A partir do século XVI, começou a ocorrer um processo histórico fundamental no mundo ocidental: as crescentes interconexões/relações interétnicas/violações ambientais, econômicas, sociais e culturais, que ligaram uma diversidade de biomas de paisagens naturais, antes desconhecidas, todas as riquezas da flora e da fauna, a grupos étnicos, ricos em recursos naturais. Essas diversidades foram perscrutadas e registradas em diferentes documentos manuscritos e impressos entre os séculos XVI e XIX (Gesteira, 2013). Variados tipos de fontes históricas foram legados por informantes, que investigavam, representavam e analisavam o chamado ‘Novo Mundo’, como é o caso da América portuguesa, onde nos deteremos. Esses informantes eram, por exemplo, administradores coloniais, militares, boticários, médicos, cientistas, religiosos jesuítas, franciscanos, carmelitas, entre outros (Kury, 2004).
Os modos como esses indivíduos enxergaram e se relacionaram com a natureza, sobretudo no território que veio a ser denominado de Brasil, são frutos de momentos históricos do passado que reverberam no presente. Podemos compreender, portanto, que a relação com a natureza, especialmente com as plantas, é historicamente construída. Mergulhar nessas historicidades possibilita dar visibilidade aos diferentes protagonismos, erros e acertos presentes na construção da história da ciência e também da história ambiental, sempre amalgamadas nos processos de dominação e de relações de poder/saber, que alimentam mercados e interesses de acumulação de capital, algo crescente nas histórias moderna e contemporânea da humanidade.
Os conhecimentos indígenas e os seus saberes sobre uso e aplicações de plantas nativas adentraram o mundo capitalista. A natureza e as plantas deixaram de ser apenas elementos espirituais curativos e de enfrentamento de doenças, para se tornarem recursos naturais que foram inseridos nas farmacopeias, entre os séculos XVI e XIX (Edler, 2006).
Pensar a história e a natureza na diversidade ambiental e étnica do Brasil, país que possui a maior biodiversidade do mundo, deveria ser, antes de tudo, valorizar os diferentes conhecimentos étnicos sobre os vegetais produzidos coletivamente por distintas populações e culturas, em diferentes momentos históricos, pois são saberes ancestrais, que enriqueceram a farmacopeia do Velho Mundo até os dias atuais (Apolinário, 2013).
Com o início da colonização, a compilação de receitas indígenas tornou-se uma necessidade, devido à raridade das drogas europeias. Assim, a história da medicina colonial e de sua farmácia não pode ser contada sem referência a esse conhecimento. Com a colonização dos territórios indígenas, denominados de América portuguesa, a Europa conheceu as virtudes da ampla gama de ervas brasileiras, assimiladas ao repertório médico ocidental (Domingues, 2001). Nas farmacopeias portuguesas e europeias, frutas, folhas, flores e lascas de plantas brasileiras, que serviam como alimento ou remédio, atestam o contínuo trânsito dos elementos da natureza tropical, valorizadas por sua ação terapêutica. No contexto da ilustração portuguesa, as inovações no campo da botânica, da química e da farmacologia deram novo impulso ao estudo da flora brasileira (Edler, 2013).
Segundo Bruno Silva (2013, p. 23), tornou-se destacável a classificação do mundo natural no século XVIII, “. . . onde o mundo dos gabinetes de história natural, dos jardins botânicos, das coleções e das grandes viagens substitui o mundo mitológico tão preponderante em centúrias anteriores”. Assim, das teorias propostas pelos filósofos da natureza, criaram-se descrições pormenorizadas da flora e da fauna em todos os seus aspectos: “Para haver classificação era necessária a observação e para, além disso, a descrição” (B. Silva, 2013, p. 23).
