Resumo
Este artigo pretende compreender como, para Thomas Mann, a arte é uma forma da moral, e não um instrumento moral. Esta afirmação adquire sentido a partir de seu contexto específico, isto é, a partir do diálogo tenso entre Thomas Mann e seu irmão, Heinrich Mann. Explorando uma possibilidade de análise não feita no estudo de Helmut Koopmann sobre os dois irmãos, pretende-se, neste artigo, comparar O anjo azul com A Morte em Veneza, uma vez que ambas as obras, sendo a primeira uma sátira e a segunda, uma tragédia, têm no problema da forma um elemento central de seu argumento. Neste sentido, a caracterização de Aschenbach como “herói da fraqueza” se distinguirá da caracterização de Unrat como “tirano” a partir da estrutura temporal subjacente à caracterização de ambos os personagens.
Palavras-chave: forma; Thomas Mann; Heinrich Mann; Morte em Veneza; O anjo azul
Abstract
This article sets out to show how, for Thomas Mann, art is a form of morality, instead of a moral instrument. This assertion is meaningful as one considers the peculiar context of the tense dialogue between Thomas Mann and his brother Heinrich Mann. By exploring an analytic possibility not examined in Helmut Koopman’s study on the two brothers, this article compares their works The blue angel and Death in Venice -a satire and a tragedy -, since the issue of form is a key element in the argument of both books. The characterization of Aschenbach as a “hero of frankness”, in this sense, is contrasted to the characterization of Unrat as a “tyrant”, based on the time-structure that underlies the way these two particular characters are depicted.
Keywords: form; Thomas Mann; Heinrich Mann; Death in Venice; The blue angel
Cada um de nós é um símbolo que lida com símbolos [...] E se nos entendemos através do símbolo é porque temos os mesmos símbolos e a mesma experiência da coisa em si: mas a realidade não tem sinônimos
Clarice Lispector, Água viva.
I
Uma pessoa interessada na literatura ocidental da primeira metade do século XX, se perguntada sobre quais seriam as principais obras de Thomas Mann, dificilmente se lembraria das Considerações de um apolítico (1918). E mesmo um especialista nas concepções ideológicas da Alemanha naquele período, e, portanto, disposto a reconhecer nas Considerações um documento importante para o estudo da “Revolução conservadora” na Alemanha, muito provavelmente hesitaria em colocá-la no mesmo patamar de A Montanha Mágica ou Doutor Fausto. Como podemos aprender com o artigo de Georg Kreis, algumas das ideias centrais do ensaio de Thomas Mann ecoam lugares comuns da linguagem política da época (Kreis 2015)1.
Todavia, as Considerações também permitem uma leitura capaz de levantar algumas questões. Ao escrever uma obra durante um longo período de crise criativa, ao invés de personagens, Thomas Mann precisou se virar com conceitos e suas sutilezas, recurso inabitual para ele, mas, àquela altura, o único disponível, razão pela qual, para o seu autor, as Considerações deveriam ser vistas pelo leitor como “(...) uma obra de artista, e não uma obra de arte, pois ela nasceu em meio ao abalo dos seus fundamentos, da dignidade de sua vida e do questionamento de seu trabalho como artista” (Mann, T. 2013: 14)2.
Thomas Mann não era o único a sentir a necessidade de repensar o lugar do escritor: o imenso esforço de Alexander Honold mostra precisamente como a relação entre guerra e literatura colocaria definitivamente em questão o lugar do escritor “como representante normativo” de uma “vontade geral” (Honold 2015a: 18-19, 30) Todavia, como não é possível aqui refazer a pesquisa de Honold, me preocupo com os sintomas manifestados nas Considerações, que, por não ser um livro sistemático e preocupado com definições conceituais precisas, pode tornar mais difícil a identificação de quais fundamentos abalados seriam estes, ou como sua dignidade fora profundamente afetada, ou por que seu trabalho havia sido questionado. É possível, porém, encontrar alguns indícios. Um primeiro bem poderia ser o seguinte: “Quarenta anos é uma idade crítica. Não se é mais jovem. Percebe-se bem que o próprio futuro não é mais geral, e, sim somente - o próprio. Deves levar tua vida até o fim” (Mann, T. 2013:16-17).
