Acessibilidade / Reportar erro

As arqueologias afetivas na produção discente da Universidade Federal do Vale do São Francisco: desdobramentos históricos e interfaces teóricas na construção da Arqueologia no Sudeste e Sudoeste do Piauí

The affective archaeologies of the undergraduate production of Universidade Federal do Vale do São Francisco: historical developments and theoretical interfaces in the construction of Archaeology in the Southeast and Southwestern of Piauí

Resumo

No presente artigo, analisamos a construção da Arqueologia no sudeste e sudoeste do Piauí, no intuito de explicitar as condições e os desdobramentos que têm configurado um conjunto de práticas arqueológicas assentadas na interface entre ciência e afeto. Tratam-se das ‘arqueologias afetivas’, que podem ser identificadas em processos socialmente engajados de produção de conhecimento, catalisadas nos contextos dinâmicos de interações que foram constituídos no semiárido. Para concretização desse propósito, consideramos desde o início dos trabalhos arqueológicos que culminaram na criação do Parque Nacional Serra da Capivara, na década de 1970, até os eventos mais recentes, representados pela inserção da Arqueologia na expansão do ensino superior, com a criação do curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial, na Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), em São Raimundo Nonato, a partir de 2004. Nesse exercício, verificamos algumas sobreposições de cenários e, ao mesmo tempo, explicitamos as transversalidades com posicionamentos teóricos, metodológicos e políticos que se projetam a partir da realidade latino-americana.

Palavras-chave
Ensino de Arqueologia; História da Arqueologia; Afeto; Piauí

Abstract

In this article, we analyze the construction of archeology in the Southeast and Southwest of Piauí, in order to explain the conditions and developments that have configured a set of archaeological practices based on the interface between science and affection. These are ‘affective archeologies’, which can be identified in socially engaged processes of knowledge production, catalyzed in the dynamic contexts of interactions constituted in the semiarid. To achieve this purpose, we have considered from the beginning of the archaeological works that culminated in the creation of Parque Nacional Serra da Capivara, in the 1970s, until the most recent events, represented by the insertion of archeology in the expansion of higher education, with the creation of Archeology and Heritage Preservation graduate course, at the Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), in São Raimundo Nonato, starting in 2004. In this exercise, we verified some overlapping of scenarios and, at the same time, we explained the transversalities with theoretical, methodological, and political positions projected from the Latin American reality.

Keywords
Teaching Archeology; History of Archeology; Affection; Piauí

INTRODUÇÃO

Neste artigo, analisamos a construção da Arqueologia no sudeste e sudoeste do Piauí. Temporalmente, consideramos desde a chegada das(os) pesquisadoras(es) na região a partir da década de 1970, com os processos que culminaram na criação do Parque Nacional Serra da Capivara (PNSC), até as repercussões da instalação, em 2004, do curso de bacharelado em Arqueologia e Preservação Patrimonial da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), na cidade de São Raimundo Nonato – intitulada de ‘capital da Arqueologia do Piauí’1 1 Título conferido pela Lei Estadual n. 6.224, de 26 de junho de 2012, de autoria do deputado estadual Fábio Novo, como parte das comemorações dos 100 anos de criação do município de São Raimundo Nonato, ressaltando a sua localização estratégica, no perímetro do Parque Nacional Serra da Capivara. . No exercício, partimos de uma posição diferenciada de observação e ação, que é nossa atuação como docentes da graduação. Desse modo, estamos envolvidos diretamente na formação de arqueólogas(os), participando ativamente em alguns dos direcionamentos que serão expostos na ocasião. No âmbito de nossas próprias experiências, nas relações cotidianas com as(os) discentes e colegas, em conversas de corredores ou em propostas de pesquisa, extensão e trabalhos de conclusão de curso (TCC), ou ainda nos trânsitos pela cidade, por instituições e comunidades, começamos a registrar que categorias como ‘arqueologia’, ‘patrimônio’ e ‘arqueólogas(os)’ fizeram parte das vivências que se organizaram nas últimas décadas, sempre com um sentido muito pessoal para cada um.

Nessa conjuntura, nosso argumento é de que, sob tais condições, fermentaram-se outras orientações para as práticas arqueológicas, apoiadas em uma interface entre conhecimento científico e afeto. Assim, buscamos refletir sobre as conexões estabelecidas entre ciência, sociedade e Arqueologia, avaliando, principalmente, os desdobramentos relacionados com um projeto nacional de interiorização do ensino superior e suas consequências no contexto local. Para organização de nossas ideias, inicialmente refletimos sobre o lugar das afetividades nos horizontes teóricos abertos nas últimas décadas, atrelados às discussões críticas que envolvem a composição da ‘Arqueologia moderna’ e da própria ideia de ‘patrimônio arqueológico’. Depois, realizamos uma incursão na história do sudeste e sudoeste do Piauí, considerando os eventos atrelados com a institucionalização da Arqueologia, catalisados nos esforços que culminaram na criação e na gestão do PNSC. Esse é o pano de fundo no qual se situa a implantação do curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial da UNIVASF, abordado através dos vieses que orientaram a expansão das universidades no Brasil, em compasso com os elementos pertinentes ao planejamento e ao funcionamento da graduação.

Na sobreposição desses cenários, apresentamos alguns contornos que podem ser sintetizados e operacionalizados sob o termo de ‘arqueologias afetivas’, observados nas monografias que perfazem os TCC das(os) discentes (Mageste, 2019aMageste, L. E. C. (2019a, maio 6-10). O Laboratório de preservação patrimonial da UNIVASF. Simpósio de Arqueologia e Patrimônio do LAPA-UNIVASF, São Raimundo Nonato, Piauí., 2019bMageste, L. E. C. (2019b). As Arqueologias Afetivas da UNIVASF. Conferência apresentada na II Semana de Arqueologia da UFPE, Recife.; Mageste et al., 2020Mageste, L. E. C., Macedo, G. S., Paes, E. L. C., & Ferreira dos Santos, C. E. (2020). As arqueologias de São Braz do Piauí: Apontamentos iniciais sobre as narrativas e usos dos bens arqueológicos no presente. Cadernos do Lepaarq, 17(34), 164-182. https://doi.org/10.15210/lepaarq.v17i34.19412
https://doi.org/10.15210/lepaarq.v17i34....
). Tratam-se de pesquisas marcadas pela interculturalidade, vinculadas com trajetórias históricas que inspiram a ressignificação dos propósitos da disciplina e o tensionamento de suas fronteiras. Por isso, não se restringem ao estudo do passado ou das coisas materiais, mas se abrem para múltiplas temporalidades e experiências. Conforme percebemos, nas interfaces com o afeto, outras ‘arqueologias’ se configuram: ontologicamente associadas aos problemas da vida e preocupadas com suas soluções, encaram realidades incômodas e/ou familiares, passíveis de paixão e de dor. De forma plural, abraçam as afetividades como molas propulsoras para a produção de conhecimento socialmente contextualizado e potencialmente transformador.

AFETOS, ARQUEOLOGIAS E PATRIMÔNIOS: PROVOCAÇÕES TEÓRICAS E POLÍTICAS

Os debates sobre os afetos têm angariado atenções no âmbito daquilo que se convencionou chamar de ‘virada afetiva’, no escopo das avenidas pavimentadas pelas ‘viradas ontológicas’ que marcaram os horizontes das Ciências Humanas e Sociais durante a década de 1990. Pellini (2018)Pellini, J. R. (2018). Archaeology of affection. In C. Smith (Ed.), Encyclopedia of global archaeology (2 ed., pp. 1-9). Springer International Publishing. nos alerta que não existe consenso sobre o que significa afetar e ser afetado nas pesquisas que se dedicam ao assunto. Argumenta que os afetos não podem ser entendidos somente como fenômenos irracionais, conduzidos por emoções purificadas de qualquer tipo de julgamento ou intenção, mas sim de maneira relacional. Entre uma diversidade de definições, podemos concordar que falamos de afetos para mencionar as capacidades corporais e pessoais de afetar e de ser afetado, vinculadas com as possibilidades de ação de um corpo se envolver e se conectar com a diversidade de elementos e associações que compõem a sua existência. Articulam, portanto, memória, história e experiência. Os afetos podem ser expressos de forma involuntária ou inconsciente, de modos não discursivos, mas sempre ligados com a construção de uma autopercepção do sentimento de estar vivo e suas repercussões (Clough, 2007Clough, P. T. (2017). Introduction. In P. T. Clough & J. Halley (Orgs.), The affective turn: Theorizing the social (pp. 1-33). Duke University Press.).

Nesses termos, constatamos que os afetos foram desconsiderados na fundamentação de uma ‘Arqueologia moderna’, a qual priorizou, durante a maior parte de sua história, uma realidade material objetiva, compartimentada, sem vida, sendo, por isso mesmo, purificadora no tocante às influências dos desejos e caprichos humanos, bem como da atuação de outras agências. Tal premissa encontra ressonância nas discussões levantadas por movimentos intelectuais anticoloniais e anticapitalistas, que encaram a modernidade como responsável por perpetuar opressões étnicas, raciais e de gênero, as quais moldaram a base de projetos de colonização de outros povos e reprodução do capitalismo, que não findaram com as políticas de descolonização dos séculos XIX e XX (Ballestrin, 2013Ballestrin, L. (2013). América latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, (11), 89-117. https://doi.org/10.1590/S0103-33522013000200004
https://doi.org/10.1590/S0103-3352201300...
). Pelo contrário, tornaram-se mais sofisticadas, com instrumentos de controle das maneiras de experimentar e conhecer o mundo. Na modernidade, foi consolidada uma narrativa evolucionista, que situou o homem branco, europeu e heterossexual no centro de uma história única. A sua jornada de ‘conquistas’ em direção à civilização ocidental foi transformada em parâmetro universal, constituindo os enquadramentos firmados no bojo do projeto colonial, de forma a reificar uma hierarquia entre dominadores e dominados (Mignolo, 2008Mignolo, W. D. (2008). Desobediência epistêmica: A opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, (34), 287-324.).

Essa conjuntura reflete aquilo que Quijano (1993)Quijano, A. (1993). “Raza”, “etnia” y “nación” en Mariátegui: Cuestiones abiertas. In R. Forgues (Org.), José Carlos Mariátegui y Europa: el otro aspecto del descubrimiento (pp. 757-775). Empresa Amauta. denominou de colonialidade, conceito aprofundado posteriormente por Mignolo (2008Mignolo, W. D. (2008). Desobediência epistêmica: A opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, (34), 287-324., 2017)Mignolo, W. D. (2017). Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32(94), 1-18. https://doi.org/10.17666/329402/2017
https://doi.org/10.17666/329402/2017...
. Especificamente, esses autores defendem que a colonialidade do poder, do ser e do saber é a face oculta da modernidade, responsabilizando-se pela produção de diferenças que servem de justificativa para a inferiorização e a colonização de povos e culturas que destoem das expectativas universais criadas (Mignolo, 2017Mignolo, W. D. (2017). Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32(94), 1-18. https://doi.org/10.17666/329402/2017
https://doi.org/10.17666/329402/2017...
). Desse modo, um produto do binômio modernidade e colonialidade é a violência epistêmica, como resultado dos esforços para que determinadas visões mais compatíveis com os propósitos da modernidade prevaleçam sobre as outras. Relaciona-se, portanto, com a produção e apropriação de conhecimento, onde verifica-se a aniquilação de epistemes distintas, consideradas ‘selvagens’ ou ‘primitivas’. Por meio de instrumentos variados, com especial destaque para a ciência, os parâmetros universais ocidentais são impostos sobre os colonizados, que têm suas formas de conceber o mundo interpretadas a partir das ideias de atraso e subdesenvolvimento (Tirado, 2009Tirado, G. P. (2009). Violência epistémica y descolonización del conocimiento. Sociocriticism, 24(1-2), 173-201.). As epistemologias alternativas são, assim, negadas, utilizando as suas alteridades, subjetividades e afetividades como argumentos para o extermínio de olhares destoantes e a persistência do domínio colonial.

Particularmente no contexto latino-americano, a Arqueologia corroborou a lógica de exclusão e controle, servindo para romper com os laços de vida entre as sociedades e os materiais agrupados sob o termo de registro arqueológico. Para essa conexão, foi rechaçada toda uma variedade de significados ontológicos e relações epistemológicas em prol da consagração de ideias de patrimônio explicitamente comprometidas com os projetos políticos de uma memória nacional (Gnecco, 2009Gnecco, C. (2009). Caminos de la Arqueología: De la violencia epistémica a la relacionalidad. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 4(1), 15-26. https://doi.org/10.1590/S1981-81222009000100003
https://doi.org/10.1590/S1981-8122200900...
). Defendidos como um projeto de Estado e, na maioria dos casos, desvinculados dos interesses imediatos dos grupos com os quais afetivamente se relacionam, Arqueologia e patrimônio arqueológico operam por meio de dicotomias que neutralizam outras organizações epistêmicas: rupturas entre o passado e o presente, onde as narrativas sobre um tempo remoto prevalecem sobre as situações da contemporaneidade; entre sujeitos e objetos, com as qualidades da vida, da ação e da intepretação reduzidas somente aos primeiros, de preferência os pesquisadores e, finalmente, entre a política e a ação, onde a produção de discursos multiculturais prevalece sobre a intervenção social e o enfrentamento do poder.

Essas assimetrias persistem através daquilo que podemos chamar de discursos autorizados sobre o patrimônio – expressão problematizada por Smith (2006)Smith, L. (2006). Uses of Heritage. Routledge. e Smith e Waterton (2009)Smith, L., & Waterton, E. (2009). Heritage, communities and archaeology. Gerald Duckworth and Co., para o contexto britânico, mas com ressonância explicativa para aspectos conjunturais da realidade brasileira (cf. Fonseca, 2017Fonseca, M. C. L. (2017). O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Editora UFRJ.; Bezerra, 2017Bezerra, M. (2017). Teto e afeto: Sobre as pessoas, as coisas e a arqueologia na Amazônia. GKNoronha.). Para as autoras, trata-se do conjunto de práticas que envolvem a patrimonialização de determinados bens, com a sua institucionalização, que acontece necessariamente sob vias de seleção e exclusão. Na construção dos discursos que sustentam essas operações, o foco recai sobre os seus aspectos tangíveis, valorizados em termos de autenticidade e historicidade, sendo equiparados a expressões de identidade. Na prática, isso gera duas consequências mais evidentes.

A primeira é o compromisso do discurso autorizado sobre o patrimônio de organizar uma narrativa coerente, a partir de um conjunto de evidências físicas que comprovariam a existência, no plano objetivo, da ideia de nação, camuflando, com isso, o seu caráter inventado e político. Isso significa a busca por naturalizar, portanto, as relações de poder. A segunda consequência é a demanda por uma categoria específica de especialistas para lidarem com esses testemunhos, sempre sob um risco de perda, o que ameaçaria a integridade da própria nação (Gonçalves, 1996Gonçalves, J. R. S. (1996). A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Editora UFRJ/IPHAN.). O quadro culminou na criação de estratégias de preservação e conservação chanceladas pelo Estado e que reservou a operacionalização do patrimônio para um grupo restrito de profissionais. Simultaneamente, colocou na clandestinidade perspectivas alternativas. De fato, os sujeitos e grupos, fora dos espaços privilegiados por onde transitam os especialistas, geralmente não apresentam um papel ativo na formulação de políticas públicas, sendo encarados somente como uma audiência que, no máximo, pode aprender a manejar as referências patrimoniais já constituídas nos termos desejados pelos ‘entendidos no assunto’ (Smith & Waterton, 2009Smith, L., & Waterton, E. (2009). Heritage, communities and archaeology. Gerald Duckworth and Co.; Bezerra, 2017Bezerra, M. (2017). Teto e afeto: Sobre as pessoas, as coisas e a arqueologia na Amazônia. GKNoronha.).

No Brasil, a institucionalização do patrimônio tornou o seu manejo quase sempre limitado para os intelectuais a serviço do Estado, a maioria proveniente de classes médias e altas, com o trânsito facilitado nos meios onde os discursos autorizados são elaborados e ratificados: universidades, museus, centros culturais, entre outros (Fonseca, 2017Fonseca, M. C. L. (2017). O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Editora UFRJ.). Em tais condições, as práticas entendidas como legítimas foram consagradas e reproduzidas, delimitando desde o alcance de termos como ‘arqueologia’ e ‘patrimônio’, até suas consequências atinentes aos processos de gestão e produção de conhecimentos. Certamente, foi uma operação possível por meio da supressão dos afetos e de outros pontos de vista no trabalho com a memória e a materialidade. Ao nosso ver, essa lógica começou a ser desafiada com mobilização social e políticas públicas incipientes, voltadas para a democratização dos espaços, que serviram ao longo da maior parte de nossa história como veículos para a reprodução da violência epistêmica, como é o caso das universidades e, especificamente, da Arqueologia enquanto disciplina e trabalho.

Para o recorte que analisamos no momento, essa percepção explicitou para nós a necessidade de transitar fora dos enquadramentos impostos pelos discursos autorizados sobre o patrimônio. Desse modo, buscamos abordar arqueologias, no plural, como vértices entre diferentes sistemas de conhecimento e temporalidades, em torno das quais se organizam afetos, narrativas, memórias, materiais, sensações, interesses e saberes (Hamilakis, 2015Hamilakis, Y. (2015). Arqueología y sensorialidad: Hacia uma ontología de afectos y flujos. Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica, 9(1), 31-53. https://doi.org/10.31239/vtg.v9i1.10579
https://doi.org/10.31239/vtg.v9i1.10579...
; Pellini, 2018Pellini, J. R. (2018). Archaeology of affection. In C. Smith (Ed.), Encyclopedia of global archaeology (2 ed., pp. 1-9). Springer International Publishing.). Trazendo para o contexto discutido no presente artigo, experimentamos as realidades e demandas do semiárido como professores, pesquisadores e moradores, ao mesmo tempo em que diversos segmentos da sociedade de São Raimundo Nonato e, principalmente, parte de nossas(os) discentes e seus familiares vem sentindo a ciência e transmutando-a em afetos por mais de 50 anos2 2 Cabe frisar que nossa escolha pela utilização de pronomes femininos, bem como a exposição de pesquisas realizadas por mulheres, especialmente as monografias que serão discutidas mais adiante, não devem ser entendidas como aspectos relacionados com a indicação de que as ‘arqueologias afetivas’ estão atreladas e/ou condicionadas por traços da ‘personalidade feminina’. Assim como Mead (2000), acreditamos que as correlações entre ‘sexo e temperamento’ não são tão pueris como sugeriam alguns autores do século XIX. Deste modo, a postura que adotamos, além de estar em consonância com os dados quantitativos, respalda-se no protagonismo feminino no processo de institucionalização da Arqueologia no sudeste e sudoeste do Piauí. Certamente, reconhecemos a necessidade de extrapolar o quadro inicial, que será apresentado em abordagens futuras, para explorar as intercessões dos recortes de gênero, raça e classe no enquadramento de sociabilidades, dados e reflexões. . São as ‘arqueologias afetivas’ produzidas entre esses fluxos que procuraremos identificar.