O mundo vegetal tem sido alvo de novos olhares científicos e historiográficos nas últimas décadas, mas a procura pela interpretação da produção de conhecimento data de muito antes do século XVIII – principalmente a partir da racionalidade deste século –, quando se levou também em consideração a inserção de diferentes agentes históricos nas práticas científicas, como forma de decolonizar os saberes/poderes universalistas eurocêntricos. Passou-se a valorizar a especificidade da atuação dos homens de ciência na Europa, assim como a travessia de fronteiras interétnicas nos espaços coloniais, com a circulação de pessoas, animais, plantas e as trocas de saberes científicos/universalistas/europeus com os saberes ancestrais indígenas, considerados também conhecimentos científicos, a partir dos lugares onde foram produzidos historicamente. Nos últimos anos, sob o ponto de vista da história da ciência e da história ambiental, pelo prisma dos conceitos de colonialidade e decolonialidade, tem sido possível construir as historicidades das ciências fundamentadas em diferentes significados atribuídos à mesma natureza por diferentes grupos humanos. A operação historiográfica viabiliza, através de diferentes epistemes, variadas maneiras de significar o meio natural (Duarte, 2008).
Para Paulo Henrique Martinez (2011), os historiadores que trabalham com a história e a natureza são confrontados pelas diferentes epistemes científicas gestadas no mundo moderno e pela detecção dos chamados ‘novos espaços’ e ‘novos mundos’, nos quais as escolhas humanas foram diversas e complexas com relação aos processos que tangenciam as relações positivas e negativas referentes ao manuseio e às interpretações das paisagens naturais. Contudo, as inegáveis influências do clima, da fauna e da flora precisam ainda ser perscrutadas nas operações historiográficas acerca de diferentes regiões e biomas do Brasil, além dos vários discursos que, historicamente, deixaram impressões sobre as paisagens naturais e suas riquezas, como a flora e seu poder de prover a existência humana nos aspectos alimentares e medicamentosos, verdadeiros patrimônios naturais. Para este autor, “. . . a natureza e os fatores sociais, culturais e históricos influenciam nossas escolhas até certo ponto, sem, entretanto, determiná-las em absoluto” (Buriti & Aguiar, 2008).
Como diz Ramon Alves Silva (2019, p. 47),
. . . atribuir à natureza o espaço de fonte de recursos é noção elementar dentro da economia capitalista ocidental. A dinâmica da economia moderna ensejou o setor produtivo o qual se realiza em uma exploração contínua da natureza. Isto é algo enraizado na era da modernidade, por isso a hipótese de que a crise ambiental é fruto de um processo histórico que pontua uma relação de dominação entre o ser humano e a natureza.
Desde o século XVI, essa dita dominação justificava-se:
. . . por questões de natureza econômica, associadas ao reconhecimento e à extração de matérias-primas e recursos naturais valiosos provenientes das colônias sul-americanas; por aspectos de natureza científica, relacionados com a evolução da ciência europeia e com a vontade de ordenar, classificar e nomear de acordo com os sistemas taxonômicos, de que o lineano era apenas um, todo o mundo conhecido dos europeus, bem como do prestígio e do lucro que adviriam se houvesse uma precedência francesa; e pressupunha, igualmente, interesses geopolíticos e hegemônicos, correlacionados com a concorrência entre potências europeias dominantes em nível global. A Inglaterra e a França protagonizam incontestavelmente os projetos imperiais de dominação política, econômica, científica sobre a América do Sul e sobre os territórios ibéricos
(Domingues, 2021, p. 5).
Segundo R. Silva (2019, p. 47),
Chega-se à conclusão primordial de que a natureza sempre foi um objeto de exploração dentro da racionalidade moderna. Então, não se pode pensar a natureza, economia ou mesmo os saberes sem interpelar a noção de poder que perpassa por toda a sociedade [com visão eurocêntrica, mercantilista e consumidora até a contemporaneidade].