Thomas Mann tinha trinta e nove anos quando a guerra começou, e torna-se compreensível como ele parecia sentir um descompasso entre a dificuldade ou mesmo impossibilidade de mudar aos quarenta anos em meio à violenta transformação da vida europeia. A forma lentamente construída ao longo de quarenta anos mostrava-se subitamente inadequada para responder às circunstâncias impostas pelo momento histórico.
Outro sintoma desta crise de Thomas Mann também pode ser encontrado pouco mais adiante no ensaio: “[...] era típico daquele tempo [da Guerra] que não fosse discernível nenhuma diferença entre o que concernia a um indivíduo ou o que não lhe concernia; tudo estava agitado, revolto, os problemas se misturavam e não podiam ser separados uns dos outros” (Mann, T. 2013:18). Embora a frase seja pertinente para outras circunstâncias turbulentas da história, é indispensável recuar para a Alemanha daquele período; afinal, o impacto destas palavras em Thomas Mann pode ser melhor medido ao circunscrevermos culturalmente o sentido de “indivíduo”, e para isto o próprio texto das Considerações de um apolítico nos ajuda bastante. Ao usar o termo “indivíduo”, Thomas Mann fala desde uma tradição cultural precisa. Desde uma tradição e de uma classe. Por todo o livro, ele se define como burguês, ainda que ele não se refira ao burguês empreendedor liberal, marcado pelo sentido econômico de matriz britânica, mas ao burguês do ascetismo intramundano tão bem definido por Max Weber poucos anos antes, e com o qual ele se identifica (Mann, T. 2013:150), e também o indivíduo reflexivo, o indivíduo da Bildung, introspectivo e dedicado ao cultivo da própria personalidade3. Impressiona ver como um autor consciente da crise de sua época ainda defende com muito vigor um ideal do século XIX:
O século XX declara como infame o caráter, as tendências, a disposição fundamental do XIX, difama sua [...] descrença melancólica. O século XX crê - na verdade, ele prega ser a crença uma obrigação [...] Que venha antes o ativismo [...] o melhorismo, o politicismo, o expressionismo, em uma palavra: o domínio dos ideais. E a arte deve fazer propaganda para reformas de natureza social e política [...] Nunca mais o ethos pessoal da formação (Bildung) de Goethe: que venha antes a sociedade! E a política! A política! (Mann, T. 2013:30)
Esta é uma passagem cujo sentido não deixa dúvidas: Thomas Mann defende de maneira intransigente a autonomia da arte face às exigências políticas. Ao longo do ensaio o leitor pode ainda perceber outras referências ao ideal da Bildung e, sobretudo, a Goethe. O ideal goetheano de formação pode ser uma “religião metafísica” (Mann, T. 2013:183), a única capaz de trazer conciliação à sociedade, justamente por subordinar as questões sociais às do espírito, mas também este ser humano cultivado pode ser definido como aquele dotado de “sentido plástico” (Mann, T. 2013:544-545), e, por isto, essencialmente contrário a todo dogmatismo. Mas aí há um impasse: como sustentar esta autonomia individual quando os contornos desta individualidade estão borrados e indefinidos?
Este é um problema que Alexander Honold identificou nas Considerações de um apolítico, mas para o qual lhe deu a seguinte formulação: “o preço da autonomia estética é o isolamento social do artista e o distanciamento progressivo entre a cultura de massa e a vanguarda estética” (Honold 2015a:32). Mas talvez valesse a pena insistir mais no impasse do que na dicotomia conscientemente construída por Thomas Mann, (Honold 2015b: 159, ênfase de Honold). Para seguirmos adiante, em primeiro lugar vale a pena resumir os sintomas da crise identificados nas duas passagens: o primeiro apresenta a involuntária rigidez de uma identidade própria (ter 39 anos), mas inalterável, sem a plasticidade que tanto caracteriza o homem da Bildung cujo ideal era defendido exatamente pela defesa da autonomia da arte; já o segundo, por sua vez, mostra a fragilidade desta concepção de um indivíduo autônomo capaz de se apartar das exigências práticas e utilitárias do mundo4. Em ambos não estaria pressuposto precisamente o problema da forma?5 Está-se em crise porque a forma é rígida, porque ela pode se tornar uniforme; mas também pela sua dissolução quando o eu e “nós” e/ou “eles” não somente se distanciam (como propõe Honold) ou se aproximam, mas se confundem.