ENTRE A DOR E A ESPERANÇA: A FORMAÇÃO DA CAPITAL DA ARQUEOLOGIA NO PIAUÍ

São Raimundo Nonato iniciou o seu processo de transmutação em ‘capital da Arqueologia do Piauí’ com a chegada da Missão Arqueológica Franco-Brasileira no estado, no início da década de 1970. Com a coordenação de Niède Guidon, os trabalhos aplicados catalisaram o potencial científico do espaço que hoje compõe PNSC. O Parque ocupa uma área de aproximadamente 130.000 hectares, distribuídos pelos municípios de Coronel José Dias, João Costa, Brejo do Piauí e São Raimundo Nonato (Figura 1). Possui cerca de 1.300 sítios arqueológicos registrados, de tipologias variadas, que constituem um conjunto amplo de evidências, responsável por documentar as ocupações humanas na área por uma longa duração, superior a 30.000 anos antes do presente, de acordo com as equipes envolvidas nos estudos (Figura 2) (Guidon, 2007Guidon, N. (2007). Parque Nacional Serra da Capivara: Modelo de preservação do Patrimônio arqueológico ameaçado. Revista do Instituto Histórico e Artístico Nacional, (33), 75-93.; Boëda et al., 2014Boëda, E., Clemente-Conte, I., Fontugne, M., Lahaye, C., Pino, M., Felice, G. D., . . . Douville, E. (2014). A new late Pleistocene archaeological sequence in South America: The Vale da Pedra Furada (Piauí, Brazil). Antiquity, 88(341), 927–955. http://dx.doi.org/10.1017/S0003598X00050845
https://doi.org/10.1017/S0003598X0005084...
; Lourdeau, 2019Lourdeau, A. (2019). A Serra da Capivara e os primeiros povoamentos sul-americanos: Uma revisão bibliográfica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 14(2), 367-398. https://doi.org/10.1590/1981.81222019000200007
https://doi.org/10.1590/1981.81222019000...
).

Figura 1
Sudeste e sudoeste do Piauí no contexto dos parques nacionais e campus Serra da Capivara/UNIVASF.
Figura 2
Diferentes olhares sobre o PNSC: A) Pedra Furada; B) Baixão das Andorinhas; C) panorâmica com serra Branca ao horizonte; D) um exemplar das centenas de pinturas rupestres que compõem o sítio arqueológico Boqueirão da Pedra Furada, conhecida popularmente como ‘cena do beijo’ e ‘dos namorados’.

Desde a chegada das(os) pesquisadoras(es), o local chamou a atenção pela sua notável diversidade biológica, geológica e arqueológica, que serviu de justificativa para ações preservacionistas e educacionais mais incisivas. Em termos históricos, em 1978, foi solicitada a criação de unidade de conservação, culminando na instituição do PNSC em 1979, durante a ditadura civil-militar. Mais tarde, em 1986, com a continuidade das investigações, participantes da Missão Francesa e colaboradoras(es) de outras universidades e centros de pesquisa nacionais e estrangeiros criaram a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), comprometida em combater a presença de posseiros, a caça ilegal e o desmatamento, além de zelar pelo patrimônio arqueológico local. Em 1991, o Parque recebeu o título de ‘patrimônio mundial da humanidade’ pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), projetando-se definitivamente como área estratégica para o desenvolvimento regional através do turismo e investimento científico (Guidon, 2007Guidon, N. (2007). Parque Nacional Serra da Capivara: Modelo de preservação do Patrimônio arqueológico ameaçado. Revista do Instituto Histórico e Artístico Nacional, (33), 75-93.).

Paralelamente, a consolidação da unidade de conservação tornou-se justificativa para a desapropriação das pessoas que habitavam o perímetro demarcado. A comunidade Zabelê foi a mais impactada por esse processo, já que se localizava no epicentro do que veio a constituir o PNSC (Figura 3). Em compasso com a legislação, o povoado passou a ser encarado como uma ameaça à preservação da flora, da fauna e do extenso patrimônio arqueológico, sendo definitivamente removido em 1988. Na época dos acontecimentos, o Zabelê contava com cerca de 200 habitantes, os quais exploravam o território por meio de caça, agricultura e pecuária de subsistência. A maior parte das famílias constituía-se de posseiros, que, desde a segunda metade do século XIX, ocupavam terras devolutas (Godoi, 1999Godoi, E. P. (1999). O trabalho da memória: Cotidiano e história no sertão do Piauí. UNICAMP.). Tal situação tornou moroso o pagamento de indenizações, além de dificultar os cálculos para uma estimativa compatível com os desejos e as necessidades locais. Para complicar, muitos moradores ficaram sem terras para habitar, transferindo-se para a periferia de São Raimundo Nonato, ou mesmo migrando definitivamente para regiões mais distantes, como a cidade de São Paulo. Somente em 1997, os remanescentes do Zabelê foram assentados em terras situadas a 10 km de São Raimundo Nonato, intituladas atualmente como Novo Zabelê (J. Oliveira & Borges, 2015Oliveira, J. S., & Borges, J. F. (2015). Sociedade, arqueologia e patrimônio: As relações de pertencimento da Comunidade Zabelê com a área arqueológica do Parque Nacional Serra da Capivara (PNSC). História Unicap, 2(3), 108-121.).

Figura 3
Paisagens da comunidade do antigo Zabelê, em 1985 e 1986, em terras que hoje integram a área de preservação permanente do PNSC.

Vale ressaltar, nesse momento, que não é nosso intuito aqui esmiuçar os trâmites característicos da desapropriação, os quais podem ter a sua complexa rede de atores e intenções, acordos e violências, cronologia e imbricamentos observada em trabalhos como os de Godoi (1999)Godoi, E. P. (1999). O trabalho da memória: Cotidiano e história no sertão do Piauí. UNICAMP., Levy (2006)Levy, C. (2006). Gestão e usos do território: Conflitos e práticas sócio-espaciais no Parque Nacional da Serra da Capivara, Piauí, Brasil [Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas]., M. Sousa (2011)Sousa, M. S. R. (2011). Deslocamento forçado de posseiros e pequenos proprietários do Parque Nacional Serra da Capivara: Estratégia de proteção ambiental ou violação de direitos humanos. Revista do Mestrado em Direito, 5(2), 410-429. http://dx.doi.org/10.18840/1980-8860/rvmd.v5n2p410-429
https://doi.org/10.18840/1980-8860/rvmd....
, J. Oliveira (2014Oliveira, J. S. (2014). A Educação patrimonial como estratégia de Arqueologia Pública na área do Parque Nacional Serra da Capivara [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., 2016)Oliveira, J. S. (2016). Memória e patrimônio arqueológico: Vozes sertanejas na área do Parque Nacional Serra da Capivara [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Piauí]., J. Oliveira e Borges (2015)Oliveira, J. S., & Borges, J. F. (2015). Sociedade, arqueologia e patrimônio: As relações de pertencimento da Comunidade Zabelê com a área arqueológica do Parque Nacional Serra da Capivara (PNSC). História Unicap, 2(3), 108-121., Ribeiro (2015)Ribeiro, A. J. C. B. (2015). O Parque Nacional da Serra da Capivara e a urbanização de São Raimundo Nonato: Transformações socioespaciais no Piauí e suas repercussões no entendimento de Sertão [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco]., só para citar alguns exemplos. São incursões que estabelecem um cenário marcado por violência epistêmica, operante por meio de uma legislação e de um projeto científico que permitiram a constituição de um território arqueológico às custas de outros modos de vida, com o predomínio de uma forma de conhecimento e gestão sobre todas as demais, chancelada pelo Estado e operada por especialistas. Servem ao propósito de demarcar que, no semiárido piauiense, a organização da Arqueologia e de instituições científicas não aconteceu por vias pacíficas, mas no bojo de conflitos entre diferentes visões de mundo e acordos firmados na interface entre terra, família e interesse público. Conforme esboçaremos a seguir, essa amálgama não se restringiu ao ato de criação do PNSC, mas parece ter atravessado a construção do patrimônio arqueológico regional, revestindo-o também de afetividades que tornaram a sua manipulação e seu entendimento consequências da experiência de vida no contexto local, a partir da imposição, negociação e ressignificação dos valores nacionais conferidos aos seus atributos (in)tangíveis.

Os primeiros indícios sobre o assunto são oferecidos por J. Oliveira (2014, 2016)Oliveira, J. S. (2014). A Educação patrimonial como estratégia de Arqueologia Pública na área do Parque Nacional Serra da Capivara [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]. e J. Oliveira e Borges (2015)Oliveira, J. S., & Borges, J. F. (2015). Sociedade, arqueologia e patrimônio: As relações de pertencimento da Comunidade Zabelê com a área arqueológica do Parque Nacional Serra da Capivara (PNSC). História Unicap, 2(3), 108-121.. Os autores consideram que, nas primeiras visitas de Niède Guidon à região, seus principais aliados nos estudos foram justamente os habitantes da área, os quais ofereceram hospedagem, abriram picadas e prospectaram as serras, indicando sítios arqueológicos já conhecidos pela comunidade e oferecendo suas interpretações. Com o aprofundamento das investigações, participaram de escavações, laboratórios e ações preservacionistas. Com a criação do PNSC, o vínculo é reconfigurado, com o distanciamento das comunidades dos estudos e de um território que deixava de ser deles, para ser agora do Estado. Explicando melhor, J. Oliveira e Borges (2015, p. 116)Oliveira, J. S., & Borges, J. F. (2015). Sociedade, arqueologia e patrimônio: As relações de pertencimento da Comunidade Zabelê com a área arqueológica do Parque Nacional Serra da Capivara (PNSC). História Unicap, 2(3), 108-121. apontam que tal ‘cisão’ foi consequência de “. . . uma Arqueologia pautada na legislação patrimonial, que apresentava desacordo com as comunidades que praticavam a caça, o desmatamento e queimadas para o trabalho da agricultura”.

Se, por um lado, tal ruptura foi responsável por ressentimentos, por outro, representou uma esperança concreta de melhores condições de vida, a partir das ideias de patrimônio arqueológico e ambiental construídas pelas(os) especialistas. De fato, desde o início da sua atuação, as(os) estudiosas(os) relacionadas(os) com a Missão Francesa, posteriormente FUMDHAM, enquanto estabeleciam um rigoroso programa científico que assegurou a inserção do quadro local em debates de repercussão mundial – como a discussão da antiguidade e ocupação humana das Américas –, buscavam elaborar diversas estratégias de transformação social, com investimento na educação e na geração de empregos (Guidon, 2007Guidon, N. (2007). Parque Nacional Serra da Capivara: Modelo de preservação do Patrimônio arqueológico ameaçado. Revista do Instituto Histórico e Artístico Nacional, (33), 75-93.). O ponto de partida foi o empenho para que os achados arqueológicos evidenciados permanecessem na região sendo musealizados, incrementando a economia local, por meio do turismo científico (Pereira, 2019Pereira, L. C. (2019). Ferramentas da Memória: Musealização da Arqueologia em São Raimundo Nonato – PI [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].).

Com esses propósitos, foram criados, na década de 1990, em São Raimundo Nonato, o Museu do Homem Americano e o Centro Cultural Sérgio Mota, que constituem a sede da FUMDHAM. Já para a área do PNSC, foram dispensados esforços volumosos na viabilização da visitação turística, com abertura de mais de 400 km de trilhas e estradas, preparação de 170 sítios arqueológicos para visitação, sendo 16 adaptados para portadores de necessidades especiais (J. Oliveira, 2014Oliveira, J. S. (2014). A Educação patrimonial como estratégia de Arqueologia Pública na área do Parque Nacional Serra da Capivara [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].). Paralelamente à consolidação dessa infraestrutura, foram catalisados esforços para a melhoria dos indicadores do ensino básico e profissional e da divulgação do patrimônio arqueológico regional. Para isso, foram conduzidas experimentações pedagógicas, organizadas sob os preceitos da arte-educação (Buco, 2014Buco, C. A. (2014). O caso da Serra da Capivara, vinte anos de socialização do conhecimento através da arte-educação. Revista ALTER IBI, 1(1), 34-45.), focando-se na comunicação dos discursos sobre preservação patrimonial, consagrados institucionalmente e informados pelas narrativas produzidas nas pesquisas arqueológicas3 3 Alguns exemplos da empreitada referem-se à instalação, no início da década de 1990, dos Núcleos de Apoio a Comunidade, com a criação de cinco escolas com metodologias de aprendizagem específicas instaladas em torno do PNSC, e do Pró-Arte, em 2001, focado em formação continuada do público, arte e divulgação científica e realização de eventos culturais (Costa, 2011; Siqueira, 2014; Buco, 2014). (M. S. Costa, 2011Costa, M. S. (2011). Educação patrimonial no Parque Nacional Serra da Capivara – PI. [Trabalho de conclusão de curso, Universidade Estadual do Piauí].; Siqueira, 2014Siqueira, C. M. B. (2014). A educação patrimonial na Arqueologia Brasileira: Um estudo de caso no entorno do Parque Nacional Serra da Capivara [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].; Buco 2014Buco, C. A. (2014). O caso da Serra da Capivara, vinte anos de socialização do conhecimento através da arte-educação. Revista ALTER IBI, 1(1), 34-45.).

Também é importante mencionar que parte do público envolvido nas ações implementadas, desde 1990, passou a assumir, posteriormente, postos de trabalho nas incursões de campo, nos laboratórios e museus da FUMDHAM, que priorizou a inserção de pessoas da região. O mesmo viés foi adotado na administração do PNSC, com a contratação de mulheres das comunidades do entorno como agentes de portaria. De fato, a preocupação com a geração de alternativas econômicas para os povoados, que antes sobreviviam do manejo do território que hoje constitui a unidade de conservação, foi uma prerrogativa sempre presente nas iniciativas executadas. Isso fomentou ações voltadas para a capacitação de recursos humanos para pesquisa e turismo, acompanhadas de investimento em iniciativas ecologicamente sustentáveis, como a apicultura e a produção de cerâmica (Guidon, 2007Guidon, N. (2007). Parque Nacional Serra da Capivara: Modelo de preservação do Patrimônio arqueológico ameaçado. Revista do Instituto Histórico e Artístico Nacional, (33), 75-93.).

Assim, a Arqueologia apresentou-se como caminho para emancipação econômica, pelo menos para a parcela da população abordada direta e indiretamente nos projetos formulados pelas(os) especialistas. Concomitantemente, permitiu a fixação de outros aparelhos culturais na região, responsáveis por catalisar as atenções em torno do patrimônio arqueológico local e suas conexões com outras tipologias patrimoniais e temáticas (Siqueira, 2014Siqueira, C. M. B. (2014). A educação patrimonial na Arqueologia Brasileira: Um estudo de caso no entorno do Parque Nacional Serra da Capivara [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].). Para citar alguns exemplos, esse parece ser o caso do escritório técnico do Instituo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), instalado em São Raimundo Nonato em 2004, ou mesmo do Museu da Natureza, gerido pela FUMDHAM e inaugurado em 2018. Contudo, isso não significou uma alteração muito radical na estrutura de produção e gestão do conhecimento arqueológico, que permaneceu consonante com os discursos autorizados sobre preservação patrimonial.

Frente ao cenário esboçado, percebemos que, se, por um lado, as discussões sobre o povoamento da América têm estimulado a imaginação das(os) cientistas por décadas; por outro, na memória afetiva de parte da população impactada pela consolidação das práticas arqueológicas na região, persistem experiências e lembranças relacionadas com a desapropriação e com trabalhos de escavação; com a participação nos projetos sociais conduzidos pela FUMDHAM; ou mesmo com as ações de educação patrimonial conduzidas pelo IPHAN. Certamente, corremos o risco de deixar de fora nuances variadas dos processos citados. Porém, para os propósitos deste artigo, essas experiências servem ao objetivo de deixar explícito que falar de Arqueologia, em São Raimundo Nonato, pode invocar um arsenal complexo de experiências que transformou a história de vida de muitas pessoas. No semiárido, essa gênese fomenta binômios afetivos que equalizam contraditórios como: dor e esperança; exclusão e pertencimento; perda e compensação. Ao nosso ver, uma possibilidade de síntese entre esses apontamentos dialéticos emergiu com a criação do curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial, na UNIVASF. Em compasso com outras experiências brasileiras emergentes na década de 2000, inaugurou um novo desdobramento na história da disciplina na região, ao tornar o treinamento formal em Arqueologia um projeto de vida mais acessível, incorporando parte de um público até então excluído do espaço acadêmico.

EDUCAÇÃO COMO REDENÇÃO? DEMOCRATIZAÇÃO DA ARQUEOLOGIA NO ENSINO SUPERIOR

Desde 1996, com a aprovação da Lei n. 9.394, de 20 de dezembroLei Federal n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
, que estabeleceu as diretrizes e bases da educação nacional, bem como da Lei Federal n. 10.172, de 09 de janeiro de 2001Lei Federal n. 10.172, de 09 de janeiro de 2001. Estabelece o Plano Nacional de Educação. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10172.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
, que instituiu o Plano Nacional de Educação (2001-2010), a formatação de universidades públicas em regiões afastadas das grandes capitais foi considerada tática promissora para incentivar o crescimento do país e dirimir assimetrias no acesso ao ensino superior. Na década de 2000, o tema recebeu um tratamento mais incisivo, culminando na elaboração, por parte do Governo Federal, de políticas públicas comprometidas com a ideia de interiorização, como é o caso do Programa Expandir (2003), bem como do Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) (2007). Nesse movimento, podemos observar que, se, por um lado, o aumento do número de universidades visava conferir suporte para o estímulo econômico, por outro, confrontava-se com as qualidades específicas das realidades socioculturais de sua inserção, acompanhado pelas expectativas da sociedade civil, ao vislumbrar o acesso a essas instituições como direito social constituído (M. R. Costa, 2017Costa, M. R. S. (2017). Contextualizando expansão e interiorização no campo da Educação Brasileira. Revista Exitus, 7(1), 250-276. https://doi.org/10.24065/2237-9460.2017v7n3ID356
https://doi.org/10.24065/2237-9460.2017v...
). Na interface entre essas posições, germinaram diversas contradições decorrentes da persistência da colonialidade, ao mesmo tempo em que foram estabelecidas algumas condições para sua crítica.

Explicando melhor, para M. R. Costa (2017)Costa, M. R. S. (2017). Contextualizando expansão e interiorização no campo da Educação Brasileira. Revista Exitus, 7(1), 250-276. https://doi.org/10.24065/2237-9460.2017v7n3ID356
https://doi.org/10.24065/2237-9460.2017v...
, não é possível pensar em interiorização desvinculada do processo colonial, que inaugurou um contexto geopolítico de concentração de recursos e pessoal em pontos estratégicos do território, geralmente próximos ao litoral, de acordo com modelo português de exploração. Em uma perspectiva histórica, esses núcleos deram origem aos principais centros urbanos, que concentraram poder político e ditaram os projetos de desenvolvimento. De fato, com o advento da industrialização no país, a partir do século XX, acompanhada pela precarização das condições do trabalho agrícola, a centralização foi ainda mais estimulada com o fenômeno do êxodo rural. Nas grandes cidades, parte do contingente migrante engrossou as camadas mais pobres, ocupando subempregos e sendo alvo de preconceitos das classes médias e altas. O cenário foi fundamental para que o Estado priorizasse, em certa medida, a interiorização de serviços, atendendo aos desejos de uma elite incomodada com a presença dos migrantes na malha urbana. Na conjuntura, o discurso desenvolvimentista foi invocado como alternativa para o incremento da economia, de modo a angariar não só matérias-primas para exploração, mas também para a produção de uma mão de obra mais qualificada e barata. Foi justamente essa soma de fatores que tornou a educação um objetivo sempre presente nas medidas de expansão de serviços que aconteceram ao longo de nossa história recente (M. R. Costa, 2017Costa, M. R. S. (2017). Contextualizando expansão e interiorização no campo da Educação Brasileira. Revista Exitus, 7(1), 250-276. https://doi.org/10.24065/2237-9460.2017v7n3ID356
https://doi.org/10.24065/2237-9460.2017v...
).

