar o visível é “fazer aparecer, em cada fragmento da história, essa imagem que passa como um relâmpago, que surge e desaparece no mesmo instante no qual ela se oferece ao conhecimento”. O relâmpago que encerra o filme El mar la mar (fig. 1) se conecta com a imagem benjaminina quando, em sua fragilidade e imprevisibilidade, engaja a memória e o desejo dos povos, ou seja, a configuração de um futuro emancipado. O relâmpago que divide os céus também pode ser a metáfora do intervalo que ilumina, que faz aparecer um limiar no qual nos demoramos um pouco mais para entender a urgência dos povos migrantes, para aproveitar a potência do estranhamento que arranca as narrativas da causalidade histórica, promovendo outras possibilidades de exploração e transformação da experiência.

Figura 1 -
O relâmpago que encerra o filme (El mar la mar)

Os intervalos preservados entre as imagens e sons que compõem o filme operam um trabalho político e estético, um jogo entre elementos que, em sua heterogeneidade polifônica, não nos conduz a ir em busca de “conclusões lógicas que vão do declínio até o horizonte de morte, mas em encontrar as insurgências inesperadas desse declínio ao fundo das imagens que aí se movem ainda, tal vaga-lumes ou astros isolados” (Didi-Huberman, 2011, p. 124).

Em tempos de catástrofe, o filme não incentiva o olhar ou a buscar a morte que parece inevitável, mas as insurgências das pequenas luzes que teimam em fulgurar na escuridão. É por isso que, para nós, o filme El mar la mar se abre como um espaço de jogo (Spielraum), um espaço de vida, lugar de resistência política inventiva. Walter Benjamin (1987) caracterizou o espaço de jogo como um “espaço vazio”, uma abertura para ocupações cotidianas que traz movimento, o intervalo que sacode a vida, porque jogar é experimentar, transformar. Um espaço de jogo é, portanto, um espaço político, de resistência e invenção, de transformação (Wohlfarth, 2016) e formas de sobrevivência. A noção de Spielraum remete em Benjamin ao relaxamento, ao intervalo, à flexibilidade, a um “espaço para o precioso" (Raum für das Kostbare) que os objetos e espaços cotidianos oferecem para a expressão da resistência e da inventividade. Ao descrever o modo como pequenas aldeias do sul da Espanha montam e remontam certos objetos ao longo do dia, Benjamin percebe uma constelação movente que se articula através de suas condições de existência “mais ou menos preciosas” porque coexistem nos espaços intervalares, o que seria, na visão do autor, a antítese das casas das grandes cidades, que teriam perdido, justamente, o “espaço do precioso” porque não “há folga” (Spielraum) para os seus serviços (Benjamin, 1987, p. 242-243).

El mar la mar produz essa folga, esse intervalo: no espaço de jogo instaurado pelo seu processo fabulador de montagem, vemos como os silêncios, a tela escurecida, os longos planos que enquadram paisagens e gestos abrem o hiato necessário para a combinação e recombinação entre uma multiplicidade de elementos: rio, chuva, vegetação, vento, nuvens, plantas, pedras, montanhas, vozes humanas, pegadas, fogo, insetos, revoada de morcegos, música, relâmpago. Todos eles igualmente preciosos e cada um deles tem sua função inicial alterada conforme são deslocados no espaço de jogo da montagem fílmica. O espaço do filme e também o espaço do deserto só ganham vida a partir desse movimento constelar e intervalar, que se abre e se fecha para aqueles que transitam ali e se arriscam a jogar. E esse jogo só é viável porque existe no lugar a permissão de folga - há área de “respiro” -, os espaços do filme e do deserto não estão abarrotados ou totalmente preenchidos: neles ainda é possível experimentar porque ainda existe um espaço não preenchido, “um espaço para jogar, experimentar, transformar. Uma estética da experimentação, portanto, em vez de uma lógica do espetáculo” (Gagnebin, 2020, p. 71).

O espaço de jogo é um espaço de fluxos, de experimentações e rearranjos. Isso o aproxima da definição que Benjamin (2009) estabelece para limiar em contraposição à fronteira. A fronteira é por ele definida como um limite: ela desenha um traço ao redor de algo para lhe dar uma forma bem definida e evitar que esse algo se derrame para além de suas bordas (Gagnebin, 2014). A fronteira contém e mantém algo, evitando seu transbordar, isto é, define seus limites não só como os contornos de um território, mas também como as limitações do seu domínio. Ela designa a linha cujo traço e cuja espessura pode variar e que não pode ser transposta impunemente. Sua transposição pode significar uma transgressão a normas, o que acarreta represálias.

