Resumos
Este estudo tem como objetivos caracterizar o perfil demográfico e socioeconômico de nove comunidades remanescentes de quilombos no vale do Ribeira, estado de São Paulo, e identificar os principais fatores responsáveis pelas mudanças recentes nos seus padrões de subsistência. Desde a formação das primeiras aglomerações de escravos libertos e foragidos no século XVIII, as relações estabelecidas entre estas populações com as cidades próximas e com o mercado regional têm vivenciado momentos de retração e de expansão, adaptando-se e ajustando-se a novas mudanças políticas e socioeconômicas. Nas últimas cinco décadas, o impacto de fatores externos na aceleração das mudanças nos padrões de subsistência locais parece ter tido um aumento significativo. Os resultados mostram que as restrições impostas pela legislação ambiental, os conflitos de terra, a construção de uma rodovia na região, a crescente inserção no mercado regional e a atuação de órgãos governamentais e não-governamentais de desenvolvimento são os principais fatores responsáveis pelas mudanças observadas no sistema agrícola de corte e queima e, conseqüentemente, na organização socioeconômica destas populações.
Agricultura de corte e queima; Mudanças socioeconômicas; Uso do solo; Quilombolas; Mata Atlântica
This study aims to characterize the socioeconomic and demographic profile of nine Quilombola populations in the Ribeira Valley, State of São Paulo, and to identify the main factors responsible for the recent changes in their subsistence system. Since the first assemblages of runway and abandoned slaves in the 18th. century, the relations established by these populations with nearby towns and regional market have gone through periods of expansion and retraction, adapting and adjusting to new socioeconomic and political changes. In the last five decades, the impact of external factors on the local subsistence patterns appears to have had a significant increase. Our results show that restrictions imposed by environmental laws, conflict over land, the construction of a major road in the region, the growing insertion into a market economy, and the intervention of governmental and non-governmental development agencies are the main factors behind the changes observed in the subsistence system and, consequently, in the socioeconomic organization of these populations.
Slash-and-burn agriculture; Socio-economic changes; Land use; Quilombola; Atlantic Rainforest
A casa e a roça: socioeconomia, demografia e agricultura em populações quilombolas do Vale do Ribeira, São Paulo, Brasil
The house and the garden: socio-economy, demography and agriculture in Quilombola populations of the Ribeira Valley, São Paulo, Brazil
Nelson Novaes Pedroso JúniorI; Rui Sérgio Sereni MurrietaII; Carolina Santos TaquedaIII; Natasha Dias NavazinasIV; Aglair Pedrosa RuivoV; Danilo Vicensotto BernardoVI; Walter Alves NevesVII
IUniversidade de São Paulo, Instituto de Biociências, São Paulo, Brasil (nelsonnovaes@uol.com.br)
IIUniversidade de São Paulo, Instituto de Biociências, São Paulo, Brasil (murrietabr@yahoo.com.br)
IIIUniversidade de São Paulo, Instituto de Biociências, São Paulo, Brasil (cataqueda@usp.br)
IVUniversidade de São Paulo, Instituto de Biociências, São Paulo, Brasil (natasha.navazinas@usp.br)
VUniversidade de São Paulo, Instituto de Biociências, São Paulo, Brasil
VIUniversidade de São Paulo, Instituto de Biociências, São Paulo, Brasil (danvb@ib.usp.br)
VIIUniversidade de São Paulo, Instituto de Biociências, São Paulo, Brasil (waneves@ib.usp.br)
RESUMO
Este estudo tem como objetivos caracterizar o perfil demográfico e socioeconômico de nove comunidades remanescentes de quilombos no vale do Ribeira, estado de São Paulo, e identificar os principais fatores responsáveis pelas mudanças recentes nos seus padrões de subsistência. Desde a formação das primeiras aglomerações de escravos libertos e foragidos no século XVIII, as relações estabelecidas entre estas populações com as cidades próximas e com o mercado regional têm vivenciado momentos de retração e de expansão, adaptando-se e ajustando-se a novas mudanças políticas e socioeconômicas. Nas últimas cinco décadas, o impacto de fatores externos na aceleração das mudanças nos padrões de subsistência locais parece ter tido um aumento significativo. Os resultados mostram que as restrições impostas pela legislação ambiental, os conflitos de terra, a construção de uma rodovia na região, a crescente inserção no mercado regional e a atuação de órgãos governamentais e não-governamentais de desenvolvimento são os principais fatores responsáveis pelas mudanças observadas no sistema agrícola de corte e queima e, conseqüentemente, na organização socioeconômica destas populações.
Palavras-chave: Agricultura de corte e queima. Mudanças socioeconômicas. Uso do solo. Quilombolas. Mata Atlântica.
ABSTRACT
This study aims to characterize the socioeconomic and demographic profile of nine Quilombola populations in the Ribeira Valley, State of São Paulo, and to identify the main factors responsible for the recent changes in their subsistence system. Since the first assemblages of runway and abandoned slaves in the 18th. century, the relations established by these populations with nearby towns and regional market have gone through periods of expansion and retraction, adapting and adjusting to new socioeconomic and political changes. In the last five decades, the impact of external factors on the local subsistence patterns appears to have had a significant increase. Our results show that restrictions imposed by environmental laws, conflict over land, the construction of a major road in the region, the growing insertion into a market economy, and the intervention of governmental and non-governmental development agencies are the main factors behind the changes observed in the subsistence system and, consequently, in the socioeconomic organization of these populations.
Keywords: Slash-and-burn agriculture. Socio-economic changes. Land use. Quilombola. Atlantic Rainforest.