II
Uma das maneiras de tentar desenvolver o impasse seria apontar para um fato sem o qual as Considerações de um apolítico perdem grande parte de seu sentido: a obra surge como uma resposta de Thomas Mann ao seu irmão, Heinrich, romancista igualmente famoso àquela altura (Koopmann 2015: 270).
E o acerto de contas em forma de livro começa precisamente assim:
Quando, no ano de 1915, ofereci ao público o livrinho “Friedrich und die grosse Koalition” (Frederico e a Grande Coalizão), acreditei ter pago minhas dívidas com os acontecimentos do momento e, mesmo em meio à fúria daqueles tempos, poder novamente me dedicar às atividades artísticas que havia iniciado antes da eclosão da Guerra (Mann, T. 2013:11).
Um pouco da origem do livro: o ensaio sobre Frederico II, publicado pela primeira vez na edição da Neue Merkur de janeiro e fevereiro de 1915, geraria uma resposta dura de seu irmão, publicada na revista Die Weiβen Blätter em novembro de 1915, e que teria a forma de um ensaio sobre Émile Zola, escrito apenas no mês anterior. A provocação era evidente, e deve ter incomodado muito a Thomas Mann não somente a apologia de um escritor francês em tempos de guerra, mas, sobretudo, a indisfarçável concepção de seu irmão sobre a tarefa da literatura: “o despertar das Massas! Esta também poderia ser uma tarefa! Sim, esta é precisamente a tarefa! Também para a literatura as massas devem despertar!” (Mann, H. 2011:129). Ou ainda uma outra: “Ele [Zola] sabe que sua obra será tanto mais humana quanto mais política ela for. Literatura e política, que têm ambas o ser humano como objeto, não devem ser separadas em uma época do modo psicológico de pensar e em um povo livre” (Mann, H. 2011:135). Literatura para as massas, as massas na literatura. As massas no lugar de uma literatura “psicológica”, no lugar de Madame Bovary, ao menos tal como a vê Zola, uma Bovary cujos sentimentos são analisados até o mínimo detalhe (Mann, H. 2011:130).
Flaubert6 é, para Heinrich Mann, o oposto de Zola: “Flaubert escrevia por escrever. E para quê, então? [...] O esteticismo é um produto de tempos desesperançados, de Estados que matam as esperanças” (Mann, H. 2011:137). E ao falar de Flaubert, Heinrich Mann não estaria criticando o seu irmão? Muito provavelmente, a julgar pela reclamação deste nas Considerações, nas quais Thomas ironizava a maneira indireta e alusiva dos ataques de Heinrich (Mann, T. 2013:178-179).
Engajamento do artista, de um lado, autonomia, de outro. Aparentemente, são estes os termos da disputa. Portanto, um caminho possível para elaborar o problema da forma esteja em insistir no rompimento entre os irmãos Mann. E talvez não seja coincidência que ambos, ao se ampararem em seus modelos literários (Zola e Goethe), falem de forma. O esteticismo de Flaubert criticado por Zola, para Heinrich Mann, não passa de formalismo: “a ideia provém do trabalho, assim como a luta. O seu [de Zola] predecessor Flaubert não sabia disto. Afinal, Flaubert não lutou. Ele desprezou; e a ideia não surgia para ele do trabalho, mas da forma” (Mann, H. 2011: 137, negrito meu). Já Thomas Mann se ampara em Goethe através um trecho de Poesia e verdade: “[...] uma boa obra de arte pode e até mesmo terá consequências morais, mas exigir fins morais de um artista significa arruinar seu ofício” (apud Mann, T. 2013: 344-345; Goethe 2017:646), complementado por Thomas Mann: “a arte é forma da moral, mas não um instrumento moral” (Mann, T. 2013: 345).