O limiar, por sua vez, indica transição, movimento de passagem, zona de fluxos e contrafluxos. Ele não apenas separa dois territórios (como a fronteira), mas permite a transição, de duração variável, entre os dois territórios. Não significa somente separação, mas aponta para um lugar e um tempo intermediários, indeterminados, que podem ter uma extensão variável, mesmo indefinida. O limiar abarca a hesitação e a suspensão: pode-se demorar no limiar, mas não se permanece imobilizado, porque, segundo Benjamin (2009), ele é a “morada do sonho”, da fabulação. No limiar, descobrem-se rastros e vestígios e desvia-se de uma rota original para optar pelo descaminho, pela “renúncia ao caminho reto e direto em proveito das errâncias, renúncia ao curso ininterrupto da intenção” (Gagnebin, 2014, p. 70).

A nosso ver, a forma como a montagem atua em El mar la mar faz aparecer um limiar, um espaço de jogo que bagunça e desorganiza o que era familiar, à luz de uma dimensão não-narrativa: são traços de sensação, ou seja, “a intromissão de um outro mundo no mundo visual da figuração” (Deleuze, 2007, p. 103). Na zona liminar há uma zona de confusão, de borramento2 , de refazimento das relações que conferem visibilidade e legibilidade às coisas, ao mundo, ao outro, aos povos migrantes.

Como espaço de experimentação, o limiar é um “espaço outro”, uma nova forma de habitar a civilização, abrindo nossa percepção para outra compreensão deste mundo, trazendo à tona algo “precioso” (Kostbare). Para Benjamin (1987), como vimos, “o precioso” é essa forma de articulação que permite aos objetos transformar suas funções, mover-se com os gestos e movimentos intersubjetivos das pessoas no cotidiano. Em outras palavras, o espaço ganha vida a partir desse movimento, dessa troca para quem passa por ele, constituindo-se assim como “zona de respiração”, mas também onde se expõe à morte.

O espaço de jogo é liminar, desviante: existe a partir de uma reorientação de elaboração e montagem, onde o encontro entre passado, presente e futuro convida ao confronto, à transformação. É a lacuna que possibilita experimentar, arriscar ser outro, diferente do que se é (Foucault, 2019). A experimentação, que configura espaços heterotópicos e liminares, é a tática que articula uma constelação, que aproxima fragmentos anacrônicos, heterogêneos, plurais. E, para Benjamin (2009), a constelação, indisciplinar e flutuante, permite a fabulação das temporalidades, a ruptura da organização linear e causal da história, para dar lugar ao devaneio produtivo da fabulação intervalar. Tal fabulação não é tranquila, porque a constelação opera pelo choque, pelo estranhamento, pelo enigma.

A constelação composta pelos diretores de El mar la mar aproxima e justapõe materialidades singulares, mas, também, elementos menos palpáveis, que não se concentram e nem se isolam em uma única imagem ou vestígio. A constelação fílmica surge como a possibilidade de construir relações não narrativas entre figuras, e relações não ilustrativas entre as figuras e o fato, nem mesmo lógicas (Deleuze, 2007)3. A constelação não conta uma história: apresenta figuras com intensa relação entre si, mas sem que essa relação seja narrativa.

Por isso é urgente e necessária a criação de espaços vazios e intervalos, como alternativa conflitual e dissidente à comunidade em ruínas do capitalismo e às narrativas que apagam as vidas migrantes ao dissolvê-las em histórias de morte ou de superação. Na seção seguinte, tentaremos refletir acerca de como o espaço de jogo do filme El mar la mar produz limiares e constelações nos quais a heterotopia (uma utopia possível) pode acontecer. Veredas heterotópicas podem se abrir no deserto para acolher e abrigar, de modo hospitaleiro, os testemunhos de migrantes, seus dizeres sobreviventes e suas lágrimas de cansaço. A aridez do deserto é compensada pela hospitalidade dos intervalos que, no filme, alargam os espaços “entre”, expandem os limiares de encontros possíveis, tornando sensível o olhar à escuta (Didi-Huberman, 2016).