INTRODUÇÃO
Mudanças significativas nas práticas agrícolas e nas estratégias de subsistência têm caracterizado a situação atual de populações pobres rurais ao redor do mundo (Brondizio et al., 1994; Müller e Zeller, 2002; Porro, 2005; Mertz et al., 2005). Dentre essas mudanças, talvez a mais importante seja a intensificação da agricultura tradicional, causada principalmente por fatores tais como o aumento populacional, o aumento da inserção no mercado e as restrições impostas pela legislação ambiental (Walker e Homma, 1996; Padoch et al., 1998; Byron e Arnold, 1999). O processo de intensificação agrícola tem como uma de suas conseqüências principais a diminuição ou o abandono do período destinado ao pousio, gerando a necessidade de práticas alternativas de manejo que garantam a sustentabilidade do sistema (Styger et al., 2007). No entanto, estratégias adaptativas envolvem necessariamente decisões acerca do uso do solo, que normalmente estão associadas tanto a fatores específicos da dinâmica interna da unidade doméstica, quanto a fatores ligados ao cenário socioeconômico regional e nacional. Dentre os fatores internos mais relevantes, encontram-se as diferenças de acesso à terra e ao trabalho, a idade do chefe da unidade doméstica e a quantidade de mão-de-obra familiar disponível. Já entre os externos destacam-se as restrições impostas pela legislação ambiental, os incentivos fiscais e o acesso ao crédito agrícola (Abizaid e Coomes, 2004).
Dessa forma, é evidente que, para a análise das mudanças nas formas de uso do solo por populações agrícolas tradicionais, é importante caracterizar os diferentes fatores responsáveis pelo processo. Tomando como base as preocupações acima, este artigo tem como objetivo a caracterização do perfil demográfico e socioeconômico de nove comunidades quilombolas do vale do Ribeira, com ênfase nos fatores diretamente ligados à agricultura tradicional. Informações etnográficas também foram levantadas nesse estudo para complementação dos dados censitários. Assim, pretendemos identificar os fatores que vêm sendo responsáveis pelas mudanças nas estratégias de subsistência dos quilombolas e as formas como eles estão se ajustando às mesmas.
A AGRICULTURA DE CORTE E QUEIMA
Grande parte das atividades agrícolas tradicionais praticadas nas regiões tropicais úmidas do planeta apresenta características comuns, recebendo a designação genérica de agricultura itinerante. Conklin (1961) a definiu como qualquer sistema agrícola contínuo, no qual clareiras são abertas para serem cultivadas por períodos mais curtos de tempo do que os destinados ao pousio. Por ser praticada em muitas áreas do globo e abranger uma série de técnicas, outros termos são usados também para designála, como agricultura de coivara, de pousio ou de corte e queima (Conklin, 1961; Posey, 1984; Eden e Andrade, 1987; Kleinman et al., 1995). Apesar de existirem muitas variações, as características essenciais da agricultura de corte e queima são similares por todo o trópico úmido (Carneiro, 1988). Os métodos de cultivo empregados imitam processos ecológicos naturais, como a estrutura protetora das florestas tropicais e a grande diversidade de espécies e variedades associadas (Harris, 1971; Dove e Kammen, 1997; Altieri, 1999; Peroni e Hanazaki, 2002). Sendo assim, pode-se dizer que sua sustentabilidade está relacionada a essa analogia (Conklin, 1961; Geertz, 1963; Harris, 1971; Meggers, 1971; Hiraoka e Yamamoto, 1980; Moran, 2000; Martins, 2005).
Atualmente, a expansão da agricultura de corte-e-queima é também considerada uma das causas das mudanças nas formas de uso e cobertura do solo (Metzger, 2002). Nas duas últimas décadas, essa expansão tem recebido grande atenção devido ao seu papel no desflorestamento das regiões tropicais (Skole et al., 1994; Angelsen, 1995; Brady, 1996; Brown e Schreckenberg, 1998), na perda de biodiversidade (de Jong, 1997) e no aquecimento global (Fearnside e Guimarães, 1996; Tinker et al., 1996; Fox et al., 2000). Por outro lado, muitos estudos vêm demonstrando que a interferência humana no processo sucessional da floresta, por meio das atividades agrícolas, acaba funcionando como fonte de variabilidade, mantendo ou mesmo promovendo a biodiversidade regional (Andrade e Rubio-Torgler, 1994; Neves, 1995; Raman et al., 1998; Steinberg, 1998; Moguel e Toledo, 1999; Altieri, 1999; Gupta, 2000).
Além da grande riqueza de espécies cultivadas em consórcio, a maioria das espécies cultivadas, principalmente a mandioca, possui alta diversidade intraespecífica, diferentes períodos para o plantio e usos diversos para cada variedade (Martins, 1994; Peroni e Hanazaki, 2002). Um dos elementos centrais para a manutenção da complexidade desses sistemas agrícolas é o capital social estabelecido pelas populações locais. O capital social é baseado em sistemas de confiança; em redes de troca e reciprocidade; em regras, normas e sanções comuns; e em formas de organização de grupos e associações (Coleman, 1988; Portes, 1998; Pretty e Ward, 2001). No trabalho agrícola, o capital social pode ser evidenciado através das relações sociais estabelecidas nas unidades domésticas e das articulações entre elas. Dessa forma, a organização social não só garante a produtividade de sistemas agrícolas tradicionais, como tem papel importante no manejo e na conservação in situ de variedades locais (Martins, 1994).
A manutenção da diversidade desse sistema de cultivo está ligada a sua capacidade de continuamente adaptar-se, modificando-se face a perturbações (Berkes e Folke, 2000). No entanto, a velocidade e a forma como ocorrem atualmente as mudanças nas formas de uso do solo e de organização social podem tornar esses sistemas menos capazes de adaptar-se, comprometendo assim sua resiliência (Begossi, 2000). Essas mudanças podem ser decorrentes de fatores como pressão do mercado, restrições da legislação ambiental e mudanças no sistema fundiário e nas formas de organização familiar e comunitária. Uma conseqüência direta desse processo pode ser a redução gradual de espécies e variedades cultivadas. No entanto, paralelamente à sua importância para os sistemas agrícolas tradicionais, as variedades locais funcionam como matéria-prima para o desenvolvimento das variedades modernas, geralmente as comercializáveis (Cleveland et al., 1994), tendo assim grande importância estratégica para aqueles que as mantêm (Martins, 1994).