Nos dias atuais, a natureza e os povos originários estão ameaçados continuamente no Brasil. Essa crise não surgiu de maneira repentina, mas sim como efeito de um processo histórico-relacional dominador e desrespeitoso entre o ser humano e a natureza, a partir da imposição do sistema-mundo/moderno/colonizador, como já asseveramos. Ambientalistas de todos os países salientam o momento crítico atual, com a disseminação da pandemia de Covid-19, que aniquilou milhares de vidas humanas por um projeto de poder mundial, com largos impactos ambientais, o qual direciona seus esforços e preocupações apenas em um único sentido: o de tornar a natureza um recurso lucrativo ao capital local e internacional, sem nenhuma sensibilidade às questões socioambientais em todo o planeta.
CIRCULAÇÃO DAS PLANTAS: HISTÓRIAS DE TRAVESSIAS DE FRONTEIRAS AMBIENTAIS, CULTURAIS E CIENTÍFICAS
Uma das necessárias histórias que se deve revisitar continuamente e que precisa receber visibilidade nos programas de pós-graduação no Brasil é a da circulação das plantas pelo sistema-mundo. Como diz Lorelai Brilhante Kury (2013), as grandes viagens e o estabelecimento de europeus e de africanos no Novo Mundo constituíram uma mudança de proporções extraordinária para a circulação de espécies entre os oceanos. Evidenciando as reflexões de Warren Dean (1991, p. 216):
As primeiras tentativas de colonização portuguesa ao longo da costa do Brasil foram marcadas pela introdução de um certo número de espécies de plantas e animais domesticados que se encontravam já aclimatados em Portugal ou nas suas ilhas atlânticas. Essas transferências foram determinadas num primeiro momento pelos preconceitos dos invasores – eles simplesmente não gostavam da comida dos tupi. O motivo era mesquinho, porém as consequências foram de enorme alcance. Essas espécies exóticas adaptadas diversificaram e aumentaram as fontes de nutrientes disponíveis para a população humana, permitindo assim um eventual aumento de sua densidade. Além disso, essas espécies e outras que se seguiram atuaram diretamente sobre os ecossistemas, modificando-os e, às vezes, simplificando-os drasticamente. O grande reino neotropical da natureza foi transformado para sempre.
O transporte das plantas ocorria tanto de forma involuntária quanto premeditada. O Brasil – antiga América portuguesa – esteve no centro de uma extensa rede de circulação de espécies vegetais, iniciada logo nos primeiros anos da colonização. O Império português cobria uma vasta extensão de colônias e estabelecimentos na América, na Ásia e na África. Muitos produtos consumidos hoje no Brasil chegaram à América ainda no século XVI. Do mesmo modo, vegetais originários da América do Sul apareceram em descrições da Ásia poucas décadas depois dos descobrimentos (Kury, 2013, p. 129).
Portugueses saíam com suas embarcações repletas de novos vegetais, como milho, batatinhas, ananás e mandioca. Também migraram da Europa para a América portuguesa plantas como a cana-de-açúcar, a banana, a laranja, entre outras. Assim, assevera Lorelai Kury (2013, p. 233):
Como se sabe, muitas plantas plenamente naturalizadas no Brasil atual têm sua origem em outros continentes, como a cana-de-açúcar, a manga, a jaca, o café e a carambola, entre muitas outras. Algumas delas entraram no Brasil pela via dos jardins botânicos, outras foram trazidas pelos navios negreiros, comerciantes e viajantes. Para que a naturalização ocorra é necessário que a nova planta encontre condições adequadas para seu desenvolvimento. Caso contrário, dependerá sempre do auxílio do homem para se manter e reproduzir. Em razão das afinidades climáticas, os destinos de muitas plantas africanas, europeias e asiáticas as levaram ao continente americano e as incorporaram ao cotidiano das populações. Essas mesmas afinidades agiram no sentido inverso e permitiram que da América muitas plantas passassem ao Velho Mundo.
