Resumo
Neste artigo, a Arqueologia e a sua interface com a Etnografia – Arqueologia Etnográfica – são apresentadas como possibilidades de ouvir as muitas vozes que se manifestam durante uma escavação – a estas vozes, chamarei de multivocalidades, e as usarei como um dos meios para investigar as percepções das pessoas sobre a escavação de um sítio histórico. O cenário para as discussões aqui propostas foi um projeto de Arqueologia Urbana executado no bairro da Campina, no arrabalde imediato de cartões postais singulares da capital paraense. O objetivo do texto é, tendo como paisagem o Centro Histórico de Belém, argumentar que a pesquisa arqueológica muito se beneficia e serve ainda como instrumento de informação sobre a participação das cidadãs e dos cidadãos que fruem pela cidade, sejam as pessoas que trabalham diretamente junto com o arqueólogo, sejam aquelas que têm a oportunidade de visitar as escavações. Uma das conclusões é a de que o patrimônio cultural arqueológico perde um pouco de seu ‘mistério’, tornando-se mais fácil para as pessoas reconhecê-lo e, por isso, talvez preservá-lo.
Palavra-chave
Arqueologia Etnográfica; Multivocalidades; Arqueologia Urbana; Belém
Abstract
This article presents archaeology where it intersects with ethnography (ethnographic archaeology) as a possibility for listening to the many voices that manifest themselves during an excavation. I refer to these voices as multivocalities, and they are one of the means I use to investigate people’s perceptions of an excavation of a historical archaeological site. The backdrop for these discussions was an urban archaeology project in the district of Campina, in the immediate surroundings of the unique landmarks of Pará’s capital, Belém. Set amid this historical center, this text suggests that archaeological research can greatly benefit from the participation of citizens who enjoy the city and even become a tool for information, whether these people work directly together with archaeologists or visit the excavations. One conclusion is that through participation, archaeological and cultural heritage loses some of its ‘mystery’ and becomes easier for people to recognise and, in turn, perhaps preserve.
Keywords
Ethnographic Archaeology; Multivocalities; Urban Archaeology; Belém
É janeiro em Belém e, nesta época, chove um dia sim e outro também. Tentei a todo custo iniciar a pesquisa arqueológica, no casario que será o futuro anexo II do Sesc Boulevard, antes do período chuvoso, em setembro. Mas a burocracia fez com que só em dezembro, às vésperas de Natal, a portaria que autoriza os trabalhos fosse publicada. De modo que, é janeiro e vou escavar em Belém
(N. Gomes, comunicação pessoal, 4 jan. 20191 1 Trechos extraídos do meu caderno de campo e outras anotações. De acordo com Cachado (2021, p. 552), na tradição teórica das Ciências Sociais, o “diário de campo se encontra em uma espécie de posição ritual: existe, mas quase sempre é instrumentalizado como modalidade de coleta de dados etnográficos, e menos como objeto de análise”. No entanto, o diário de campo é a base documental central de muitas etnografias, possuindo força como material empírico para compreensão das intersubjetividades nos terrenos etnográficos. Levando isso em conta, coloquei os registros do diário de campo em pesquisa como parte das discussões neste artigo, para interação epistemológica com a leitora e o leitor. ).
PARA COMEÇO DE CONVERSA
Inicio este artigo com um trecho lamentoso do meu diário, para refletir sobre o cotidiano do trabalho de campo. Há uma espécie de entendimento tácito entre arqueólogas e arqueólogos que atuam em cidades na Amazônia: qualquer pesquisa envolvendo escavação precisa se ater também ao voluntarismo climático que marca a região. Entre dezembro e março – por vezes além – chove intensamente em Belém, grandes alagamentos põem ocorrer, criando novos cotidianos na cidade. A não ser que haja a possibilidade de cobrir toda a área a ser escavada, evita-se cavar buracos que serão fatalmente inundados e, por conseguinte, comprometer a leitura da estratigrafia. Todavia, por força das circunstâncias, precisei escavar no período chuvoso. O trecho do diário permite entrever um pouco a complexidade das interações entre o pesquisador, o aparato estatal e o espaço de pesquisa.
É comum que arqueólogas e arqueólogos ou outros estudiosos que se dedicam às pesquisas relacionadas com o que convencionamos chamar de ‘patrimônio cultural’ – aqui trato especificamente do patrimônio cultural histórico-arqueológico – tomem por certo que os vestígios do passado são inerentemente valiosos, e, por esse valor, já merecem preservação (Holtorf, 2012Holtorf, C. (2012). The heritage of heritage. Heritage & Society, 5(2), 153-174. https://doi.org/10.1179/hso.2012.5.2.153
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; Smith, 2011Smith, L. (2011). El “espejo patrimonial”. ¿Ilusión narcisista o reflexiones múltiples? Antipoda Revista de Antropologia y Arqueologia, 1(12), 39-63. https://doi.org/https://doi.org/10.7440/antipoda12.2011.04
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; Troncoso, 2019Troncoso, L. P. S. (2019). Horizontes mineradores: arqueologia da mineração e a gestão do patrimônio arqueológico sob a ótica do licenciamento ambiental [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.71.2019.tde-17032020-101814
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). Em alguma medida, quando aceitei escavar o casarão que hoje faz parte do Centro Cultural do Serviço Social do Comércio (Sesc), em Belém, eu estava imbuído desta ideia; era importante escavar porque é um lugar histórico e está em uma das áreas de ocupação pós-colonial mais antigas da região; e porque estaria atendendo à legislação que diz respeito à preservação e à proteção do patrimônio cultural brasileiro.
Após alguns dias de escavações, uma questão relacionada com a ideia apontada acima e a efetiva execução do meu trabalho como arqueólogo começou a me inquietar. Qual a real importância que as pessoas ao meu redor davam àquele trabalho? E havia muitas pessoas circundando as escavações: os empreendedores e seus engenheiros fixados com prazos; o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que havia embargado as obras; os colaboradores, operários da obra, que escavavam comigo; além das muitas pessoas que visitaram o canteiro de obras/sítio arqueológico, posto que este se localiza em área movimentada, acostado a uma unidade em funcionamento do Sesc e no Centro Histórico belenense. Há que se dizer que busquei dar visibilidade à escavação, dado que não é sempre que o trabalho de um arqueólogo pode ser visitado e que, em geral, as escavações são realizadas em áreas com restrições de segurança e vedadas ao público, algumas vezes por má vontade da pesquisadora ou do pesquisador. De todo modo, neste artigo, meus interlocutores principais serão os trabalhadores da empresa de engenharia, contratada para executar as obras de requalificação e readequação do casarão do Sesc.
A escolha por privilegiar estes interlocutores, que adjetivarei de colaboradores, se dá principalmente pela intensa convivência, pela efetiva colaboração durante as escavações e pelos insights advindos de nosso convívio. Em outra ocasião, usei o termo co-trabalhadores (N. Gomes & R. Lopes, 2012Lopes, R. C. S., & Gomes, R. N. C. (2012). De roça a sítio: o saber local e pesquisas arqueológicas. In I Congresso Pan-Amazônico e VII Encontro da Região Norte de História Oral, Belém.b, pp. 74-75), anuindo às reflexões de Shepherd (2009)Shepherd, N. (2009). Cuando la mano que sostiene el palustre es Negra: Prácticas disciplinarias de auto-representación y el asunto de la mano de obra “Nativa” en Arqueología. Arqueología Suramericana, 5(1), 3-20.. Desta feita, considero ‘colaborador’ um termo mais apropriado para me referir aos homens que tornaram as escavações possíveis e, junto comigo, fizeram a primeira curadoria da cultura material coletada no sítio Sesc Ver-o-Peso.
No projeto de Arqueologia e Educação Patrimonial apresentado ao IPHAN (N. Gomes, 2018Gomes, N. (2018). Projeto de pesquisa arqueológica e educação patrimonial, anexo II do Sesc Boulevard [Projeto de Pesquisa]. https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?wt7h6hFBI_9S3DJjGLl0dpQiiSEQL4RcICP821UP_Zu3te9Mz8pMgdSFPXZPRHsDc8jMQ17erGYJfOcrc-boq9IGFomzoF0TDY6ESOMhrZnF8DLWNCewd9gR0ttJtAub
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), para ter autorização de desenvolvimento da pesquisa, precisei me preocupar em balancear três interesses aparentemente contrastantes. Aquele dos empreendedores e idealizadores do projeto de construção do futuro anexo do Sesc, representados pela empresa de engenharia contratada para execução das obras, muito preocupados com o cronograma dos trabalhos, estando este atrapalhado pela legislação a ser cumprida e um embargo a ser revogado2
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As obras de restauro e readequação do prédio que servirá de anexo ao Sesc Ver-o-Peso estavam embargadas justamente porque seus empreendedores não seguiram a legislação e não oportunizaram uma pesquisa arqueológica na área. O embargo só foi definitivamente suspenso em julho de 2019, após o protocolo de um relatório preliminar, depois de concluídas as escavações e atividades ligadas à arqueologia no sítio.
; o IPHAN, supostamente interessado na preservação e salvaguarda do patrimônio; e minha disposição em cumprir a legislação, mas usar as escavações, bem como a cultura material desenterrada no local, como fonte de informação acessível ao maior número de pessoas.
Imbuído da ideia de multivocalidades, procurei me relacionar com os operários da empresa de engenharia responsável por executar a maior parte das obras civis naquela área. Estes, para mim, foram colaboradores na tarefa de escavar o local, coletar os vestígios arqueológicos e executar outras muitas atividades na escavação. Na medida do possível, abri as escavações para diversos grupos de pessoas que visitavam as obras – alguns turistas, estudantes do curso de arquitetura e restauro, bem como mestrandos em Arqueologia da Universidade Federal do Pará (UFPA), também educadores do sistema integrado de museus do estado do Pará (Figura 1) e turmas de ensino fundamental da Escola de Aplicação da UFPA, convertidas pelo trabalho que eu estava fazendo ali e pela compulsoriedade da legislação, com ajuda dos colaboradores, em sítio arqueológico.
Visita de alguns dos educadores do Sistema Integrado de Museus à escavação – alguns dos quais trabalham em museus que têm coleções de materiais arqueológicos.
Importante ressaltar que o que busquei durante este trabalho foi me afastar das tradicionais práticas de Educação Patrimonial que acompanham pesquisas arqueológicas. Mesmo quando o público foi de educadores do Museu do Estado ou estudantes do ensino fundamental da Escola de Aplicação da UFPA, o norte foi ouvi-los primeiro, permitindo que as pessoas construíssem narrativas, despertassem memórias ou mesmo externassem seu desconhecimento ante a cultura material que eu lhes expunha ou sobre o trabalho da Arqueologia, para, depois, juntar com informações que eu lhes dava, sem hierarquizar as informações, nem necessariamente submeter as ideias ‘não científicas’ ao conhecimento arqueológico que a pesquisa poderia representar naquele contexto.
No sítio Sesc Ver-o-Peso, passei um pouco mais de dois meses escavando, e mais de dois anos pesquisando sobre o fazer arqueológico, a análise do material escavado (N. Gomes, 2023bGomes, N. (2023b). The material culture of the urban site Sesc Ver-o-Peso, in Belém, at the Amazon: possibilities of analyses. Global Journal of Human-Social Science: D History, Archaeology & Anthropology, 25(5), 25-42. https://doi.org/10.17406/GJHSS
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), a preservação do patrimônio, o diálogo com as pessoas e suas falas sobre a prática da Arqueologia. Entre janeiro e fevereiro de 2019, conduzindo as escavações com uma equipe que chegou a contar com 25 pessoas, observei como diversos personagens interagiam dentro dos trabalhos de reforma e readequação daquele casario histórico em área tombada pelas legislações municipal, estadual e federal. No projeto idealizado pelo Sesc e executado pela GM Engenharia, a pesquisa arqueológica foi só mais uma das etapas legais a serem superadas, mas é a que mais aponta para as discussões relacionadas ao patrimônio e à sua preservação.