A montagem que cria intervalos heterotópicos

No espaço de jogo instaurado pela montagem, produz-se ativamente uma transformação do presente, uma transformação da narrativa usual acerca das trajetórias dos migrantes, mas também uma transformação na nossa forma de percebê-las e considerá-las. O espectador é convidado a adotar o mesmo procedimento do filme: “acolher o descontínuo da história, proceder à interrupção do tempo cronológico sem asperezas, e renunciar ao desenvolvimento feliz de uma sintaxe lisa e sem fraturas" (Gagnebin, 1999, p. 99).

Acreditamos que nesse espaço de jogo é possível “pensar nos limiares multiplicados, nos espaços inabitáveis e, contudo, habitados, nos migrantes que apreendemos por suas penas e perdas, que percebemos apenas como espectros, no impossível lado a lado, com o sentimento de sideração que nasce disso tudo e a violência que essa sideração autoriza cotidianamente” (Macé, 2018, p. 27). El mar la mar nos convida a considerar as vidas que se mantêm apesar de tudo, as vidas migrantes que não se reduzem ao sofrimento e ao distanciamento em relação à nossa própria vida: o filme nos enreda pelos gestos, sussurros, ruídos de passos, pelos testemunhos e pelos sonhos narrados entre lágrimas, pelas tentativas de fuga e pela experiência arriscada que os migrantes empreendem no deserto de Sonora.

Marielle Macé (2018) define esse gesto de avizinhamento e hospitalidade como um movimento de consideração, de observação, de atenção, delicadeza, cuidado, estima, reabertura de uma relação, de uma proximidade, de uma possibilidade. Segundo ela, o olhar que sidera busca o extraordinário nas travessias dos migrantes, busca a singularização e a exemplaridade de personagens que resistem à morte. É um olhar que se nutre da miséria, do sofrimento e da vulnerabilidade, retornando apenas um sentimento de pena e compaixão. Por outro lado, o olhar que considera trabalha para se relacionar de outra maneira com aquelas vidas que estão sob o foco de sua atenção e também de sua responsabilidade ética. A vida do migrante e sua experiência continuam sendo enigmáticas, continuam trazendo surpresas e permitindo um estranhamento que desloca preconceitos e estigmas.

Considerar seria levar em conta os vivos, suas vidas efetivas, uma vez que é desse modo e não de outro que essas vidas são furtadas ao presente - levar em conta suas práticas, seus dias, e então desenclausurar o que a sideração enclausura; não designar e rotular vítimas, mas descrever tudo o que cada um põe em ação para lidar com situações de vulnerabilidade. (Macé, 2018, p. 28)

A consideração também envolve a atenção aos indícios, aos tropeços, desvios e silêncios. Ela não descarta a potencialidade das gambiarras, das artes da resistência que inventam veredas no deserto, em meio aos silêncios, onde a voz se cala para retomar o fôlego. Nas veredas os caminhantes deixam água potável para os que ficaram para trás ou para os que virão depois. Entre as pedras, criam espaços protegidos onde renovam suas forças, fazem orações, repousam, revisitam os sonhos e fabulam novas formas de vida.

Figura 2 -
As garrafas penduradas pelos migrantes nas rochas (El mar la mar)

As veredas abertas nos sulcos das rochas (fig. 2), que servem de sombra e abrigo provisório no deserto, guardam amuletos, mensagens de esperança e consideração. Esse espaço de reflexividade e padecimento é também uma brecha para o trabalho da rememoração.

[...] poder se lembrar do sofrimento e do passado sem que esse peso seja negado ou diminuído, mas sem que ele tampouco se transforme em fardo inexorável; ousar, ao mesmo tempo, operar essa retomada transformadora no e pelo presente. Lembrar-se, portanto, por amor ao passado e a seus sofrimentos esquecidos, decerto, mas igualmente, de maneira ainda mais perigosa, lembrar-se por amor ao presente e à sua necessária transformação. (Gagnebin, 1999, p. 105)

Contudo, o tempo do repouso é rápido e logo a marcha dos migrantes recomeça pelo deserto. O ritmo assumido pela montagem do filme nos oferece então alguns vestígios de seu trajeto: nas imagens vemos uma sequência de roupas deixadas pelo caminho (fig. 3). Há também um par de sapatos com sola muito fina, impróprio para as longas e pedregosas distâncias percorridas. Esses rastros convocam os espectadores a imaginar os passantes, a considerar os migrantes e tudo o que tiveram que deixar para trás. Esses traços nos indicam “vidas que têm algo a dizer sobre aquilo que são: mais do que bordas, abandonadas e ativamente invizibilizadas, são franjas que já seriam provas de que se poderia fazer de outro modo, uma vez que se fazem de outro modo” (Macé, 2018, p. 60). São vidas que buscam outros caminhos, outras formas e possibilidades de sobrevivência, vidas sobre as quais pouco sabemos, mas que vão além das representações documentadas pela mídia, pelas instituições e pelo preconceito aos estrangeiros - aqui compreendidos como seres estranhos e hostis.