Diante do exposto, e como revelado no trecho ora destacado, o conhecimento sobre os vegetais era a principal fonte de acesso ao mundo natural americano para os europeus, que paulatinamente se transformaram em consumidores dos saberes e fazeres farmacológicos, das potências curativas de remédios, assim como do patrimônio alimentar de homens e mulheres indígenas.
Como informa Juciene Ricarte Apolinário (2013), nos últimos anos, as investigações sobre as plantas, a ciência e a importância dos povos originários no Brasil constituíram-se por meio de necessários diálogos entre a história da ciência e a história indígena, da saúde, de doenças e de práticas mágico-curativas no passado e no presente (Apolinário, 2013, p. 181).
Discorrendo sobre as vivências e observações dos povos originários, os quais são gestados nas experiências práticas desses grupos étnicos, Gonzalo Aguilar Cavallo (2018) informa que
. . . constituem-se num dos pilares dos usos e manejos que os povos indígenas realizam da natureza, de suas terras e dos recursos naturais há séculos. Quando falamos de conhecimento indígena ancestral, não só nos referimos aos distintos saberes e sabedorias acumuladas através dos séculos de existência, mas, como também às formas distintas de ver o mundo, isto é, a visão do “bem viver” pela qual a existência humana é ressignificada nas cosmologias indígenas, sempre vinculadas à natureza
(Cavallo, 2018, p. 375).
É importante salientarmos que os indígenas sempre tiveram, e mantêm até os dias atuais, uma relação simbólica com os vegetais em seus territórios tradicionais, localizados em diferentes biomas brasileiros. Saberes e práticas curativas dos povos indígenas eram e são construídos tanto pelo empirismo prático quanto pelo experimentalismo, baseado na observação e na elaboração de complexos sistemas classificatórios do mundo natural.
As práticas médicas fincadas nas cosmologias não descartam o espírito científico presente nas ações indígenas. Tratá-las como conhecimentos menores, sem sistematização prática, ou como pré-científicas, é acreditar que existe um movimento ocorrido em etapas, até que se chegue ao desenvolvimento dito científico europeu, descartando outras formas de ciências, como as ancestrais. Este reducionismo sobre a diversidade de saberes é demasiadamente simplista (Lévi-Strauss, 1970). Há um caráter científico presente nas complexas práticas cotidianas dos povos indígenas, visto que existe um alto grau de especialização, empirismo e experimentação na domesticação de uma planta, na domesticação de um animal silvestre, na elaboração das técnicas que permitem o cultivo do solo ou na construção do saber que permite o uso terapêutico das plantas silvestres (Diamond, 2009).
A riqueza e a complexidade dos conhecimentos ancestrais indígenas a respeito do mundo natural foram utilizadas por religiosos, naturalistas, médicos e botânicos, entre os séculos XVI e XIX, porém esses saberes nem sempre foram creditados explicitamente nos textos de história da ciência e da medicina, seja nos períodos Colonial, Imperial ou na contemporaneidade. Na realidade, isso se deu porque a Europa se estabeleceu na Modernidade como o centro da racionalidade humana e o último estágio de uma história mundial, conferindo o lugar periférico e ‘primitivo’ aos outros povos, como os grupos étnicos da América portuguesa e da África. Tal racionalidade construiu uma moldura de poder centralizado na colonialidade, a qual se perfaz com a subalternização e a tentativa de silenciamento de qualquer manifestação advinda de práticas e saberes dos povos do outro lado das fronteiras epistêmicas (R. Silva, 2019, p. 49).
Não havia espaço para a diversidade de saberes.
A Modernidade dá dois caminhos aos diferentes, a uniformização ou a exclusão . . . . Só que essa uniformização ou aniquilação não se operam apenas em termos de violência física, agindo sobremaneira por meio de mecanismos sutis em todas as formas de existência do ser humano. E os próprios subalternos inseridos nesse sistema de poder racionalizam o seu modo de existir conformando-o com o padrão moderno/colonial ora imposto [como forma de agenciamento da sua própria história]
(R. Silva, 2019, p. 49).