Aqui, cabe uma digressão desnecessária, talvez, às pessoas que trabalham com Arqueologia, mas que pode servir à leitora menos afeita a este métier. Como parte habitual dos projetos de Arqueologia de Contrato3 3 Neste artigo, não me deterei em explorar as distinções entre Arqueologia Preventiva/de Contrato e outras formas de atuação dos profissionais desta disciplina. Destaco que chamamos de Arqueologia Preventiva e/ou de Contrato os trabalhos ligados diretamente ao licenciamento ambiental ou a contratos privados que buscam resolver pendências junto ao IPHAN ou atender à legislação de proteção do Patrimônio Cultural Arqueológico. , são impostas ações de Educação Patrimonial4 4 Todas as atividades de Educação Patrimonial e extroversão estão descritas no relatório preliminar de escavação, disponível para leitura e download no site do IPHAN (ver processo nº 01492.000390/2015-81 no SEI/IPHAN). . Nesta oportunidade, não me deterei às críticas comuns a estas ações, ou mesmo à ordinária execução de palestras e às distribuições de cartilhas que, por vezes, são o cerne do que se convencionou chamar de Educação Patrimonial. Um dos momentos previstos nos ritos da Educação Patrimonial é a apresentação do projeto de Arqueologia, seus objetivos e metodologias aos colaboradores que irão ajudar nas escavações. Abaixo, um trecho do meu diário de campo, com minha abordagem utilizada no primeiro encontro que tive com as pessoas que iriam me auxiliar nas escavações: somente quatro senhores (Figura 2), trabalhadores da construção civil, que, a contragosto, foram ter comigo no casarão, com obras paradas, onde trabalharíamos por meses.
Primeiro contato com os colaboradores que iriam ajudar nas escavações. Nesse momento, eu explicava que a retirada da camada de concreto no piso seria feita sem auxílio de máquinas e de forma setorizada, o que gerou protestos gerais.
No casario outrora abandonado, uma casca na qual, de forma precária, as paredes laterais estavam em pé, juntamente com a fachada, agora convertido em um canteiro de obras, marcamos [Sesc, construtora e eu] um encontro com os colaboradores que iriam me auxiliar na escavação (funcionários da empresa de engenharia GM, contratada pelo Sesc para executar a ‘reforma’). Iniciei por dizer quem eu sou e comecei a explicar o motivo de estarmos ali e apresentar o que era arqueologia, material arqueológico e descrever a forma como iríamos trabalhar. Os senhores me olharam com desconfiança, ou timidez, e se recusaram a responder a quaisquer de minhas perguntas sobre o que eles sabiam de arqueologia, se já tinham visto um “material arqueológico” e se tinham alguma dúvida sobre como trabalharíamos. Ninguém ria das minhas piadas [nota mental: parar de fazer a piada do dinossauro] e nosso primeiro encontro terminou com “vai chover, o senhor vai continuar aí, nós tá indo”, dito por um dos senhores que me ouvia
(N. Gomes, comunicação pessoal, 4 jan. 2019).
Para além dos excertos do meu diário, decidi usar-me de alguns registros fotográficos de corpos com base no legado teórico de Sontag (2016)Sontag, S. (2016). Sobre la fotografía. Penguin Random House Grupo Editorial España. https://books.google.com.br/books?id=Ry8IU0I04pYC
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, que defende que “. . . as fotos declaram a inocência, a vulnerabilidade de vidas que rumam para a própria destruição e esse vínculo entre fotografia e morte, assombra todas as fotos de pessoas” (Sontag, 2016Sontag, S. (2016). Sobre la fotografía. Penguin Random House Grupo Editorial España. https://books.google.com.br/books?id=Ry8IU0I04pYC
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, p. 85). Em seus escritos do final da vida, defendia que a fotografia é uma forma, especialmente a fotografia de guerra, de nos posicionarmos enquanto sociedade (Sontag, 2016Sontag, S. (2016). Sobre la fotografía. Penguin Random House Grupo Editorial España. https://books.google.com.br/books?id=Ry8IU0I04pYC
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). Considero que esta reflexão se estende também aos espaços nos quais estes corpos intervêm e no registro desses espaços por meio da fotografia.
Esta interação inicial descreve como o contato entre pesquisador e trabalhadores da escavação é marcado por dissonâncias simbólicas a respeito das atividades exercidas naquele espaço. A ideia de patrimônio cultural e muitas de nossas certezas em relação à necessidade de sua preservação, quando confrontadas com os entendimentos de diversos públicos, podem não se encontrar muito sintonizadas. Como diz Holtorf (2012)Holtorf, C. (2012). The heritage of heritage. Heritage & Society, 5(2), 153-174. https://doi.org/10.1179/hso.2012.5.2.153
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, tais certezas estão ligadas a uma maneira de pensar muito particular que não é, de modo algum, universal ou sem alternativa.
Neste artigo, apresento a pesquisa desenvolvida junto a diferentes agentes no casario do Sesc, dando centralidade aos colaboradores que diretamente estiveram presentes durante a etapa de escavação. Nesta apresentação, me sirvo de anotações e fotografias de campo, que, muitas vezes, de alguma forma instigaram minhas reflexões. Nas seções seguintes, pretendo mostrar quais estratégias etnográficas aliadas ao respeito pelas multivocalidades podem dar novo sentido ao trabalho arqueológico em campo, ajudando na aproximação entre o que chamamos de patrimônio histórico e as pessoas que deveriam fruí-lo.
SOBRE ESCAVAR NA CHUVA, CONVERSAR SOBRE ARQUEOLOGIA E PAGAR UMA COCA-COLA
Decidi usar os dias chuvosos – e houve dias que só choveu, e, como não havia como cobrir toda a extensão do casarão para proteger as escavações – para conversar com as pessoas que trabalhavam comigo. Nesses momentos, também tentei, sempre com a ajuda dos trabalhadores da obra, lavar o material que ia sendo desenterrado durante nossas escavações e ficava falando sobre sua origem. Minhas primeiras impressões eram de que nestas conversas tudo estava fluindo, parecia-me que todos iam, pouco a pouco, entendendo o que estávamos fazendo ali. Foram muitas chuvas e cafés ruins ao redor de cacos de louças, moedas, vidros e outros materiais. Até que percebi que os senhores se sentiam obrigados a me ouvir
(N. Gomes, comunicação pessoal, 10 jan. 2019).
Desde muito cedo, busco, enquanto pesquisador, não cair na ‘supremacia da escavação’ (Reis, 2007Reis, J. A. (2007). Lidando com as coisas quebradas da história. Revista Arqueologia Pública, 2(1[2]), 33-44. https://doi.org/10.20396/rap.v2i1.8635809
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), onde as pessoas não arqueólogas viram coadjuvantes, ouvidos para ‘as verdades da ciência’, em que há um reforço da hierarquia na qual a pesquisadora ou o pesquisador ditam os interesses no campo (Cabral & Saldanha, 2009Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2009). Um sítio, múltiplas interpretações: o caso do chamado “stonehenge do Amapá”. Revista de Arqueologia, 22(1), 115-123. https://doi.org/10.24885/sab.v22i1.264
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; Ferreira, 2008Ferreira, L. M. (2008). Sob fogo cruzado: Arqueologia comunitária e patrimônio cultural. Revista Arqueologia Pública, 3(1[3]), 81-92. https://doi.org/10.20396/rap.v3i1.8635804
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; Reis, 2007Reis, J. A. (2007). Lidando com as coisas quebradas da história. Revista Arqueologia Pública, 2(1[2]), 33-44. https://doi.org/10.20396/rap.v2i1.8635809
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; Schaan, 2006Schaan, D. P. (2006). Arqueologia, público e comodificação da herança cultural: o caso da cultura marajoara. Revista Arqueologia Pública, 1(1), 19-30. https://doi.org/10.20396/rap.v1i1.8635819
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; F. Silva et al., 2011Silva, F. A., Bespalez, E., & Stuchi, F. F. (2011). Arqueologia colaborativa na amazônia: Terra Indígena Kuatinemu, Rio Xingu, Pará. Amazônica - Revista de Antropologia, 3(1), 32-59. http://dx.doi.org/10.18542/amazonica.v3i1.629
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). O trecho que abre esta seção mostra que, a despeito de minhas intenções, eu ainda não havia conseguido uma forma efetiva de comunicação com meus colaboradores; minha prática ainda não conseguia incluir os que estavam ao meu redor, muito menos lhes dar qualquer voz. Reis (2007)Reis, J. A. (2007). Lidando com as coisas quebradas da história. Revista Arqueologia Pública, 2(1[2]), 33-44. https://doi.org/10.20396/rap.v2i1.8635809
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argumenta que arqueólogas e arqueólogos precisam falar para a população toda, principalmente quem estiver mais perto do lugar onde se esteja desenvolvendo algum trabalho de Arqueologia – nesse meu trabalho, os colaboradores.
Foi muito difícil explicar aos senhores que escavavam comigo a opção por não permitir o uso de máquinas para quebrar o piso de concreto, o que pouparia tempo e energia a todos, ou porque essa retirada do piso se daria seguindo quadrados estabelecidos por mim (Figura 3). Arrisco dizer que minhas explicações prévias, talvez por excesso de zelo, ou mesmo falta de tato, tenham sido as principais responsáveis pelas resistências que encontrei entre os colaboradores.
Há definições quase hegemônicas sobre o que é patrimônio – e a Arqueologia participa em muitas medidas deste discurso – apropriadas pela academia e pelo Estado, que Smith (2011)Smith, L. (2011). El “espejo patrimonial”. ¿Ilusión narcisista o reflexiones múltiples? Antipoda Revista de Antropologia y Arqueologia, 1(12), 39-63. https://doi.org/https://doi.org/10.7440/antipoda12.2011.04
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classifica como ‘o discurso patrimonial autorizado’, que define o patrimônio sem necessariamente levar em consideração entendimentos mais plurais, como objetos, “materiais, sítios, lugares, paisagens esteticamente agradáveis e que não são renováveis” (Smith, 2011Smith, L. (2011). El “espejo patrimonial”. ¿Ilusión narcisista o reflexiones múltiples? Antipoda Revista de Antropologia y Arqueologia, 1(12), 39-63. https://doi.org/https://doi.org/10.7440/antipoda12.2011.04
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, p. 43).
É importante sugerir a preservação dos patrimônios de ordem material ou transformados em material a partir das realidades locais, e que fazem parte da maioria dos trabalhos que têm por objeto de estudo um ‘patrimônio cultural reconhecido’ (Smith, 2011Smith, L. (2011). El “espejo patrimonial”. ¿Ilusión narcisista o reflexiones múltiples? Antipoda Revista de Antropologia y Arqueologia, 1(12), 39-63. https://doi.org/https://doi.org/10.7440/antipoda12.2011.04
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). O que, muitas vezes, ocorre é que a ‘preservação’ é feita à revelia das pessoas que utilizam os espaços públicos; e estes espaços, quase sempre lócus de disputas políticas e econômicas, como o Centro Histórico de Belém, podem ser subtraídos de algumas pessoas, afastadas seja por barreiras sociais, seja por barreiras econômicas (Holtorf, 2012Holtorf, C. (2012). The heritage of heritage. Heritage & Society, 5(2), 153-174. https://doi.org/10.1179/hso.2012.5.2.153
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; Smith, 2011Smith, L. (2011). El “espejo patrimonial”. ¿Ilusión narcisista o reflexiones múltiples? Antipoda Revista de Antropologia y Arqueologia, 1(12), 39-63. https://doi.org/https://doi.org/10.7440/antipoda12.2011.04
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; Yarrow, 2019Yarrow, T. (2019). How conservation matters: Ethnographic explorations of historic building renovation. Journal of Material Culture, 24(1), 3-21. https://doi.org/10.1177/1359183518769111
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). Esta subtração ficou subjacente às minhas primeiras interações com os colaboradores da escavação:
Chegamos à segunda semana de escavações e percebo que está sempre mais difícil parar toda hora e dizer que “isso é importante” ou “não joguem aquilo fora”, e ouvir: “mas tá quebrado”, “é só um pedacinho, não vai servir”. Já mostrei fotos de material arqueológico na tela do computador, já tomei muito café e contei novas piadas [nota mental: eu, talvez, não seja bom contando piadas]. Passei a iniciar os dias de trabalho com uma espécie de recapitulação do que já havia falado no dia anterior, nova estratégia
(N. Gomes, comunicação pessoal, 15 jan. 2019).