Conhecer e considerar pelo vestígio implica abrir espaço para permitir descontinuidades, para permitir o trabalho da criação de intervalos nos quais o decisivo não é a perseguição de um conhecimento a outro conhecimento, mas um salto em cada um deles (Gagnebin, 2014). Como nos mostra Benjamin (2009), não é a continuidade que atribui relevância ao conhecimento, mas a ruptura. O salto, o choque e o encontro com os lampejos provocados pelas peças de vestuário deixadas para trás no deserto desfazem a linearidade e, em seu movimento de corte abrupto, produz espaço para um conhecimento renovador, para uma consideração atenta ao estrangeiro a partir justamente daquilo que nos é tão familiar.

Figura 3 -
Roupas deixadas no deserto (El mar la mar)
Figura 4 -
Sapatos encontrados soterrados (El mar la mar)

Quase no final do filme, uma nova sequência de vestígios da passagem dos migrantes pelo deserto nos é oferecida. Esses objetos, compostos e recompostos na constelação que o filme monta em seu espaço de jogo, são fragmentos, todos eles preciosos, nos convidam a considerar as vidas e os corpos que um dia os carregaram consigo. Os objetos nos interpelam, nos interrogam. O espectador faz um esforço para reelaborar os passos, para imaginar as decisões que tiveram que ser tomadas, interrogando-se como seguir adiante sem um par de óculos (fig. 5), sem um aparelho celular (fig. 6) que permite a comunicação? Assim, acompanhar rastros não é uma condição para construir um conhecimento unificador, totalizante e capaz de ter efeitos explicativos. A observação dos rastros leva a incertezas, faz titubear aquilo que antes era dado como certo, um imaginário restrito sobre os migrantes e suas experiências.

Levar em consideração não é apenas olhar, mesmo que não seja ainda agir; é escutar a ideia que todo estado de realidade enuncia, pois toda coisa expressa sua ideia, não a ideia que se tem dela, mas a ideia que ela é, em outras palavras o possível que ela abre, e é precisamente essa ideia que nos leva a reconhecer, nos lugares de uma vida cotidiana, tomada em sua duração, lugares onde vidas efetivamente se mantêm, onde corpos e almas efetivamente se experimentam (Macé, 2018, p. 45).

Figura 5 -
Par de óculos deixado para trás no deserto (El mar la mar)
Figura 6 -
Celular deixado para trás no deserto (El mar la mar)

A decisão de nos colocar em contato com roupas e objetos dos migrantes faz com que o processo de montagem do filme abra limiares entre as imagens, e também entre as imagens e os espectadores. Segundo Didi-Huberman (2016), a montagem nos permite percorrer e até mesmo habitar um limiar no qual estão, lado a lado, os traços de coisas sobreviventes, heterogêneos, anacrônicos, desunidos por lacunas e, por isso mesmo, capazes de nos deixar em estado de alerta às diferenças, aos detalhes para os quais não nos atentávamos antes. Nesse limiar, podemos ficar mais atentos àquilo que o outro tenta nos dizer, podemos nos desvencilhar dos discursos que nos cegam para as diferenças, enquanto controlam quais vidas merecem ser consideradas em sua dignidade. “Se os povos estão expostos a desaparecer, deve-se isso também ao fato de se terem formado discursos para que, já não vendo nada, possamos ainda crer que tudo se mantém acessível, que tudo permanece visível e, como se costuma dizer, sob controle” (Didi-Huberman, 2011, p. 45).

Estar no limiar, entre imagens e com os migrantes em sua travessia requer um olhar sensível, a implicação ética de quem olha. O espectador é afetado, transportado para o espaço de jogo no qual se vê diante do enigma das vozes de migrantes que narram suas tormentas em Sonora. A fabulação liminar e intervalar do filme confere uma forma ao espaço de jogo, de modo que o percurso do olhar e sua forma de tornar sensível possam conquistar uma linguagem, uma sintaxe que conduz as condições de reconhecimento das vozes e de seus dizeres. Para entrarmos no espaço de jogo e considerarmos de modo hospitaleiro os vestígios que nos chegam como lampejos, precisamos nos implicar no gesto de montagem, dando forma também à nossa experiência, reformulando nossa linguagem e tornando-a sensível (Didi-Huberman, 2016).

