A atual transformação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) promovida pela Reforma Trabalhista coloca-nos diante de algo que, nas análises e nos horizontes do desenvolvimento brasileiro, era comumente reconhecido como exceção, mas que agora se apresenta como regra: a informalidade. Como já nos apontava Francisco de Oliveira (2003) , na especificidade da exploração do trabalho e da acumulação capitalista na periferia, a informalidade é central, mas foi recorrentemente associada ao atraso, como o que residia nas margens do desenvolvimento. Essa perspectiva mirava em algo que nunca se constituiu plenamente: no horizonte da universalização dos direitos, em uma integração social capitalista via assalariamento, mais especificamente via trabalho formal. Por esse prisma, portanto, a informalidade era compreendida como exceção a ser superada.
Em um de seus primeiros discursos após a eleição, o atual presidente da República afirmou com todas as letras que o horizonte para as novas regulações do trabalho formal é a informalidade. Nesse sentido, hoje não estamos em um mundo pós-CLT; o que está em jogo é mais complexo. Têm sido estabelecidas novas regulações que eliminam direitos e garantias historicamente conquistados, promovem e legalizam a transferência de riscos e custos para os trabalhadores; trata-se de um processo de informalização por dentro do trabalho formal ( Krein, Santos e Maracci, 2018 ).
Hoje, assistimos a um novo tipo de ‘informalização’ do trabalho, que podemos definir como uberização. Ela se apresenta como regra e tendência que permeia o mundo do trabalho de alto a baixo. Podemos compreendê-la como uma nova forma de controle, gerenciamento e organização ( Abílio, 2020 ) que pressiona o mundo do trabalho como realidade ou futuro possível, tornando potencialmente uberizáveis todos trabalhadores e trabalhadoras. Essa tendência agora é promovida pelo próprio Estado brasileiro, e está na espinha dorsal da Reforma Trabalhista.
A uberização não se inicia com a Uber nem está exclusivamente associada às plataformas digitais. Refere-se mais amplamente à consolidação de um trabalhador desprovido de direitos e garantias que está subordinado, controlado centralizadamente e disponível para o trabalho. Sua condição é a de um trabalhador sob demanda, um trabalhador just-in-time .
A despeito da novidade que encerra, a uberização remete ao conflito em permanente movimento que está no cerne da relação entre capital e trabalho. Trata-se da tensão entre, de um lado, a busca da utilização da força de trabalho da forma mais intensa, pelo maior tempo, pelo menor valor socialmente possível e, de outro, a busca do reconhecimento do trabalhador como ser humano e não como pura força de trabalho, o que envolve as determinações sociais sobre jornada de trabalho, salário, limites da exploração do trabalho, direitos e garantias do trabalhador. A figura do trabalhador just-in-time consolida a redução do trabalhador a força de trabalho. Não há mais garantias nem limites sobre a duração ou distribuição de sua jornada, nem mesmo sobre a remuneração por dia de trabalho. O trabalhador está à disposição, mas é usado como um fator de produção, de acordo com as determinações e os interesses das empresas. Nessa condição, torna-se solitariamente responsável por sua própria reprodução social, que dependerá do êxito de suas estratégias de sobrevivência; estas, entretanto, só serão bem-sucedidas de acordo com as determinações feitas por meio do gerenciamento do trabalho. Olhando para a Reforma Trabalhista, podemos reconhecer o trabalho intermitente como a instauração da condição do trabalhador sob demanda por dentro da categoria formal. Ou seja, é possível ser um trabalhador celetista que, apesar de estar empregado e disponível ao trabalho, já não tem garantia de quanto trabalha por dia ou ganha no final do mês.
A uberização também se refere aos meios técnico-políticos para a consolidação do trabalhador just-in-time , no que podemos definir como gerenciamento algorítmico do trabalho. Dessa forma, o processo de informalização conta com meios técnicos-políticos, que aparecem como neutros, mas são politicamente determinados e possibilitam o gerenciamento racionalizado de uma multidão de trabalhadores no tempo e no espaço. Tal racionalização se faz na relação com a monopolização e oligopolização que as empresas-aplicativo buscam. Trata-se de, ao mesmo tempo, informalizar o trabalho e centralizar o controle.