Cinco dias desde a minha constatação de que as pessoas se sentiam obrigadas a me ouvir, mas sem qualquer interesse. O excerto acima mostra que minhas estratégias continuavam falhando. Baseei minha postura seguinte na ideia de multivocalidades, sendo esta a qualidade de permitir que muitas vozes, mesmo dissonantes, participem de um mesmo esforço de conferir significados a experiências que são coletivas (Ferreira et al., 2014Ferreira, L. M., Montenegro, M., Rivolta, M. C., & Nastri, J. (2014). Multivocalidad y activaciones patrimoniales en arqueología: perspectivas desde Sudamérica. Fundación de Historia Natural Félix de Azara.; García et al., 2015García, C. G., Martínez, D. B., & Baptista, B. V. (2015). Patrimonio y multivocalidad: teoría, práctica y experienciasen torno a la construcción del conocimiento en patrimonio. Ediciones Universitarias. https://www.colibri.udelar.edu.uy/jspui/handle/20.500.12008/10990
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; Gnecco, 1999Gnecco, C. (1999). Multivocalidad histórica: hacia una cartografía postcolonial de la arqueología (1. ed.). Departamento de Antropología, Universidad de Los Andes.; Rivolta et al., 2014Rivolta, M. C., Montenegro, M., Ferreira, L. M., & Nastri, J. (2014). Multivocalidad y activaciones patrimoniales en arqueología: perspectivas desde Sudamérica. Facultad de Ciencias Sociales, Fundación de Historia Natural Félix de Azara. https://www.fundacionazara.org.ar/img/libros/multivocalidad.pdf
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). Uma prática arqueológica que leve em conta multivocalidades seria aquela em que a reconstituição do passado desse conta de capturar os conflitos, as divergências, os modos de vida distintos e as distintas maneiras de conceber a realidade e as relações sociais (Schaan, 2012Schaan, D. P. (2012). Arqueologia, patrimônio e multiculturalismo na beira da estrada: pesquisando ao longo das rodovias Transamazônica e Santarém-Cuiabá, Pará (1. ed.). GKNoronha.). Seria uma Arqueologia que entendesse que o passado é sempre pensado a partir do presente (Moore, 2006Moore, T. (2006). Following the digger: the impact of developer-funded archaeology on academic and public perceptions of cultural landscapes [Paper presentation]. 10th International Seminar of Forum UNESCO University and Heritage: Cultural Landscapes in the 21st century, International Centre for Cultural Heritage Studies (ICCHS), University of Newcastle, UK. http://dro.dur.ac.uk/22898/
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; Moore et al., 2020Moore, T., Guichard, V., & Sanchís, J. R. A. (2020). The place of archaeology in integrated cultural landscape management. A case study comparing landscapes with Iron Age oppida in England, France and Spain. Journal of European Landscapes, 1(1), 9-28. http://dx.doi.org/10.5117/JEL.2020.1.47039
https://doi.org/10.5117/JEL.2020.1.47039...
), e, portanto, dos contextos sociais e políticos de uma dada realidade. Reconhecer que a ciência ocidental é parte de um ‘sistema cultural’ (Geertz, 1983Geertz, C. (1983). Local knowledge: further essays in interpretive anthropology. Basic Books., 2008Geertz, C. (2008). A interpretação das culturas. LTC Editora.) ocidental é um primeiro passo para uma abertura da Arqueologia a outras formas de construir o conhecimento e significar o mundo.
Além disso, uma vez que as arqueólogas e os arqueólogos fazem parte de disciplinas científicas, suas narrativas sobre o passado baseiam-se nessa mesma ciência que representam (Wittgenstein, 1953Wittgenstein, L. (1953). Philosophical investigations. Blackwell.). A ciência como a conhecemos é uma construção cultural do ‘Ocidente’, que colonizou tantas sociedades nativas, impondo não somente novas ordens sociais e políticas, mas uma nova moral, religião e modos de pensar o mundo. Em um mundo pós-colonial, multicultural, portanto, a imposição da ciência ocidental é uma violência epistêmica que renova a hierarquia colonial (Gnecco, 1999Gnecco, C. (1999). Multivocalidad histórica: hacia una cartografía postcolonial de la arqueología (1. ed.). Departamento de Antropología, Universidad de Los Andes., 2009Gnecco, C. (2009). Caminhos de la Arqueología: de la violencia epistémica a la relacionalidad. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 4(1), 15-26. https://doi.org/10.1590/S1981-81222009000100003
https://doi.org/10.1590/S1981-8122200900...
, 2010Gnecco, C. (2010). Da arqueologia do passado à arqueologia do futuro: anotações sobre multiculturalismo e multivocalidade. Amazônica – Revista de Antropologia, 2(1), 92-103. http://dx.doi.org/10.18542/amazonica.v2i1.343
https://doi.org/10.18542/amazonica.v2i1....
, 2013Gnecco, C. (2013). Arqueología multicultural. Notas intempestivas. Complutum, 23(2), 93-102. https://doi.org/10.5209/rev_CMPL.2012.v23.n2.40877
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).
Respeitar a diversidade cultural não significa concordar com tudo. Não é necessário concordar com a opinião de outra pessoa para respeitá-la e considerá-la legítima. Muito frequentemente, tendemos a desconsiderar opiniões diferentes da nossa, desqualificando a opinião do outro como representante de um saber legítimo. Na sociedade ocidental, o método científico é considerado como o único apropriado para estudar, conhecer e explicar os fenômenos do mundo. Sonhos, por exemplo, não são considerados como meios científicos de conhecimento, ainda que a análise dos sonhos seja objeto de estudo da Psicologia e da Psicanálise voltada para o conhecimento individual. Frequentemente, sonhos são relatados em nossas interações com as pessoas que nos auxiliam nas escavações ou que visitam os sítios arqueológicos.
Durante os trabalhos no sítio Sesc Ver-o-Peso, certa manhã, um dos colaboradores disse ter sonhado com um pote de ouro que estaria enterrado no casarão e que nós o encontraríamos em breve. Ainda na parte da manhã, encontramos três moedas durante as escavações, e todos os colaboradores passaram a aludir ao sonho sobre o pote de ouro, o qual jamais foi encontrado, mas prometi pagar uma Coca-Cola caso encontrássemos mais moedas no mesmo dia (a Coca-Cola era a ‘moeda’ mais apreciada pelos meus colaboradores, e eles estavam sempre encontrando ocasiões de me fazer pagar por ela).
Essa situação fala menos sobre o sonho como matéria de conhecimento do que como maneira de participar, de ser ouvido em uma situação em que a Arqueologia se coloca em conflito com maneiras locais de se relacionar com o desconhecido. Mesmo sem grandes tensões, eu continuei percebendo que o trabalho que fazíamos, a despeito de meus esforços explicativos, continuava sem fazer sentindo para as pessoas que colaboravam comigo. A esta altura, as escavações já tinham recebido uma visita fiscalizadora do IPHAN, além de alguns estudantes da UFPA. Nestas ocasiões, os trabalhos paravam e eu notava que minha explicação era seguida por todos, sempre como se fosse a primeira vez que eles estavam ouvindo sobre o assunto. Mas havia um certo orgulho quando eu nomeava especificamente um deles por ter encontrado um objeto em particular, ou quando eu dizia quem estava trabalhando numa trincheira, ou ajudando na lavagem e na separação dos objetos (Figuras 4 e 5).
A prática arqueológica em meio urbano, e não somente, tradicionalmente acontece com a participação de operários das empresas de engenharia contratadas pelos empreendedores, como figurantes da cena principal, no papel de trabalhadores braçais – de escavadores, peneiradores e carregadores de ferramentas e materiais arqueológicos. Com a obrigatoriedade do desenvolvimento de programas de Educação Patrimonial dentro dos projetos de Arqueologia, entretanto, os trabalhadores passaram a ser foco de ações específicas. Dificilmente, no entanto, foi alterado seu papel secundário. De figurantes, passaram a espectadores. Passaram a dizer-lhes como se comportar frente ao patrimônio arqueológico, ou os acusaram de destruir o patrimônio, e, como ocorre em muitas comunidades fora dos centros urbanos, também foi ordenado aos colaboradores em alguns trabalhos arqueológicos que lessem cartilhas para se informar sobre Arqueologia e legislação (Hilbert, 2006Hilbert, K. (2006). Qual o compromisso social do arqueólogo brasileiro? Revista de Arqueologia, 19(1), 89-101. https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ra/article/view/1670
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). Além disso, o trabalho arqueológico tende a mudar o nome de coisas e lugares, antes conhecidos por todos: o canteiro de obra virou sítio arqueológico; os cacos viraram material arqueológico e ganharam uma importância até então inaudita.
Percebi que o principal motivo pelo qual eu não via o interesse dos interlocutores pelo material ou mesmo pelo trabalho arqueológico que eu coordenava era a distância. Os colaboradores estavam longe de entender o que eu chamava de material arqueológico, não reconheciam os cacos, as garrafas, os vestígios de louças ou as moedas como algo além do que eles são: cacos, garrafas e moedas – por vezes, lixo. Nesse ponto, decidi apresentar a todos os mesmos objetos, mas convertidos em material arqueológico dentro de uma vitrine expositiva (Figuras 6 e 7).
Os colaboradores foram ver junto comigo uma exposição de material arqueológico que fica num centro cultural bem na frente do local onde estávamos escavando.
Os colaboradores se detiveram junto à vitrine expositiva e conseguiam ver um material muito similar ao que estavam escavando diariamente, mas já remontados, com iluminação cênica e com o status de material arqueológico.
Como nos lembra Gnecco (2009)Gnecco, C. (2009). Caminhos de la Arqueología: de la violencia epistémica a la relacionalidad. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 4(1), 15-26. https://doi.org/10.1590/S1981-81222009000100003
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, na confrontação entre conhecimentos ‘universais’, trazidos pelo arqueólogo, e os conhecimentos ‘locais’, os primeiros são considerados conhecimento; e os segundos, ‘saberes’; “ao primeiro se outorga legitimidade cognitiva e ao segundo[,] exotismo antropológico” (Gnecco, 2009Gnecco, C. (2009). Caminhos de la Arqueología: de la violencia epistémica a la relacionalidad. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 4(1), 15-26. https://doi.org/10.1590/S1981-81222009000100003
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, p. 21). Ainda segundo Gnecco (2009)Gnecco, C. (2009). Caminhos de la Arqueología: de la violencia epistémica a la relacionalidad. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 4(1), 15-26. https://doi.org/10.1590/S1981-81222009000100003
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, a alternativa seria promover a complementaridade dos saberes, em vez do monolinguismo.
As imagens que seguem e os trechos do meu diário de campo demonstram um momento de aproximação entre a cultura material e colaboradores no processo de desenterrá-la.
É uma sexta-feira qualquer de um janeiro chuvoso. Estamos no fim da segunda semana de escavações e hoje irei mostrar aos senhores que trabalham comigo uma vitrine com materiais arqueológicos expostos nos antigos armazéns do porto de Belém, hoje um dos pontos turísticos mais celebrados da capital. Encerramos o expediente uma hora antes, às 15 h, não estava chovendo, e depois que todos “se arrumaram” (houve uma recusa geral em ir diretamente da obra), fomos à Estação das Docas5 5 Inaugurada em maio de 2000, a Estação das Docas é um complexo turístico resultado da restauração dos armazéns do porto da capital paraense pelo governo do Estado, sendo hoje administrada por uma parceria público-privada – a empresa Pará 2000. , no armazém onde fica a mostra de peças arqueológicas escavadas no período da requalificação do espaço. Passei 15 minutos falando de como foi o trabalho naquele lugar, falei do material que estava exposto, e, após isso, uma chuva de perguntas sobre o material – todas as perguntas que não foram feitas durante nossas duas semanas trabalhando juntos.
Um perguntou: o nosso material vai ficar bonito assim?
Outro: esse aqui parece caro, o nosso é caro?
Um outro fez a seguinte observação: muita coisa igual o que nós têm lá.
Outros apontando para garrafas iguais às que tínhamos encontrado, ou para os padrões decorativos das louças indicando que tínhamos as mesmas.
De repente, a curiosidade sobre o material arqueológico surgiu, ou melhor, despertou. A possibilidade de ver o material que eles estavam escavando, ganhando a mesma luz e atenção que os vestígios que eles estavam vendo, os animava. Vários olhavam para os artefatos expostos e se desafiavam a encontrar coisas semelhantes no casarão que estavam escavando
(N. Gomes, comunicação pessoal, 18 jan. 2019).