Como afirma Didi-Huberman, “o gesto de tornar sensível não significa tornar ininteligível” (2016, p. 421). A inteligibilidade histórica e antropológica, para ele, deriva do choque entre imagens, aparências, aparições, gestos, olhares e dizeres que coabitam e que se chocam no limiar onde emergem acontecimentos sensíveis. Em El mar la mar, a potência de legibilidade dos acontecimentos que marcam a caminhada dos migrantes pelo deserto de Sonora é possibilitada pelo trabalho das imagens, que tornam acessíveis a nós os vestígios dessa trajetória. A constelação de imagens e sons destaca “não somente os aspectos das coisas ou os estados de fatos, mas sobretudo seus pontos sensíveis”, ela “funciona”, escreve o autor, “pelo excesso, onde tudo se divide no desdobramento dialético das memórias, dos desejos, dos conflitos” (Didi-Huberman, 2016, p. 421).

O filme, a nosso ver, torna sensíveis as falhas, os intervalos, “os lugares e os momentos por meios dos quais os povos, ao declararem sua impotência, afirmam, ao mesmo tempo, o que lhes falta e o que desejam” (Didi-Huberman, 2016, p. 422). A caminhada pelo deserto é também a afirmação de uma forma de vida que almeja a dignidade, que sonha e deseja outro futuro. A constelação intervalar de El mar la mar torna acessível aos nossos sentidos o que nossas inteligências, ansiosas pela representação explicativa, muitas vezes não conseguem perceber. Os indícios que nos deslocam para a consideração acolhedora das vidas que se apresentam no filme ativam essa operação sensível na qual

[...] nós mesmos, diante dessas falhas e indícios, nos tornamos sensíveis a alguma coisa da vida dos povos - a algo da história - que nos escapava até então, mas que nos olha diretamente. E nos tornamos sensíveis ou sensitivos a algo de novo na história dos povos a ponto de desejarmos, em consequência, conhecer, compreender e acompanhar essa história. (Didi-Huberman, 2016, p. 422)

As pistas presentes no solo do deserto, mas também aquelas que percorrem os espaços intervalares da narrativa de El mar la mar, nos mobilizam para o gesto da consideração, do desejo de saber mais sobre os povos migrantes, de acompanhá-los em seu percurso e suas sobrevivências. É justamente esse “espaço outro” aberto pela narrativa fílmica que vai configurar uma heterotopia, uma vereda propícia ao “encontro com” esses povos e seus testemunhos. Como destaca Didi-Huberman (seguindo os rastros de Foucault), uma heterotopia pode surgir quando há um deslocamento, uma decalagem entre o que conhecemos como familiar e um enigma que se apresenta a partir da criação, vinda da aproximação de múltiplos fragmentos, de um espaço intervalar capaz de alterar as coordenadas da experiência:

As heterotopias funcionam de maneira bem concreta, ainda que funcionem de maneira imperfeita, por bricolagens e gambiarras. Elas possuem o poder de justapor, em um único lugar real, vários espaços e espacialidades, várias temporalidades heterogêneas que podem ser incompatíveis. Elas aparecem como uma grande reserva de imaginação (Didi-Huberman, 2016, p. 410).

Ao mencionar o quanto as heterotopias podem alterar a imaginação política que nos permite considerar como dignas as formas de vida dos “povos fadados ao desaparecimento”, Didi-Huberman faz referência ao trabalho de Michel Foucault (1967) sobre as heterotopias ou “espaços outros”. Trata-se de um conceito controverso e pouco desenvolvido nas obras de Foucault. A palestra proferida por este no Cercle d’études architecturales de Paris, em março de 1967, foi a referência mais explícita à sua proposta de estudar sistematicamente “outros espaços” que desafiam o espaço que habitamos, o que ele chama de ciência da heterotopologia. Segundo Daniel Defert (2013), o interesse pela dimensão política e epistemológica do espaço permeia a obra de Foucault, despertada por seu estudo sobre as “espacializações do poder” e sua inter-relação com o conhecimento. Na palestra de 1967, Foucault (2004) define o espaço que habitamos atualmente como um “conjunto de relações de posicionamento” (set of relations of emplacement), termo que se refere a lugares, locais, sítios para expressar a dimensão relacional dos espaços.