Em nossa análise, tais movimentos não podem ser pensados de maneira desvinculada das diferentes etapas de aprofundamento do capitalismo no Brasil, isto é, do desenvolvimentismo típico dos anos 1950 – que atravessa os governos da ditadura civil-militar –, passando pelas investidas neoliberais emergente nos anos 1990 – com seus acordos e tensionamentos decorrentes do sequestro do Estado pela iniciativa privada – e pelo consequente sucateamento dos serviços públicos (Zitkosk et al., 2015Zitkoski, J. J., Genro, M. E., & Caregnato, C. E. (2015). Democratização da educação superior: Apontamentos para a valorização de experiências alternativas no contexto latino-americano. Revista de Ciências Humanas: Educação, 16(27), 56-71.; Souza, 2017Souza, J. (2017). A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Editora Leya.). Essas condições não foram acatadas passivamente, despertando, ao contrário, reações diversas: o incentivo à criação de universidades públicas tornou-se instrumento de capitalização política de elites locais em alguns contextos, reformulando o clientelismo para o sistema educacional brasileiro; paralelamente, atendeu expectativas entre camadas da população historicamente excluídas desses espaços, que se organizaram para reivindicar o acesso (Camargo & Araújo, 2018Camargo, A. M. M., & Araújo, I. M. (2018). Expansão e interiorização das universidades federais no período de 2003 a 2014: Perspectivas governamentais em debate. Acta Scientiarum. Education, 40(1), 1-11. https://doi.org/10.4025/actascieduc.v40i1.37659
https://doi.org/10.4025/actascieduc.v40i...
).

A gênese da UNIVASF insere-se, portanto, nas contradições informadas por este processo. Historicamente, a instituição tem origem no projeto de lei para a formatação da Universidade Federal de Petrolina. Serviu ao propósito de catalisar os bons índices econômicos que já se observava na área, facilitando a formação de mão de obra especializada para atividades como a fruticultura irrigada. Durante a idealização do projeto, até sua implementação em 20024 4 A UNIVASF foi implantada pela Lei n. 10.473 de 27 de junho de 2002, tendo como sede a cidade de Petrolina, estado de Pernambuco. Atualmente, encontra-se estabelecida fisicamente em sete polos: de Petrolina Sede e Ciências Agrárias e Salgueiro, no estado de Pernambuco, o de Juazeiro, Paulo Afonso e Senhor do Bonfim, no estado da Bahia, e o de São Raimundo Nonato, no estado do Piauí. Conta com 30 cursos de graduação presenciais, cinco de educação à distância, 21 de pós-graduação strictu-sensu e, finalmente, 14 de pós-graduação lato-sensu. , as premissas condizentes com a natureza da universidade foram ampliadas para abarcar a transformação social, por meio de oferta de educação superior, demarcando um novo modelo de expansão pautado na integração regional e na inclusão do semiárido. Todavia, fica evidente que esse objetivo não foi a mola propulsora para o seu surgimento, mas acabou sendo atrelado à iniciativa, na medida em que ela se configurou no âmbito de uma ordem política propícia para um consórcio entre valores desenvolvimentistas e progressistas (Jesus, 2016Jesus, J. A. S. (2016). A política de expansão e interiorização do ensino superior através da universidade aberta do Brasil: A experiência da UNIVASF no vale do submédio São Francisco [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Recôncavo na Bahia].; P. Araújo & Cusati, 2019Araújo, P. C., & Cusati, I. C. (2019). A Universidade Federal do Vale do São Francisco: Um paradigma de expansão da educação superior pública no Brasil? Revasf, 9(20), 120-157.).

Sob tais condições, a ênfase no crescimento econômico regional orientou a instalação de cursos considerados compatíveis com os interesses do mercado, com destaque para as áreas de serviços, saúde e tecnologias. As graduações em Ciências Humanas e Sociais, desde o início, assumiram baixa visibilidade na estrutura universitária, pelas poucas opções ofertadas e pela construção de um discurso institucional utilitarista, firmado em valores como inovação e empreendedorismo. Além disso, após sua fixação, conformou-se assentada em uma forte veia extensionista, com a proposição de disciplinas obrigatórias em todas as formações que articulem extensão, pesquisa e ensino. Com isso, defendeu a produção de ciência em perspectiva local, como estratégia para integração regional.

Especificamente, no tocante às confabulações que envolveram a instalação e o funcionamento da graduação em Arqueologia e Preservação Patrimonial, devemos considerar o panorama histórico referente à criação das graduações em Arqueologia no Brasil nas últimas duas décadas, com seus impasses entre democratização do conhecimento, contribuição social e exploração econômica. Na síntese sobre esse quadro, Bezerra (2008)Bezerra, M. (2008). Bicho de nove cabeças: Os cursos de graduação e a formação de arqueólogos no Brasil. Revista de Arqueologia, 21(2), 139-154. aponta que a discussão sobre a oferta de cursos de nível superior passou a ser encampada com mais vigor principalmente na década de 1990. Apesar da existência de uma experiência de graduação em Arqueologia desde 19755 5 Trata-se da Faculdade de Arqueologia e Museologia Marechal Rondon (FAMARO), criada em 1975, no Rio de Janeiro, sendo depois mantida pelas Faculdades Integradas Estácio de Sá (posteriormente Universidade Estácio de Sá) até o ano 2000, quando entrou em extinção (Bezerra, 2008). , a proposta de expansão não foi encarada como consenso entre a comunidade de arqueólogos. A formação de profissionais com um novo perfil gerou temores de pesquisadores e grupos atuantes no país em relação às estruturas de pesquisa estabelecidas, servindo como catalisador para conflitos.

Prosseguindo em sua análise, Bezerra (2008)Bezerra, M. (2008). Bicho de nove cabeças: Os cursos de graduação e a formação de arqueólogos no Brasil. Revista de Arqueologia, 21(2), 139-154. reconhece uma mudança de conjuntura detonada com a aplicação de uma política econômica desenvolvimentista, consolidada em 2007 com os Programas de Aceleração de Crescimento (PAC), juntamente com a promulgação de legislações específicas. Na prática, os eventos contribuíram para aumentar a demanda por profissionais qualificados, para participarem dos diversos canteiros de obras espalhados pelo país, suprindo as necessidades abertas pelo licenciamento ambiental. Nesses termos, a criação das graduações em Arqueologia, na primeira década de 2000, sedimentou vínculos poderosos entre a expansão do ensino superior com a necessidade de formação de uma massa de profissionais qualificados à disposição do mercado, dentro da lógica de descentralização do ensino superior.

O CURSO DE ARQUEOLOGIA E A PRESERVAÇÃO PATRIMONIAL DA UNIVASF

Diante do cenário que esboçamos, podemos compreender melhor a origem da graduação em Arqueologia e Preservação Patrimonial em São Raimundo Nonato, inaugurando a ideia do campus Serra da Capivara, no ano de 2004. Foi o primeiro curso do tipo implantado em uma universidade pública federal, antecipando-se ao boom provocado com a implementação do REUNI e do PAC. Em certa medida, distingue-se da realidade fomentada por essa política de expansão, tendo como principal justificativa para o seu funcionamento a necessidade de aprofundamento do projeto científico organizado em torno do PNSC, conduzido pelas pesquisadoras da FUMDHAM6 6 A constituição de um polo científico, acomodado às estruturas de produção de conhecimento já existentes e atuantes na área, não significou um apartamento das demandas e discussões voltadas para as demandas do mercado, especificamente do licenciamento ambiental, com suas possibilidades de conflitos e acordos (cf. Zanettini & Wichers, 2014). Um exemplo dessa aproximação na UNIVASF pode ser verificado no envolvimento institucional com o Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias do Nordeste Setentrional (PISF), em 2008. Em 2010, a coordenação do projeto foi assumida pelo Instituto Nacional de Arqueologia, Paleontologia e Ambiente do Semiárido (INAPAS/FUMDHAM) – um desdobramento do Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT), formalizado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sob coordenação de Pessis (Instituto Nacional de Arqueologia, Paleontologia e Ambiente do Semi-Árido, 2010). . De acordo com Niède Guidon, na ocasião da aprovação do projeto que veio a constituir a UNIVASF, a concepção original era de que o curso para a formação de arqueólogas(os) permanecesse em Petrolina. Na época, ela e Anne-Marie Pessis – outra pesquisadora central na administração da FUMDHAM – foram procuradas para formulação de plano pedagógico, mas condicionaram à sua elaboração a necessidade de transferência para o interior do Piauí, com o apoio do deputado federal José Francisco Paes Landim (J. Oliveira, 2014Oliveira, J. S. (2014). A Educação patrimonial como estratégia de Arqueologia Pública na área do Parque Nacional Serra da Capivara [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].). Desse modo, a partir da capacidade de negociação política e do prestígio científico de um importante grupo local, representado pelas pesquisadoras da FUMDHAM, a dimensão geográfica da UNIVASF foi reconfigurada, com a inserção de São Raimundo Nonato.

De fato, a vocação de São Raimundo Nonato para abrigar treinamento profissional em Arqueologia foi considerada logo no início das pesquisas arqueológicas na região. Já em 1973, por meio de parceria entre a Missão Franco-Brasileira e a Universidade Federal do Piauí (UFPI), foi criada a primeira especialização em Arqueologia Pré-histórica, com realização de estágio obrigatório na cidade (J. Oliveira, 2014Oliveira, J. S. (2014). A Educação patrimonial como estratégia de Arqueologia Pública na área do Parque Nacional Serra da Capivara [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].). Com o fortalecimento da FUMDHAM no gerenciamento das pesquisas, a área passou a ser alvo de investigações, que culminaram em projetos, dissertações de mestrado e teses de doutorado, conduzidas por estudiosas(os) inseridas(os) em pós-graduações de universidades brasileiras e estrangeiras. Na prática, tais iniciativas serviram para reforçar o potencial arqueológico da área, atrelado à necessidade de ampliação dos estudos sobre a Pré-História e com foco mais intenso na preservação e gestão dos recursos culturais. Esse argumento foi decisivo para fixação de uma graduação em Arqueologia em São Raimundo Nonato.

Não por acaso, existiu, desde o início das atividades da graduação, um vínculo estreito entre a UNIVASF e a FUMDHAM, conectando a chegada da universidade com uma história mais profunda da gênese da Arqueologia na região. Nos primeiros anos de funcionamento da universidade, através de acordo firmado entre as instituições, o curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial funcionou nas dependências da Fundação, com seus laboratórios, bibliotecas, salas de aula e reservas técnicas. A estrutura física permanece acessível para docentes e discentes na realização de pesquisas. Em termos educativos, a proximidade pode ser observada também na consolidação do projeto político-pedagógico em 2008, que sistematizou os currículos a partir das repercussões dos primeiros anos de funcionamento. No caso da UNIVASF, fundamentou um projeto de ensino de Arqueologia direcionado para o rigor metodológico, nas atividades de campo e laboratório e nas reflexões teóricas pertinentes aos campos da Pré-História, da Arqueologia Histórica e da Preservação Patrimonial, enfatizando o PNSC e suas comunidades de entorno7 7 É importante destacarmos que o Projeto Político-Pedagógico do Curso (PPC) vem sendo tensionado e ressignificado para acomodar as expectativas de docentes e discentes, frente aos diversos caminhos teóricos e metodológicos que foram pavimentados nos últimos anos. Atualmente, o documento encontra-se em fase de estudo e reformulação, no intuito de responder a estes anseios. . A sobreposição de missões fica mais evidente quando consideramos, nesse momento, a presença constante no corpo docente de profissionais que já colaboraram ou colaboram com a FUMDHAM nas incursões científicas.

Entre 2008 e 2009, o curso recebeu estímulos dos desdobramentos de políticas públicas nacionais, que acarretaram transformações no funcionamento da universidade. Nessa perspectiva, aconteceu a inauguração de um prédio próprio para o funcionamento do campus. Paralelamente, foi instalada a licenciatura em Ciências da Natureza, viabilizada por meio da aplicação do REUNI, implantado na UNIVASF em 2008. O programa do Governo Federal não direcionou verbas específicas para a formação em Arqueologia, mas gerou impactos institucionais, contribuindo para o fortalecimento da universidade em São Raimundo Nonato. A despeito dos problemas relacionados com a sua utilização e seu planejamento em âmbito nacional, para o momento, interessa-nos salientar que o REUNI esteve explicitamente comprometido em ampliar o acesso e garantir a permanência na educação superior. Por esse motivo, manteve como uma de suas diretrizes fundamentais as políticas de assistência estudantil, fortalecendo o já existente Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) (Cislaghi & Silva, 2012Cislaghi, J. F., & Silva, M. T. (2012). O Plano Nacional de Assistência Estudantil e o Reuni: Ampliação de vagas versus garantia de permanência. SER Social, 14(31), 489-512. https://doi.org/10.26512/ser_social.v14i31.13025
https://doi.org/10.26512/ser_social.v14i...
). Em vigor desde 2007, o PNAES estabeleceu eixos de atuação para o desenvolvimento de políticas sociais de proteção de grupos economicamente vulneráveis no ambiente universitário. Em 2010, na conjuntura do REUNI, o programa foi regulamentado para catalisar os instrumentos de inclusão social de segmentos historicamente excluídos do espaço acadêmico (Imperatori, 2017Imperatori, T. K. (2017). A trajetória da assistência estudantil na educação superior brasileira. Serviço Social & Sociedade, (129), 285-303. https://doi.org/10.1590/0101-6628.109
https://doi.org/10.1590/0101-6628.109...
).

Na UNIVASF, o PNAES representou maior dinamicidade das ações, com alocação de verba específica. O foco na assistência estudantil culminou na criação de pró-reitoria para esse fim, em 2011, dando ao tema maior força política dentro da estrutura institucional. Como consequência, no mesmo ano, foi inaugurada a residência estudantil do campus Serra da Capivara. No cenário, em consonância com os esforços voltados para ampliar as possibilidades de ingresso no ensino superior, em 2010, a UNIVASF abandonou o vestibular tradicional e adotou o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) como maneira principal de acesso. Já em 2012, no contexto da formalização do sistema de cotas, 50% das vagas oferecidas passaram a ser destinadas para candidatos pretos, pardos e indígenas; de baixa renda; e para estudantes provenientes de escolas públicas. Essas iniciativas serviram para constituir um público universitário com necessidades socioeconômicas diversas, aumentando justamente a demanda por assistência estudantil (Resende et al., 2016Resende, A. X., Filho, H. P. C., & Omaki, E. T. (2016). Política de Assistência Estudantil praticada pela Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF. ID on Line: Revista de Psicologia, 10(30), 27-49.). Em São Raimundo Nonato, as políticas fomentaram uma entrada maior de discentes oriundos da região, desde então sempre prevalentes em relação a estudantes provenientes de outras localidades: descendentes das comunidades expulsas do Parque, ex-participantes dos projetos sociais da FUMDHAM, do IPHAN e da UNIVASF, membros de comunidades quilombolas e camponesas, entre outras(os) estudantes acostumadas(os) a esbarrar com arqueólogas(os) e sítios arqueológicos ao longo de suas trajetórias de vida na ‘capital da Arqueologia no Piauí’.

No quadro de promoção das políticas de democratização da universidade, outra mudança é verificada no curso de Arqueologia: a ampliação de iniciativas voltadas para as conexões entre sociedade e universidade, enfocando recortes temporais e sociais para além da ideia de Pré-História, em compasso com as mudanças teóricas e metodológicas mais amplas na Arqueologia brasileira na época. Particularmente, falamos também do fortalecimento da extensão, desenvolvida desde o início do curso, mas ampliada a partir de 2009, com projetos direcionados para temas como educação ambiental, educação patrimonial e turismo sustentável, até chegar nos esforços preocupados em descolonizar as vinculações entre comunidades, pesquisadores e ciência, questionando os sentidos dos discursos autorizados sobre patrimônio arqueológico e preservação (Siqueira, 2014Siqueira, C. M. B. (2014). A educação patrimonial na Arqueologia Brasileira: Um estudo de caso no entorno do Parque Nacional Serra da Capivara [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].; A. Oliveira et al., 2017Oliveira, A. S. N., Assis, N. P. D., & Galvão Neto, A. A. (Orgs.). (2017). Sentidos do patrimônio: Parque Nacional Serra da Capivara e Comunidade São Vitor. IPHAN.). Esses vieses foram retroalimentados com a condução de algumas disciplinas, tais como “Núcleo temático”, “Métodos e técnicas arqueológicas”, “Educação ambiental”, “Preservação patrimonial”, “História do Brasil colonial”, “Introdução à Antropologia”, “Pré-História do Novo Mundo”, “História indígena I e II”, entre outras, que em diversos momentos buscaram interfaces com a educação básica ou serviram como cenário experimental para proposição de abordagens comunitárias em torno de diferentes tipologias patrimoniais. Além de servir como vetor de comunicação entre a universidade e a sociedade, as iniciativas têm demonstrado potencial para atrair mais jovens da região para a formação em Arqueologia. Na interface entre Arqueologia e comunidades, foi criado, em 2010, o Programa de Educação Tutorial em Arqueologia (PET-Arqueologia) – até hoje, o único no Brasil voltado para ações de educação patrimonial (Carvalho et al., 2020Carvalho, A. W. R., Costa, R. L., & Castro, M. S. (2020). O PET na escola: Um roteiro de ações de educação patrimonial desenvolvido no âmbito do Programa de Educação Tutorial no município de São Raimundo Nonato – PI. Revista de Arqueologia Pública, 14(1), 75-95.).

Nesse contexto promissor, em 2015, foram inaugurados no campus os prédios destinados ao funcionamento dos laboratórios de Arqueologia Pré-histórica, Arqueologia Histórica, Preservação Patrimonial e Bioarqueologia, além de uma biblioteca e um auditório. Quase 11 anos após a implantação da UNIVASF, consolidou-se em São Raimundo uma estrutura acadêmica independente, com espaços didático-pedagógicos, utilizados em atividades de ensino, pesquisa e extensão (Figura 4). Em período de fortalecimento do campus, em 2016, dois novos cursos começaram as suas atividades: o bacharelado em Antropologia (Leal, 2021Leal, N. S. (2021). Por uma antropologia na caatinga: Um breve ensaio sobre o bacharelado em Antropologia na Univasf e a interiorização do ensino superior no Brasil. Anuário Antropológico, 46(1), 39-57. https://doi.org/10.4000/aa.7657
https://doi.org/10.4000/aa.7657...
) e a licenciatura em Química. Especificamente sobre a graduação em Antropologia, passou a oferecer aulas e encontros acadêmicos frequentados pelas(os) discentes de Arqueologia e Preservação Patrimonial. Na prática, tal dinâmica contribuiu para fomentar questionamentos a respeito das fronteiras entre as disciplinas, principalmente nas ocasiões em que a Arqueologia sai da longa duração, para abordar fenômenos do passado recente e do mundo contemporâneo. Em 2018, tais barreiras disciplinares são definitivamente borradas institucionalmente, com a criação do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia8 8 Para maiores informações, ver Universidade Federal do Vale do São Francisco (n.d.). , organizado sob duas linhas de pesquisa que admitem enfoques relacionados com diferentes temporalidades e construções patrimoniais.