Consequentemente, a perda dessa agrodiversidade pode resultar em impactos desastrosos à subsistência local, uma vez que é responsável, em parte, pela promoção de uma maior diversidade na dieta, pela estabilidade da produção agrícola, minimização de riscos, uso eficiente do trabalho, maximização dos retornos sob baixos níveis de tecnologia, dentre outros fatores (Altieri, 1999).
O VALE DO RIBEIRA E AS POPULAÇÕES QUILOMBOLAS
A Bacia Hidrográfica do Ribeira abrange as regiões sudeste do estado de São Paulo e leste do estado do Paraná, numa área de 2.830.666 ha, sendo 1.711.533 ha no estado de São Paulo (ISA, 1998). A região é coberta por uma imponente floresta ombrófila densa (Joly et al., 1999) pertencente ao bioma Mata Atlântica, hoje reduzido a menos de 8% da sua cobertura original e considerado uma das áreas críticas para a preservação da biodiversidade global (Myers et al., 2000). Para garantir sua preservação, grande parte da região está protegida por leis ambientais que criaram Unidades de Conservação com diversos graus de restrição do uso do solo e dos recursos naturais.
A região do vale do Ribeira é considerada a menos desenvolvida economicamente e a menos povoada do estado de São Paulo (Hogan et al., 1999). Sua ocupação remete-se ao início da colonização do país e foi caracterizada por atividades tradicionais de subsistência, como a agricultura tradicional, o extrativismo e a mineração. Durante boa parte de sua história, a região permaneceu à margem do desenvolvimento econômico do país. Foi somente a partir da década de 1960 que começaram a surgir projetos governamentais de desenvolvimento e integração econômica para a região (Antuniassi e Reismann, 2001). Nessa região também está assentado o maior número de remanescentes de comunidades quilombolas do estado (Figura 1). A estrutura produtiva dessas comunidades é baseada na prática da agricultura de subsistência, que assegura os produtos básicos para o consumo familiar, e na comercialização do excedente de sua produção (Andrade et al., 2000). As relações sociais são alicerçadas por laços de parentesco e as tarefas cotidianas, principalmente as desenvolvidas na roça, são organizadas sob base familiar. Algumas tarefas desta cadeia produtiva, como a colheita, são realizadas em mutirões, evidenciando a permanência de relações solidárias (Mirales, 1993). Essa sociabilidade intrínseca ao modo de vida dos quilombolas, como apontam alguns estudos desenvolvidos na região (Queiroz, 1983; Carril, 1995; Mirales, 1993), tem suas raízes históricas remetidas à concentração de um grande contingente de escravos foragidos, libertos ou abandonados, que se assentou em terras próximas às margens do rio Ribeira a partir do século XVIII.
Segundo Andrade et al. (2000), a vida das comunidades quilombolas do vale pouco mudou até o início do século XX. A partir de 1930, começaram a surgir algumas intervenções que influenciaram estruturalmente o modo de vida dessas comunidades, como a introdução do cultivo da banana na região e a extração do palmito juçara (Euterpe edulis). Tais atividades alteraram significativamente a socioeconomia das comunidades, já que muitas famílias abandonaram parcial ou integralmente seus roçados, para se dedicar quase que exclusivamente a elas, visando principalmente à sua comercialização (Carril, 1995). A partir da década de 1950, foi criada uma série de Unidades de Conservação na região visando à preservação dos remanescentes de Mata Atlântica existentes, funcionando também como uma estratégia para a minimização da extração ilegal do palmito. As políticas ambientais passaram, então, a impor uma série de restrições ao modo de vida das comunidades. Algumas práticas rotineiras e tradicionais, como a agricultura de coivara, passaram a ser restringidas e permitidas somente mediante licença ambiental. Um dos maiores problemas desse processo é que para a obtenção da licença é exigida a apresentação do título de propriedade da terra, o que é impossível para a maioria das comunidades, já que até o presente momento muitas delas ainda não foram tituladas (Biangione e Berlanga, 1999). Em 1969, foi concluída a construção da rodovia SP-165, entre Eldorado e Iporanga (Queiroz, 1983), que facilitou o acesso às cidades e aos centros regionais próximos e promoveu, dentre outras coisas, o turismo e a especulação imobiliária na região. Por fim, um estudo de inventário hidrelétrico aprovado pelo governo federal na primeira metade da década de 1990 prevê a construção de quatro barragens ao longo do rio Ribeira de Iguape, com o objetivo de gerar energia para as indústrias do sudeste e, supostamente, conter as cheias. No entanto, essas quatro barragens, se construídas, inundarão permanentemente uma área de aproximadamente 11 mil hectares, incluindo cavernas, unidades de conservação, cidades, terras de quilombos e de pequenos agricultores, além de alterar significativamente o regime hídrico do rio. Muitos agricultores venderam suas terras para a Companhia Brasileira de Alumínio (CBA) com medo de tê-las inundadas num futuro próximo pelas águas da represa, e muitas famílias que viviam nessas terras, das quais não eram proprietárias, foram expulsas sem nenhum tipo de indenização (ISA, 2007). O cenário atual ilustra, dessa forma, uma série de mudanças nas formas de acesso e uso da terra e dos recursos naturais por essas comunidades, assim como suas estratégias de ajustes desenvolvidas em resposta a essas mudanças.