Nos dias que seguiram a ida à Estação das Docas, as conversas mudaram. Havia um valor, uma importância nova ao material que estávamos encontrando e à forma como escavávamos: cuidado para não quebrar mais. Seu Ney, recolhi isso aqui, encontrei isso, olha isso aqui . . . . Muitos querendo encontrar coisas que depois ficariam expostas
(N. Gomes, comunicação pessoal, 23 jan. 2019).
Esta situação paradigmática do trabalho de campo, minha versão pessoal de ter anthropological blues (Da Matta, 1978Da Matta, R. (1978). O ofício de etnólogo, ou como ter anthropological blues. Boletim do Museu Nacional. Nova Série, Antropologia, (27), 1-12. https://revistas.ufrj.br/index.php/bmna/article/view/49240/26886
https://revistas.ufrj.br/index.php/bmna/...
), demonstrou que, desde o princípio, o que estava em jogo eram os diferentes valores e hierarquias entre a mirada arqueológica sobre o material de escavação e a dos trabalhadores. Ao verem o que outrora consideravam lixo ser disposto em uma vitrine, num dos locais de prestígio e distinção econômicos da cidade – a Estação das Docas –, o trabalho que os operários vinham fazendo passou por uma operação ressemantizadora. O próprio gesto de se arrumar antes de se dirigir ao espaço é elucidativo do lugar que este ocupa no imaginário social das pessoas circulando na cidade. Em suma, o salto simbólico que eu não fora capaz de fazer até aquele momento era um salto de poder – o tipo de poder apenas outorgado pela materialidade do patrimônio do passado inserida em lugar de destaque, uma vitrine, em um local de expressão das desigualdades do tempo presente.
SOBRE SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS, ESCAVAÇÕES ARQUEOLÓGICAS, O CENTRO HISTÓRICO DE BELÉM E ALGUMAS DISCUSSÕES POSSÍVEIS
A ocupação colonial e a fundação da cidade de Belém datam, segundo a historiografia amazônica, da primeira metade do século XVII, dentro do contexto de efetivação da empresa colonial portuguesa na Amazônia e as narrativas sobre a formação do primeiro povoado, chamado ‘Feliz Lusitânia’, em 1616. Posteriormente, a cidade do Pará e Santa Maria de Belém do Grão-Pará podem ser encontradas em diversos autores que rememoram a epopeia do navegador português Francisco Caldeira de Castelo Branco, que partiu de São Luís do Maranhão para efetivar a ocupação da região (Baena, 1969Baena, A. L. M. (1969). Compêndio das eras da província do Pará. Universidade Federal do Pará. https://livroaberto.ufpa.br/jspui/handle/prefix/98
https://livroaberto.ufpa.br/jspui/handle...
; Baena, 2004Baena, A. L. M. (2004 [1885]). Ensaio corográfico sobre a Província do Pará. Senado Federal. http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/1097
Senado Federal...
[1885]; Barata, 1973Barata, M. (1973). Formação histórica do Pará: obras reunidas. Universidade Federal do Pará. https://livroaberto.ufpa.br/jspui/handle/prefix/47
https://livroaberto.ufpa.br/jspui/handle...
; Cruz, 1971Cruz, E. (1971). As edificações de Belém: 1783-1911. Conselho Estadual de Cultura.; Meira Filho, 2015Meira Filho, A. (2015). Evolução histórica de Belém do Grão-Pará: fundação e história, 1616-1823. M2P Arquitetura e Engenharia.). É em uma porção do bairro da Campina, Centro Histórico de Belém, área de antiga ocupação colonial, que se insere o sítio arqueológico Sesc Ver-o-Peso, no arrabalde imediato do icônico mercado paraense e seu complexo (Campelo, 2000Campelo, M. M. (2000). Em busca de um patrimônio: inventário sócio-cultural da Feira do Ver-o-Peso - Relatório Final. Inventários., 2002Campelo, M. M. (2002). Feira do Ver-o-Peso: cartão-postal da Amazônia ou patrimônio da humanidade. Humanitas, 18(2), 149-170. https://periodicos.ufpa.br/index.php/rhumanitas/article/view/14373
https://periodicos.ufpa.br/index.php/rhu...
, 2010Campelo, M. M. (2010). Conflito e espacialidade de um mercado paraense. In W. M. Leitão (Org.), Ver-o-Peso: estudos antropológicos no mercado de Belém (pp. 41-68). NAEA.; Nascimento & Rodrigues, 2011Nascimento, L. T. A., & Rodrigues, C. I. (2011). Sociabilidades no mercado de peixe do Ver-o-Peso: das práticas cotidianas à Festa de Nossa Senhora de Nazaré. Revista Pós Ciências Sociais, 8(16), 155-174. http://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rpcsoc/article/view/697
http://periodicoseletronicos.ufma.br/ind...
; Freitas & Freitas, 2017Freitas, N., & Freitas, N. (2017). Educação em espaços não formais: a produção de roteiro científico para o mercado do Ver-O-Peso. Revista Areté - Revista Amazônica de Ensino de Ciências, 8(17), 95-106. http://periodicos.uea.edu.br/index.php/arete/article/view/182
http://periodicos.uea.edu.br/index.php/a...
).
Britto e Silveira (2014, p. 145)Britto, R. M., & Silveira, F. L. A. (2014). As poéticas das paisagens do Ver-o-Peso, Amazônia: reflexões sobre a exposição museológica da IPHAN-PA. Iluminuras, 15(35), 145-170. https://doi.org/10.22456/1984-1191.49326
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apontam que a paisagem do Ver-o-Peso (e seus arredores) está ligada com a história de Belém e “. . . sua expansão urbana a partir do núcleo de fundação da cidade, que hoje corresponde aos bairros mais antigos: Cidade Velha e Campina/Comércio”. Dentro dos projetos de requalificação de alguns sítios históricos na capital, temos os trabalhos na área do Porto de Belém, onde hoje está a Estação das Docas, e as escavações dentro do complexo Feliz Lusitânia (Marques, 2003Marques, F. L. T. (2003). Pesquisa arqueológica na área do Forte do Castelo, em Belém, PA - monitoramento arqueológico. MPEG/SECULT., 2005Marques, F. L. T. (2005). Prospecção arqueológica no Palácio Episcopal de Belém. In S. E. C. Estado (Ed.), Feliz Lusitânia/Museu de Arte Sacra (pp. 1-308). SECULT/PA., 2006Marques, F. L. T. (2006). Investigação arqueológica na Feliz Lusitânia. In S. E. C. Estado (Ed.), Feliz Luzitânia/Forte do Presépio – Casa das Onze Janelas – Casario da Rua Padre Champanhat (pp. 147-187). SECULT/PA., 2010Marques, F. L. T. (2010). Um sítio indígena sob a Feliz Lusitânia: descobertas recentes em Arqueologia Urbana em Belém do Pará. In L. T. L. Simonian (Ed.), Belém do Pará: história, cultura e sociedade (pp. 49-58). Editora da UFPA.), a partir das quais foi posta em evidência uma variada cultura material que remete ao período colonial.
Quando criança, lembro que a Campina, ou o Comércio, era chamada pela minha avó e por minha família de ‘lá embaixo’. De fato, quando alguns belenenses dizem ‘vai (vou) lá embaixo’ pode indicar diversas possibilidades, mas, em geral, eles se referem a uma ida ao centro comercial antigo da cidade, invariavelmente passando pelo Ver-o-Peso. Uma ida ao comércio, ao Ver-o-Peso, acaba sendo uma experiência que pode ser banal pela familiaridade ou extraordinária pelo ineditismo, como observei em uma das estratégias de interação com meus colaboradores.
Do ponto de vista da Arqueologia, várias foram as intervenções no Centro Histórico da capital paraense, praticamente todas compulsórias6
6
Em artigo recém-publicado, tendo por objeto sempre as escavações levadas a cabo no sítio Sesc Ver-o-Peso, trato da compulsoriedade dos trabalhos arqueológicos no Centro Histórico da capital paraense, além de um estudo da construção social da paisagem histórica desta área (ver N. Gomes, 2023a).
, sem qualquer participação das pessoas ao redor e com poucos de seus resultados publicados até hoje (N. Gomes, 2023aGomes, N. (2023a). A paisagem histórica da capital paraense e suas interrelações com as pessoas: e a arqueologia com isso? Revista de Arqueologia, 36(2), 243-273. https://doi.org/10.24885/sab.v36i2.1098
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, 2023bGomes, N. (2023b). The material culture of the urban site Sesc Ver-o-Peso, in Belém, at the Amazon: possibilities of analyses. Global Journal of Human-Social Science: D History, Archaeology & Anthropology, 25(5), 25-42. https://doi.org/10.17406/GJHSS
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). Uma das mais antigas foi aquela realizada no largo do Carmo, em frente à igreja homônima, sob os auspícios do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) (Guapindaia et al., 1996Guapindaia, V., Marques, F. L. T., & Magalhães, M. P. (1996). Resgate arqueológico da Igreja de N. S. do Rosário dos homens brancos, em Belém, Pará. Caminhos da Cultura.; Kern, 1996Kern, A. A. (1996). Intervenção arqueológica na Igreja do Rosário dos homens brancos, Largo do Carmo, Belém-Pará - Relatório de assessoria em arqueologia histórica. Caminhos da Cultura.). Ainda na Cidade Velha, foram pesquisados e escavados o pátio interno do casarão onde encontra-se o Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP) e o interior da Casa Rosada, hoje sede do Fórum Landi.
O que se observa no Centro Histórico de Belém, nos últimos anos, é que os trabalhos arqueológicos continuam ligados a emergências, quase sempre na ordem do compulsório. Em geral, são grandes obras de requalificação conduzidas pelo poder público, mas que não incluíram as pesquisas arqueológicas dentro dos projetos executivos e das quais pouco se sabe, seja do destino do material escavado, seja das inferências que, porventura, tiveram as arqueólogas e arqueólogos que coordenam ou coordenaram estes trabalhos (N. Gomes, 2018Gomes, N. (2018). Projeto de pesquisa arqueológica e educação patrimonial, anexo II do Sesc Boulevard [Projeto de Pesquisa]. https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?wt7h6hFBI_9S3DJjGLl0dpQiiSEQL4RcICP821UP_Zu3te9Mz8pMgdSFPXZPRHsDc8jMQ17erGYJfOcrc-boq9IGFomzoF0TDY6ESOMhrZnF8DLWNCewd9gR0ttJtAub
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; N. Gomes et al., 2019Gomes, N., Costa, D. F., & Sóstenes, S. (2019). Projeto de pesquisa arqueológica e educação patrimonial no anexo II do Sesc Boulevard [Relatório Preliminar]. https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?wt7h6hFBI_9S3DJjGLl0dpQiiSEQL4RcICP821UP_Zu3te9Mz8pMgdSFPXZPRHsDc8jMQ17erGYJfOcrc-boq9IGFomzoF0TDY6ESOMhrZnF8DLWNCewd9gR0ttJtAub
https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pes...
, 2022Gomes, N., Seabra, A. C. S., Pina, A. D. V., & Araujo, T. S. (2022). Projeto de pesquisa arqueológica e educação patrimonial anexo II do Sesc Boulevard [Relatório Final de Análise]. https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?wt7h6hFBI_9S3DJjGLl0dpQiiSEQL4RcICP821UP_Zu3te9Mz8pMgdSFPXZPRHsDc8jMQ17erGYJfOcrc-boq9IGFomzoF0TDY6ESOMhrZnF8DLWNCewd9gR0ttJtAub
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; P. Lopes et al., 2021Lopes, P. R. C., Fonseca Júnior, A. F. J., & Mendes, K. L. M. (2021). Pesquisa de avaliação do patrimônio arqueológico no Cemitério da Soledade – Belém/Pará [Projeto de Pesquisa]. https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_pesquisar.php?acao_externa=protocolo_pesquisar&acao_origem_externa=protocolo_pesquisar&id_orgao_acesso_externo=0
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, 2022Lopes, P. R. C., Fonseca Júnior, A. F. J., & Mendes, K. L. M. (2022). Acompanhamento arqueológico, Cemitério da Soledade [Relatório Parcial]. https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_pesquisar.php?acao_externa=protocolo_pesquisar&acao_origem_externa=protocolo_pesquisar&id_orgao_acesso_externo=0
https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pes...