Figura 4
Campus Serra da Capivara: A) visão aérea; B, C e D) vivências no campus durante a realização do 1° Simpósio de Arqueologia e Patrimônio do Laboratório de Preservação Patrimonial (LAPA) da UNIVASF, em maio de 2019.

MAPEANDO AFETOS: AS ARQUEOLOGIAS AFETIVAS NA PRODUÇÃO DISCENTEDA UNIVASF

Frente a esse cenário histórico, o que nos interessa é perceber as suas repercussões na operacionalização da Arqueologia. O nosso desejo é ambicioso e começamos apenas a arranhar a superfície dessa realidade. Para o momento, trazemos algumas informações referentes à produção discente do curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial. No exercício, foram analisados 198 TCC, defendidos pelas(os) discentes da UNIVASF, desde 2009 até o encerramento do ano letivo de 2019, com a finalização do primeiro semestre9 9 No funcionamento da graduação, o TCC consiste em requisito parcial para obtenção do bacharelado em Arqueologia e Preservação Patrimonial, sendo o produto da disciplina obrigatória de Monografia, ofertada no 8° período e realizada sob supervisão de docente orientador. Certamente, as inclinações teóricas e metodológicas observadas nesses documentos são resultados do trabalho colaborativo entre orientador e orientando. Contudo, trata-se também de um trabalho autoral, constituindo em ato de expressão discente. Para o momento, nosso interesse foi justamente capturar este ponto de vista. Isso não exclui a participação dos docentes na formulação das ‘arqueologias afetivas’, que devem ser consideradas em pesquisas futuras a partir de enquadramentos como formação, projetos de pesquisa, publicações, atuação e, mais importante, suas afetividades. Para o momento, é interessante destacar que as abordagens sensíveis não podem ser entendidas como consensuais entre os(as) professores(as), que comungam de diferentes perspectivas de ciência. . Em nossas leituras do material, buscamos sistematizar as conexões temáticas entre os estudos e o seu contexto espacial de aplicação. Por se tratar de um conjunto de dados bastante heterogêneo, no tocante às terminologias e às filiações teóricas, criamos algumas condições para o agrupamento dos trabalhos de forma não hierárquica ou qualificativa, permitindo capturar tendências relacionadas com os interesses expressos nos textos. Dessa maneira, as classificações estão muito mais relacionadas às nossas interpretações e necessidade de enquadramento, não sendo precisamente coincidentes com os termos que apareceram nas investigações.

Assim, estabelecemos critérios pautados fundamentalmente nas temporalidades e justificativas que as pesquisas abarcam – o que possibilitou tecer vínculos para além dos objetivos e objetos de estudos explicitamente declarados. Empregamos ‘arqueologias contemporâneas e patrimoniais’, para falar das monografias que procuraram entrelaçar a Arqueologia com o mundo contemporâneo, seja por meio de discussões voltadas para a memória, o patrimônio, o passado recente e o presente; ‘arqueologias de passados remotos’, para indicar as empreitadas comprometidas com a abordagem de quadros pré-coloniais e suas vinculações interdisciplinares, compreendendo as investigações de uma cronologia mais profunda; ‘arqueologias históricas’, para buscar as pesquisas que enfatizam conjunturas e processos sociais específicos, geralmente delimitados até a passagem do século XIX para o XX, incluindo os esforços de refletir sobre uma longa duração. Fora desse escopo, registramos as incursões voltadas para procedimentos de conservação e restauração aplicada e, finalmente, as revisões teóricas, metodológicas e bibliográficas. Posteriormente, observamos a incidência das investidas sobre os parques nacionais Serra da Capivara e Serra das Confusões, para as demais regiões do Piauí e nos outros estados do Brasil (Figuras 5 e 6).

Figura 5
Conexões temáticas prevalentes nos TCC em Arqueologia e Preservação Patrimonial, defendidos na UNIVASF entre 2009 e 2019.
Figura 6
Contexto espacial de abordagem prevalente nos TCC em Arqueologia e Preservação Patrimonial, defendidos na UNIVASF entre 2009 e 2019.

De modo geral, os dados indicam disposições preliminares no que diz respeito aos assuntos abordados e ao foco espacial de aplicação. Até 2013, quase sempre predominaram monografias relacionadas com os estudos de contextos pré-coloniais, associados à diversidade das ocupações humanas que caracterizam os sítios do PNSC e, raramente, da Serra das Confusões. Paralelamente, chama atenção a incidência de iniciativas dedicadas à reflexão sobre contextos oriundos de outros estados, que se mostram preponderantes em 2012 e entre 2014 e 2016, indicando a persistência das discussões tecidas na graduação para além de qualquer circunscrição geográfica. De 2014 em diante, verificamos o aumento nas investidas que buscaram conectar a Arqueologia com as demandas do presente. Essa tendência escalona até 2019, em compasso com o aumento de estudos focados na diversidade de compartimentos regionais do Piauí, fora das áreas de preservação permanente. Configura-se uma situação inédita, com o predomínio de investidas sobre contextos piauienses, a maioria da microrregião de São Raimundo Nonato, quase sempre explicitamente capturados sob um ponto de vista afetivo.

Esses dados fazem mais sentido se levarmos em consideração as mudanças nas formas de acesso e de funcionamento e nos perfis da universidade pública federal (Figura 7). No caso da UNIVASF, o aprofundamento das políticas nacionais de acesso e manutenção estudantil no ensino superior, citadas anteriormente, foi responsável pelo afluxo maior de estudantes oriundos da região, a maioria autodeclarada parda e proveniente de escola pública. Além disso, desde 2016, as mulheres constituem a maioria das(os) discentes aprovadas(os) no curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial – um dado consonante com os indicadores sistematizados para o território nacional desde 2009 (Gaspar et al., 2020Gaspar, M. V., Caromano, C. F., Pereira, E. R., Brandão, K., Belletti, J., Freitas, A., . . . & Bezerra, M. (2020). Quem somos nós? ou perfis da comunidade profissional arqueológica no Brasil. Habitus, 18(1), 146-178. http://dx.doi.org/10.18224/hab.v18i1.8104
https://doi.org/10.18224/hab.v18i1.8104...
). Assim, as monografias defendidas até 2013 foram elaboradas em um campus sensivelmente diferente da atualidade. Desde 2014, parte significativa daquelas(es) que defenderam suas monografias ingressou pelo ENEM, via Sistema de Seleção Unificada (SISU), envolveu-se nos trabalhos do PET Arqueologia, participou de projetos de extensão colaborativos e, mais significativamente para nossa argumentação, pode apresentar biografias individuais marcadas pelo contato com as práticas arqueológicas, arqueólogas(os) e instituições, bem como com seus desdobramentos na história regional e na produção de vivências.

Figura 7
Estado de origem das(os) discentes matriculadas(os) na graduação em Arqueologia e Preservação Patrimonial da UNIVASF entre 2010 e 2019.

Nossas considerações podem ser traduzidas para tons afetivos quando damos uma olhada nos aspectos qualitativos dos documentos e atentamos para seus efeitos teóricos e empíricos. É o momento que percebemos a atuação das(os) estudantes que se formaram na UNIVASF como potencialmente transformadora e catalisadora de uma reflexão crítica a respeito do papel da Arqueologia no mundo contemporâneo. Nessa perspectiva, desde 2009, observa-se a produção de trabalhos que entendem as práticas arqueológicas como um jeito de conhecer realidades variadas, considerando os trânsitos da materialidade na vida cotidiana e nos domínios da memória. São pesquisas que trazem, incutido em suas proposições, certo discernimento de patrimônio cultural que se constrói nas experiências da vida em comunidade. Tais posicionamentos vão se tornando mais explícitos nos trabalhos ao longo dos anos. Correlatamente, encontram-se em sintonia com as pesquisas desenvolvidas no âmbito da pós-graduação em outras universidades brasileiras, como analisado por Gaspar et al. (2020)Gaspar, M. V., Caromano, C. F., Pereira, E. R., Brandão, K., Belletti, J., Freitas, A., . . . & Bezerra, M. (2020). Quem somos nós? ou perfis da comunidade profissional arqueológica no Brasil. Habitus, 18(1), 146-178. http://dx.doi.org/10.18224/hab.v18i1.8104
https://doi.org/10.18224/hab.v18i1.8104...
, que apontam para a recorrência e a relevância de temas como ‘patrimônio’ e ‘arqueologia pública’ no cenário nacional.

Entre as primeiras publicações realizadas sob esse viés, podemos citar o trabalho de Aquino (2009)Aquino, C. C. (2009). Misticismo e simbolismo na Cova da Tia: Um olhar sobre o Patrimônio Cultural Imaterial da região de São Raimundo Nonato e entorno [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., designado o “Misticismo e simbolismo na Cova da Tia: um olhar sobre o Patrimônio Cultural Imaterial da região de São Raimundo Nonato e entorno”. Na monografia, a autora analisa a materialidade e as narrativas associadas ao túmulo de uma ex-escravizada, discutindo a importância daquele local, tanto como espaço sagrado, quanto como patrimônio cultural da região. Como explicitado, ver “. . . uma caravana de devotos se organizar para realizar uma visita ao local. . . . a fim de pagar e renovar promessas. . .” a instigou a “. . . registrar o local designado Cova da Tia como um espaço sagrado. . .” e a demonstrar sua relevância enquanto “. . . elemento de identidade religiosa e cultural do patrimônio intangível regional” (Aquino, 2009Aquino, C. C. (2009). Misticismo e simbolismo na Cova da Tia: Um olhar sobre o Patrimônio Cultural Imaterial da região de São Raimundo Nonato e entorno [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 13). Além disso, é interessante perceber como a pesquisadora parte de seu imaginário de infância, povoado “. . . dos muitos causos contados por meus avós e pessoas mais velhas. . .” (Aquino, 2009Aquino, C. C. (2009). Misticismo e simbolismo na Cova da Tia: Um olhar sobre o Patrimônio Cultural Imaterial da região de São Raimundo Nonato e entorno [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 13), para se apropriar das discussões de Halbwachs (2013)Halbwachs, M. (2013). A memória coletiva (Beatriz Sidou, Trad.). Centauro sobre memória coletiva. Deixa evidente como suas experiências e afetos associam-se às premissas e/ou às diretrizes acadêmicas adotadas, permitindo “. . . a possibilidade de registrar oportunamente as muitas histórias presentes no imaginário da população. . .” (Aquino, 2009Aquino, C. C. (2009). Misticismo e simbolismo na Cova da Tia: Um olhar sobre o Patrimônio Cultural Imaterial da região de São Raimundo Nonato e entorno [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 13).

Perspectiva semelhante é desvelada na monografia de Santana (2010)Santana, T. M. C. (2010). Guerra da Telha: memória, história, arqueologia e patrimônio [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., chamada “Guerra da Telha: memória, história, arqueologia e patrimônio”. A escolha por pesquisar um conflito que aconteceu no município de Dirceu Arcoverde, no Piauí, entre os anos de 1927 a 1930, remete às lembranças das histórias contadas por seus avós, que eram “sobreviventes desse conflito” (Santana, 2010Santana, T. M. C. (2010). Guerra da Telha: memória, história, arqueologia e patrimônio [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 12). Segundo a autora, “. . . o curso de graduação em Arqueologia e Preservação Patrimonial possibilita-me a oportunidade de narrar essa história, por meio das metodologias que conheci durante o curso. . .” (Santana, 2010Santana, T. M. C. (2010). Guerra da Telha: memória, história, arqueologia e patrimônio [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., pp. 12-13).

Por sua vez, o predomínio de investigações dedicadas ao estudo do passado pré-colonial entre as primeiras turmas, focado em temas clássicos, como análises do registro rupestre, material cerâmico, artefatos líticos e estruturas de fogueira, não implicou, necessariamente, a elaboração de trabalhos desprovidos de afetos. Muito pelo contrário, em alguns casos, como veremos a seguir, a mola propulsora para realização da pesquisa foi justamente a afetividade. Em tais circunstâncias, o acesso ao ensino superior e à especialização nos cânones científicos da Arqueologia revela como muitas(os) discentes encararam o ingresso na graduação tanto como uma forma de capacitação profissional, e possível ascensão socioeconômica, quanto como um meio de registrar, valorizar e divulgar histórias e locais aos quais se sentem afetivamente vinculadas(os). Avançamos mais nessas reflexões quando temos acesso as(aos) autoras(es) dos TCC.

Nesse mister, podemos citar um trabalho mais próximo do processo da edificação da Arqueologia no sudeste e sudoeste do Piauí. Referimo-nos à pesquisa de Soares (2010)Soares, A. M. A. (2010). Pinturas rupestres no Município de São Braz Do Piauí: Padrão de reconhecimento e temática dominante [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., intitulada “Pinturas rupestres no município de São Braz do Piauí: padrão de reconhecimento e temática dominante”. Essa pesquisa foi realizada na cidade de origem da autora, distante a 30 km de São Raimundo Nonato e integrante do corredor ecológico existente entre os parques nacionais Serra da Capivara e Serra das Confusões. Na área, são frequentes os achados de urnas funerárias realizados pela população local, nas intervenções cotidianas nas vias públicas e espaços íntimos dos moradores. Assim, desde a década de 1970, o município também vem sendo palco para realização de pesquisas arqueológicas, formatando um imaginário específico sobre o assunto. De acordo com A. Soares (comunicação pessoal, 29 mar. 2020):

Desde a minha infância, ouvia falar através dos mais velhos sobre os achados e as pesquisas que a Dra. Niede Guidon e equipe desenvolviam. Em São Braz do Piauí, era comum, quando os moradores abriam fossas ou valas para construção de suas casas e cisternas, encontrar urnas funerárias e vestígios que comprovavam a presença humana desde os tempos passados naquele local. Ouvia falar que estes eram encaminhados para um museu, que ficava em São Raimundo Nonato, para serem estudados.

Foi em uma palestra realizada nas dependências do Museu do Homem Americano que a jovem, além de ver o material arqueológico de seu município, ficou sabendo da oferta do curso de graduação em Arqueologia pela UNIVASF, na cidade de São Raimundo Nonato. Já na graduação, Adriana integrou a equipe da FUMDHAM, que mapeou os sítios arqueológicos do entorno do município de São Braz do Piauí. Com a experiência, decidiu abordar os locais de potencial arqueológico no seu trabalho de conclusão de curso, ampliando, inclusive, a amostra disponível (Soares, 2010Soares, A. M. A. (2010). Pinturas rupestres no Município de São Braz Do Piauí: Padrão de reconhecimento e temática dominante [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].). Apesar de não ter expresso no texto monográfico, pessoalmente10 10 Cabe ressaltar que, nesta etapa da pesquisa, não realizamos uma coleta sistemática de informações orais, via entrevistas formais, com as(os) egressas(os) do curso de arqueologia da UNIVASF, sendo essa uma meta para empreitadas futuras. Desse modo, para a presente publicação, lançamos mão somente dos depoimentos de Adriana Soares e Pâmara Araújo, com as quais mantemos relações profissionais e afetivas, sendo os dados apresentados resultantes de conversas estabelecidas nos últimos anos e, principalmente, da recente troca de correspondência eletrônica informando sobre nossa intenção de analisar as monografias produzidas por alunas(os) da UNIVASF, solicitando que ambas nos contassem sobre suas motivações para o ingresso na graduação em Arqueologia e a escolha do tema do trabalho de conclusão de curso. afirmou: “tinha interesse em conhecer a história dos povos antigos que viveram no município de São Braz do Piauí. De maneira, que sempre me senti ligada aos meus ascendentes” (A. Soares, comunicação pessoal, 29 mar. 2020). O sentimento aparece atrelado a um senso de responsabilidade social perante à comunidade e ao reconhecimento da ciência como aliada em potencial: “sempre procurei unir, nesse ensejo, os conhecimentos adquiridos através do curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial e contribuir, mesmo que de forma singela, para a construção do conhecimento arqueológico daquele município” (A. Soares, comunicação pessoal, 29 mar. 2020).

Isso também pode ser observado no trabalho de P. M. Santos (2010)Santos, P. M. (2010). Os registros rupestres da região de Jaguarari, Bahia [Monografia Universidade Federal do Vale do São Francisco]., sobre “Os registros rupestres da região de Jaguarari, Bahia”, que nos informou: “a principal motivação para a escolha do tema da minha monografia foi a relação de identidade desencadeada pelo território em comum entre os sítios arqueológicos pesquisados e a minha história familiar” (P. M. Santos, comunicação pessoal, 6 abr. 2020). A autora relatou que, desde a infância, sabia da existência de pinturas nos boqueirões de sua cidade. Durante a graduação na UNIVASF, percebeu que “a área tinha potencial para uma pesquisa acadêmica e eu estava ali, disponível para colaborar com isso. Costumo pensar que essa pesquisa me escolheu. A mim, restou apenas seguir o caminho que se abriu à minha frente” (P. M. Santos, comunicação pessoal, 6 abr. 2020).

Assim, não é coincidência o aumento gradativo de pesquisas voltadas aos contextos locais, que já não mais se limitam às discussões do passado pré-colonial, bem como o crescimento de monografias que buscam estabelecer relações diversificadas com o presente. Alguns indicativos desse cenário podem ser visualizados nos trabalhos de Paes (2011)Paes, R. M. O. (2011). Identificação do patrimônio edificado da cidade de Coronel José Dias – Piauí [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., Neta (2011)Neta, M. F. P. A. (2011). Os rituais do Morro do Cruzeiro como atributos da identidade sanraimundense: Um patrimônio modificado [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]. e G. Araújo (2013)Araújo, G. L. H. (2013). Uma arqueologia dos maniçobeiros: Reflexões acerca das vivências na Serra Branca – Parque Nacional Serra da Capivara [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., entre outros. Na monografia “Identificação do patrimônio edificado da cidade de Coronel José Dias – Piauí”, Paes (2011)Paes, R. M. O. (2011). Identificação do patrimônio edificado da cidade de Coronel José Dias – Piauí [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., natural do município, ressalta que um dos objetivos da pesquisa é contribuir para que as antigas edificações “. . . sejam elencadas enquanto elementos identitários, para a população de Coronel José Dias” (Paes, 2011Paes, R. M. O. (2011). Identificação do patrimônio edificado da cidade de Coronel José Dias – Piauí [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 11), viabilizando, portanto, um “. . . futuro processo de tombamento municipal, com o apoio da Secretaria de Turismo do Município” (Paes, 2011Paes, R. M. O. (2011). Identificação do patrimônio edificado da cidade de Coronel José Dias – Piauí [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 13). Trata-se de posicionamento semelhante ao que foi notado no texto “Os rituais do Morro do Cruzeiro como atributos da identidade sanraimundense: um patrimônio modificado”, de Neta (2011)Neta, M. F. P. A. (2011). Os rituais do Morro do Cruzeiro como atributos da identidade sanraimundense: Um patrimônio modificado [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., para quem a escolha do tema e o desenvolvimento da pesquisa são percebidos como uma “. . . obrigação, enquanto pesquisadora e enquanto cidadã, já que esta pesquisa tem como característica principal a cultura sanraimundense. . . ”, visando dar visibilidade ao patrimônio cultural do município e, assim, contribuir “. . . para fomentar o cultivo da autoestima coletiva dos habitantes da cidade” (Neta, 2011Neta, M. F. P. A. (2011). Os rituais do Morro do Cruzeiro como atributos da identidade sanraimundense: Um patrimônio modificado [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 9). Por fim, ainda nesse escopo, podemos citar a pesquisa de G. Araújo (2013)Araújo, G. L. H. (2013). Uma arqueologia dos maniçobeiros: Reflexões acerca das vivências na Serra Branca – Parque Nacional Serra da Capivara [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., intitulada “Uma arqueologia dos maniçobeiros: reflexões acerca das vivências na Serra Branca – Parque Nacional Serra da Capivara”. Ao abordar o ciclo da exploração do látex no sudeste do Piauí, a autora explicita que seu intuito é empregar as ferramentas metodológicas da Arqueologia para valorizar a trajetória dos grupos maniçobeiros, dando “. . . visibilidade ao público menos favorecido. . .” e legitimidade às suas “histórias silenciadas” (G. Araújo, 2013Araújo, G. L. H. (2013). Uma arqueologia dos maniçobeiros: Reflexões acerca das vivências na Serra Branca – Parque Nacional Serra da Capivara [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 22).