MATERIAIS E MÉTODOS
Para a coleta de dados censitários, foram elaborados dois questionários, um demográfico e outro socioeconômico. Ambos foram aplicados em todas as unidades domésticas das nove comunidades estudadas durante o período entre outubro de 2003 e abril de 2005: André Lopes, Galvão, Ivaporunduva, Maria Rosa, Nhunguara, Pedro Cubas, Pilões, São Pedro e Sapatu. Os questionários permitiram a obtenção de dados censitários básicos e informações acerca dos meios de renda e subsistência dos moradores, com ênfase nos fatores ligados à agricultura tradicional. Por unidade doméstica entende-se a unidade residencial de coabitação de uma ou mais famílias nucleares em um bairro ou comunidade. Já os dados socioeconômicos foram analisados tomando-se como base a unidade familiar, ou núcleo familiar, que representa, de fato, a unidade produtiva mais básica de uma comunidade.
Foi realizada também a coleta de dados etnográficos complementares em três das nove comunidades recenseadas: Pedro Cubas, São Pedro e Sapatu. A escolha delas se deu por apresentarem características distintas: duas por estarem mais afastadas da Rodovia SP-165 (São Pedro e Pedro Cubas) e a outra (Sapatu) por estar ao longo de sua margem. Além disso, foram priorizadas aquelas que prontamente concordaram em participar do estudo. Com base nos resultados do censo demográfico e socioeconômico, foram escolhidas algumas unidades domésticas para compor a amostra do estudo etnográfico. A escolha das unidades domésticas seguiu os seguintes critérios: 1) dependência da agricultura para a subsistência dos moradores; 2) auto-reconhecimento como quilombolas; 3) ter residido na comunidade a maior parte de sua vida; e 4) concordância em participar do estudo. As informações foram levantadas por meio de entrevistas semi-estruturadas (Bernard, 1994), aplicadas ao indivíduo ou casal identificado como o chefe da unidade familiar. Essas entrevistas foram aplicadas durante as incursões guiadas às roças e aos jardins e quintais e seguiram um roteiro pré-estabelecido. A investigação etnográfica enfatizou os aspectos (atuais e históricos) socioeconômicos, políticos e ambientais que influenciam (ou determinam) as tomadas de decisões em relação às atividades agrícolas realizadas pelas unidades domésticas. Os aspectos históricos restringiram-se ao passado recente até o período recordado pelos informantes. Conversas informais e técnicas de observação participante (Bernard, 1994) complementaram a coleta dos dados. Cada pesquisador envolvido manteve um diário de campo para narrar eventos e expressar sentimentos, impressões e idéias em uma forma mais livre e subjetiva (Murrieta, 2001).
Para analisar as possíveis relações entre as diferentes características populacionais e socioeconômicas levantadas e, assim, descrever os padrões observados nas comunidades estudadas, foram aplicadas duas técnicas complementares de estatística multivariada: Análise de Componentes Principais (ACP) e Análise de Agrupamento. Os Componentes Principais (CP) foram extraídos a partir de matrizes de correlação e de covariância, gerando, portanto, duas análises distintas. A ACP é uma técnica estatística multivariada redutiva que gera, a partir de uma matriz de dados, vetores complexos, que exprimem a informação contida em mais de uma variável ou dimensão original (Valentin, 2000; Reis, 2001). As relações entre as comunidades foram expressas através de gráficos bi-dimensionais com base nos dois primeiros Componentes Principais (CP 1 x CP 2), bem como através de dendogramas resultantes de uma Análise de Agrupamento (Cluster). Em uma Análise de Cluster, os elementos de um mesmo grupo são semelhantes em relação às variáveis medidas, e os elementos em grupos diferentes, heterogêneos em relação a essas mesmas características (Reis, 2001). Os clusters foram gerados a partir de matrizes de Distâncias Euclidianas. As distâncias foram calculadas a partir dos cinco primeiros Componentes Principais. Os algoritmos de agrupamento utilizados foram o de Ward e o da Média dos Grupos.
As análises estatísticas descritas acima foram feitas a partir da formulação de uma matriz de dados baseada em 23 variáveis relacionadas a escolaridade, religião, fonte de renda, finalidade da produção agrícola e problemas na unidade produtiva. Nessa matriz (Apêndice Apêndice ), a maioria das variáveis foram expressas por suas freqüências em porcentagens (número de respostas positivas/número de unidades familiares entrevistadas para cada comunidade estudada), salvo algumas variáveis. Algumas variáveis, como religião ('Católica' e 'Evangélica'), foram calculadas a partir da soma das pessoas que pertenciam a determinada religião dividida pelo número total de pessoas incluídas em ambas as categorias (ex: Freqüência de Católicos = (sc/sr) * 100, onde sc = soma de católicos e sr = soma de respostas sobre religião, católicos + evangélicos). O mesmo processo foi feito para a variável escolaridade ('Sem Escolaridade' e 'Com Escolaridade'). A variável 'filhos lavradores' expressa o número relativo de unidades domésticas que têm filhos co-residentes envolvidos com atividades agrícolas, independente da quantidade.
RESULTADOS
PERFIL DEMOGRÁFICO
Características populacionais
A população total das nove comunidades levantadas até o término da coleta de dados foi de 2.032 indivíduos, pertencentes a 479 unidades domésticas, com média de 4,2 moradores cada (Tabela 1).
A área total abrangida pelas terras demarcadas para os nove remanescentes de quilombos é de 35.859,60 ha, que corresponde a cerca de 5,67 habitantes por km2.
Em relação à distribuição etária, o padrão encontrado se assemelha àquele de outras populações pobres rurais do país, com grande número de crianças e jovens e um segmento adulto bem menos numeroso (IBGE, 2000) (Figura 2).