Para Foucault (2004), as heterotopias são recorrentes em todos os grupos humanos, embora assumam formas e funções diferentes dependendo da cultura em que se encontram; e também podem evoluir com o tempo. Uma heterotopia tem capacidade de justapor em um único lugar real, muitos espaços, muitos posicionamentos (emplacements) que de outra forma seriam incompatíveis entre si. Além disso, Foucault aponta uma conexão com as découpages du temps (slices ou fatias de tempo, ou ainda, descontinuidades temporais), as heterocronias que emergem através de rupturas no tempo tradicional e que evidenciam a descontinuidade e a multiplicidade de nossa experiência espaço-temporal hoje. A heterotopia também manifesta a natureza dos espaços que não são totalmente fechados nem totalmente abertos, bem como a condição de que os lugares que articula sejam ao mesmo tempo representados, contestados, invertidos.

Heterotopias estão inseridas em nossas práticas cotidianas, coexistindo em sua diferença com aqueles com as quais se relacionam. Elas não rompem com os espaços de sujeição e violência, mas tensionam seu alcance e suas formas de agência. Acreditamos que Foucault (2004) aborda a heterotopia como uma reconfiguração do espaço e do tempo, mais do que como um lugar específico e real, para que entendamos que a diferença se produz em um jogo de relações, ou similitudes, e não por equivalências ou oposições entre espaços. Mais do que “entidades estáveis” que podem ser reconhecidas, nomeadas e localizadas, vemos as heterotopias como “qualidades contingentes” que demarcam uma abordagem relacional da diferença como ferramenta analítica para iluminar as múltiplas características dos espaços sociais e culturais, bem como para inventar outros espaços através das práticas que ocorrem em um contexto específico, numa espécie de aliança heterotópica, tal qual Johnson (2013, p. 800) pôde propor, à luz de Foucault, quando escreve que tais alianças “são mais lúdicas e experimentais em sua força política”.

Em nossa reflexão sobre o filme El mar la mar, o conceito de heterotopia está relacionado a uma atitude de abertura aos efeitos que as interações polifônicas e polisinestésicas podem gerar. Assim como as heterotopias não se definem a priori como um espaço dado, nem como uma combinação única e permanente de elementos, acreditamos que as qualidades heterotópicas das experiências compartilhadas pelo filme permitem dialetizar o olhar e tornar sensíveis as diferenças, reposicionando vulnerabilidades e deslocando inteligibilidades. Ao mesmo tempo a heterotopia pode ser uma forma produtiva de pensar as relações dos sujeitos com o espaço, em relação às suas práticas de comunicação e suas experiências migratórias.

A construção de heterotopias revela como a existência corporal dos migrantes é prejudicada por poderosas forças de controle e, por isso, criam espaços concretos e simbólicos nos quais podem produzir cenas em que tematizam e nomeiam injustiças, fomentando a insurgência, a invenção e a “recusa do estatuto de sujeito em que se encontram. A recusa de sua identidade imposta, a recusa de sua permanência” (Foucault, 2019, p. 35) diante de um mundo que não os reconhece, nem os considera.

Lampejos e fabulações críticas para erguer os sonhos dos migrantes de Sonora

O final do filme é marcado pelo clarão de um relâmpago (fig. 1) que corta o céu tempestuoso do deserto e anuncia a continuidade das tormentas entremeadas pelo sonho. Esse lampejo que acompanha a tormenta nos remete ao modo como Walter Benjamin (2009) enuncia a necessidade de narrar a história dos povos vulneráveis rompendo com a história que conecta causas e efeitos rumo a uma constelação que articula vestígios, rastros e restos. Para Benjamin (1987, 2009), os pontos isolados dos fenômenos históricos só serão verdadeiramente salvos quando formarem uma constelação, cujas estrelas, perdidas na imensidão do céu, só recebem um nome quando um traçado as reúne.

No livro das Passagens, Benjamin afirma que “a imagem dialética é aquilo que lampeja no agora da cognoscibilidade” (2009, p. 515), preservando todos os microacontecimentos de serem apagados no instante seguinte. Vimos anteriormente como a montagem intervalar do filme El mar la mar justapõe acontecimentos sem organizá-los em uma narrativa causal. Isso permite que os instantes se articulem e coexistam sem serem atropelados por uma sequência narrativa que almeja passar da desventura à felicidade.