Desde os primeiros contatos interétnicos, os colonizadores portugueses ficaram impressionados com a diversidade de plantas e a infinidade de usos estabelecidos para esses vegetais pelos povos indígenas contactados na América portuguesa. No entanto, a utilização de muitos vegetais pelos grupos étnicos foi criticada e condenada por indivíduos amparados nos conceitos cristãos, especialmente com relação ao uso de plantas com valores mágico-curativos. O tempo se encarregou de mostrar aos colonizadores a importância do imenso conhecimento ancestral indígena no trato com a natureza, principalmente dos vegetais oriundos de biomas tão diversos, como o Cerrado, a Caatinga, a Amazônia ou a Mata Atlântica (Apolinário, 2013, p. 182).
De fato, do século XVIII ao início do XIX, as investigações dos seguidores de Lineu que objetivavam a ampliação da história natural em toda a Europa, especialmente o domínio sobre as virtudes dos vegetais e as formas de uso, só foram possíveis com informantes indígenas de diferentes etnias. Muitos agentes foram decisivos para o registro dos conhecimentos ancestrais – missionários, cientistas, autoridades civis e militares –, os quais, deliberadamente, buscaram conhecer os usos indígenas das plantas para alimentação e curas de enfermidades (Apolinário, 2013, p. 182).
Segundo Leite (2013), desde a chegada dos primeiros jesuítas ao Brasil, sentiu-se a necessidade de produzir medicamentos para lidar com as doenças que foram assolando colonos e nativos. A falta de médicos autorizados obrigou os padres da Companhia de Jesus a construírem, ao lado de seus colégios, espaços destinados ao estudo e à produção de remédios, que eram produzidos com matéria-prima tirada da flora e da fauna. Contudo, o saber ao alcance dos padres era pautado num conhecimento sobre a natureza com bases europeias (Leite, 2013).
No cotidiano colonial da América portuguesa, era extremamente necessário adaptar as antigas receitas aos ingredientes encontrados na ‘nova’ natureza americana. Daí que as boticas brasileiras representavam grandes laboratórios de análise e estudo das virtudes das plantas, animais e minerais da natureza dos trópicos: “Além disso, por meio dos intelectuais da Companhia os saberes circularam de forma eficaz, a estrutura da própria Companhia de Jesus, disposta como uma rede, permitia que essa circulação fosse ainda mais eficiente”, especialmente sobre as plantas e seus usos aprendidos pelo povo Tupi do litoral da América portuguesa (Leite, 2013, p. 54).
Em 2013, foi lançado o livro que se tornou um clássico no tema história/natureza/história/plantas, intitulado “Usos e circulação das plantas no Brasil: séculos XVI ao XIX”, coordenado pela pesquisadora Lorelai Kury, com
. . . alguns ensaios sobre a História do Brasil, tendo as plantas por protagonistas. Plantas descritas em textos ou imagens, secas, em infusões, alimentares, corantes, fibrosas ou medicinais, mas sempre em transformação. Os horizontes de análise foram ampliados para abarcar mares, povos e floras que estão além de nossas fronteiras habituais. Os historiadores voltaram seus olhares para o reino das plantas, tão complexo quanto o império dos homens
(Kury, 2013, p. 4).
Os capítulos abordam diferentes temas, a saber:
. . . troca de vegetais no Império Português, as grandes rotas marítimas do Renascimento, o uso das plantas medicinais pelos padres da Companhia de Jesus, o universo da medicina holística dos séculos XVII e XVIII, a arte da cozinha e sua relação com as plantas do Brasil, as plantas nativas e os saberes dos indígenas coloniais, bem como sua apropriação pelo universo europeu, e a circulação das plantas pelos espaços da ciência e da história natural
(Kury, 2013, p. 4).