Escolaridade
Nas nove comunidades estudadas, o número de analfabetos entre os 884 chefes de família chegou a cerca de um terço (33,5%). Somado às pessoas que se declararam alfabetizadas, embora não tenham freqüentado a escola, o contingente de pessoas sem escolaridade é de 348, quase metade do total (42,7%). O segmento seguinte, com algum grau de escolaridade, é representado basicamente por pessoas com o ensino fundamental incompleto (45,8%), geralmente interrompido na 4a série (Tabela 2). Entre os filhos co-residentes, dos 768 que estavam em idade escolar (de 7 a 17 anos), 753 (98%) freqüentavam a escola. Dos 15 (2%) que não estavam estudando, quatro possuem algum tipo de deficiência física ou mental, e os 11 restantes possuem entre 15 e 17 anos de idade.
Religião
Em relação às religiões professadas nas nove comunidades estudadas, a maioria dos chefes de família (58%) se declarou católica, cerca de um terço (35%) evangélico e uma pequena parte (7%) agnóstica (Tabela 3). Apenas três comunidades, André Lopes, Sapatu e Nhunguara, apresentaram maior número de evangélicos em relação ao de católicos. Outras, como Maria Rosa, Ivaporunduva, Pilões e São Pedro, apresentaram uma maioria significativa de católicos. Todas as comunidades possuem uma capela para o culto católico, mas apenas André Lopes, Sapatu, Nhunguara, Galvão e Pedro Cubas contam com algum templo evangélico.
PERFIL SOCIOECONÔMICO
Fontes de renda
A principal fonte de renda das unidades domésticas nas comunidades estudadas é o recebimento de benefícios, como aposentadorias (40,5%) e bolsa-família ou bolsa-escola (33%). Em seguida, destaca-se a venda da produção agrícola (34,2%). Além dos benefícios governamentais e da agricultura, a venda de produtos extraídos da floresta (23,1%) e a renda proveniente de diárias por trabalhos ocasionais em roças de terceiros (25,4%) são responsáveis por parte da manutenção de cerca de um quarto das unidades domésticas (Tabela 4). É importante ressaltar que as diferentes fontes de renda podem ser cumulativas e não excludentes.
As unidades domésticas de Pedro Cubas e Galvão diferem em parte do padrão geral das comunidades estudadas por apresentarem maior dependência do extrativismo (32,8% e 32,1%) e de diárias (31,3% e 35,7%) como fontes de renda, respectivamente. O mesmo parece acontecer em Nhunguara, embora esta se assemelhe, em outros aspectos, às outras duas comunidades vizinhas, André Lopes e Sapatu, pelo maior número de evangélicos, de chefes de família que cultivam determinados itens agrícolas visando sua comercialização e por problemas na unidade produtiva relacionados com enchentes ocasionais. Em São Pedro, esse panorama é ainda mais grave. Sem fazendas que ofereçam serviços temporários e com menor facilidade de comercialização da produção agrícola, devido às dificuldades de acesso, o extrativismo vegetal acaba sendo a principal fonte de renda (63%), enquanto a venda de produtos agrícolas foi declarada ser feita de forma incipiente por 14,8% das famílias. A renda proveniente de aposentadorias e pensões (40,7%) e bolsa-família (44,4%) parece constituir a forma mais segura e contínua de obtenção de recursos para as unidades domésticas da comunidade (Tabela 4).
Diferentemente das três comunidades supracitadas, Sapatu e André Lopes possuem um contingente maior de unidades domésticas com algum membro beneficiado pelo recebimento de aposentadoria ou pensão (48% e 51,5%, respectivamente). A proximidade dessas duas comunidades à rodovia parece aumentar o acesso a atividades remuneradas. Enquanto as famílias de André Lopes dependem mais de trabalhos ocasionais, como diárias em roças de terceiros e serviços braçais (41,2% e 14,7%, respectivamente), as famílias de Sapatu investem mais na produção agrícola para obtenção de renda, principalmente na venda de banana (38,7%). O escoamento dessa produção é facilitado pela rodovia, oferecendo, dessa forma, um leque maior de alternativas de renda. Prova disso é que mais de um quinto dos chefes de família (22,7%) é assalariado e uma parcela significativa realiza trabalhos esporádicos, como diaristas (18,7%), prestadores de serviços braçais (16,0%), comércio (8,0%) e artesanato (8,0%). Por outro lado, enquanto o extrativismo representa uma das principais fontes de renda para a maior parte das comunidades vizinhas, apenas 7,4% das famílias de André Lopes e 2,7% de Sapatu declararam exercê-lo (Tabela 4).
Um pouco mais afastada da rodovia SP-165, Ivaporunduva é a mais antiga das comunidades da baixada do Ribeira, representando o núcleo de referência para a formação dos outros bairros quilombolas localizados às margens do rio (Andrade et al., 2000). Talvez por esse motivo, Ivaporunduva é a comunidade que mais recebe projetos de extensão capitaneados por órgãos governamentais e não-governamentais. Grande parte deles é voltada para o aumento da obtenção de renda familiar por meio do cultivo e do comércio de banana orgânica e do artesanato da sua fibra. Prova disso é que a agricultura é a maior fonte de renda para as famílias da comunidade (66,7%) e o artesanato apresenta valores superiores à média geral das comunidades (18,0% e 6,1%, respectivamente). Conseqüentemente, as atividades extrativas são significativamente reduzidas (7,7%) (Tabela 4).
Agricultura
No geral, a agricultura tradicional continua sendo o principal meio de subsistência para a população local, já que é praticada em algum grau pela grande maioria das famílias estudadas (cerca de 93,0%). No entanto, dados qualitativos mostram que é evidente a tendência para a intensificação da agricultura em detrimento do sistema agrícola tradicional de corte e queima. A aproximação das áreas de cultivo ao redor das unidades domésticas e a diminuição ou abandono da rotatividade dessas áreas são conseqüências de uma agricultura mais voltada à produção de espécies com valor de mercado. Ainda assim, mais da metade das famílias estudadas (53,7%) pratica-a apenas para fins de subsistência, cerca de um terço (33,9%) vende um pequeno excedente da produção agrícola e uma minoria (4,6%) cultiva visando mais à comercialização que ao consumo (Tabela 5).