O quadro espelha não apenas a dilatação dos eixos temáticos das pesquisas, mas, principalmente, a atuação das(os) discentes locais para que outras categorias de patrimônio recebessem o mesmo tratamento que o poder público e a academia conferiam aos sítios arqueológicos associados ao PNSC. Como reflexo dessa realidade, por exemplo, o estudo dos registros rupestres, tema dominante nas primeiras monografias defendidas na UNIVASF, passou a englobar outras temporalidades e atores sociais. Especificamente, estamos nos referindo à pesquisa de Aquino (2015)Aquino, R. C. (2015). Rabiscando celas: Arqueologia cognitiva aplicada na interpretação dos registros gráficos da Penitenciária Tenente Zeca Rúben em São Raimundo Nonato – PI. [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., intitulada “Rabiscando celas: arqueologia cognitiva aplicada na interpretação dos registros gráficos da Penitenciária Tenente Zeca Rúben em São Raimundo Nonato – PI”. Na obra, focada na análise de registros gráficos produzidos no passado recente e associados ao sistema carcerário, a autora visou ampliar “. . . os estudos arqueológicos da região de São Raimundo Nonato que, por excelência, contemplam o modus vivendi et operandi do homem pré-colonial [ênfase adicionada]” (Aquino, 2015Aquino, R. C. (2015). Rabiscando celas: Arqueologia cognitiva aplicada na interpretação dos registros gráficos da Penitenciária Tenente Zeca Rúben em São Raimundo Nonato – PI. [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 15). Ressaltou a necessidade de promoção de “. . . estudo[s] das narrativas multivocais e democráticas desses registros pós-coloniais que se inserem dentro da roupagem da Arqueologia contemporânea” (Aquino, 2015Aquino, R. C. (2015). Rabiscando celas: Arqueologia cognitiva aplicada na interpretação dos registros gráficos da Penitenciária Tenente Zeca Rúben em São Raimundo Nonato – PI. [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 15).

Novamente, esse processo encontra-se permeado pelas relações afetivas, que não apenas conectam pesquisadoras(es) e seus recortes de estudo, como também outorgam a responsabilidade de zelar por ele. A partir de 2014, as tendências sinalizadas avolumam-se, culminando em reflexões formalizadas sobre a ‘arqueologia pública’, a ‘educação patrimonial’ e a ‘crítica decolonial’, que envolveram inclusive os limites do PNSC, em um fluxo intenso de estudantes da região e de outras partes do país. Como exemplo, podemos mencionar o trabalho “Casa de farinha: o saber tradicional como Patrimônio Imaterial” (Lacerda, 2016Lacerda, J. R. (2016). Casa de farinha: O saber tradicional como patrimônio imaterial [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].), no qual a autora enfoca os saberes e fazeres associados ao processamento da mandioca numa comunidade rural do município de Bonfim do Piauí, no Piauí, compreendendo as casas de farinha como centros de produção e como espaços de convivência social. Assim, busca problematizar os “. . . jogos de poder políticos, econômicos, ideológicos e culturais. . .” que levam a “. . . uma valorização do patrimônio urbano e elitista. . .” e “. . . ao descaso [com] o patrimônio das comunidades rurais. . .” (Lacerda, 2016Lacerda, J. R. (2016). Casa de farinha: O saber tradicional como patrimônio imaterial [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 11). Todavia, a autora deixa claro que reconhecer os obstáculos historicamente impostos por poderes hegemônicos não significa negar o protagonismo ou propagandear uma submissão ou passividade das comunidades rurais nordestinas, visto que:

O cotidiano do homem sertanejo, que aqui é relatado, não é aquele de homem sofrido e oprimido onde sua história é apenas vista como a do vencido, na qual o homem bem-sucedido toma seu espaço de representação. O sertanejo é visto aqui como um homem simples, forte e corajoso que, mesmo com as dificuldades que enfrenta na terra árdua de poucas chuvas, onde as produções e os ganhos são em pequena quantidade e a labuta diária requer de muito esforço e dedicação, eles enfrentam de cabeça erguida para vencer seus obstáculos. Ao raiar do sol, já inicia um dia de muitos afazeres, são várias as atividades que são desempenhadas em família no labor da roça

(Lacerda, 2016Lacerda, J. R. (2016). Casa de farinha: O saber tradicional como patrimônio imaterial [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 17).

Percebemos que, novamente, o texto acadêmico torna-se, simultaneamente, instrumento de valorização das realidades locais e espaço para apresentação de demandas ou busca de direitos. Algo que podemos visualizar nos agradecimentos presentes na monografia de Lacerda (2016, p. 3):

A academia é um dos caminhos que percorremos para realização dos nossos tão almejados sonhos e foi através dela que tive a oportunidade de dar início à realização de um sonho, a valorização dos conhecimentos empíricos dos grandes cientistas que não tiveram a oportunidade de conquistar a tão sonhada cadeira acadêmica ou não a viram como necessidade de ali estar porque o seu cotidiano já é uma academia.

Em 2017, os questionamentos se tornaram mais incisivos e passaram a confrontar a Arqueologia no tocante às suas áreas de interesse e operações no mundo, explodindo nas monografias defendidas em 2019. Ampliaram-se as incursões comprometidas em promover diálogos visando dirimir as barreiras erigidas entre a universidade e o grande público, bem como contestar as assimetrias que muitas vezes são gestadas no universo acadêmico. Para tanto, cada vez mais, o conhecimento formal adquirido durante a graduação é acionado, não apenas para dar visibilidade e garantir a valorização dos contextos locais, como também acaba sendo reconfigurado para incluir saberes, ações e expectativas, concebidos pelos colaboradores e/ou comunidades com as quais a(o) pesquisadora(or) estabelece vínculos, ainda que estes não estejam diretamente associados ao objeto de pesquisa. Persistem as reivindicações para que a Arqueologia assuma definitivamente o seu compromisso com a transformação social e a reparação histórica nas relações de exclusão, que envolvem a produção de conhecimento e o trabalho com o patrimônio. Nessas articulações, é interessante perceber que, cada vez mais, os limites epistêmicos entre a Arqueologia, a Antropologia, a História, a Museologia são extrapolados e, em determinadas circunstâncias, intencionalmente tensionados e contestados, em uma conjuntura que tem estimulado repensar os canais tradicionais de validação acadêmica, como é o caso das bancas de avaliação de trabalhos pelos pares.

Como exemplo desse cenário, podemos citar a monografia de Silva (2017)Silva, V. L. (2017). Arqueologia pública, memória e valorização do patrimônio cultural em um território quilombola: Estudo de caso da Roda de São Gonçalo na comunidade Lagoa das Emas, São Raimundo Nonato – PI [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., intitulada “Arqueologia pública, memória e valorização do patrimônio cultural em um território quilombola: estudo de caso da Roda de São Gonçalo na Comunidade Lagoa das Emas, São Raimundo Nonato – PI”. O trabalho teve como objetivo central compreender a história e analisar o patrimônio material e imaterial associado à devoção e aos festejos para o santo católico que ocorrem numa comunidade quilombola do sudeste do Piauí (Silva, 2017Silva, V. L. (2017). Arqueologia pública, memória e valorização do patrimônio cultural em um território quilombola: Estudo de caso da Roda de São Gonçalo na comunidade Lagoa das Emas, São Raimundo Nonato – PI [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].). Para tanto, a autora destaca que foi essencial não apenas incluir as pessoas responsáveis pela promoção e execução das Rodas de São Gonçalo (mestres e cantadeiras), mas, principalmente, “. . . construir com elas um sentimento de afeto, e uma responsabilidade afetiva de como a história do folguedo está sendo escrita pela comunidade de Lagoa das Emas” (Silva, 2017Silva, V. L. (2017). Arqueologia pública, memória e valorização do patrimônio cultural em um território quilombola: Estudo de caso da Roda de São Gonçalo na comunidade Lagoa das Emas, São Raimundo Nonato – PI [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 57).

Longe de defender uma neutralidade científica, a pesquisadora partiu dos encontros afetivos para assumir um posicionamento direto em defesa das pessoas envolvidas na pesquisa. Inseriu suas reflexões nas lutas pela demarcação das terras, por visibilidade e pelos direitos dessas comunidades se representarem simbolicamente, que continuou para além da conclusão do trabalho monográfico. Nesse ponto, é importante registrar que o envolvimento com as demandas locais viabilizou que o grupo de dança afro da comunidade fosse contemplado com verbas do 5º Prêmio Culturas Populares Leandro Gomes de Barros, promovido pelo extinto Ministério da Cultura. Além disso, devemos destacar que a defesa da monografia do curso de graduação em Arqueologia e Preservação Patrimonial aconteceu fora dos muros da UNIVASF, num espaço da comunidade:

Sendo essa não apenas mais uma forma de agradecer a todos, e tentar romper as distâncias que separam a academia e as pessoas que nem sempre têm acesso ao ensino formal; como também de firmar nosso compromisso com a continuidade dos trabalhos colaborativos com as pessoas dessa comunidade

(Silva, 2017Silva, V. L. (2017). Arqueologia pública, memória e valorização do patrimônio cultural em um território quilombola: Estudo de caso da Roda de São Gonçalo na comunidade Lagoa das Emas, São Raimundo Nonato – PI [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 58).

Nessa perspectiva, a participação ativa dos colaboradores no exercício de tradução de suas trajetórias e construção de um discurso social atinente à produção científica pode ser similarmente observada na monografia apresentada em 2019, “Objetos de memória: análise da coleção da ‘Dona Vani’ e ‘Seu Valdomiro’ através da perspectiva da Arqueologia Pública”. De autoria de T. Martins (2019)Martins, T. G. (2019). Objetos de memória: Análise da coleção da “Dona Vani” e “Seu Valdomiro” através da perspectiva da Arqueologia Pública [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., o trabalho surgiu dos vínculos afetivos estabelecidos entre o discente e o casal de idosos Maria Vamilda de Silva e Valdomiro Ribeiro dos Santos, fomentados na construção de atividades extensionistas com a comunidade de São Raimundo Nonato. Nas experiências compartilhadas, Dona Vani e Seu Valdomiro não apenas definiram a coleção que deveria ser analisada, como participaram ativamente na construção de narrativas sobre os objetos, entrelaçando o uso destas coisas com suas histórias de vida (T. Martins, 2019Martins, T. G. (2019). Objetos de memória: Análise da coleção da “Dona Vani” e “Seu Valdomiro” através da perspectiva da Arqueologia Pública [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].). A defesa pública da monografia contou com Dona Vani como participante da banca de avaliação, realizando interpelações e definindo a nota do discente (Figura 8). Na prática, o evento perturbou de maneira frontal as ideias de saberes autorizados e espaços de legitimação, ao abrir o campo da crítica para a expressão de outras epistemologias. Cabe ressaltar que o casal de colaboradores vive há mais de 30 anos no bairro Ingazeira, localizado nas imediações do campus Serra da Capivara. Apesar disso, a primeira vez que Dona Vani adentrou aquele local foi durante a cerimônia da defesa. Certamente, trata-se de atitude ainda pontual, mas que indica possibilidades concretas de transformação dos processos clássicos de validação acadêmica.

Figura 8
Defesa de monografia de Thor Martins, no Auditório do campus Serra da Capivara. Na imagem, em sentido anti-horário, aparecem na mesa os membros Leandro Mageste, Fátima Barbosa, Alencar de Miranda Amaral, Maria Vamilda da Silva, Rosemary Aparecida Cardoso e, mais atrás, Maria Antônia Macêdo (Dona Tonha), acompanhante de Dona Vani. Abaixo, sentado na primeira fila, encontra-se o estudante.

Do ponto de vista dos discentes, as motivações que asseguram a legitimidade acadêmica de suas investigações podem emergir de questões relacionadas com suas trajetórias individuais, mas com ressonâncias coletivas da vida em comunidade, passíveis de serem entendidas e transformadas por meio de múltiplas arqueologias. São vieses que parecem ter orientado o trabalho “Casa de Mãe Eugênia: arqueologia em uma Casa de Santo na cidade de São Raimundo Nonato – PI”, de Marques (2019)Marques, N. L. V. (2019). Casa de Mãe Eugênia: Arqueologia em uma Casa de Santo na cidade de São Raimundo Nonato – PI. [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].. Logo na abertura do texto, a autora esclarece que “. . . o primeiro passo dessa pesquisa foi dado por conta de um desejo muito pessoal e sensível de ‘manter’ uma memória íntima e familiar viva, e ainda fazer com que ela fosse notada por outros. . .” (Marques, 2019Marques, N. L. V. (2019). Casa de Mãe Eugênia: Arqueologia em uma Casa de Santo na cidade de São Raimundo Nonato – PI. [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 12). Ao mesmo tempo, existiu a vontade de contribuir para a “. . . valorização da cultura do povo preto e a importância e representatividade da mesma na constituição da história da cidade e das relações sociais que ela abriga. . .” (Marques, 2019Marques, N. L. V. (2019). Casa de Mãe Eugênia: Arqueologia em uma Casa de Santo na cidade de São Raimundo Nonato – PI. [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].. p. 15). Na empreitada, a autora compartilha não apenas fragmentos de sua vida íntima, mas também os seus anseios enquanto pesquisadora, visto que:

. . . falar do terreiro e da casa da Vó Gena, é falar da minha infância, foi neste espaço onde vivi mais de quatorze anos da minha vida, e o meu desafio agora é torná-lo científico, um objeto de estudo da Arqueologia, levando em conta sua materialidade e espaço social marginalizado

(Marques, 2019Marques, N. L. V. (2019). Casa de Mãe Eugênia: Arqueologia em uma Casa de Santo na cidade de São Raimundo Nonato – PI. [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 15).

Desse modo, a autora defende as oportunidades oferecidas pela Arqueologia no escrutínio das vivências humanas ressignificadas no presente:

Ao final deste trabalho percebe-se que a Arqueologia tem um grande potencial para desvendar muitas histórias de vida como a de Eugênia, que conseguem abrir um leque de discussões de relações sociais, de poder e espaciais, assim contribuindo e complementando a historiografia da região. . . . O que era o maior desafio deste trabalho acabou sendo um dos fatores mais importantes, o anseio pessoal de transformar a história de vida da Vó Gena em ciência. Uma Arqueologia pessoal e sentimental é possível e importante!

(Marques, 2019Marques, N. L. V. (2019). Casa de Mãe Eugênia: Arqueologia em uma Casa de Santo na cidade de São Raimundo Nonato – PI. [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 58).

Uma perspectiva semelhante ecoa no trabalho de J. Martins (2018)Martins, J. F. (2018). A lida do vaqueiro da Comunidade Boqueirão/Buriti do Rei, Oeiras-Pi: Cultura material, espaços, memórias e saberes [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., intitulado “A lida do vaqueiro da Comunidade Boqueirão/Buriti do Rei, Oeiras-PI: cultura material, espaços, memórias e saberes”, no qual a autora elegeu sua comunidade como locus de pesquisa e utilizou os pertences e as narrativas de seu pai como ponto de partida para suas análises sobre memória, cultura material e patrimônio (J. Martins, 2018Martins, J. F. (2018). A lida do vaqueiro da Comunidade Boqueirão/Buriti do Rei, Oeiras-Pi: Cultura material, espaços, memórias e saberes [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].). A autora foi categórica ao revelar sua vinculação com seu objeto de pesquisa:

O interesse pelo tema surgiu da necessidade que a pesquisadora teve de trabalhar com uma cultura que a mesma conhecesse e que ao mesmo tempo obtivesse extremo valor simbólico para a sociedade. Através desta pesquisa obtenho a realização de um grande sonho em concluir a faculdade de Arqueologia e Preservação Patrimonial e presto homenagem a todos os guerreiros da caatinga, em especial ao meu pai, João de Jaime, que na labuta com os animais e trabalhando como agricultor construiu sua família juntamente com sua esposa, Dona Dlange, e formaram seus quatro filhos. Este trabalho busca dar visibilidade aos artesãos do couro e aos vaqueiros da comunidade Boqueirão Buriti do Rei

(Martin, 2018, p. 13).

Somam-se a esses estudos as abordagens comprometidas com os vieses políticos dos passados no presente, buscando identificar outras lógicas e temáticas que escapam dos discursos autorizados sobre o patrimônio. Tais orientações podem ser melhor observadas na pesquisa intitulada “‘Aqui, onde cavar acha pote’: patrimônio arqueológico nos quintais dos moradores de São Braz do Piauí – PI e seus usos e significados no presente”, de Macêdo (2019)Macêdo, G. S. (2019). ‘Aqui, onde cavar acha pote’: Patrimônio arqueológico nos quintais dos moradores de São Braz do Piauí – PI e seus usos e significados no presente [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].. Moradora do município enfocado na pesquisa, assim como Soares (2010)Soares, A. M. A. (2010). Pinturas rupestres no Município de São Braz Do Piauí: Padrão de reconhecimento e temática dominante [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., experimentou desde a infância curiosidade em relação às(aos) arqueólogas(os) que transitavam pelas ruas da cidade para coletar as urnas funerárias que apareciam, ocasionalmente, nas vias públicas e quintais dos moradores: “. . . escolhi ser arqueóloga por curiosidade e acabei me redescobrindo na escrita como representante de vozes silenciadas. . . . escrevendo sobre as histórias do meu povo e do meu lugar” (Macêdo, 2019Macêdo, G. S. (2019). ‘Aqui, onde cavar acha pote’: Patrimônio arqueológico nos quintais dos moradores de São Braz do Piauí – PI e seus usos e significados no presente [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., p. 7). Com essas preocupações, o trabalho consistiu em um esforço por entender os diferentes significados atribuídos às ideias de patrimônio arqueológico e Arqueologia por parte da população local, culminando em reflexões sobre os encontros e desencontros entre processos de produção de conhecimento:

Devo admitir que este desejo por incorporar diferentes formas de conhecimento na prática arqueológica encontra fundamentos de ordem pessoal. Pessoal porque se relaciona com minhas expectativas enquanto moradora da região. Aqui, assumo a dupla posição de pertencer à comunidade e ser pesquisadora da mesma. Assumo também os riscos dessa empreitada. . . . Sendo assim, estou ciente de que nenhum discurso assumido aqui é isento de posicionamento político. Em muitos momentos, foi comum que as memórias afetivas dos/as meus narradores/as se confundissem com as minhas memórias e da minha família

(Macêdo, 2019Macêdo, G. S. (2019). ‘Aqui, onde cavar acha pote’: Patrimônio arqueológico nos quintais dos moradores de São Braz do Piauí – PI e seus usos e significados no presente [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco]., pp. 14-15).