Neste livro, Leila Mezan Algranti (2013) informa que, desde os primeiros contatos dos portugueses com a natureza americana, nota-se um profundo interesse pela flora local, registrado nas crônicas e nos tratados científicos da época moderna. O aprendizado de técnicas e de práticas culinárias que resultou do intercâmbio cultural entre portugueses e adventícios foi intenso e marcou profundamente não só a vida dos colonos no Novo Mundo, mas também a dos demais habitantes do outro lado do Atlântico, uma vez que os portugueses transportaram para as demais partes de seu império muitas plantas comestíveis naturais do Brasil (Algranti, 2013, p. 138).
Algumas dessas espécies eram utilizadas como ‘comida de bordo’, a fim de servirem de sustento às tripulações no retorno à Europa ou para as que seguiam viagem até a África, como ocorreu com a mandioca. Outras foram introduzidas no cenário internacional, devido ao seu potencial comercial, como o caso do cacau e de várias plantas aromáticas, exportadas ao longo de todo o período colonial.
Quando se trata de compreender a circulação de plantas alimentícias em escala mundial, não se pode esquecer, entretanto, a importância do paladar e o seu significado na constituição de uma memória gustativa (Algranti, 2013, p. 139). No que toca à circulação de plantas entre o Novo e o Velho Mundo, vale lembrar que a relação entre saúde e alimentação é muito mais antiga do que geralmente supomos e que os vegetais sempre serviram a essas duas finalidades. A proposta de Algranti (2013, p. 140), portanto, é explorar a temática da circulação de plantas naturais do Brasil para outros países, entre os séculos XVI e XVIII, na perspectiva da história da alimentação, atentando para os motivos de sua divulgação e as formas de consumo.
QUAIS AS COLABORAÇÕES E AS NOVAS ABORDAGENS DO DOSSIÊ “NATUREZA E HISTÓRIA”?
A proposta do dossiê “Natureza e História”, publicado no Boletim Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, foi inspirada na realização do seminário “Plantas e História: conhecimento, usos e circulação”, organizado por Lorelai Kury, Ana Carolina Viotti e André Luís Lima Nogueira, na Fundação Oswaldo Cruz. Com o objetivo de seguir amadurecendo as reflexões sobre as plantas, em especial quanto à circulação e aos diferentes usos e apropriações, em perspectiva histórica e global, apresentamos os artigos a seguir. Nas últimas décadas, os debates sobre natureza e história desenvolveram-se na historiografia brasileira. “O mundo vegetal tem sido alvo de novos olhares, que buscam interpretar a produção de conhecimento, a inserção de diferentes agentes sociais nas práticas científicas, a especificidade da atuação dos homens de ciência” (Fiocruz, n. d.), os legados científicos e/ou tradicionais dos grupos étnicos, bem como a circulação de pessoas, animais e plantas ao longo dos últimos séculos.
O dossiê traz a diversidade de objetos de pesquisas que giram em torno das plantas, com perspectivas históricas, antropológicas, da história ecológica e dos estudos interespécies, com amplo recorte cronológico. Assim, apresentamos ao leitor investigações que têm as ‘plantas’, e, portanto, a natureza, enquanto protagonistas, assim como os seus usos e abusos nas relações socioeconômicas, políticas, culturais e científicas. Os artigos focam em temas como ambiente, circularidade, alimentação, saúde e práticas curativas, direcionando, com diferentes abordagens, os olhares para as relações entre as sociedades, a economia, a ciência e o mundo vegetal.
O artigo de Janaina Salvador Cardoso (2022) analisa como as árvores frutíferas tornaram-se fundamentais por seus diferentes usos. Os frutos fizeram parte da alimentação e de tratamentos contra febres, problemas estomacais, chagas, cálculos renais, picadas de cobra e outros males. Como a autora chama a atenção, tal percepção sobre o ananás era compartilhada por franciscanos e jesuítas de diferentes origens. Durante o período estudado por Cardoso, o ananás era recorrentemente mencionado por religiosos que estiveram no Brasil porque sua fruta era facilmente encontrada, tinha sabor agradável e era indicada para eliminar cálculos renais e os humores que prejudicavam a saúde.