O feijão, a mandioca, a banana, o milho e o arroz são os cultivares agrícolas mais reportados e freqüentes nas roças quilombolas, enquanto as ervas usadas para tempero, as hortaliças e a cana-de-açúcar são mais freqüentemente reportadas para os jardins e quintais (Figura 3). Os excedentes de feijão, arroz, mandioca e milho produzidos nas roças são vendidos esporadicamente por alguns agricultores, mas apenas a banana destaca-se como um item com valor de mercado.
Problemas na unidade de produção
Das 476 unidades domésticas entrevistadas, 383 delas (80,5%) reportaram ter problemas na produção agrícola. O problema mais recorrente é a legislação ambiental (43,8%), dada a dificuldade de se conseguir licença para abrir novas áreas de roça. Outros obstáculos freqüentemente citados são a falta de capital para compra de sementes e insumos (33,7%), a ocorrência de enchentes (21,4%), a falta de terra (14,1%) e a falta de apoio à produção (15,7%) e ao comércio (20,1%). Também recorrentes são os problemas com formigas (19,6%) e a ameaça das barragens (11,7%) (Tabela 6).
Outro problema recorrente é a falta de mão-de-obra (12,5%). Os dados etnográficos levantados ilustram uma tendência de diminuição do número de membros da unidade doméstica, principalmente filhos, envolvidos com as atividades agrícolas de subsistência. Outro fator agravante é a diminuição da ocorrência de mutirões e do número de membros neles envolvidos. No entanto, é possível observar, nas três comunidades que praticam mais intensamente a agricultura voltada para a comercialização (Ivaporunduva, Maria Rosa e Sapatu), uma proporção maior de filhos co-residentes envolvidos com atividades agrícolas quando comparada com as demais comunidades estudadas (23,2%, 18,5% e 17,5%, respectivamente) (Tabela 1).
Análise multivariada
Para analisar as possíveis relações entre as diferentes características populacionais e socioeconômicas levantadas e, assim, descrever os padrões observados nas comunidades estudadas, foram aplicadas Análises de Componentes Principais (ACP) e de Agrupamento, a partir de matrizes de correlação e de covariância, gerando, portanto, duas análises distintas e complementares. Os resultados obtidos através da Análise de Componentes Principais (ACP) sobre matriz de covariância estão apresentados nas Tabelas 7, 8 e 9, e as relações entre as comunidades, com base nos 2 primeiros Componentes Principais (CP 1 x CP 2), estão expressas através de um gráfico bi-dimensional na Figura 4. Os dendogramas da Figura 5 apresentam os resultados da Análise de Cluster, sob duas estratégias distintas de agrupamento (Ward e Médias Dentro do Grupo), calculadas a partir dos cinco primeiros Componentes Principais.
Os gráficos das Figuras 4 e 5 indicam forte distinção entre as comunidades quilombolas estudadas. O primeiro gráfico, representando o morfo-espaço formado pelos dois primeiros componentes principais (69,95% da variância original), indica, claramente, esta distinção. O mesmo ocorre com as análises de cluster. As séries distribuem-se em três grupos principais. Um é representado pelas comunidades que estão às margens da rodovia SP-165 (André Lopes, Nhunguara e Sapatu), que apresentam um maior número de chefes de família que se declararam evangélicos, menor proporção daqueles que se declararam lavradores e que trabalham mais como diaristas em roça e como prestadores de serviços braçais diversos, além de serem mais susceptíveis a enchentes ocasionais. Outro grupo, mais afastado da rodovia SP-165, que inclui São Pedro, Galvão, Pedro Cubas e Pilões, apresenta maior número de chefes de família que se declararam católicos, se reconhecem como lavradores, plantam visando primordialmente a subsistência, dependem mais da atividade extrativista para a renda familiar e têm a legislação ambiental como maior problema na sua unidade produtiva. O terceiro grupo, representado por Ivaporunduva e Maria Rosa, distingue-se do anterior por praticar menos o extrativismo, obter sua renda principalmente através da venda de parte de sua produção agrícola, ter como maior problema na unidade produtiva a falta de apoio à produção e ao comércio e apresentar maior número de filhos co-residentes ligados à atividade agrícola.
Os resultados obtidos através da ACP sobre matriz de correlação são apresentados nas Tabelas 10, 11 e 12 e expressos graficamente na Figura 6.
Os dendogramas da Figura 7 apresentam os resultados das análises de clusters calculadas a partir dos cinco primeiros Componentes Principais.
Os gráficos das Figuras 6 e 7 indicam as correlações entre as comunidades quilombolas estudadas. O gráfico da Figura 6 representa o morfo-espaço formado pelos dois primeiros componentes principais (52,07% da variância original). Os resultados assemelharam-se àqueles da ACP sobre covariância, à exceção das comunidades de Nhunguara e Pilões. Antes alocadas em grupos distintos, agora compõem um quarto grupo. Dessa forma, é possível que ambas exibam características semelhantes aos três grupos distintos que se mantêm na análise de correlação e, por isso, se comportariam como um tipo de centróide. A divisão entre esses três grupos mostrou-se mais definida, com André Lopes e Sapatu constituindo um mais relacionado às fontes de renda favorecidas pela proximidade da rodovia, ao maior contingente de chefes de família evangélicos e aos problemas do sistema produtivo voltados à ameaça de enchentes e da construção de barragens. O outro, formado por Galvão, Pedro Cubas e São Pedro, estão mais relacionados com a agricultura para fins de subsistência e com o extrativismo. Por fim, Maria Rosa e Ivaporunduva assemelham-se por possuir principalmente uma maior proporção de famílias que dependem da venda da produção agrícola para obtenção de renda. Os dendogramas da Figura 7 diferem da análise de cluster da Figura 5 justamente por ter, como discutido anteriormente, relacionado Nhunguara mais às comunidades afastadas da rodovia e que dependem mais do extrativismo do que a André Lopes e Sapatu, suas vizinhas.