As estratégias cotidianas dos trabalhadores são incorporadas como elemento da gestão, transformadas em dados (por exemplo, se quando chove o motorista vai para a casa, se o bikeboy se dispõe a pôr sua segurança em maior risco pedalando à noite). A uberização está relacionada ao capitalismo de vigilância ( Zuboff, 2018 ), que se assenta na transformação da vida cotidiana em dados administrados, que são extraídos e utilizados de forma obscura, não acordada e em permanente movimento. No âmbito do trabalho, isso significa mapear a dinâmica de uma multidão de trabalhadores e ao mesmo tempo mapear a dinâmica da demanda. Porém, mais do que isso, a empresa não só mapeia como organiza e detém o poder sobre as regras do jogo entre oferta e demanda: operando elas mesmas como uma espécie de mão invisível do mercado, detêm o poder de determinar o valor do trabalho e sua variação, a distribuição do trabalho no tempo e no espaço; definem o tamanho do contingente de trabalhadores disponíveis, não demitem (pois não contratam), mas cadastram, descadastram e bloqueiam trabalhadores. Nessa relação de trabalho, estabelece-se um movimento de retroalimentação – assimétrico –no qual decisões e estratégias cotidianas são incorporadas como elementos da gestão, de formas indiscerníveis e não reguladas.
Da falácia do empreendedorismo, podemos nos deslocar para a definição de autogerenciamento subordinado ( Abílio, 2019 ). O que se observa são trabalhadores que arcam com riscos e custos e se autogerenciam subordinadamente. Não há uma prescrição, há uma perda de formas – um sentido contemporâneo da informalização – das regras do trabalho. As formas de penalização, ranqueamento e bonificação que irão operar na distribuição e precificação do trabalho individual e coletivamente são obscuras e onipresentes. Não há jornada de trabalho pré-estabelecida, sequer local de trabalho, mas as decisões dos trabalhadores estão inteiramente subordinadas às determinações que, ao fim e ao cabo, irão definir seu tempo de trabalho, os riscos e custos que irão assumir, além de estratégias informais visando à intensificação do trabalho e maiores ganhos.
O trabalhador define para si metas, que em realidade dizem respeito a quanto é preciso trabalhar para sobreviver até o final do mês. Fica disponível e à espera de trabalho, submetendo-se aos riscos e arcando com os custos que a necessidade de alcançar essa meta impõe. Torna-se um gerente de si mesmo, que está subordinado, mas nada mais está garantido. Ser um trabalhador sob demanda é ser um trabalhador que recebe estritamente pelo que produz. Todo o tempo de não-produção dentro da jornada – os poros do trabalho – é transferido para o trabalhador. Nos detalhes da Reforma Trabalhista vemos também a busca pela igualação de tempo de trabalho a tempo efetivo de produção, por dentro do trabalho formal. O tempo que o trabalhador usa para se deslocar da entrada do estabelecimento até seu posto de trabalho, o tempo para a troca de uniformes já dentro do local de trabalho agora são transferidos para ele, na medida em que não se constituem mais como tempo efetivo de produção.
A informalização como regra nos leva a uma nova compreensão da informalidade, da centralidade de trabalhadores historicamente invisibilizados, assim como a enxergar que elementos estruturalmente associados à periferia estão se generalizando pelas relações de trabalho. Entretanto, em meio a tantas derrotas, vimos em plena pandemia trabalhadores uberizados organizando-se coletivamente e reconhecendo-se politicamente como multidão. Conferiram visibilidade e materialidade às ruas como o espaço do conflito entre capital e trabalho, demandando um breque na exploração. Os desdobramentos ainda não estão claros, mas fica evidente que novas formas de resistência estão em formação.
Referências
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ABÍLIO, Ludmila C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas: Individuo y Sociedad, Chile, v. 18, n. 3, p.1-11, nov. 2019. DOI: 10.5027/psicoperspectivas-vol18-issue3-fulltext-1674.
» https://doi.org/10.5027/psicoperspectivas-vol18-issue3-fulltext-1674 -
ABÍLIO, Ludmila C. Uberização: A era do trabalhador just-in-time? Revista de Estudos Avançados , São Paulo, v. 34, n. 98, p.111-126, 2020. DOI: 10.1590/s0103-4014.2020.3498.008.
» https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2020.3498.008 - KREIN, José D.; SANTOS, Ancelmo L.; MARACCI, Denis. (org.) Dimensões críticas da reforma trabalhista no Brasil. Campinas: Curt Nimuendajú, 2018.
- OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
- ZUBOFF, Shoshana. Big other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação. In: BRUNO, Fernanda et al . (org.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018. p.17-68.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Nov 2020 -
Data do Fascículo
2021