Em sua leitura de Benjamin, Judith Butler (2017) ressalta como é importante produzir narrativas críticas que permitam a emergência dos lampejos, uma vez que é o processo de sua percepção que nos possibilita tematizar a violência através da rememoração como reivindicação de uma memória ética corporificada a ser recuperada do ponto de vista dos oprimidos. O lampejo atrai o pensamento e faz com que ele se detenha em uma constelação saturada de tensões. O lampejo sacode essa constelação e abre uma brecha, uma fresta através da qual a narrativa dos oprimidos perturba a história dos vencedores e sua maneira de articular e organizar o tempo e o espaço comuns.

Fazer lampejar os estilhaços das vidas migrantes no espaço fílmico é permitir uma fabulação constelar que valoriza os “momentos em que a história dos oprimidos surge num lampejo, até mesmo como sinal de perigo, rompendo ou interrompendo o continuum da história ao qual damos o nome de progresso” (Butler, 2017, p. 104). Valorizar os lampejos implica, para Butler, questionar o enquadramento biopolítico que continua “empilhando as pessoas que não têm mais o apoio de uma história que as estabeleceria como sujeitos. Elas são, na verdade, expelidas da nação como entulho, indiscerníveis de uma paisagem cheia de lixo” (2017, p. 105).

El mar la mar nos oferece um conjunto de histórias esquecidas (ou que estão sob o ponto de desaparição) que se incrustam na narrativa e lampejam diante de nós e “impõem uma reivindicação repentina, uma reconfiguração ou reconstelação do tempo presente em que a história esquecida dos oprimidos pode perfeitamente passar pelo portão estreito” (Butler, 2017, p. 107) das fronteiras entre nações e das normas que avaliam o valor das vidas.

O trabalho do lampejo na fabulação fílmica de El mar la mar é exigir atenção urgente para os vestígios, retirando corpos e experiências do solo arenoso do deserto, de fazer ecoar a voz das formas de vida que resistem contra a violência, a barbárie e o esquecimento por meio da construção precária de uma narrativa ética corporificada e materializada pela polifonia. O lampejo também permite a recuperação do dizer daqueles que sucumbiram no deserto, em meio às ruínas de um luto que não acontece. Sob esse aspecto, o lampejo alimenta uma fabulação através de uma justaposição de eventos e temporalidades, de modo a recriar no presente, uma rede de conexões inesperadas entre acontecimentos heterogêneos e seus intervalos temporais.

Em sua prática fabuladora, Saidiya Hartman (2020) revela os dilemas implicados em recuperar vidas emaranhadas aos enunciados historicamente legitimados, amalgamando-as aos terríveis registros que as condenaram à morte. Ela nos indaga: como fabular existências condenadas à morte pela necropolítica? Para ela, seria ainda possível fazer brilhar lampejos de resistência na criação de uma razão ficcional e contra-narrativa. Hartman afirma que a “fabulação crítica” (2003, p. 194) traz a possibilidade de ver os lampejos de beleza através do sofrimento constantemente apagado em prol das estratégias e dispositivos de gestão e controle dos corpos.

A escrita ficcional de Hartman perturba as disposições do poder ao nos tornar sensíveis a uma outra possibilidade de imaginar, de criar “histórias que são impossíveis de contar, expondo e explorando a incomensurabilidade” (2003, p. 195) e os intervalos entre a experiência sofrida e a tentativa de narrar o trauma. Hartman produz fabulações críticas que almejam “tanto contar uma história impossível quanto amplificar a impossibilidade de que seja contada” (2020, p. 28). Na fabulação crítica, o desejo e a “falta de algo” (a incompletude e a impossibilidade narrativa) decidem melhor os contornos do enquadramento.

Entendemos que Hartman produz montagens constelares ao investir em uma forma de fabulação crítica que produz “uma narrativa recombinante, que enlaça os fios de relatos incomensuráveis e que tece presente, passado e futuro, recontando e narrando o tempo passado no presente” (2020, p. 29). A fabulação ficcional assim entendida permite a criação de uma semântica e de um imaginário que permita nomear as injustiças e criar outros desenhos possíveis para a as ações dos migrantes e para os sentidos que atribuímos a elas, de modo a perceber vidas dotadas de um valor e merecedoras de proteção.

As vidas das famílias migrantes e seu gesto de recusa, sua coragem e sua esperança pulsam e lampejam nas imagens, nas garrafas de água deixadas no deserto (fig. 7 e 8), nas roupas e objetos esquecidos pelo caminho. A corporeidade dos objetos trazidos em sacolas e bolsas ou deixados pelo caminho faz ecoar o som das vidas que, imaginadas outramente, precisam resistir contra a violência, a barbárie e o esquecimento por meio da construção precária e constante de heterotopias que possam abrigar formas de vida habitáveis.