Os resultados mostraram, de forma geral, que as comunidades se assemelham e se distinguem através de características socioeconômicas facilmente identificáveis. As diferentes fontes de renda obtidas e as religiões professadas pelos chefes de família estão fortemente relacionadas à distancia das comunidades em relação à rodovia SP-165. Aquelas mais próximas possuem maior contingente de evangélicos e fontes alternativas de renda, enquanto as mais afastadas possuem maioria de católicos e são mais dependentes da agricultura, dos benefícios governamentais e do extrativismo. A finalidade da produção agrícola também difere entre as comunidades, e os problemas com a produção agrícola estão fortemente associados a essa variável. Enquanto as comunidades que plantam mais para o comércio são limitadas principalmente pela falta de apoio financeiro à atividade agrícola e ao escoamento da produção, aquelas que dependem mais da agricultura para sua subsistência, normalmente baseada no sistema de corte e queima, são mais limitadas pelas restrições impostas pela legislação ambiental em relação ao corte da vegetação nativa para o cultivo.
DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nos resultados apresentados, é possível fazer algumas considerações que expressam o cenário atual da agricultura praticada pelas comunidades quilombolas estudadas. Um aspecto importante a ser considerado é a baixa densidade populacional na região (Tabela 1), que, somada à presença abundante de florestas secundárias e cursos d'água, favorece a prática sustentável da agricultura de corte e queima, como apontado por Gómez-Pompa et al., (1987), Warner (1991) e Kleinman et al. (1995). No entanto, é evidente o processo de intensificação agrícola e a conseqüente erosão do sistema tradicional de corte e queima praticado pelos quilombolas das comunidades estudadas. Processo parecido foi observado por Cramb (2005) em países do sudeste da Ásia. O autor constatou que, em comunidades com menor acesso ao mercado, a dependência da produção agrícola para subsistência era maior. Assim, períodos mais longos de pousio (8-10 anos) também eram mantidos. Por outro lado, as duas comunidades que apresentavam maior crescimento populacional e acesso ao mercado dependiam mais da produção de cultivares com maior valor econômico, além de precisarem buscar outras formas de uso do solo, como pastagens para animais de corte. A menor disponibilidade de terra, nesses casos, forçava a intensificação das práticas agrícolas com períodos menores de pousio (2-3 anos), ou mesmo, sua inexistência, comprometendo a sustentabilidade do sistema.
A configuração da pirâmide demográfica das comunidades quilombolas estudadas sugere taxas significativas de natalidade e número expressivo de jovens adultos que migram para centros regionais próximos, como a cidade de Registro, ou para grandes metrópoles, como São Paulo e Curitiba, em busca de melhores condições de vida e oportunidades de estudo e trabalho
Em relação à escolaridade, foi demonstrado anteriormente que a taxa de analfabetismo entre os chefes de família das comunidades estudadas é semelhante à média da população negra brasileira, registrada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2000), de 31,5%, e superior à média nacional, de 19,4%. E, entre os que possuem algum grau de escolaridade, a grande maioria se resume ao ensino fundamental incompleto. Esse padrão pode estar relacionado ao fato de que as escolas presentes nas comunidades oferecem somente as quatro primeiras séries do ensino fundamental. Para cursar as séries seguintes, o aluno precisa se deslocar para Itapeúna, bairro nos arredores de Eldorado. Já do total de crianças em idade escolar, foi detectado que 98% estavam freqüentando a escola, um percentual superior à média de 94,5% registrada pelo IBGE (2000) para a população brasileira dentro dessa faixa etária, e de 91,9% para a população negra. Alguns fatores podem explicar esse fenômeno, como a presença de escolas, pelo menos as que oferecem até a 4a série do ensino fundamental, em todas as comunidades estudadas, e a obrigatoriedade da freqüência escolar da criança para o recebimento de benefícios governamentais, como o bolsa-família. Se, por um lado, o acesso à escola não difere muito entre as comunidades estudadas, o mesmo não ocorre em relação às religiões nelas professadas. Nesse caso, a presença da rodovia SP-165 parece ter sido uma facilitadora da chegada e da instalação de igrejas evangélicas nas comunidades que ficam às suas margens, como André Lopes e Sapatu, ou com fácil acesso por estrada de terra, como Nhunguara. Essas três foram as únicas que apresentaram maior número de evangélicos em relação ao de católicos. Além dessas, apenas Pedro Cubas e Galvão possuem templos evangélicos já instalados e, por isso, entre as comunidades de maioria católica, foram as que apresentaram maior contingente de evangélicos. Mesmo naquelas em que a maioria é evangélica, todas as comunidades estudadas possuem capelas ou igrejas católicas. Esse processo de expansão do pentecostalismo vem ocorrendo de modo constante há pelo menos meio século, e se manifesta principalmente na parcela da população brasileira que apresenta renda e escolaridade inferiores à média nacional, na qual se insere a maioria de pretos e pardos do país (Mariano, 2004).