; Seabra, 2020aSeabra, A. C. S. (2020a). Projeto arqueológico para as obras de requalificação da Rua João Alfredo, Bairro da Campina, Belém/PA [Relatório Parcial]. https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_pesquisar.php?acao_externa=protocolo_pesquisar&acao_origem_externa=protocolo_pesquisar&id_orgao_acesso_externo=0
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, 2020bSeabra, A. C. S. (2020b). Projeto arqueológico para obras de qualificação da Rua João Alfredo, Bairro da Campina, Belém/PA [Projeto de Pesquisa]. https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_pesquisar.php?acao_externa=protocolo_pesquisar&acao_origem_externa=protocolo_pesquisar&id_orgao_acesso_externo=0
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, 2020cSeabra, A. C. S. (2020c). Projeto de acompanhamento arqueológico e arqueologia pública nas obras de reforma e restauro do Solar da Beira [Relatório Final]. https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_pesquisar.php?acao_externa=protocolo_pesquisar&acao_origem_externa=protocolo_pesquisar&id_orgao_acesso_externo=0
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, 2020dSeabra, A. C. S. (2020d). Projeto de acompanhamento arqueológico e arqueologia pública nas obras de reforma e restauro do Solar da Beira [Projeto de Pesquisa]. https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_pesquisar.php?acao_externa=protocolo_pesquisar&acao_origem_externa=protocolo_pesquisar&id_orgao_acesso_externo=0
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; A. Silva, 2018Silva, A. B. C. (2018). Programa de acompanhamento arqueológico Belém Porto Futuro [Projeto de Acompanhamento Arqueológico]. https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_pesquisar.php?acao_externa=protocolo_pesquisar&acao_origem_externa=protocolo_pesquisar&id_orgao_acesso_externo=0
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, 2019Silva, A. B. C. (2019). Programa de acompanhamento arqueológico Belém Porto Futuro [Relatório Final de Acompanhamento Arqueológico e Relatório Laboratorial]. https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_pesquisar.php?acao_externa=protocolo_pesquisar&acao_origem_externa=protocolo_pesquisar&id_orgao_acesso_externo=0
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, para citar somente os mais recentes).
Mesmo poucos, há trabalhos que se dissociam dos exemplos acima, como o de D. Costa (2007)Costa, D. F. C. (2007). Além da pedra e cal: a (re)construção do Forte do Presépio (Belém do Pará, 2000-2004) [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará]. https://www.repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/4211
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, o qual, dentro do Feliz Lusitânia, investigou os litígios ligados à derrubada do muro que protegia o Forte do Presépio, para entender as relações sobre patrimônio e poder nesse projeto (R. Lopes, 2011Lopes, R. C. S. (2011). “Indigitado estrupício”: Arqueologia e significados acerca do muro do Forte do Presépio (Belém, PA). Amazônica – Revista de Antropologia, 3(2), 370-390. http://dx.doi.org/10.18542/amazonica.v3i2.773
https://doi.org/10.18542/amazonica.v3i2....
). R. Lopes (2011Lopes, R. C. S. (2011). “Indigitado estrupício”: Arqueologia e significados acerca do muro do Forte do Presépio (Belém, PA). Amazônica – Revista de Antropologia, 3(2), 370-390. http://dx.doi.org/10.18542/amazonica.v3i2.773
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, 2013)Lopes, R. C. S. (2013). “O melhor sítio da terra”: Colégio e igreja dos jesuítas e a paisagem de Belém do Grão-Pará (Um estudo de arqueologia da arquitetura) [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará]. https://www.repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/4039
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pesquisou a forma como o colégio e a igreja dos jesuítas, desde o período colonial da capital paraense, ancorado nos métodos da Arqueologia e da Arquitetura, se impõem naquilo que chamou de ‘paisagem de poder’ do Centro Histórico de Belém – não obstante, R. Lopes (2011Lopes, R. C. S. (2011). “Indigitado estrupício”: Arqueologia e significados acerca do muro do Forte do Presépio (Belém, PA). Amazônica – Revista de Antropologia, 3(2), 370-390. http://dx.doi.org/10.18542/amazonica.v3i2.773
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, 2013)Lopes, R. C. S. (2013). “O melhor sítio da terra”: Colégio e igreja dos jesuítas e a paisagem de Belém do Grão-Pará (Um estudo de arqueologia da arquitetura) [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará]. https://www.repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/4039
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, fazendo uma relação analítica, intentou ainda integrar suas inferências com a criação do projeto Feliz Lusitânia, uma grande obra de restauro e requalificação da qual a igreja, objeto de sua pesquisa, fez parte. Fernandes (2013, 2014) se debruçou sobre o largo do Carmo e a memória do sítio arqueológico da Igreja do Rosário dos Homens Brancos. Fernandes (2013Fernandes, G. C. B. (2013). Janela pra que te quero? Usos e desusos da arqueologia urbana na Praça do Carmo em Belém – PA [Qualificação de mestrado, Universidade Federal do Pará]., 2014)Fernandes, G. C. B. (2014). “Um buraco no meio da praça”: múltiplas percepções sobre um sítio arqueológico em contexto urbano amazônico – o caso de Belém, Pará [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará]. https://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/8856
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trabalhou as relações que os moradores do entorno do sítio arqueológico construíram com o local, e uma de suas conclusões é que as pesquisas anteriores, sem ter levado em consideração os usuários da área, tentaram afastar as pessoas que vivem ao redor e transformar a área numa atração turística.
Também buscando relacionar as percepções das pessoas com a área, em local contíguo à praça do Carmo, S. Costa (2019)Costa, S. C. (2019). Porto, água e vida: paisagem, sensorialidades e transformações de uma Zona Portuária Amazônica (Cidade Velha, Belém, Pará) [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará]. https://repositorio.ufpa.br/handle/2011/14946
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entrou no beco homônimo e investigou a antiga zona portuária nos arrabaldes da Igreja do Carmo e do Porto do Sal, para pesquisar como as pessoas que habitam aquele espaço transformaram trapiches em lar, onde vivem e trabalham em uma relação quase simbiótica com as águas, um dos agentes a moldar a paisagem.
Uma distinção, contudo, fica clara. As pesquisas arqueológicas não ligadas ao compulsório, em geral, têm trabalhado com a arquitetura e a paisagem, prescindindo muitas vezes do conceito de sítio arqueológico, tratando a arquitetura e a paisagem como artefatos (ou superartefatos), objetos de estudo dentro da arqueologia da arquitetura, com suas metodologias próprias, apartadas do ato de escavar. Os trabalhos de D. Costa (2007)Costa, D. F. C. (2007). Além da pedra e cal: a (re)construção do Forte do Presépio (Belém do Pará, 2000-2004) [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará]. https://www.repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/4211
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, R. Lopes (2013)Lopes, R. C. S. (2013). “O melhor sítio da terra”: Colégio e igreja dos jesuítas e a paisagem de Belém do Grão-Pará (Um estudo de arqueologia da arquitetura) [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará]. https://www.repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/4039
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, Fernandes (2014)Fernandes, G. C. B. (2014). “Um buraco no meio da praça”: múltiplas percepções sobre um sítio arqueológico em contexto urbano amazônico – o caso de Belém, Pará [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará]. https://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/8856
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e, mais recentemente, Seabra (2019)Seabra, A. C. S. (2019). Arquitetura disciplinar na Amazônia: o Educandário Dr. Nogueira de Faria – Ilha de Cotijuba – Belém – Pará [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará]. https://repositorio.ufpa.br/bitstream/2011/14939/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o_ArquiteturaDisciplinarAmaz%C3%B4nia.pdf
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e S. Costa (2019)Costa, S. C. (2019). Porto, água e vida: paisagem, sensorialidades e transformações de uma Zona Portuária Amazônica (Cidade Velha, Belém, Pará) [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará]. https://repositorio.ufpa.br/handle/2011/14946
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são exemplares no estudo de objetos arqueológicos, trazendo discussões sobre percepções acerca do patrimônio, da paisagem cultural, da apropriação do patrimônio e, principalmente, da Arqueologia da Arquitetura como metodologia de análise. À exceção de Fernandes (2014)Fernandes, G. C. B. (2014). “Um buraco no meio da praça”: múltiplas percepções sobre um sítio arqueológico em contexto urbano amazônico – o caso de Belém, Pará [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará]. https://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/8856
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, todas as outras pessoas pesquisadoras desconsideraram o conceito de sítio arqueológico.
É possível perceber que novas formas de aproximar as pessoas das pesquisas arqueológicas estão sendo testadas. Por exemplo, Fernandes (2019)Fernandes, G. C. B. (2019). Cultura material e arqueologia no contemporâneo: o caso da Capela Pombo em Belém/Pará/Amazônia. Revista Mosaico - Revista de História, 12, 46-67. https://doi.org/10.18224/mos.v12i0.6736
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, em suas primeiras reflexões de sua pesquisa doutoral, procurou, usando a arqueologia e a materialidade da Capela Pombo – um prédio quase em ruína protegido pelo Estado através do tombamento –, estudar sua inserção na paisagem de Belém, bem como analisar a biografia do edifício e sua relação com as pessoas que frequentam o centro comercial e histórico de Belém. Todavia, ao conceituar a Capela Pombo como sítio arqueológico (Fernandes, 2022Fernandes, G. C. B. (2022). Arqueologia contemporânea e suas possibilidades: o caso da Capela Pombo em Belém-Pa [Tese de doutorado, Universidade Federal do Pará]. https://fauufpa.org/2020/03/13/arqueologia-contemporanea-e-suas-possibilidades-o-caso-da-capela-pombo-em-belem-do-para/
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), a autora se afasta de seu intento, posto que cria uma categoria desconhecida e desnecessária à discussão que incitou sua pesquisa. Aliás, ao chamar a ermida de sítio arqueológico, a autora pode ter contradito parte de suas conclusões.
A Arqueologia – e as pesquisas levadas a cabo por esta ciência – serve para contar histórias (Schaan, 2009bSchaan, D. P. (2009b). Reflexões de uma arqueóloga e mulher na Amazônia. In L. Domínguez, P. P. A. Funari, A. V. Carvalho & G. B. Rodrigues (Eds.), Desafios da Arqueologia - depoimentos (pp. 89-99). Habilis.), e um dos principais intuitos de minha pesquisa é corroborar com este gesto intelectual. Cada vestígio escavado, cada caco ou garrafa servem para contar a história de mulheres e homens do passado e a forma como eles se relacionavam em um tempo distinto numa paisagem. Mas, antes, interessou-me a contemporaneidade, inquietaram-me as percepções das pessoas sobre o trabalho que eu estava desenvolvendo. Essa inquietação se deu muito por conta da constante ressignificação e do valor que algumas camadas da sociedade dão a lugares que são legitimados pela Arqueologia (Mathers et al., 2005Mathers, C., Darvill, T., & Little, B. J. (2005). Heritage of value, archaeology of renown: Reshaping archaeological assessment and significance. University Press of Florida.; Weiss, 2006Weiss, L. (2006). Heritage of value, Archaeology of renown: reshaping archaeological assessment and significance. American Anthropologist, 108(2), 425-426. https://doi.org/https://doi.org/10.1525/aa.2006.108.2.425.1
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). Visivelmente, o que a Arqueologia e os estudos que tratam do patrimônio cultural urbano consideram importante e de valor são elementos frequentemente afastados de parte das pessoas que fruem pelos mesmos lugares. O sentido dado às coisas do passado acaba por ser díspar entre esses grupos (Bezerra, 2013Bezerra, M. (2013). Os sentidos contemporâneos das coisas do passado: reflexões a partir da Amazônia. Revista de Arqueologia Pública, 7(1), 107-122. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rap/article/view/8635674
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
). O porquê de preservar o passado transforma-se em uma imposição, seja por parte da academia, seja por parte do Estado (Rocha & Eckert, 2006Rocha, A. L. C., & Eckert, C. (2006). A cidade e suas crises, o patrimônio pelos viés da memória: Por que e como preservar o passado? Habitus – Revista do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, 4(1), 455-470. https://doi.org/10.18224/hab.v4.1.2006.455-470
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).