Bruno Leite (2022), por sua vez, faz uma incursão sobre os processos de racionalização das práticas farmacêuticas nos colégios jesuíticos no Estado do Brasil. A partir da pesquisa “Catálogos breves e trienais da Companhia de Jesus”, identifica e analisa o número de boticas jesuíticas existentes nos colégios da Companhia de Jesus do Brasil, os boticários que ali trabalharam produzindo medicamentos, como esses profissionais obtiveram a sua formação manual pelo estudo de suas trajetórias, que tipo de medicamento foi ali produzido e, sobretudo, inventado e, por fim, qual a importância dessa produção para o sustento econômico dos padres na Província do Brasil. Leite mostra que os jesuítas tiveram grande importância na apropriação de saberes locais que foram empregados na construção de um conhecimento farmacêutico perpetuado no interior da ordem na América portuguesa e em toda a assistência de Portugal.
Breno Ferreira (2022) analisa como Alexandre Rodrigues Ferreira, José Bonifácio de Andrada e Silva, Manuel Galvão da Silva e João da Silva Feijó utilizaram esses conceitos no exame de aspectos relacionados a realidades locais de diferentes partes do Império português (Reino e colônias) de finais do século XVIII e início do XIX. O autor atenta para a compreensão, por parte desses naturalistas, de que a natureza teria leis próprias e de que seria necessária a intervenção do Estado para conservá-la, com o objetivo de possibilitar a exploração de produtos naturais.
Ricardo de Freitas (2022) apresenta uma discussão acerca da tradição médica hipocrático-galênica e correntes médicas emergentes, como a iatroquímica. O autor aponta para a especificidade de Portugal, onde essas escolas de pensamento médico teriam sido vistas pelos médicos mais como complementares do que como rivais. Ao analisar a utilização de plantas e minerais no tratamento das febres, Freitas se detém sobre como isso se refletiu na obra de João Curvo Semedo, um dos mais destacados médicos portugueses do período, chamando a atenção para o fato de que os usos e sentidos da apropriação de remédios químicos pela farmácia portuguesa não eram uniformes. Destaca-se que a prática não estava embasada apenas por livros e autoridades médicas, mas sobretudo pela prática cotidiana com enfermos e suas moléstias.
Tânia Pimenta (2022) analisa o uso de plantas por escravizados com a intenção de tratar doenças físicas ou espirituais e de amenizar ou resolver, por envenenamento, a exploração que sofriam no cativeiro. Através da pesquisa em periódicos, nos processos da Fisicatura-mor e na legislação pertinente, a autora buscou ampliar a compreensão sobre as condições de vida e sobre a agência dessas pessoas. Pimenta assinala que o uso das plantas por africanos e seus descendentes envolvia crenças religiosas, o que implicava mais um elemento de tensão com as autoridades médicas e governamentais.
Finalmente, André Felipe Cândido da Silva (2022) analisa a coevolução de insetos e patógenos com plantas domesticadas. Numa abordagem de longa duração, Silva argumenta como as pragas e as doenças representam eixos privilegiados de análise do histórico de conformação da ‘agricultura industrial’ como prática hegemônica no Ocidente. Assim, a partir da perspectiva de uma história agroecológica e do conhecimento científico, o autor atenta para as consequências ecológicas da simplificação de ecossistemas em direção a uma menor biodiversidade e para o acervo de saberes dedicados a conhecer e a intensificar a prática agrícola.
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Apolinário, J. R., & Pimenta, T. S. (2022). Natureza e História: produções e saberes sobre as plantas em processos de circularidades científicas e nas relações interétnicas no passado e no presente. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 17(1), e20220026. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0026
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Editado por
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Responsabilidade editorial: Jimena Felipe Beltrão
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Maio 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
05 Abr 2022 -
Aceito
06 Abr 2022