É possível notar que as comunidades quilombolas estudadas vêm passando por mudanças nos seus padrões de subsistência. A presença da rodovia SP-165 trouxe oportunidades de renda através de trabalhos associados ao turismo e ao artesanato e de acesso a centros urbanos próximos, tendo, dessa forma, facilitado o escoamento de produtos agrícolas. Tal facilidade vem estimulando os agricultores a priorizar o cultivo de espécies e de variedades mais comercializáveis. Associados à quantidade também crescente de provimento de subsídios e benefícios governamentais, esses fatores vêm contribuindo para o aumento da renda nas unidades domésticas. As dificuldades de abertura de novas roças, decorrentes das restrições ambientais impostas pela legislação, somam-se ao aumento de renda já mencionado, constituindo, assim, a principal equação causadora do abandono ou da diminuição das áreas destinadas à agricultura de corte e queima. A redução dessas áreas acaba por favorecer a intensificação agrícola por meio da redução do pousio e do aumento dos ciclos contínuos de cultivo (Metzger, 2002). Essa tendência pode ser responsável pelo declínio da fertilidade do solo, já que não permite a recomposição natural de matéria orgânica, a ciclagem de nutrientes e a fixação biológica de nitrogênio (Norman et al., 1984; Hölscher et al., 1997). Muitos quilombolas relataram durante as entrevistas, inclusive, uma série de evidências que atestam a perda de fertilidade do solo em áreas cultivadas de forma mais intensiva, evidenciada principalmente através do crescimento acelerado de capim e ervas daninhas, bem como a diminuição na produtividade agrícola dessas áreas. Frente a essas dificuldades, muitos agricultores quilombolas acabam por promover a intensificação do cultivo de espécies e variedades agrícolas nos jardins e quintais e em áreas próximas às residências, onde podem manejar melhor o solo na tentativa de reduzir a perda da fertilidade. Por outro lado, com a diminuição da importância da agricultura, as famílias das comunidades mais afastadas da rodovia SP-165, como São Pedro, Pedro Cubas e Galvão, têm mais dificuldades em obter trabalhos assalariados ou em vender sua produção agrícola. Por isso, essas famílias parecem depender mais do extrativismo como uma importante fonte permanente de renda.
As populações quilombolas, como outras populações tradicionais que praticam a agricultura, são consideradas mantenedoras da diversidade genética de várias espécies agrícolas. Porém, esse papel é muito mais dinâmico, pois elas também geram e amplificam a variabilidade num processo contínuo de experimentação e cultivo (Martins, 2005). Quando essas populações interrompem ou reduzem significativamente esse processo, pela erosão do sistema de coivara discutido acima, ocorre não só uma perda de variabilidade como também do processo co-evolutivo que a gera (Peroni e Hanazaki, 2002; Martins, 2005). Conseqüentemente, perde-se também muito das técnicas e do conhecimento ecológico associados à diversidade agrícola (Begossi, 2000). Com a simplificação do sistema de coivara e a redução da diversidade agrícola, é inevitável uma intensificação no processo de erosão do capital social associado ao trabalho agrícola, que acaba por tornar o sistema menos resiliente (Berkes e Folke, 2000) e, assim, mais propenso ao colapso. Um aspecto desse cenário é a diminuição de membros na unidade doméstica envolvidos com atividades agrícolas, além da redução de outras formas tradicionais de alocação de trabalho, como os mutirões, reduzindo significativamente a mão-de-obra disponível para essas atividades. Como apontado por Boserup (1965), a agricultura de corte e queima é uma adaptação altamente eficiente às condições onde o trabalho, e não a terra, é o fator limitante mais significativo na produção agrícola. No vale do Ribeira, são justamente as comunidades com maior grau de intensificação agrícola e com produção mais voltada para o comércio que apresentam o maior número de filhos auxiliando os pais na atividade agrícola. Assim, os filhos não só auxiliam na subsistência como também na renda domiciliar.
Mesmo assim, ainda é possível notar algumas tentativas de articulação social entre os agricultores na busca por estratégias alternativas de subsistência, tanto coletivas como individuais. Prova disso é o desenvolvimento de uma horta comunitária e uma unidade destinada ao desenvolvimento de um sistema agroflorestal em Pedro Cubas, e o cultivo de maracujá e de banana em São Pedro e Sapatu, respectivamente. Binam et al. (2004) identificaram algumas variáveis responsáveis pelo aumento da produtividade decorrente da iniciativa de alguns agricultores africanos que buscavam encontrar soluções para superar a ineficiência técnica e a erosão do sistema de coivara. Dentre essas, as mais relevantes foram: maior nível de escolaridade dos agricultores, melhor acesso ao crédito agrícola, acesso a regiões de solos mais férteis e articulação de grupos e associações. De forma semelhante, as estratégias desenvolvidas recentemente pelos quilombolas, como mencionado acima, podem ser o indício de uma rearticulação do capital social associada ao melhoramento do acesso ao crédito agrícola.
AGRADECIMENTOS
Somos gratos a todos os integrantes do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociência da Universidade de São Paulo (IB-USP), que nos auxiliaram na coleta, processamento e análise dos dados. À Cristina Adams, pelas valiosas críticas e sugestões a esse manuscrito. À Regina Mingroni Netto, pelo apoio institucional e moral, além do auxílio financeiro para as primeiras etapas de coleta através do projeto FAPESP 99/11698-0. Nossos agradecimentos a Luiz Covo Filho, pela reestruturação das planilhas de Access e pelo auxílio no processamento dos dados referentes ao censo. A Eloise Tonial, Henrique Ataíde e Mirella Crevellaro, pelo auxílio na coleta e sistematização dos dados. Somos gratos também ao Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, pelo apoio logístico, e à FAPESP, pelo apoio financeiro (Processo 05/00117-9). Por fim, agradecemos aos moradores das comunidades quilombolas, que receberam nossa equipe tão cordialmente e que continuam a nos auxiliar, fornecendo informações de extrema importância para o nosso estudo. Nosso trabalho seria impossível sem eles.
Recebido: 23/02/2008
Aprovado: 08/08/2008
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Apêndice
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Set 2010 -
Data do Fascículo
Ago 2008