O reconhecimento das vinculações pessoais torna-se parte do problema a ser pesquisado, que é constituído dialeticamente entre motivações subjetivas e certo senso de mobilização coletiva. É digno de nota verificar que as provocações que moveram a autora dialogam com outros estudos desenvolvidos por discentes do mesmo município (J. Sousa, 2019Sousa, J. S. (2019). Os lugares de memória de São Braz do Piauí: Lembranças e narrativas sobre a história e o patrimônio local [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].; P. P. Santos, 2019Santos, P. P. J. (2019). Memórias e narrativas sobre as populações indígenas em São Raimundo Nonato-Pi e Microrregião: Uma descrição sobre as produções históricas antecedentes, abordagens precursoras e relatos orais [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].; Ferreira dos Santos, 2020Ferreira Dos Santos, C. E. (2020). História oral e cultura material: O Engenho de cana-de-açucar do Sr. Abílio Ferreira no município de São Braz do Piauí [Trabalho de conclusão de curso, Universidade Federal do Vale do São Francisco].). Em conjunto, são propostas marcadas por experimentações teóricas e metodológicas, formatadas em comunidade. Em tais condições, os trabalhos de campo aparecem como um encontro familiar, traduzido para lógica comunitária do associativismo, que estabelece para todos os colaboradores o papel momentâneo de pesquisadores, nas conversas conduzidas com colegas e familiares sobre as coisas e sobre a vida. Certamente, isso culmina em teorizações fundamentadas em outras leituras da realidade, nas quais as diferenciações entre sujeitos e objetos, ou mesmo entre passado e presente, não parecem fazer tanto sentido (Mageste et al., 2020Mageste, L. E. C., Macedo, G. S., Paes, E. L. C., & Ferreira dos Santos, C. E. (2020). As arqueologias de São Braz do Piauí: Apontamentos iniciais sobre as narrativas e usos dos bens arqueológicos no presente. Cadernos do Lepaarq, 17(34), 164-182. https://doi.org/10.15210/lepaarq.v17i34.19412
https://doi.org/10.15210/lepaarq.v17i34....
).

ARQUEOLOGIAS AFETIVAS EM CONEXÃO: EXPERIÊNCIAS E RESSONÂNCIAS

Em conjunto, os estudos apresentados explicitam um movimento mais amplo de incorporação das afetividades nos processos de investigação e produção do conhecimento, considerando seus efeitos políticos e epistemológicos. Nesse cenário, observa-se que, de certo modo, a produção das ‘arqueologias afetivas’ visa desestruturar ou combater aquilo que Burke (2000, pp. 85-86)Burke, P. (2000). História como memória social. In Autor, Variedades de história cultural (2 ed., pp. 67-90). Civilização Brasileira. designou como “amnésia social”, ou seja, “. . . a obliteração oficial de memórias em conflito. . .”, muitas vezes promovida em consonância com os interesses das elites socioeconômicas e intelectuais. Para tanto, muitas arqueólogas nascidas e/ou formadas no sudeste e sudoeste do Piauí têm se tornado “mulheres-memória”, parafraseando Nora (1993, p. 18)Nora, P. (1993). Entre memória e história: A problemática dos lugares. Projeto História, 10, 7-28., e se dedicado ao “. . . trabalho de enquadramento da memória. . .” (Pollak, 1992Pollak, M. (1992). Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, 5(10), 200-212., p. 296). Contudo, essas pesquisadoras não visam trilhar o caminho dos ‘historiadores orgânicos’, comprometidos com a composição de uma história nacional. Pelo contrário, percebe-se que, nas pesquisas produzidas pelas(os) discentes da UNIVASF, memórias herdadas e construídas, como diria Pollak (1992)Pollak, M. (1992). Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, 5(10), 200-212., são abordadas “. . . em função das preocupações pessoais e políticas do momento. . .” (Pollak, 1992Pollak, M. (1992). Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, 5(10), 200-212., p. 204). Nesses casos, tal como discutido por Moraes (2005, p. 98)Moraes, I. A. (2005). Memória social: Solidariedade orgânica e disputa de sentidos. In J. Gondar & V. Dodebei (Orgs.), O que é memória social (pp. 89-104). Contra Capa., “memórias sociais subterrâneas”, desqualificadas e/ou ignoradas pelos discursos dominantes, são empregadas “. . . como saber, metodologia de produção de conhecimento e resistência social” (Moraes, 2005Moraes, I. A. (2005). Memória social: Solidariedade orgânica e disputa de sentidos. In J. Gondar & V. Dodebei (Orgs.), O que é memória social (pp. 89-104). Contra Capa., p. 98), fomentando reflexões e promovendo mudanças na forma de se fazer e pensar Arqueologia.

Todavia, o intuito não é romper com a norma acadêmica, ou defender que um discurso personalista e/ou relativista seja suficiente para embasar e garantir a validade da pesquisa. O que acontece é a crítica dos contextos de produção científica, demonstrando seus efeitos sociais menos visíveis e suas possibilidades de superação, por meio de tensionamento disciplinar e do posicionamento político. A situação invoca a ideia de desobediência epistêmica, como alternativa à violência do colonialismo. Trata-se de conceito aprofundado por Mignolo (2008Mignolo, W. D. (2008). Desobediência epistêmica: A opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, (34), 287-324., 2017)Mignolo, W. D. (2017). Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32(94), 1-18. https://doi.org/10.17666/329402/2017
https://doi.org/10.17666/329402/2017...
para se referir à dissociação entre a produção de saberes e as expectativas de racionalidade constituída no contexto da modernidade. Na opinião de Mignolo (2008)Mignolo, W. D. (2008). Desobediência epistêmica: A opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, (34), 287-324., a desobediência significa demarcar um posicionamento político em defesa da existência e da expressão de outros vieses epistemológicos e ontológicos que integram sistemas de conhecimento variados. Sob essa conjuntura, o alinhamento do fazer arqueológico com as perspectivas socioeconômicas hegemônicas e oficiais passa a ser exposto e questionado. O mesmo ocorre no que diz respeito à legitimidade dos discursos e das ações patrimoniais, que são problematizados, confrontados e redimensionados a partir de uma multiplicidade de motivações individuais e coletivas.

Nos últimos anos, tais premissas ressoam com abordagens devotadas em construir arqueologias plurais e atentas para a dimensão da sensibilidade. São exemplos consonantes com parte das pesquisas desenvolvidas na UNIVASF, inspirando a busca por operações e significados nem sempre de acordo com os contornos sugeridos pelos discursos autorizados sobre patrimônio. Nesse caminho, nos aproximamos do trabalho de Bezerra (2017, p. 14)Bezerra, M. (2017). Teto e afeto: Sobre as pessoas, as coisas e a arqueologia na Amazônia. GKNoronha., que propôs “. . . uma Arqueologia da memória e do afeto das pessoas vivas”. Em suas colaborações junto às comunidades amazônicas, a pesquisadora percebeu que “. . . as pessoas sempre demonstravam algum tipo de relação com as coisas do passado, ainda que fosse uma ‘não relação’” (Bezerra, 2017Bezerra, M. (2017). Teto e afeto: Sobre as pessoas, as coisas e a arqueologia na Amazônia. GKNoronha., p. 12). Inseridos no cotidiano dessas comunidades, o que priorizamos como patrimônio arqueológico é observado, descrito e interpretado, podendo ser colecionado, reutilizado, destruído ou mesmo ignorado. Essas práticas são consequências da atuação de outras temporalidades e epistemologias, consistindo em formas de engajamento com a Arqueologia que estão quase sempre na clandestinidade. Ao contrário das narrativas científicas que atestam relevância e uso para bens arqueológicos como testemunhos de passado cristalizado, distante e operacionalizado somente por especialistas, Bezerra (2017)Bezerra, M. (2017). Teto e afeto: Sobre as pessoas, as coisas e a arqueologia na Amazônia. GKNoronha. interessa-se pelos laços afetivos cultivados por moradores do entorno de sítios arqueológicos em relação aos objetos coletados nesses locais. Demonstra como essas “coisas do passado” são mundanizadas no presente “numa perspectiva do afeto” (Bezerra, 2017Bezerra, M. (2017). Teto e afeto: Sobre as pessoas, as coisas e a arqueologia na Amazônia. GKNoronha., p. 56), nas articulações entre memória e experiência. Sem dúvida, uma lógica bem similar àquela que aparece em parte da produção discente da UNIVASF, quando olhamos para as pesquisas e suas motivações mais de perto.

Certamente, tais entendimentos suscitam um reposicionamento da Arqueologia, conforme provocou Cabral (2014)Cabral, M. P. (2014). No tempo das pedras moles: Arqueologia e simetria na floresta [Tese de doutorado, Universidade Federal do Pará]., em seu trabalho junto com os Wajãpi. A disciplina deixa de ser encarada como sinônimo do estudo das coisas do passado, para emergir como uma forma de conhecer o mundo, expressa na produção de narrativas que conectam memórias, materialidades e temporalidades. Assim, as arqueologias configuram-se nos encontros entre sistemas de conhecimentos distintos – nem sempre pacíficas ou compatíveis entre si –, produzidos no contexto de situações históricas, sociais e afetivas específicas. Desse modo, Cabral (2014, p. 84)Cabral, M. P. (2014). No tempo das pedras moles: Arqueologia e simetria na floresta [Tese de doutorado, Universidade Federal do Pará]. nos convida a ponderar sobre a importância das “percepções da ordem do sensível” na produção de sentidos e significados sobre locais e objetos, ressaltando como a prática arqueológica “. . . mais próxima do sensível do que do metódico. . .” (Cabral, 2014Cabral, M. P. (2014). No tempo das pedras moles: Arqueologia e simetria na floresta [Tese de doutorado, Universidade Federal do Pará]., p. 49) promove relações mais simétricas e viabiliza a concepção de uma Arqueologia múltipla (Cabral, 2014Cabral, M. P. (2014). No tempo das pedras moles: Arqueologia e simetria na floresta [Tese de doutorado, Universidade Federal do Pará]., p. 210). Para a nossa realidade, conforme observamos, esses posicionamentos explicam, em parte, a ampliação do escopo de interesse da Arqueologia para a produção de saberes sensíveis, nos quais os tensionamentos e arranjos entre epistemologias diversas têm a chance de produzir ‘arqueologias afetivas’.

Na conjuntura, o afeto torna-se substância para a constituição de uma “Arqueologia humilde” e “desalienadora”, próxima dos problemas e das expectativas das pessoas, na opinião de Lima (2019, p. 34)Lima, H. P. (2019). Patrimônio para quem? Por uma arqueologia sensível. Habitus, 17(1), 25-38. http://dx.doi.org/10.18224/hab.v17i1.7086
https://doi.org/10.18224/hab.v17i1.7086...
. Suas reflexões são embasadas na pesquisa que desenvolveu sobre a gestão do patrimônio arqueológico no Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). Por meio do trabalho colaborativo, buscou romper com a dicotomia entre conhecimentos especializados e populares na gestão do patrimônio arqueológico do Museu, repensando o manuseio, a guarda, o acesso e a formatação conceitual, a partir do envolvimento comunitário e da produção de diferentes narrativas para os bens. Em um espaço institucionalizado, Lima (2019, p. 33)Lima, H. P. (2019). Patrimônio para quem? Por uma arqueologia sensível. Habitus, 17(1), 25-38. http://dx.doi.org/10.18224/hab.v17i1.7086
https://doi.org/10.18224/hab.v17i1.7086...
defendeu que “. . . a vivência e as pessoas sejam os elementos mais importantes no que concerne o patrimônio arqueológico”. Propôs, assim, uma “Arqueologia sensível, [que] . . . faz muito mais do que tratar dos acervos sensíveis. . .”, visto que também “trata do afeto” (Lima, 2019Lima, H. P. (2019). Patrimônio para quem? Por uma arqueologia sensível. Habitus, 17(1), 25-38. http://dx.doi.org/10.18224/hab.v17i1.7086
https://doi.org/10.18224/hab.v17i1.7086...
, p. 33). Operacionalmente, pautou-se no trabalho colaborativo com as comunidades, tendo como premissa ouvir e dialogar. Tal engajamento, fundado na experiência, fomenta a abertura para outras formas de trabalho com a Arqueologia, mais promissoras em construir sentidos menos autoritários.

Na perspectiva que elenca os afetos como eixo central para a articulação de diferentes sistemas de conhecimento, podemos mencionar, ainda, a ‘autoarqueologia’, de Hartemann (2019)Hartemann, G. (2019). Voltar, contar e lembrar de Gangan: Por uma Arqueologia griótica afrodecolonial em Mana, Guiana [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais]., junto à comunidade de Mana, na Guiana Francesa. Destacamos, especialmente, suas reflexões sobre ‘as Arqueologias que machucam’ e a dor causada nas “. . . formas de participação e de reprodução ativas no racismo e na colonialidade por parte da Arqueologia” (Hartemann, 2019Hartemann, G. (2019). Voltar, contar e lembrar de Gangan: Por uma Arqueologia griótica afrodecolonial em Mana, Guiana [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais]., p. 24), ao lidar com narrativas e contextos associados à diáspora africana. Em um texto intimista e sensível, afasta-se de concepções coloniais de ciência, para fundamentar-se em reflexões afrodecoloniais e na valorização da oralidade e de memórias como caminhos para práticas de pesquisa menos violentas. As arqueologias são concebidas como maneiras de contar histórias, com outras noções de tempo e ancestralidade. Em compasso com o que observamos na produção discente da UNIVASF, constituem práticas que permitem o engajamento com uma realidade próxima e envolvente, balizadas pela trajetória biográfica e pelo reconhecimento de seus vínculos com processos históricos e sociais mais amplos.

Retornando ao Nordeste, as afetividades aparecem enquanto abordagem explícita em outro cenário de ensino formal: na especialização em Arqueologia Social Inclusiva, conduzida pela Universidade Regional do Cariri (URCA), em Nova Olinda, no Ceará, em parceria com a Fundação Casa Grande - Memorial do Homem Kariri e o Instituto de Arqueologia do Cariri (IAC). A iniciativa é um desdobramento dos projetos colaborativos inaugurados por Rosiane Lima Verde (in memorian) na região, voltados para o desenvolvimento de uma Arqueologia atenta para as demandas do presente e das comunidades. Memória, afeto, comunicação e transformação social são instituídos como eixos de uma abordagem claramente revolucionária, na medida em que pressupõem a sua instrumentalização para a construção de uma sociedade mais democrática, considerando diferentes sistemas de conhecimentos. Desse modo, ‘Arqueologia social inclusiva’ é também ‘Arqueologia afetiva’: “. . . vai para muito além de uma disciplina de escavações de campo e seus resultados sistematizados, abrangendo também ideias, símbolos, imagens, mitos e, por que não dizer, sentimentos. . .” (Limaverde, 2015Limaverde, R. (2015). Arqueologia social inclusiva: A Fundação Casa Grande e a gestão do patrimônio cultural da Chapada do Araripe, Nova Olinda, CE, Brasil [Tese de doutorado, Universidade de Coimbra]., p. 113).

Nos caminhos abertos por esses esforços, entendemos as abordagens da UNIVASF como parte de um fenômeno transversal mais amplo, com ressonâncias em outros recortes, onde a Arqueologia tem sido transmutada por afetividades e preocupações com a democratização de conhecimentos e seus efeitos no mundo (cf. Monteiro, 2020Monteiro, G. A. (2020). Escavando assimetrias na Arqueologia do Nordeste do Brasil: A dicotomia entre material x social em destaque [Monografia, Universidade Federal de Pernambuco].). Por isso, falamos de investidas que buscam se afastar de uma pretensa neutralidade científica, para associar a ciência com envolvimento político e intervenção concreta em uma realidade que se projeta para o presente. Para nós, são pontos também congruentes com algumas das perspectivas da Arqueologia social latino-americana, especificamente àquelas que compartilham do reconhecimento de que a Arqueologia é um empreendimento determinante para emancipação global do Cone Sul, ao produzir dissonâncias capazes de erodir narrativas coloniais, desnaturalizando situações de opressão que persistem na contemporaneidade (Benavides, 2011Benavides, O. H. (2011). Retornando à origem: Arqueologia social como filosofia latino-americana. Revista Terceiro Incluído, 1(2), 164-194.).

Historicamente, trata-se de movimento desenvolvido entre os anos 1960 e 1970, a partir de reflexões de Lumbreras (1974)Lumbreras, J. G. (1974). A arqueologia como ciência social. Ediciones Histar., no Peru, estendendo-se depois para países como Equador, Venezuela, México, entre outros. A inspiração para o projeto foi a Arqueologia social e marxista de Gordon Childe, em compasso com o diagnóstico socioeconômico fornecido pelas teorias de dependência e subdesenvolvimento. De modo geral, culminou na adoção de uma perspectiva pautada no materialismo histórico e dialético. Em consonância com o contexto político da época, a utilização do marxismo significava a demarcação de um compromisso revolucionário dessa Arqueologia. Justamente por isso, seus desenvolvimentos, fracassos e ausências só podem ser apreendidos à luz dos golpes e contragolpes que marcam a história recente da América Latina – incluindo o Brasil11 11 O Brasil permaneceu às margens da Arqueologia social latino-americana. O período de formulação do marco coincide com a ascensão da ditadura civil-militar brasileira, a partir de 1964. Nesse momento, no contexto de profissionalização da disciplina, foram estreitados os laços com pesquisadores norte-americanos para o desenvolvimento da Arqueologia brasileira, por meio da promoção daquilo que Funari (1998, p. 9) denomina de “positivismo ingênuo”. Na conjuntura, fortaleceu-se uma abordagem despolitizante, na qual as inclinações ideológicas de pesquisadores individuais não constituíram terreno para agendas mais amplas (Barreto, 1998). Por outro lado, não podemos deixar de reconhecer a convergência entre algumas pesquisas brasileiras e as preocupações latino-americanas, principalmente a partir do clima de abertura política dos anos 1980 – mesmo não invocando explicitamente o rótulo de Arqueologia social (cf. Loures de Oliveira, 2012). Pensamos, particularmente, no trabalho de Brochado (1984, p. 565) e colaboradores, com as defesas explícitas de que, no ‘Leste da América do Sul’, a Arqueologia é a história das populações indígenas, de modo que as relações entre o passado e o presente deveriam ser deliberadamente perseguidas. –, com as ações institucionalizadas de violência, perseguição e censura sobre quem comungava de referenciais considerados subversivos. Não foi à toa que a Arqueologia social latino-americana também ficou conhecida como ‘Arqueologia do protesto’ (Oyuela-Caycedo et al., 1997Oyuela-Caycedo, A., Anaya, A., Elera, C. G., & Valdez, L. M. (1997). Social archaeology in Latin America? Comments to T. C. Patterson. American Antiquity, 62(2), 365-374. https://doi.org/10.2307/282518
https://doi.org/10.2307/282518...
; Jackson et al., 2012Jackson, D., Troncoso, A., & Salazar, D. (2012). Hacia una crítica de lá práctica de la arqueologia social latinoamericana. In H. Tantaleán & M. Aguillar (Eds.), La arqueología social latinoamericana: De la teoria a la práxis (pp. 49-62). Ediciones Uniandes.).