SOBRE AS PERCEPÇÕES, JUNÇÕES E DISJUNÇÕES ENTRE ETNOGRAFIA E ARQUEOLOGIA
Visualmente, a paisagem do Centro Histórico de Belém, especificamente no entorno imediato do Ver-o-Peso, quase atordoa, dada a multiplicidade de estímulos oferecidos. O Boulevard Castilhos França, onde se localiza o Sesc Ver-o-Peso, em frente à Estação das Docas, sua janela para a baía do Guajará e os arredores do Ver-o-Peso – um complexo composto por várias unidades quase autônomas, mas indistintamente ligadas –, não é somente um lugar, é uma experiência que junta paisagem, com uma arquitetura icônica para a cidade, e pessoas, produzindo sons, cheiros, cores, texturas e diversos sabores; nas palavras de Ingold (1993)Ingold, T. (1993). The temporality of the landscape. World Archaeology, 25(2), 152-174. https://doi.org/10.1080/00438243.1993.9980235
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, uma ‘taskscape’7
7
O termo taskscape não tem nenhuma tradução possível em português que servisse para explicar seu uso aqui. O termo proposto por Ingold (1993) derivou da desconstrução do termo landscape, paisagem, e desde então criou grande interesse e encontrou uma aplicação considerável para se referir a todo o conjunto de tarefas ou ações que uma sociedade, comunidade ou indivíduo realiza em um espaço (Darvill, 2008).
(Edgeworth, 2016Edgeworth, M. (2016). Phenomenology of landscapes and taskscapes in excavation archives. Norwegian Archaeological Review, 49(1), 26-29. https://doi.org/10.1080/00293652.2016.1164233
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; Hicks, 2016Hicks, D. (2016). The temporality of the landscape revisited. Norwegian Archaeological Review, 49(1), 5-22. https://doi.org/10.1080/00293652.2016.1151458
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), possível de ser percebida a partir dos seus habitantes e de frequentadores da economia mobilizada em seus espaços, pela natureza que o circunda e dele faz parte e também de seus usos como um espaço público (Ingold, 1993Ingold, T. (1993). The temporality of the landscape. World Archaeology, 25(2), 152-174. https://doi.org/10.1080/00438243.1993.9980235
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, pp. 158-160).
Andando por lá, é possível sentir-se como Hamilakis (2014)Hamilakis, Y. (2014). Recapturing sensorial and affective experience. In Y. Hamilakis (Ed.), Archaeology and the senses: human experience, memory, and affect (pp. 57-110). Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9781139024655.004
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, quando passeava por Londres num ensolarado e quente novembro, descrevendo suas percepções e, depois, escrevendo sobre a era da sensorialidade8
8
Ver Porcello et al. (2010), em suas valiosas discussões sobre o interesse pela sensorialidade na Antropologia, a organização do mundo sensorial.
, em que os ‘sentidos’ estão estimulados em todos os lugares: nas propagandas, em uma seção de supermercado, com o cheiro de pão quentinho, nos corredores dos shoppings, em museus, galerias, patrimônios culturais e em diversas literaturas e discussões acadêmicas (Hamilakis, 2014Hamilakis, Y. (2014). Recapturing sensorial and affective experience. In Y. Hamilakis (Ed.), Archaeology and the senses: human experience, memory, and affect (pp. 57-110). Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9781139024655.004
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, pp. 59-60). Hamilakis (2014)Hamilakis, Y. (2014). Recapturing sensorial and affective experience. In Y. Hamilakis (Ed.), Archaeology and the senses: human experience, memory, and affect (pp. 57-110). Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9781139024655.004
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propõe discussões sobre as possibilidades de perceber os espaços pelos sentidos e o faz pondo a Arqueologia como a lente para as inferências.
Esse mesmo autor faz uma instigante reflexão sobre Arqueologia Etnográfica, a qual classifica como um emergente campo interdisciplinar/transdisciplinar, que pode propiciar uma colaboração maior entre Antropologia e Arqueologia, sendo a Arqueologia Etnográfica (e não Etnoarqueologia) definida como um “espaço transcultural para múltiplos encontros, conversas e intervenções, envolvendo pesquisadores de diversas disciplinas e públicos diferentes, e centrados em materialidade e temporalidade” (Hamilakis, 2011Hamilakis, Y. (2011). Archaeological ethnography: a multitemporal meeting ground for archaeology and anthropology. Annual Review of Anthropology, 40(1), 399-414. https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-081309-145732
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, p. 399). As reflexões de Hamilakis (2011Hamilakis, Y. (2011). Archaeological ethnography: a multitemporal meeting ground for archaeology and anthropology. Annual Review of Anthropology, 40(1), 399-414. https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-081309-145732
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, 2014)Hamilakis, Y. (2014). Recapturing sensorial and affective experience. In Y. Hamilakis (Ed.), Archaeology and the senses: human experience, memory, and affect (pp. 57-110). Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9781139024655.004
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, Hamilakis e Anagnostopoulos (2009)Hamilakis, Y., & Anagnostopoulos, A. (2009). What is archaeological ethnography? Public Archaeology, 8(2-3), 65-87. https://doi.org/10.1179/175355309x457150
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e outros pesquisadores que têm discutido as intercessões entre Etnografia e Arqueologia (Castañeda, 2006Castañeda, Q. E. (2006). The invisible theatre of ethnography: performative principles of fieldwork. Anthropological Quarterly, 79(1), 75-104. https://www.jstor.org/stable/4150909
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, 2008Castañeda, Q. E. (2008). The ‘ethnographic turn’ in archaeology: research positioning and reflexivity in ethnographic archaeologies. In Q. E. Castañeda & C. N. Matthews (Eds.), Ethnographic archaeologies: reflections on stakeholders and archaeological practices (pp. 25-62). Altamira Press., 2009Castañeda, Q. E. (2009). The ‘past’ as transcultural space: using ethnographic installation in the study of Archaeology. Public Archaeology, 8(2), 262-282. https://doi.org/10.1179/175355309x457277
https://doi.org/10.1179/175355309x457277...
; Castañeda et al., 2008Castañeda, Q. E. (2008). The ‘ethnographic turn’ in archaeology: research positioning and reflexivity in ethnographic archaeologies. In Q. E. Castañeda & C. N. Matthews (Eds.), Ethnographic archaeologies: reflections on stakeholders and archaeological practices (pp. 25-62). Altamira Press.; Edgeworth, 2003Edgeworth, M. (2003). Acts of discovery: an ethnography of archaeological practice. British Archaeological Reports., 2006Edgeworth, M. (2006). Ethnographies of archaeological practice: cultural encounters, material transformations. AltaMira Press.; Schaan, 2014Schaan, D. P. (2014). Arqueologia para etnólogos: colaborações entre arqueologia e antropologia na Amazônia. Anuário Antropológico, 39(2), 13-46. https://doi.org/10.4000/aa.1243
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) têm-me servido de questão para, a partir da Etnografia e da Arqueologia, refletir sobre os usos e as apropriações feitos desta parte do Centro Histórico de Belém; e a principal conclusão a que cheguei é que as apropriações mudam com o tempo, os usos são diversos e variam muito de acordo com o grau de instrução, oportunidades de interação com o patrimônio cultural e vestígios arqueológicos, bem como com as interferências que o Estado ou alguns projetos de requalificação trazem à paisagem local.
O bairro da Campina, no Centro Histórico de Belém, e seus arredores se prestam muito a ser objeto de estudo de uma Arqueologia Etnográfica, que tem sido definida como uma prática inovadora e híbrida, um método que combina procedimentos e ideias da Arqueologia e da Antropologia (Hamilakis, 2011Hamilakis, Y. (2011). Archaeological ethnography: a multitemporal meeting ground for archaeology and anthropology. Annual Review of Anthropology, 40(1), 399-414. https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-081309-145732
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; Hamilakis & Anagnostopoulos, 2009Hamilakis, Y., & Anagnostopoulos, A. (2009). What is archaeological ethnography? Public Archaeology, 8(2-3), 65-87. https://doi.org/10.1179/175355309x457150
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). Para Hamilakis (2011)Hamilakis, Y. (2011). Archaeological ethnography: a multitemporal meeting ground for archaeology and anthropology. Annual Review of Anthropology, 40(1), 399-414. https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-081309-145732
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, a definição anterior pode limitar o potencial da Arqueologia Etnográfica, evitando que os pesquisadores que a utilizam explorem não só as implicações epistemológicas, mas também ontológicas desse campo emergente, tanto para a Arqueologia quanto para a Antropologia. O autor argumenta que Arqueologia Etnográfica é (e pode ser) muito mais do que uma prática e um método; pode ser um espaço transdisciplinar e transcultural, uma localidade e um terreno que permite reuniões múltiplas, conversas e intervenções.
A produção deste espaço, que é definido pela materialidade e pela temporalidade, é possível devido às transformações epistêmicas e interpretativas que suas disciplinas primárias, Arqueologia e Antropologia, sofreram nos últimos 20 anos, e por causa das intervenções sociais sobre o trabalho acadêmico e a prática de pessoas e grupos desprotegidos (Hamilakis, 2011Hamilakis, Y. (2011). Archaeological ethnography: a multitemporal meeting ground for archaeology and anthropology. Annual Review of Anthropology, 40(1), 399-414. https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-081309-145732
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, p. 405).
Enquanto ainda é comum que muitas arqueologias detenham-se no estudo de artefatos, de maiores ou diminutas dimensões – e, muitas vezes, imbuídas de um fetiche pela cultura material, possam deslizar na desconsideração das sujeitas e dos sujeitos que a produziram (N. Gomes & R. Lopes, 2012aGomes, N., & Lopes, R. C. S. (2012a). Cacareco de índio e artefato arqueológico: conversas entre arqueólogos e a família Souza no Sítio Cedro, Santarém – Pará. Revista de Arqueologia Pública, 5(1), 20-31. https://doi.org/https://doi.org/10.20396/rap.v5i1.8635748
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, 2012bGomes, N., & Lopes, R. C. S. (2012b). Os co-trabalhadores do Cedro - uma possibilidade de Arqueologia Pública. In D. P. Schaan (Ed.), Arqueologia, patrimônio e multiculturalismo na beira da estrada: pesquisando ao longo das rodovias Transamazônica e Santarém-Cuiabá, Pará (pp. 73-92). GKNoronha.; R. Lopes & R. Gomes, 2012Lopes, R. C. S., & Gomes, R. N. C. (2012). De roça a sítio: o saber local e pesquisas arqueológicas. In I Congresso Pan-Amazônico e VII Encontro da Região Norte de História Oral, Belém.) –, quando associadas a estudos etnográficos, o papel das pessoas tende a ficar claro, até porque os pesquisadores, como etnógrafos, deverão se colocar “a tarefa de não só compreender o efeito de certas práticas e artefatos na vida das pessoas, mas também recriar alguns desses efeitos no contexto da escrita sobre eles” (Strathern, 2014Strathern, M. (2014). O efeito etnográfico e outros ensaios. Cosac Naify., p. 315).
“A etnografia consiste em descrever práticas e saberes de sujeitos e grupos sociais a partir de técnicas como observação e conversações, desenvolvidas no contexto de uma pesquisa” (Rocha & Eckert, 2003Rocha, A. L. C., & Eckert, C. (2003). Etnografia de rua: estudo de antropologia urbana. Revista Iluminuras, 4(7), 1-22. https://doi.org/10.22456/1984-1191.9160
https://doi.org/10.22456/1984-1191.9160...
, p. 3); todavia, como adverte Peirano (2014)Peirano, M. (2014). Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, 20(42), 377-391. https://doi.org/10.1590/s0104-71832014000200015
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, a Etnografia não deve ser entendida somente como método, mas como empirismo, portanto, como a ideia-mãe da Antropologia. Ingold (2008)Ingold, T. (2008). Anthropology is not ethnography. Proceedings of the British Academy, 154, 69-92. https://www.thebritishacademy.ac.uk/documents/2051/pba154p069.pdf
https://www.thebritishacademy.ac.uk/docu...