Figura 7 -
Garrafa encontrada em Sonora (El mar la mar)
Figura 8 -
Terços religiosos encontrados nos territórios da travessia (El mar la mar)

A fabulação nos oferece um inesperado movimento contra-narrativo: ela pode arrancar as vidas da causalidade histórica e biopolítica que as aprisiona entre o silenciamento da desfiguração e da voz do rosto dos migrantes, entre a sobrevivência e a queda na ilegibilidade destinada àqueles tidos como indignos. Segundo Hartman, a fabulação crítica busca “escutar o não dito, traduzir palavras mal interpretadas e remodelar vidas desfiguradas”, contestando a violência dos “números, códigos e fragmentos de discurso, que é o mais próximo que nós chegamos a uma biografia dos sem nomes e dos esquecidos” (Hartman, 2020, p. 15).

Considerações finais

El mar la mar nos mostra que espaços heterotópicos também podem ser espaços liminares, pois permitem ao indivíduo a possibilidade de olhar para fora de si, onde a reflexividade representa o caminho da ruptura, transformação e transgressão. Nessa perspectiva, entendemos que em El mar la mar as qualidades heterotópicas da montagem e da relação ética que reposiciona o espectador diante das vozes e imagens, iluminam a natureza relacional, criativa, dinâmica e heterogênea das relações dos migrantes com o espaço.

Acreditamos que a montagem que articula testemunhos, sons, imagens, palavras e corporeidades no filme El mar la mar pode ser pensada como um gesto constelar que reúne elementos singulares e que, quando aproximados, produzem um choque, uma interrupção no fluxo contínuo da organização causal dos acontecimentos. A imagem dialética benjaminiana é justamente o resultado dessa montagem que une passado e presente numa constelação. A força política da montagem produz um choque, um deslocamento do olhar e do pensamento. De tal modo, El mar la mar nos golpeia porque nos arremessa no meio do deserto, no limiar entre a vida e morte, entre a sobrevivência e o sonho, justapondo testemunhos, espaços, paisagens, corpos em uma polifonia que não se resolve em si mesma, não sutura os fragmentos, mas preserva hiatos, abre veredas. Há algumas veredas, alguns “espaços outros” abertos pelo filme na imensidão do deserto: neles, podemos considerar (Macé, 2018) a singularidade das vidas que fazem a difícil travessia rumo à fronteira. Podemos nos avizinhar dessas existências através das vozes que nos interpelam a partir dos objetos deixados para trás, dos relatos de si ofertados entre lágrimas, das palavras de incentivo escritas aos que continuarão vindo em busca de um sonho.

Atuando contra o apagamento das vidas dos povos migrantes por meio de enquadramentos estigmatizantes, é possível fabular alguns momentos de beleza nos quais as vidas precárias nos alcançam e nos movem, nos afetam, nos comovem de modo a conseguirmos escutar suas histórias, atravessando e furando toda a narrativa midiática tradicional de apagamento e desfiguração. O filme mostra, em seu processo de montagem, como as mecânicas da legibilidade podem ser descontinuadas, interrompidas é o trabalho da fabulação crítica: a invenção de enunciados que misturam ficcional e factual, que perfuram a narrativa desfiguradora, criando imagens e constelações que trazem de volta as corporeidades dos escombros do apagamento.

Por fim, El mar la mar nos posiciona em um espaço de jogo no qual somos instados a produzir uma relação de implicação, de afetação e de interpelação que nos torna disponíveis à escuta, ao diálogo e à reciprocidade, instaurando uma via de acolhida e hospitalidade do outro. A operação relacional posta em marcha pela fabulação crítica do filme precisa demandar ao espectador a complexa tarefa de acolher a alteridade, habilitando-o a pensar, a ver e olhar o migrante outramente, permitindo a ele um tempo para encontrar um lugar heterotópico em meio a essas imagens, junto dos migrantes, perdendo-se no deserto à espera das tormentas e dos lampejos.

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  • 2
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  • 3
    “Não haveria outro tipo de relação entre as figuras que não fosse narrativo, e do qual não decorreria nenhuma figuração? Figuras diversas que levariam ao mesmo fato, que pertenceriam a um mesmo fato único, em vez de contar uma história e remeter a objetos diferentes em um conjunto de figuração?” (Deleuze, 2007, p. 13).
  • Editores de seção
    Roberto Marinucci, Barbara Marciano Marques

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2022
  • Aceito
    27 Fev 2023
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