Com esse ponto de partida, organizou-se uma concepção de Arqueologia como Ciência Social, apta a problematizar os vieses da História oficial (Lumbreras, 1974Lumbreras, J. G. (1974). A arqueologia como ciência social. Ediciones Histar.; Oyuela-Caycedo et al., 1997Oyuela-Caycedo, A., Anaya, A., Elera, C. G., & Valdez, L. M. (1997). Social archaeology in Latin America? Comments to T. C. Patterson. American Antiquity, 62(2), 365-374. https://doi.org/10.2307/282518
https://doi.org/10.2307/282518...
). Ao mesmo tempo, estimulou-se a aversão por posturas empiricistas, vistas como expressões concretas de um imperialismo atuante para impedir a autorrepresentação dos povos e o interesse por outras epistemologias e ontologias. Frente a tais orientações, Oyuela-Caycedo et al. (1997)Oyuela-Caycedo, A., Anaya, A., Elera, C. G., & Valdez, L. M. (1997). Social archaeology in Latin America? Comments to T. C. Patterson. American Antiquity, 62(2), 365-374. https://doi.org/10.2307/282518
https://doi.org/10.2307/282518...
ressaltam que a Arqueologia social latino-americana pode ser melhor encarada como um movimento político e histórico e não como arranjo teórico-metodológico hermético. Na mesma linha, para Benavides (2011)Benavides, O. H. (2011). Retornando à origem: Arqueologia social como filosofia latino-americana. Revista Terceiro Incluído, 1(2), 164-194., consiste em um esforço filosófico para entender a construção dos sujeitos latino-americanos e da própria ideia de América Latina, sem perder de vista os dilemas existenciais abertos pela situação de colonizado. A amplitude das definições é proveitosa, pois permite estabelecer conexões entre iniciativas que não instrumentalizam explicitamente o marxismo ou se rotulam como Arqueologia social, como é o caso de algumas propostas de ‘Arqueologia pública’, ‘Arqueologia indígena’ e ‘crítica decolonial’.

Desse modo, entre a multiplicidade de trabalhos focados em temporalidades e contextos distintos, persiste como base fundamental da Arqueologia social latino-americana o comprometimento social de arqueólogas(os) no papel de cientistas e participantes da história de suas comunidades, com as quais expressam senso de responsabilidade política. Justamente por isso, podem se ver conectadas(os) aos cenários que estão interpretando, sem que isso constitua empecilho para a condução do estudo ou condição obrigatória para reivindicação identitária. Ao reconhecer que ciência é poder, rechaçam o “positivismo empirista”, pautado em explicações objetivas, para combinar elementos científicos com análises de aspectos sociopolíticos referentes aos seus processos de produção (Benavides, 2011Benavides, O. H. (2011). Retornando à origem: Arqueologia social como filosofia latino-americana. Revista Terceiro Incluído, 1(2), 164-194., p. 181). Finalmente, por não se limitarem a divisões disciplinares ou temporais rígidas, tornam a investigação de qualquer “. . . sociedade ou formação social como válida para compreender e avaliar os assuntos pessoais em suas pesquisas” (Benavides, 2011Benavides, O. H. (2011). Retornando à origem: Arqueologia social como filosofia latino-americana. Revista Terceiro Incluído, 1(2), 164-194., p. 174). Nesses termos, são premissas com o potencial para desestabilizar a própria ideia de universidade como espaço de reprodução de hierarquias, fragmentação de saberes e de objetividade fria. Ao nosso ver, as ‘arqueologias afetivas’ instigam a construção de alternativas, em compasso com as preocupações latino-americanas. Nos encontros entre afeto e experiência, distinguimos possibilidades concretas de democratização de espaços e discursos acadêmicos, explicitando os seus efeitos na construção de novos problemas, práticas e objetivos de pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entre a construção histórica da Arqueologia no sudeste e sudoeste do Piauí, chegando na diversidade de trabalhos que caracterizam a produção discente do curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial, identificamos algumas tendências que sinalizam para a configuração de uma abordagem específica: as ‘arqueologias afetivas’. Para parte das pesquisas elaboradas por discentes de graduação, o aparato científico vem sendo buscado e empregado como um dossel que assegura a incorporação no cânone acadêmico de espaços, coisas e saberes, inicialmente capturados pelo viés afetivo. Sem dúvidas, a adoção de metodologias colaborativas e de arcabouços teóricos atinentes aos fatores sócio-políticos do fazer científico tem levado as(os) pesquisadoras(es) que se formam na UNIVASF a não apenas buscarem uma aproximação com as comunidades locais, das quais muitas(os) delas(es) fazem parte, como também a assumirem o envolvimento pessoal e a responsabilidade social da pesquisa. Narrativas em primeira pessoa, bem como memórias, objetos e colaboração de familiares e amigos tornam-se recorrentes.

Sob essa perspectiva, o alinhamento das práticas arqueológicas com as perspectivas socioeconômicas hegemônicas e oficiais pode ser exposto e questionado, ao mesmo tempo em que se busca o reconfigurar, na tentativa de promover o protagonismo e a valorização de outras realidades. O mesmo ocorre em relação à legitimidade dos discursos e das ações patrimoniais, que são problematizados, confrontados e redimensionados a partir de interfaces específicas entre demandas individuais e coletivas. As ‘arqueologias afetivas’ não se constrangem com limitações temporais ou temáticas impostas por programas pautados no racionalismo e objetivismo da modernidade, possibilitando o trânsito por diferentes narrativas. Justamente por isso, não podem ser circunscritas geograficamente, mas amplificadas nas experiências de democratização do conhecimento, em compasso com contingências históricas regionais e nacionais relacionadas com a construção de percepções de Arqueologia e patrimônio.

Na ‘capital da Arqueologia no Piauí’, enfatizamos que um dos movimentos mais radicais para o enfrentamento de parte das contradições atreladas com a implementação de discursos científicos e da institucionalização da Arqueologia foi a democratização incipiente das formas de acesso à universidade. Isso permitiu o ingresso de grupos sociais historicamente excluídos de tais espaços, trazendo consigo outras expectativas sobre o papel das instituições. Fomentou um dos nossos ataques mais frontais à nossa herança colonial escravista, que sedimentou uma hierarquia social com posições demarcadas na cor, no gênero, na posição de classe e na legitimidade dos saberes (Schwarcz & Starling, 2015Schwarcz, L. M., & Starling, H. M. (2015). Brasil: Uma biografia. Companhia das Letras.). No caso do funcionamento de cursos de Ciências Humanas e Sociais, tais conquistas são embebidas nos paradoxos atinentes à instalação de universidades que visam atender propósitos desenvolvimentistas; ao passo que são acessados por pessoas situadas na periferia desse capitalismo e com interesses e habilidades nem sempre submetidos à lógica de mercado. A própria ideia de universidade não permaneceu incólume na conjuntura, na medida em que se aprofundam os choques acerca de seus propósitos, modelo de atuação e formas de produzir conhecimento.

Para encerrar, nossos deslocamentos iniciais por essas experiências têm permitido conceber utopias relacionadas com a transmutação das universidades em ‘pluriversidades’, assentadas em uma ecologia de saberes (De Sousa Santos, 2007De Sousa Santos, B. (2007). Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, (78), 71-94. https://doi.org/10.4000/rccs.753
https://doi.org/10.4000/rccs.753...
), que se constitui no momento em que a ciência e se torna um ponto de encontro entre diferentes formas de conhecimento. Não falamos de multivocalidade, mas da pertinência da interculturalidade como processo de tradução, por onde criamos e damos sentido a um mundo (Montenegro, 2014Montenegro, M. (2014). Una experiencia de arqueología pública y colaboración intercultural en el sector septentrional de Argentina. Revista de Arqueologia Pública, 8(10), 26-43. https://doi.org/10.20396/rap.v8i2.8635637
https://doi.org/10.20396/rap.v8i2.863563...
; Alvarado, 2015Alvarado, M. (2015). La educación superior en clave descolonial. Algarrobo-Mel, 4(4), 1-9.). As ‘arqueologias afetivas’ abraçam esse desafio, comprometendo-se com a imaginação de um futuro. Por isso mesmo, existem sob risco constante de dissolução. O questionamento que emerge é se podem resistir à desesperança que se anuncia no horizonte. Fica aqui a nossa provocação e, principalmente, o nosso reconhecimento de que, muito mais do que uma disciplina, no semiárido, a “Arqueologia é uma perspectiva de vida”12 12 “Arqueologia como perspectiva de vida” é frase proferida pela profa. Nívia Paula Dias de Assis (Colegiado de Arqueologia e Preservação Patrimonial - CARQUEOL-UNIVASF), em nossos trajetos entre universidade e comunidades, a partir das vivências e afetos compartilhados com discentes. .

AGRADECIMENTOS

Em um momento de tantas dores e angústias, catalisadas pela pandemia de COVID-19 e seus efeitos no planeta, acompanhado por ataques políticos incessantes à universidade pública e à educação como prática de liberdade, torna-se importante para nós aproveitar o espaço para agradecer pelos afetos, pelos encontros e pelas colaborações que ampararam e estimularam nossas reflexões. Agradecemos principalmente às(aos) nossas(os) estudantes, ao compartilharem suas histórias de vida e investigações acadêmicas. Especialmente, agradecemos ao acadêmico de Arqueologia e Preservação Patrimonial, Mayke Lopes dos Santos, pela participação no levantamento de dados; ao docente Mauro Alexandre Farias Fontes (CARQUEOL-UNIVASF) e ao Escritório Técnico do IPHAN, na figura de Anna Carolina Borges, pela cessão e apoio na busca por imagens; a Luciane Monteiro Oliveira (Museu de Arqueologia e Etnologia Americana da Universidade Federal de Juiz de Fora - MAEA-UFJF), Patrícia Muniz Mendes (Universidade Federal de Lavras - UFLA) e Rosemary Aparecida Cardoso (LAPA-UNIVASF), pelas revisões. Agradecemos a Nívia Paula Dias de Assis (CARQUEOL-UNIVASF), pela inspiração, pelas referências e provocações sobre a história da Arqueologia no Piauí. Finalmente, e não menos importante, estendemos a nossa gratidão aos(as) pareceristas, cujas sugestões mostraram-se fundamentais para a organização de nossas ideias e amadurecimento dos referenciais adotados.

  • 1
    Título conferido pela Lei Estadual n. 6.224Lei Estadual n. 6.224, de 26 de junho de 2012. Declara o município de São Raimundo Nonato como a Capital da Arqueologia. Legislação do Governo do Estado do Piauí. https://sapl.al.pi.leg.br/norma/1143
    https://sapl.al.pi.leg.br/norma/1143...
    , de 26 de junho de 2012, de autoria do deputado estadual Fábio Novo, como parte das comemorações dos 100 anos de criação do município de São Raimundo Nonato, ressaltando a sua localização estratégica, no perímetro do Parque Nacional Serra da Capivara.
  • 2
    Cabe frisar que nossa escolha pela utilização de pronomes femininos, bem como a exposição de pesquisas realizadas por mulheres, especialmente as monografias que serão discutidas mais adiante, não devem ser entendidas como aspectos relacionados com a indicação de que as ‘arqueologias afetivas’ estão atreladas e/ou condicionadas por traços da ‘personalidade feminina’. Assim como Mead (2000)Mead, M. (2000). Sexo e temperamento. Editora Perspectiva., acreditamos que as correlações entre ‘sexo e temperamento’ não são tão pueris como sugeriam alguns autores do século XIX. Deste modo, a postura que adotamos, além de estar em consonância com os dados quantitativos, respalda-se no protagonismo feminino no processo de institucionalização da Arqueologia no sudeste e sudoeste do Piauí. Certamente, reconhecemos a necessidade de extrapolar o quadro inicial, que será apresentado em abordagens futuras, para explorar as intercessões dos recortes de gênero, raça e classe no enquadramento de sociabilidades, dados e reflexões.
  • 3
    Alguns exemplos da empreitada referem-se à instalação, no início da década de 1990, dos Núcleos de Apoio a Comunidade, com a criação de cinco escolas com metodologias de aprendizagem específicas instaladas em torno do PNSC, e do Pró-Arte, em 2001, focado em formação continuada do público, arte e divulgação científica e realização de eventos culturais (Costa, 2011Costa, M. S. (2011). Educação patrimonial no Parque Nacional Serra da Capivara – PI. [Trabalho de conclusão de curso, Universidade Estadual do Piauí].; Siqueira, 2014Siqueira, C. M. B. (2014). A educação patrimonial na Arqueologia Brasileira: Um estudo de caso no entorno do Parque Nacional Serra da Capivara [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].; Buco, 2014Buco, C. A. (2014). O caso da Serra da Capivara, vinte anos de socialização do conhecimento através da arte-educação. Revista ALTER IBI, 1(1), 34-45.).
  • 4
    A UNIVASF foi implantada pela Lei n. 10.473 de 27 de junho de 2002Lei Federal n. 10.473, de 27 de junho de 2002. Institui a Fundação Universidade Federal do Vale do São Francisco. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2002/lei-10473-27-junho-2002-450699-norma-pl.html
    https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei...
    , tendo como sede a cidade de Petrolina, estado de Pernambuco. Atualmente, encontra-se estabelecida fisicamente em sete polos: de Petrolina Sede e Ciências Agrárias e Salgueiro, no estado de Pernambuco, o de Juazeiro, Paulo Afonso e Senhor do Bonfim, no estado da Bahia, e o de São Raimundo Nonato, no estado do Piauí. Conta com 30 cursos de graduação presenciais, cinco de educação à distância, 21 de pós-graduação strictu-sensu e, finalmente, 14 de pós-graduação lato-sensu.
  • 5
    Trata-se da Faculdade de Arqueologia e Museologia Marechal Rondon (FAMARO), criada em 1975, no Rio de Janeiro, sendo depois mantida pelas Faculdades Integradas Estácio de Sá (posteriormente Universidade Estácio de Sá) até o ano 2000, quando entrou em extinção (Bezerra, 2008Bezerra, M. (2008). Bicho de nove cabeças: Os cursos de graduação e a formação de arqueólogos no Brasil. Revista de Arqueologia, 21(2), 139-154.).
  • 6
    A constituição de um polo científico, acomodado às estruturas de produção de conhecimento já existentes e atuantes na área, não significou um apartamento das demandas e discussões voltadas para as demandas do mercado, especificamente do licenciamento ambiental, com suas possibilidades de conflitos e acordos (cf. Zanettini & Wichers, 2014Zanettini, P., & Wichers, C. A. M. (2014). Arqueologia preventiva e o ensino de arqueologia no Brasil. Habitus, 12(2), 239-256. http://dx.doi.org/10.18224/hab.v12.2.2014.239-256
    https://doi.org/10.18224/hab.v12.2.2014....
    ). Um exemplo dessa aproximação na UNIVASF pode ser verificado no envolvimento institucional com o Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias do Nordeste Setentrional (PISF), em 2008. Em 2010, a coordenação do projeto foi assumida pelo Instituto Nacional de Arqueologia, Paleontologia e Ambiente do Semiárido (INAPAS/FUMDHAM) – um desdobramento do Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT), formalizado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sob coordenação de Pessis (Instituto Nacional de Arqueologia, Paleontologia e Ambiente do Semi-Árido, 2010Instituto Nacional de Arqueologia, Paleontologia e Ambiente do Semi-Árido. (2010). Annual Activity Report (2009.2-2010.1). http://inct.cnpq.br/documents/10192/125065/Anne-Marie-Pessis.pdf/faaa943b-dc57-4626-a41d-f5112e764f3d
    http://inct.cnpq.br/documents/10192/1250...
    ).
  • 7
    É importante destacarmos que o Projeto Político-Pedagógico do Curso (PPC) vem sendo tensionado e ressignificado para acomodar as expectativas de docentes e discentes, frente aos diversos caminhos teóricos e metodológicos que foram pavimentados nos últimos anos. Atualmente, o documento encontra-se em fase de estudo e reformulação, no intuito de responder a estes anseios.
  • 8
    Para maiores informações, ver Universidade Federal do Vale do São Francisco (n.d.)Universidade Federal do Vale do São Francisco. (n.d.). Pós-Graduação em Arqueologia. https://portais.univasf.edu.br/pparque
    https://portais.univasf.edu.br/pparque...
    .
  • 9
    No funcionamento da graduação, o TCC consiste em requisito parcial para obtenção do bacharelado em Arqueologia e Preservação Patrimonial, sendo o produto da disciplina obrigatória de Monografia, ofertada no 8° período e realizada sob supervisão de docente orientador. Certamente, as inclinações teóricas e metodológicas observadas nesses documentos são resultados do trabalho colaborativo entre orientador e orientando. Contudo, trata-se também de um trabalho autoral, constituindo em ato de expressão discente. Para o momento, nosso interesse foi justamente capturar este ponto de vista. Isso não exclui a participação dos docentes na formulação das ‘arqueologias afetivas’, que devem ser consideradas em pesquisas futuras a partir de enquadramentos como formação, projetos de pesquisa, publicações, atuação e, mais importante, suas afetividades. Para o momento, é interessante destacar que as abordagens sensíveis não podem ser entendidas como consensuais entre os(as) professores(as), que comungam de diferentes perspectivas de ciência.
  • 10
    Cabe ressaltar que, nesta etapa da pesquisa, não realizamos uma coleta sistemática de informações orais, via entrevistas formais, com as(os) egressas(os) do curso de arqueologia da UNIVASF, sendo essa uma meta para empreitadas futuras. Desse modo, para a presente publicação, lançamos mão somente dos depoimentos de Adriana Soares e Pâmara Araújo, com as quais mantemos relações profissionais e afetivas, sendo os dados apresentados resultantes de conversas estabelecidas nos últimos anos e, principalmente, da recente troca de correspondência eletrônica informando sobre nossa intenção de analisar as monografias produzidas por alunas(os) da UNIVASF, solicitando que ambas nos contassem sobre suas motivações para o ingresso na graduação em Arqueologia e a escolha do tema do trabalho de conclusão de curso.
  • 11
    O Brasil permaneceu às margens da Arqueologia social latino-americana. O período de formulação do marco coincide com a ascensão da ditadura civil-militar brasileira, a partir de 1964. Nesse momento, no contexto de profissionalização da disciplina, foram estreitados os laços com pesquisadores norte-americanos para o desenvolvimento da Arqueologia brasileira, por meio da promoção daquilo que Funari (1998, p. 9)Funari, P. P. A. (1998). Teoria arqueológica na América do Sul (Coleção Primeira Versão, No. 76). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. denomina de “positivismo ingênuo”. Na conjuntura, fortaleceu-se uma abordagem despolitizante, na qual as inclinações ideológicas de pesquisadores individuais não constituíram terreno para agendas mais amplas (Barreto, 1998Barreto, C. (1998). Brazilian archaeology from a Brazilian perspective. Antiquity, 72, 573-581. https://doi.org/10.1017/S0003598X00087007
    https://doi.org/10.1017/S0003598X0008700...
    ). Por outro lado, não podemos deixar de reconhecer a convergência entre algumas pesquisas brasileiras e as preocupações latino-americanas, principalmente a partir do clima de abertura política dos anos 1980 – mesmo não invocando explicitamente o rótulo de Arqueologia social (cf. Loures de Oliveira, 2012Loures de Oliveira, A. P. P. (2012). Tradição, identidade e região: Alguns apontamentos sobre os aspectos teóricos do projeto de Mapeamento Arqueológico e Cultural da Zona da Mata mineira. Ñanduty, 1(1), 101-115.). Pensamos, particularmente, no trabalho de Brochado (1984, p. 565)Brochado, J. J. P. (1984). An ecological model of the spread of pottery and agriculture into eastern south América [Tese de doutorado, University of Illinois]. e colaboradores, com as defesas explícitas de que, no ‘Leste da América do Sul’, a Arqueologia é a história das populações indígenas, de modo que as relações entre o passado e o presente deveriam ser deliberadamente perseguidas.
  • 12
    “Arqueologia como perspectiva de vida” é frase proferida pela profa. Nívia Paula Dias de Assis (Colegiado de Arqueologia e Preservação Patrimonial - CARQUEOL-UNIVASF), em nossos trajetos entre universidade e comunidades, a partir das vivências e afetos compartilhados com discentes.
  • Mageste, L. E., & Amaral, A. M. (2022). As arqueologias afetivas na produção discente da Universidade Federal do Vale do São Francisco: desdobramentos históricos e interfaces teóricas na construção da Arqueologia no Sudeste e Sudoeste do Piauí. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 17(2), e20200115. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2020-0115