, por outro lado, admitindo que Etnografia e Antropologia são campos de conhecimentos próximos, adverte que Etnografia não é Antropologia (Ingold, 2008Ingold, T. (2008). Anthropology is not ethnography. Proceedings of the British Academy, 154, 69-92. https://www.thebritishacademy.ac.uk/documents/2051/pba154p069.pdf
https://www.thebritishacademy.ac.uk/docu...
, 2014Ingold, T. (2014). That’s enough about ethnography! HAU: Journal of Ethnographic Theory, 4(1), 383-395. https://doi.org/10.14318/hau4.1.021
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, 2017Ingold, T. (2017). Anthropology contra ethnography. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 7(1), 21-26. https://doi.org/10.14318/hau7.1.005
https://doi.org/10.14318/hau7.1.005...
) e vaticina:
A etnografia visa descrever a vida tal como é vivida e experimentada, por um povo, em algum lugar, em algum momento. A antropologia, ao contrário, é uma investigação, uma pesquisa, sobre as condições e as possibilidades da vida humana no mundo. A antropologia e a etnografia podem ter muito a contribuir entre si, mas seus objetos e objetivos são diferentes. A etnografia é um fim em si mesmo; não é um meio para fins antropológicos
(Ingold, 2017Ingold, T. (2017). Anthropology contra ethnography. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 7(1), 21-26. https://doi.org/10.14318/hau7.1.005
https://doi.org/10.14318/hau7.1.005... , p. 21, tradução minha).
As ponderações sobre ser a Etnografia a mesma coisa que Antropologia – ou, ainda, se aquela pode ser vista como método – têm suscitado discussões interessantes, nas quais a Antropologia e a Etnografia ganham cores pouco ortodoxas e uma multiplicidade de possibilidades (Goldman, 2006Goldman, M. (2006). Alteridade e experiência: Antropologia e teoria etnográfica. Etnográfica, 10(1), 159-173. https://doi.org/10.4000/etnografica.3012
https://doi.org/10.4000/etnografica.3012...
; Magnani, 2009Magnani, J. G. C. (2009). Etnografia como prática e experiência. Horizontes Antropológicos, 15(32), 129-156. https://doi.org/10.1590/S0104-71832009000200006
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; Uriarte, 2012Uriarte, U. M. (2012). O que é fazer etnografia para os antropólogos. Ponto Urbe, 11, 1-13. https://doi.org/10.4000/pontourbe.300
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). Para Strathern (2014, p. 345)Strathern, M. (2014). O efeito etnográfico e outros ensaios. Cosac Naify., na medida em que os “locais em que atua o(a) etnógrafo(a) podem ser vistos como alternantes, cada um deles oferece uma perspectiva sobre o outro”, e sobre o mundo. Logo, fica difícil dissociar um campo do outro.
Se não é fácil dissociar a Etnografia da Antropologia, conforme exposto anteriormente acerca de uma definição de ‘Arqueologia Etnográfica’, é singular constatar que a Etnografia e a Arqueologia não são campos de estudos estranhos um ao outro. Há bastante tempo que trabalhos de Arqueologia buscam na Etnografia uma maior compreensão, uma maior aproximação com as pessoas que estão próximas ou utilizando sítios arqueológicos (Castañeda et al., 2008Castañeda, Q. E., Handler, R., Hollowell, J., Leone, M. P., Nicholas, G., Pyburn, K. A., & Zimmerman, L. J. (2008). Ethnographic archaeologies: reflections on stakeholders and archaeological practices. AltaMira Press.; Hollowell & Nicholas, 2009Hollowell, J., & Nicholas, G. (2009). Using ethnographic methods to articulate community-based conceptions of cultural heritage management. Public Archaeology, 8(2), 141-160. https://doi.org/10.1179/175355309x457196
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; Pyburn, 2009Pyburn, K. A. (2009). Practising Archaeology — as if it really matters. Public Archaeology, 8(2), 161-175. https://doi.org/10.1179/175355309x457204
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). Como mencionado, há muitas reflexões sobre o uso da Etnografia no fazer arqueológico, com pesquisas muitas vezes tendo o sítio a escavar ou escavado, como o lugar privilegiado, onde entrevistas e observações são realizadas, fazendo dele um espaço ideal para as junções e disjunções das duas disciplinas (Cabral & Saldanha, 2009Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2009). Um sítio, múltiplas interpretações: o caso do chamado “stonehenge do Amapá”. Revista de Arqueologia, 22(1), 115-123. https://doi.org/10.24885/sab.v22i1.264
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; Castañeda, 2006Castañeda, Q. E. (2006). The invisible theatre of ethnography: performative principles of fieldwork. Anthropological Quarterly, 79(1), 75-104. https://www.jstor.org/stable/4150909
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, 2008Castañeda, Q. E. (2008). The ‘ethnographic turn’ in archaeology: research positioning and reflexivity in ethnographic archaeologies. In Q. E. Castañeda & C. N. Matthews (Eds.), Ethnographic archaeologies: reflections on stakeholders and archaeological practices (pp. 25-62). Altamira Press.; Castañeda et al., 2008Castañeda, Q. E. (2008). The ‘ethnographic turn’ in archaeology: research positioning and reflexivity in ethnographic archaeologies. In Q. E. Castañeda & C. N. Matthews (Eds.), Ethnographic archaeologies: reflections on stakeholders and archaeological practices (pp. 25-62). Altamira Press.; N. Gomes & R. Lopes, 2012aGomes, N., & Lopes, R. C. S. (2012a). Cacareco de índio e artefato arqueológico: conversas entre arqueólogos e a família Souza no Sítio Cedro, Santarém – Pará. Revista de Arqueologia Pública, 5(1), 20-31. https://doi.org/https://doi.org/10.20396/rap.v5i1.8635748
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, 2012bGomes, N., & Lopes, R. C. S. (2012b). Os co-trabalhadores do Cedro - uma possibilidade de Arqueologia Pública. In D. P. Schaan (Ed.), Arqueologia, patrimônio e multiculturalismo na beira da estrada: pesquisando ao longo das rodovias Transamazônica e Santarém-Cuiabá, Pará (pp. 73-92). GKNoronha.; Hamilakis & Anagnostopoulos, 2009Hamilakis, Y., Anagnostopoulos, A., & Ifantidis, F. (2009). Postcards from the edge of time: archaeology, photography, archaeological ethnography (a photo-essay). Public Archaeology, 8(2), 283-309. https://doi.org/10.1179/175355309x457295
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; Hamilakis et al., 2009Hamilakis, Y., & Anagnostopoulos, A. (2009). What is archaeological ethnography? Public Archaeology, 8(2-3), 65-87. https://doi.org/10.1179/175355309x457150
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; R. Lopes & R. Gomes, 2012Lopes, R. C. S., & Gomes, R. N. C. (2012). De roça a sítio: o saber local e pesquisas arqueológicas. In I Congresso Pan-Amazônico e VII Encontro da Região Norte de História Oral, Belém.; Pyburn, 2009Pyburn, K. A. (2009). Practising Archaeology — as if it really matters. Public Archaeology, 8(2), 161-175. https://doi.org/10.1179/175355309x457204
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; Ribeiro, 1990Ribeiro, S. G. (1990). Perspectivas etnológicas para arqueólogos (1957-1988). BIB – Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, (29), 17-77. https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revista/article/view/102
https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revist...
). As reflexões acima mencionadas serviram-me, a partir da Arqueologia Etnográfica, para repensar minha prática arqueológica e investigar os usos e apropriações feitos pelas pessoas do espaço que eu chamei de sítio arqueológico.
Yarrow (2019)Yarrow, T. (2019). How conservation matters: Ethnographic explorations of historic building renovation. Journal of Material Culture, 24(1), 3-21. https://doi.org/10.1177/1359183518769111
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, na introdução a seu trabalho sobre a importância de explorações etnográficas em projeto de conservação/renovação de edifícios históricos, põe-se a pergunta que segue: por que os edifícios antigos são importantes? E eu adiciono outras para continuar esta reflexão: por que certos conjuntos arquitetônicos, como aquele que constitui o casario ocupado pelo Sesc, ganham certa importância em alguns discursos? E qual o significado do meu trabalho enquanto arqueólogo para consolidar a importância que é dada ou construir algum sentido de valor a um bem histórico?
Em um dos dias de escavação no Sesc, após eu ter levado todos os meus colaboradores (cerca de 16 pessoas) às vitrines onde estão expostos objetos arqueológicos na Estação das Docas, ouvi: “Isso tem importância porque o senhor diz que tem!”. Essa foi a resposta que um dos colaboradores na escavação me deu quando lhe perguntei “Por que era importante fazer o que estávamos fazendo?”. Fiz a pergunta após ele achar um anel, durante as escavações, e vir me entregar todo excitado, perguntando se esse achado não valeria uma coca-cola. Já fazia quase um mês que escavávamos juntos e, ainda assim, a importância do trabalho era ditada pela minha autoridade.
De outro colaborador, eu ouvi: “Isso é muito importante, mas não tem valor, ninguém pagaria nada”. Desta vez, era outro colaborador, um senhor mais velho, que me dizia algo sobre o valor dos objetos que desenterrávamos. Notei, contudo, que as noções de valor e importância podiam não se confundir mesmo quando eu lidava com os engenheiros e arquitetas. Para o engenheiro responsável pela obra, a arqueologia era muito importante, pois só esse trabalho suspenderia o embargo às obras imposto pelo IPHAN, mas não tinha valor, pois não traria nenhum benefício ao futuro prédio. Segundo ele, uma árvore frutífera seria mais interessante, pois traria sombra e frutas, e não custaria o mesmo que meus serviços.
Observando as muitas conversas e discussões que tive com as pessoas que visitaram ou trabalharam durante as escavações, tenho a impressão de que, salvo os profissionais que trabalham diretamente com a temática da preservação – mas que podem estar partidários do discurso ‘oficial’, como os educadores dos museus e os acadêmicos, docentes ou discentes universitários –, as outras pessoas não têm sedimentados conceitos sobre patrimônio cultural ou ainda sobre a importância que objetos arqueológicos (e o trabalho arqueológico) possam ter. Não percebi ninguém fazendo qualquer associação entre o prédio que está sendo restaurado com as pessoas do passado que o construíram e o utilizaram.
O que pude observar no imaginário de meus colaboradores, presente também em outras tantas pessoas que fruem a cidade, é: o que é velho, precisa virar novo ou desaparecer. Muitas vezes, o discurso autorizado (Smith, 2011Smith, L. (2011). El “espejo patrimonial”. ¿Ilusión narcisista o reflexiones múltiples? Antipoda Revista de Antropologia y Arqueologia, 1(12), 39-63. https://doi.org/https://doi.org/10.7440/antipoda12.2011.04
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) sobre o patrimônio impõe às pessoas a ideia do que será e deverá ser preservado e ainda porque isso será feito. Durante as escavações, em diversas interações com as pessoas que me cercavam, percebi que o entendimento sobre o que estava acontecendo ali era dado por mim, e que o entendimento que eu tinha, vinha da academia e da observância das leis.
Não posso dizer que, ao final das escavações, os meus colaboradores estavam todos convencidos sobre o valor do patrimônio arqueológico, ou mesmo se eram capazes de dar importância ao trabalho que fizemos – era perceptível, contudo, um alívio, pois ‘finalmente eles poderiam trabalhar’. Mas, ao saber que o Sesc tinha interesse em fazer uma exposição do material escavado, semelhante à que eles visitaram na Estação das Docas, consegui perceber uma excitação. Aqui, cabe uma mea-culpa: depois da conclusão das escavações, o material escavado foi completamente apartado dos colaboradores. As etapas seguintes, das quais tanto falei em nossas conversas, não foram possíveis de serem compartilhadas com eles. Nunca mais os encontrei, dado que as obras foram concluídas e eles foram dispersos por outras empreitadas cidade a fora.
SOBRE ESTE EPÍLOGO – OU COMO NÃO CONCLUIR (AINDA) ESTA DISCUSSÃO
Foram mais de dois meses de escavações e muitas chuvas. Com o tempo, o café, que era doce e horrível, melhorou consideravelmente, as conversas também ficaram melhores, já havia quem risse das minhas piadas [nota metal: piadas melhoram com o tempo e com alguma intimidade, pois as pessoas passam a rir de você e não das piadas em si] e resta a expectativa sobre o que será exposto – expectativa esta que não tenho como dar vazão
(N. Gomes, comunicação pessoal, 1 mar. 2019).