REFERÊNCIAS

  • Alvarado, M. (2015). La educación superior en clave descolonial. Algarrobo-Mel, 4(4), 1-9.
  • Aquino, C. C. (2009). Misticismo e simbolismo na Cova da Tia: Um olhar sobre o Patrimônio Cultural Imaterial da região de São Raimundo Nonato e entorno [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Aquino, R. C. (2015). Rabiscando celas: Arqueologia cognitiva aplicada na interpretação dos registros gráficos da Penitenciária Tenente Zeca Rúben em São Raimundo Nonato – PI [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Araújo, G. L. H. (2013). Uma arqueologia dos maniçobeiros: Reflexões acerca das vivências na Serra Branca – Parque Nacional Serra da Capivara [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Araújo, P. C., & Cusati, I. C. (2019). A Universidade Federal do Vale do São Francisco: Um paradigma de expansão da educação superior pública no Brasil? Revasf, 9(20), 120-157.
  • Ballestrin, L. (2013). América latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, (11), 89-117. https://doi.org/10.1590/S0103-33522013000200004
    » https://doi.org/10.1590/S0103-33522013000200004
  • Barreto, C. (1998). Brazilian archaeology from a Brazilian perspective. Antiquity, 72, 573-581. https://doi.org/10.1017/S0003598X00087007
    » https://doi.org/10.1017/S0003598X00087007
  • Benavides, O. H. (2011). Retornando à origem: Arqueologia social como filosofia latino-americana. Revista Terceiro Incluído, 1(2), 164-194.
  • Bezerra, M. (2008). Bicho de nove cabeças: Os cursos de graduação e a formação de arqueólogos no Brasil. Revista de Arqueologia, 21(2), 139-154.
  • Bezerra, M. (2017). Teto e afeto: Sobre as pessoas, as coisas e a arqueologia na Amazônia GKNoronha.
  • Boëda, E., Clemente-Conte, I., Fontugne, M., Lahaye, C., Pino, M., Felice, G. D., . . . Douville, E. (2014). A new late Pleistocene archaeological sequence in South America: The Vale da Pedra Furada (Piauí, Brazil). Antiquity, 88(341), 927–955. http://dx.doi.org/10.1017/S0003598X00050845
    » https://doi.org/10.1017/S0003598X00050845
  • Brochado, J. J. P. (1984). An ecological model of the spread of pottery and agriculture into eastern south América [Tese de doutorado, University of Illinois].
  • Buco, C. A. (2014). O caso da Serra da Capivara, vinte anos de socialização do conhecimento através da arte-educação. Revista ALTER IBI, 1(1), 34-45.
  • Burke, P. (2000). História como memória social. In Autor, Variedades de história cultural (2 ed., pp. 67-90). Civilização Brasileira.
  • Cabral, M. P. (2014). No tempo das pedras moles: Arqueologia e simetria na floresta [Tese de doutorado, Universidade Federal do Pará].
  • Camargo, A. M. M., & Araújo, I. M. (2018). Expansão e interiorização das universidades federais no período de 2003 a 2014: Perspectivas governamentais em debate. Acta Scientiarum. Education, 40(1), 1-11. https://doi.org/10.4025/actascieduc.v40i1.37659
    » https://doi.org/10.4025/actascieduc.v40i1.37659
  • Carvalho, A. W. R., Costa, R. L., & Castro, M. S. (2020). O PET na escola: Um roteiro de ações de educação patrimonial desenvolvido no âmbito do Programa de Educação Tutorial no município de São Raimundo Nonato – PI. Revista de Arqueologia Pública, 14(1), 75-95.
  • Cislaghi, J. F., & Silva, M. T. (2012). O Plano Nacional de Assistência Estudantil e o Reuni: Ampliação de vagas versus garantia de permanência. SER Social, 14(31), 489-512. https://doi.org/10.26512/ser_social.v14i31.13025
    » https://doi.org/10.26512/ser_social.v14i31.13025
  • Clough, P. T. (2017). Introduction. In P. T. Clough & J. Halley (Orgs.), The affective turn: Theorizing the social (pp. 1-33). Duke University Press.
  • Costa, M. R. S. (2017). Contextualizando expansão e interiorização no campo da Educação Brasileira. Revista Exitus, 7(1), 250-276. https://doi.org/10.24065/2237-9460.2017v7n3ID356
    » https://doi.org/10.24065/2237-9460.2017v7n3ID356
  • Costa, M. S. (2011). Educação patrimonial no Parque Nacional Serra da Capivara – PI [Trabalho de conclusão de curso, Universidade Estadual do Piauí].
  • De Sousa Santos, B. (2007). Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, (78), 71-94. https://doi.org/10.4000/rccs.753
    » https://doi.org/10.4000/rccs.753
  • Ferreira Dos Santos, C. E. (2020). História oral e cultura material: O Engenho de cana-de-açucar do Sr. Abílio Ferreira no município de São Braz do Piauí [Trabalho de conclusão de curso, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Fonseca, M. C. L. (2017). O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil Editora UFRJ.
  • Funari, P. P. A. (1998). Teoria arqueológica na América do Sul (Coleção Primeira Versão, No. 76). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
  • Gaspar, M. V., Caromano, C. F., Pereira, E. R., Brandão, K., Belletti, J., Freitas, A., . . . & Bezerra, M. (2020). Quem somos nós? ou perfis da comunidade profissional arqueológica no Brasil. Habitus, 18(1), 146-178. http://dx.doi.org/10.18224/hab.v18i1.8104
    » https://doi.org/10.18224/hab.v18i1.8104
  • Gnecco, C. (2009). Caminos de la Arqueología: De la violencia epistémica a la relacionalidad. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 4(1), 15-26. https://doi.org/10.1590/S1981-81222009000100003
    » https://doi.org/10.1590/S1981-81222009000100003
  • Godoi, E. P. (1999). O trabalho da memória: Cotidiano e história no sertão do Piauí UNICAMP.
  • Gonçalves, J. R. S. (1996). A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil Editora UFRJ/IPHAN.
  • Guidon, N. (2007). Parque Nacional Serra da Capivara: Modelo de preservação do Patrimônio arqueológico ameaçado. Revista do Instituto Histórico e Artístico Nacional, (33), 75-93.
  • Halbwachs, M. (2013). A memória coletiva (Beatriz Sidou, Trad.). Centauro
  • Hamilakis, Y. (2015). Arqueología y sensorialidad: Hacia uma ontología de afectos y flujos. Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica, 9(1), 31-53. https://doi.org/10.31239/vtg.v9i1.10579
    » https://doi.org/10.31239/vtg.v9i1.10579
  • Hartemann, G. (2019). Voltar, contar e lembrar de Gangan: Por uma Arqueologia griótica afrodecolonial em Mana, Guiana [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais].
  • Imperatori, T. K. (2017). A trajetória da assistência estudantil na educação superior brasileira. Serviço Social & Sociedade, (129), 285-303. https://doi.org/10.1590/0101-6628.109
    » https://doi.org/10.1590/0101-6628.109
  • Instituto Nacional de Arqueologia, Paleontologia e Ambiente do Semi-Árido. (2010). Annual Activity Report (2009.2-2010.1) http://inct.cnpq.br/documents/10192/125065/Anne-Marie-Pessis.pdf/faaa943b-dc57-4626-a41d-f5112e764f3d
    » http://inct.cnpq.br/documents/10192/125065/Anne-Marie-Pessis.pdf/faaa943b-dc57-4626-a41d-f5112e764f3d
  • Jackson, D., Troncoso, A., & Salazar, D. (2012). Hacia una crítica de lá práctica de la arqueologia social latinoamericana. In H. Tantaleán & M. Aguillar (Eds.), La arqueología social latinoamericana: De la teoria a la práxis (pp. 49-62). Ediciones Uniandes.
  • Jesus, J. A. S. (2016). A política de expansão e interiorização do ensino superior através da universidade aberta do Brasil: A experiência da UNIVASF no vale do submédio São Francisco [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Recôncavo na Bahia].
  • Lacerda, J. R. (2016). Casa de farinha: O saber tradicional como patrimônio imaterial [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Leal, N. S. (2021). Por uma antropologia na caatinga: Um breve ensaio sobre o bacharelado em Antropologia na Univasf e a interiorização do ensino superior no Brasil. Anuário Antropológico, 46(1), 39-57. https://doi.org/10.4000/aa.7657
    » https://doi.org/10.4000/aa.7657
  • Lei Estadual n. 6.224, de 26 de junho de 2012. Declara o município de São Raimundo Nonato como a Capital da Arqueologia. Legislação do Governo do Estado do Piauí. https://sapl.al.pi.leg.br/norma/1143
    » https://sapl.al.pi.leg.br/norma/1143
  • Lei Federal n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm
  • Lei Federal n. 10.172, de 09 de janeiro de 2001. Estabelece o Plano Nacional de Educação. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10172.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10172.htm
  • Lei Federal n. 10.473, de 27 de junho de 2002. Institui a Fundação Universidade Federal do Vale do São Francisco. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2002/lei-10473-27-junho-2002-450699-norma-pl.html
    » https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2002/lei-10473-27-junho-2002-450699-norma-pl.html
  • Levy, C. (2006). Gestão e usos do território: Conflitos e práticas sócio-espaciais no Parque Nacional da Serra da Capivara, Piauí, Brasil [Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas].
  • Lima, H. P. (2019). Patrimônio para quem? Por uma arqueologia sensível. Habitus, 17(1), 25-38. http://dx.doi.org/10.18224/hab.v17i1.7086
    » https://doi.org/10.18224/hab.v17i1.7086
  • Limaverde, R. (2015). Arqueologia social inclusiva: A Fundação Casa Grande e a gestão do patrimônio cultural da Chapada do Araripe, Nova Olinda, CE, Brasil [Tese de doutorado, Universidade de Coimbra].
  • Lourdeau, A. (2019). A Serra da Capivara e os primeiros povoamentos sul-americanos: Uma revisão bibliográfica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 14(2), 367-398. https://doi.org/10.1590/1981.81222019000200007
    » https://doi.org/10.1590/1981.81222019000200007
  • Loures de Oliveira, A. P. P. (2012). Tradição, identidade e região: Alguns apontamentos sobre os aspectos teóricos do projeto de Mapeamento Arqueológico e Cultural da Zona da Mata mineira. Ñanduty, 1(1), 101-115.
  • Lumbreras, J. G. (1974). A arqueologia como ciência social Ediciones Histar.
  • Macêdo, G. S. (2019). ‘Aqui, onde cavar acha pote’: Patrimônio arqueológico nos quintais dos moradores de São Braz do Piauí – PI e seus usos e significados no presente [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Mageste, L. E. C. (2019a, maio 6-10). O Laboratório de preservação patrimonial da UNIVASF. Simpósio de Arqueologia e Patrimônio do LAPA-UNIVASF, São Raimundo Nonato, Piauí.
  • Mageste, L. E. C. (2019b). As Arqueologias Afetivas da UNIVASF. Conferência apresentada na II Semana de Arqueologia da UFPE, Recife.
  • Mageste, L. E. C., Macedo, G. S., Paes, E. L. C., & Ferreira dos Santos, C. E. (2020). As arqueologias de São Braz do Piauí: Apontamentos iniciais sobre as narrativas e usos dos bens arqueológicos no presente. Cadernos do Lepaarq, 17(34), 164-182. https://doi.org/10.15210/lepaarq.v17i34.19412
    » https://doi.org/10.15210/lepaarq.v17i34.19412
  • Marques, N. L. V. (2019). Casa de Mãe Eugênia: Arqueologia em uma Casa de Santo na cidade de São Raimundo Nonato – PI [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Martins, J. F. (2018). A lida do vaqueiro da Comunidade Boqueirão/Buriti do Rei, Oeiras-Pi: Cultura material, espaços, memórias e saberes [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Martins, T. G. (2019). Objetos de memória: Análise da coleção da “Dona Vani” e “Seu Valdomiro” através da perspectiva da Arqueologia Pública [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Mead, M. (2000). Sexo e temperamento Editora Perspectiva.
  • Mignolo, W. D. (2008). Desobediência epistêmica: A opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, (34), 287-324.
  • Mignolo, W. D. (2017). Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32(94), 1-18. https://doi.org/10.17666/329402/2017
    » https://doi.org/10.17666/329402/2017
  • Monteiro, G. A. (2020). Escavando assimetrias na Arqueologia do Nordeste do Brasil: A dicotomia entre material x social em destaque [Monografia, Universidade Federal de Pernambuco].
  • Montenegro, M. (2014). Una experiencia de arqueología pública y colaboración intercultural en el sector septentrional de Argentina. Revista de Arqueologia Pública, 8(10), 26-43. https://doi.org/10.20396/rap.v8i2.8635637
    » https://doi.org/10.20396/rap.v8i2.8635637
  • Moraes, I. A. (2005). Memória social: Solidariedade orgânica e disputa de sentidos. In J. Gondar & V. Dodebei (Orgs.), O que é memória social (pp. 89-104). Contra Capa.
  • Neta, M. F. P. A. (2011). Os rituais do Morro do Cruzeiro como atributos da identidade sanraimundense: Um patrimônio modificado [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Nora, P. (1993). Entre memória e história: A problemática dos lugares. Projeto História, 10, 7-28.
  • Oliveira, J. S., & Borges, J. F. (2015). Sociedade, arqueologia e patrimônio: As relações de pertencimento da Comunidade Zabelê com a área arqueológica do Parque Nacional Serra da Capivara (PNSC). História Unicap, 2(3), 108-121.
  • Oliveira, J. S. (2014). A Educação patrimonial como estratégia de Arqueologia Pública na área do Parque Nacional Serra da Capivara [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Oliveira, J. S. (2016). Memória e patrimônio arqueológico: Vozes sertanejas na área do Parque Nacional Serra da Capivara [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Piauí].
  • Oliveira, A. S. N., Assis, N. P. D., & Galvão Neto, A. A. (Orgs.). (2017). Sentidos do patrimônio: Parque Nacional Serra da Capivara e Comunidade São Vitor IPHAN.
  • Oyuela-Caycedo, A., Anaya, A., Elera, C. G., & Valdez, L. M. (1997). Social archaeology in Latin America? Comments to T. C. Patterson. American Antiquity, 62(2), 365-374. https://doi.org/10.2307/282518
    » https://doi.org/10.2307/282518
  • Paes, R. M. O. (2011). Identificação do patrimônio edificado da cidade de Coronel José Dias – Piauí [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Pellini, J. R. (2018). Archaeology of affection. In C. Smith (Ed.), Encyclopedia of global archaeology (2 ed., pp. 1-9). Springer International Publishing.
  • Pereira, L. C. (2019). Ferramentas da Memória: Musealização da Arqueologia em São Raimundo Nonato – PI [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Pollak, M. (1992). Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, 5(10), 200-212.
  • Quijano, A. (1993). “Raza”, “etnia” y “nación” en Mariátegui: Cuestiones abiertas. In R. Forgues (Org.), José Carlos Mariátegui y Europa: el otro aspecto del descubrimiento (pp. 757-775). Empresa Amauta.
  • Resende, A. X., Filho, H. P. C., & Omaki, E. T. (2016). Política de Assistência Estudantil praticada pela Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF. ID on Line: Revista de Psicologia, 10(30), 27-49.
  • Ribeiro, A. J. C. B. (2015). O Parque Nacional da Serra da Capivara e a urbanização de São Raimundo Nonato: Transformações socioespaciais no Piauí e suas repercussões no entendimento de Sertão [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco].
  • Santana, T. M. C. (2010). Guerra da Telha: memória, história, arqueologia e patrimônio [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Santos, P. M. (2010). Os registros rupestres da região de Jaguarari, Bahia [Monografia Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Santos, P. P. J. (2019). Memórias e narrativas sobre as populações indígenas em São Raimundo Nonato-Pi e Microrregião: Uma descrição sobre as produções históricas antecedentes, abordagens precursoras e relatos orais [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Schwarcz, L. M., & Starling, H. M. (2015). Brasil: Uma biografia Companhia das Letras.
  • Silva, V. L. (2017). Arqueologia pública, memória e valorização do patrimônio cultural em um território quilombola: Estudo de caso da Roda de São Gonçalo na comunidade Lagoa das Emas, São Raimundo Nonato – PI [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Siqueira, C. M. B. (2014). A educação patrimonial na Arqueologia Brasileira: Um estudo de caso no entorno do Parque Nacional Serra da Capivara [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Smith, L. (2006). Uses of Heritage Routledge.
  • Smith, L., & Waterton, E. (2009). Heritage, communities and archaeology Gerald Duckworth and Co.
  • Soares, A. M. A. (2010). Pinturas rupestres no Município de São Braz Do Piauí: Padrão de reconhecimento e temática dominante [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Sousa, J. S. (2019). Os lugares de memória de São Braz do Piauí: Lembranças e narrativas sobre a história e o patrimônio local [Monografia, Universidade Federal do Vale do São Francisco].
  • Sousa, M. S. R. (2011). Deslocamento forçado de posseiros e pequenos proprietários do Parque Nacional Serra da Capivara: Estratégia de proteção ambiental ou violação de direitos humanos. Revista do Mestrado em Direito, 5(2), 410-429. http://dx.doi.org/10.18840/1980-8860/rvmd.v5n2p410-429
    » https://doi.org/10.18840/1980-8860/rvmd.v5n2p410-429
  • Souza, J. (2017). A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato Editora Leya.
  • Tirado, G. P. (2009). Violência epistémica y descolonización del conocimiento. Sociocriticism, 24(1-2), 173-201.
  • Universidade Federal do Vale do São Francisco. (n.d.). Pós-Graduação em Arqueologia. https://portais.univasf.edu.br/pparque
    » https://portais.univasf.edu.br/pparque
  • Zanettini, P., & Wichers, C. A. M. (2014). Arqueologia preventiva e o ensino de arqueologia no Brasil. Habitus, 12(2), 239-256. http://dx.doi.org/10.18224/hab.v12.2.2014.239-256
    » https://doi.org/10.18224/hab.v12.2.2014.239-256
  • Zitkoski, J. J., Genro, M. E., & Caregnato, C. E. (2015). Democratização da educação superior: Apontamentos para a valorização de experiências alternativas no contexto latino-americano. Revista de Ciências Humanas: Educação, 16(27), 56-71.

Editado por

Responsabilidade editorial: Fernando Ozório de Almeida

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Set 2020
  • Aceito
    26 Set 2021
MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi Coordenação de Pesquisa e Pós-Graduação, Av. Perimetral. 1901 - Terra Firme, 66077-830 - Belém - PA, Tel.: (55 91) 3075-6186 - Belém - PA - Brazil
E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br