Para muitas(os) antropólogas(os) e arqueólogas(os), o trabalho de campo funciona como uma espécie de rito de iniciação na formação disciplinar: por meio dele, sedimentam-se ou modificam-se as percepções e significados atribuídos ao tema de pesquisa. Como se vê pelo trecho do diário ora destacado, comigo não foi diferente. Se o contato inicial com os trabalhadores produziu uma informação aguda sobre as dissonâncias entre nossas percepções acerca do material de escavação, a partilha do tempo (Oliveria, 2004Oliveria, J. P. (2004). Pluralizando tradições etnográficas: sobre um certo mal-estar na Antropologia. In E. J. Langdon & L. Garnelo (Eds.), Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa (pp. 9-34). Contra Capa.) alterou, aos poucos, nossa interação, nossa comunicação, nossa linguagem. Numa espécie difícil de operação hermenêutica, fomos, aos poucos, alcançando um sentido imperfeitamente comum de experiência cotidiana. Há fenomenologia nisto: o passar dos dias produziu entre nós um laço relacional. Uma fronteira se estabeleceu no espaço da alteridade entre nós.
Nas páginas precendetes, eu apresentei uma discussão possível (a primeira) a partir da pesquisa arqueológica realizada por mim no sítio Sesc Ver-o-Peso, e como eu tenho pensado esta pesquisa a partir de uma Arqueologia Etnográfica, nos moldes de Hamilakis (2011)Hamilakis, Y. (2011). Archaeological ethnography: a multitemporal meeting ground for archaeology and anthropology. Annual Review of Anthropology, 40(1), 399-414. https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-081309-145732
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, tendo em vista, também, a ideia de multivocalidades (Ferreira et al., 2014Ferreira, L. M., Montenegro, M., Rivolta, M. C., & Nastri, J. (2014). Multivocalidad y activaciones patrimoniales en arqueología: perspectivas desde Sudamérica. Fundación de Historia Natural Félix de Azara.; García et al., 2015García, C. G., Martínez, D. B., & Baptista, B. V. (2015). Patrimonio y multivocalidad: teoría, práctica y experienciasen torno a la construcción del conocimiento en patrimonio. Ediciones Universitarias. https://www.colibri.udelar.edu.uy/jspui/handle/20.500.12008/10990
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; Gnecco, 1999Gnecco, C. (1999). Multivocalidad histórica: hacia una cartografía postcolonial de la arqueología (1. ed.). Departamento de Antropología, Universidad de Los Andes., 2010; Rivolta et al., 2014Rivolta, M. C., Montenegro, M., Ferreira, L. M., & Nastri, J. (2014). Multivocalidad y activaciones patrimoniales en arqueología: perspectivas desde Sudamérica. Facultad de Ciencias Sociales, Fundación de Historia Natural Félix de Azara. https://www.fundacionazara.org.ar/img/libros/multivocalidad.pdf
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; Schaan, 2009aSchaan, D. P. (2009a). Arqueologia e multivocalidade: desafios contemporâneos [Paper presentation]. Seminário Nacional de Arqueologia e Sociedade, São Luís, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Maranhão.). Apontei as possibilidades que um trabalho etnográfico na pesquisa arqueológica pode trazer para uma compreensão plural sobre o patrimônio e sua importância para as pessoas.
No caso específico do Centro Histórico de Belém, a despeito de algumas pesquisas arqueológicas terem sido realizadas em muitos lugares, não há muito material produzido que nos conduza a pensar a experiência arqueológica em conjunto com as pessoas. Smith (2011, p. 60)Smith, L. (2011). El “espejo patrimonial”. ¿Ilusión narcisista o reflexiones múltiples? Antipoda Revista de Antropologia y Arqueologia, 1(12), 39-63. https://doi.org/https://doi.org/10.7440/antipoda12.2011.04
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nos diz que “. . . o patrimônio é uma experiência, e como representação social e cultural é algo em que as pessoas se envolvem ativamente”; mas para que esse envolvimento ocorra é necessário que se oportunizem espaços de interação, que as escavações sejam abertas e que as pessoas que trabalham nestas pesquisas, como colaboradores não expertes, possam também construir entendimentos sobre o que se pesquisa.
O trabalho arqueológico executado por mim no sítio Sesc Ver-o-Peso é, sem dúvida, uma forma de realizar o que penso como prática arqueológica, jamais apartada das pessoas envolvidas no processo (N. Gomes & R. Lopes, 2012aGomes, N., & Lopes, R. C. S. (2012a). Cacareco de índio e artefato arqueológico: conversas entre arqueólogos e a família Souza no Sítio Cedro, Santarém – Pará. Revista de Arqueologia Pública, 5(1), 20-31. https://doi.org/https://doi.org/10.20396/rap.v5i1.8635748
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, 2012bGomes, N., & Lopes, R. C. S. (2012b). Os co-trabalhadores do Cedro - uma possibilidade de Arqueologia Pública. In D. P. Schaan (Ed.), Arqueologia, patrimônio e multiculturalismo na beira da estrada: pesquisando ao longo das rodovias Transamazônica e Santarém-Cuiabá, Pará (pp. 73-92). GKNoronha.). Desde o início, com a elaboração do projeto (N. Gomes, 2018Gomes, N. (2018). Projeto de pesquisa arqueológica e educação patrimonial, anexo II do Sesc Boulevard [Projeto de Pesquisa]. https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?wt7h6hFBI_9S3DJjGLl0dpQiiSEQL4RcICP821UP_Zu3te9Mz8pMgdSFPXZPRHsDc8jMQ17erGYJfOcrc-boq9IGFomzoF0TDY6ESOMhrZnF8DLWNCewd9gR0ttJtAub
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), antes mesmo de entender que esse sítio se converteria como objeto de minha futura tese, eu já sabia que queria fazer um trabalho envolvendo as pessoas, levando em consideração as apreensões delas na execução da pesquisa.
Contar uma história é também escolher a forma e, invariavelmente, privilegiar aspectos em detrimento de outros (N. Gomes, 2013Gomes, N. (2013). Arqueologia e cultura material – uma História contada em cacos de vidros e louças da Vila de Santo Antônio (Porto Velho – RO) [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará].). Tal qual em outros trabalhos como arqueólogo, ao olhar para um fragmento, procurei sempre, para além da forma, da pasta, da decoração, ver a mulher, o homem, a criança, o idoso que habitaram e se relacionaram com aquele espaço (N. Gomes, 2013Gomes, N. (2013). Arqueologia e cultura material – uma História contada em cacos de vidros e louças da Vila de Santo Antônio (Porto Velho – RO) [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará].). E, durante as escavações, recebendo o maior número de pessoas possível, procurei desmistificar a imagem sisuda do arqueólogo e seu trabalho, trazendo as noções de patrimônio e preservação para o mais próximo possível do público. Este artigo é a primeira parte de uma história que há de ter mais capítulos e personagens, mesmo se o cenário continuar sendo o mesmo.
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1
Trechos extraídos do meu caderno de campo e outras anotações. De acordo com Cachado (2021, p. 552)Cachado, R. (2021). Diário de campo. Um primo diferente na família das ciências sociais. Sociologia & Antropologia, 11(2), 551-572. https://doi.org/10.1590/2238-38752021v1128
https://doi.org/10.1590/2238-38752021v11... , na tradição teórica das Ciências Sociais, o “diário de campo se encontra em uma espécie de posição ritual: existe, mas quase sempre é instrumentalizado como modalidade de coleta de dados etnográficos, e menos como objeto de análise”. No entanto, o diário de campo é a base documental central de muitas etnografias, possuindo força como material empírico para compreensão das intersubjetividades nos terrenos etnográficos. Levando isso em conta, coloquei os registros do diário de campo em pesquisa como parte das discussões neste artigo, para interação epistemológica com a leitora e o leitor. -
2
As obras de restauro e readequação do prédio que servirá de anexo ao Sesc Ver-o-Peso estavam embargadas justamente porque seus empreendedores não seguiram a legislação e não oportunizaram uma pesquisa arqueológica na área. O embargo só foi definitivamente suspenso em julho de 2019, após o protocolo de um relatório preliminar, depois de concluídas as escavações e atividades ligadas à arqueologia no sítio.
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3
Neste artigo, não me deterei em explorar as distinções entre Arqueologia Preventiva/de Contrato e outras formas de atuação dos profissionais desta disciplina. Destaco que chamamos de Arqueologia Preventiva e/ou de Contrato os trabalhos ligados diretamente ao licenciamento ambiental ou a contratos privados que buscam resolver pendências junto ao IPHAN ou atender à legislação de proteção do Patrimônio Cultural Arqueológico.
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4
Todas as atividades de Educação Patrimonial e extroversão estão descritas no relatório preliminar de escavação, disponível para leitura e download no site do IPHAN (ver processo nº 01492.000390/2015-81 no SEI/IPHAN).
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Inaugurada em maio de 2000, a Estação das Docas é um complexo turístico resultado da restauração dos armazéns do porto da capital paraense pelo governo do Estado, sendo hoje administrada por uma parceria público-privada – a empresa Pará 2000.
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6
Em artigo recém-publicado, tendo por objeto sempre as escavações levadas a cabo no sítio Sesc Ver-o-Peso, trato da compulsoriedade dos trabalhos arqueológicos no Centro Histórico da capital paraense, além de um estudo da construção social da paisagem histórica desta área (ver N. Gomes, 2023aGomes, N. (2023a). A paisagem histórica da capital paraense e suas interrelações com as pessoas: e a arqueologia com isso? Revista de Arqueologia, 36(2), 243-273. https://doi.org/10.24885/sab.v36i2.1098
https://doi.org/10.24885/sab.v36i2.1098... ). -
7
O termo taskscape não tem nenhuma tradução possível em português que servisse para explicar seu uso aqui. O termo proposto por Ingold (1993)Ingold, T. (1993). The temporality of the landscape. World Archaeology, 25(2), 152-174. https://doi.org/10.1080/00438243.1993.9980235
https://doi.org/10.1080/00438243.1993.99... derivou da desconstrução do termo landscape, paisagem, e desde então criou grande interesse e encontrou uma aplicação considerável para se referir a todo o conjunto de tarefas ou ações que uma sociedade, comunidade ou indivíduo realiza em um espaço (Darvill, 2008Darvill, T. (2008). Concise Oxford Dictionary of Archaeology. OUP Oxford.). -
8
Ver Porcello et al. (2010)Porcello, T., Meintjes, L., Ochoa, A. M., & Samuels, D. W. (2010). The reorganization of the sensory world. Annual Review of Anthropology, 39(1), 51-66. https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.012809.105042
https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.0... , em suas valiosas discussões sobre o interesse pela sensorialidade na Antropologia, a organização do mundo sensorial.
AGRADECIMENTOS
Este artigo faz parte de minha pesquisa de doutorado, que só foi possível graças à bolsa de doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), da qual desfrutei de 2017 a 2021, e do financiamento do Sesc para as escavações e análises do material arqueológico. Sem os generosos colaboradores, os senhores que auxiliaram nas escavações, este trabalho também não teria sido possível, e a eles toda minha gratidão. Agradeço ainda à Camille Castelo Branco pela leitura atenta e todas as sugestões dadas à primeira versão deste texto, bem como à Daiana Travassos, amiga e orientadora. São de minha inteira responsabilidade todas as ideias aqui expressas.
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Gomes, N. (2024). Arqueologia, etnografia e multivocalidades: percepções sobre o patrimônio arqueológico em uma escavação no Centro Histórico de Belém. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 19(1), e20220091. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0091.
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Este documento possui uma errata:http://dx.doi.org/10.1590/2178-2547-bgoeldi-2024-e001 Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 19, n. 1, e2024-e001, 2024Na página 1, onde se lia:“Arqueologia, etnogafia e multivocalidades: percepções sobre o patrimônio arqueológico em uma escavação no Centro Histórico de Belém”Leia-se:“Arqueologia, etnografia e multivocalidades: percepções sobre o patrimônio arqueológico em uma escavação no Centro Histórico de Belém”
REFERÊNCIAS
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Editado por
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Jan 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
23 Jan 2023 -
Aceito
27 Jun 2023 -
Corrigido
05 Fev 2024