Como tentar compreender a frase inspirada em Goethe? Parece-me importante tentar dar-lhe um maior rendimento, pois, ao mesmo tempo em que critica a ideia de uma arte subordinada às demandas morais, não nega que haja uma relação entre o mundo das formas e o mundo dos valores. Mas talvez não seja possível encontrar uma resposta fácil nas Considerações; afinal, Thomas Mann, que não tinha obrigações com uma abordagem filosófica e analítica, não se preocupa em esmiuçar o sentido de frase de Goethe. Não era filósofo, mas lia com proveito obras filosóficas, e das mais difíceis, como A alma e as formas, de Lukács. Em um tempo de crise, mesmo ainda citando Goethe, será no elogio a um contemporâneo que podemos encontrar uma possibilidade de desenvolver e desfiar a ideia de arte como forma da moral:
Há um livro belo e profundo do jovem ensaísta húngaro, um livro chamado “A alma e as formas”, no qual se encontra um estudo sobre Theodor Storm, que é [...] uma investigação sobre a relação entre “o caráter burguês” (Bürgerlichkeit) e l´art pour l´art, - uma investigação que, quando a li há alguns anos, me pareceu a mais primorosa que já tenha sido feita sobre este aparente paradoxo [...] Lukács diferencia [...], sobretudo, aquela postura burguesa mascarada, estranha, violenta e estético-orgiástica, cujo exemplo mais famoso é Flaubert e cuja essência consiste na negação aniquiladora da vida em prol da obra de arte, e aquela outra forma burguesa de fazer arte, a de um Storm, de um Keller, um Mörike, [...] na qual a condução burguesa da vida, baseada em uma profissão burguesa, se enlaça com a luta dura do trabalho artístico mais árduo, e cuja essência é a mesma do “capricho do artesão”. (MANN, T. 2013:113).
É nesta diferenciação que Thomas Mann assumia se reconhecer (Mann, T. 2013: 114). Uma diferenciação importante, pois aponta para a dualidade do artista burguês, retirando-lhe uma essência e dando-lhe uma tensão, inserindo-o em uma disputa consigo mesmo. E a crítica a Flaubert feita através das palavras de Lukács não pode ser desprezada: através dela, Thomas Mann não se identifica com a crítica de seu irmão ao formalismo. Na verdade, é possível perceber como Thomas Mann critica Heinrich Mann pelo mesmo motivo, ainda que com outra conotação, por Thomas chamada, já em 1904, de “estetizante”, o que podemos verificar em carta a Ida Boy-Ed : “os seus [de Heinrich] livros são ruins, mas o são de forma tão extraordinária, que eles induzem a uma resistência apaixonada. Não falo da entediante impudicícia de seu erotismo [...] o que me irrita é a frieza sepulcral de seu esteticismo” (Kesting 2003: 27). Na sequência, completa: “a cisão dualística entre arte e vida pode ser encontrada tanto nele quanto em mim, - só que, no meu caso, ela ainda é problema e paixão, e, no caso dele, não mais. Ele se decidiu; e foi pela arte”. (idem). Um breve olhar sobre esta documentação, em que ambos se acusam de formalismo ou esteticismo, nos dá uma visão da grandeza da tensão entre ambos, em que o problema da forma se coloca como um ponto sensível da discórdia.
Pretendo, portanto, me esforçar em compreender em que sentido, para Thomas Mann, a arte pode ser uma forma da moral, uma formulação capaz de manter a “cisão”, isto é, a não conciliação imediata entre arte e vida, arte e moral. Como a frase de Goethe é lembrada em um contexto no qual é evidente a discordância com a concepção de arte defendida por seu irmão, pode ser mais produtivo explorar esta tensão entre os dois.
Todavia, é necessário se cercar de dois cuidados. O primeiro é de ordem teórica: gostaria de assumir ao máximo a tensão do diálogo, esticando-a ao máximo, ou seja: resistindo à tentação de totalizar, de dar um sentido pleno através de respostas perfeitas. Talvez não seja possível uma conclusão acabada, de contornos bem definidos, mas o encaminhamento, isto é, o modo de produzi-la, isto sim talvez seja mais cabível. O segundo é de natureza empírica: jamais imaginei que poderia estar sendo original ao tentar compreender a obra de Thomas Mann como um diálogo com a de seu irmão. E, de fato, durante a pesquisa tomei contato com o livro de Helmut Koopmann (Koopmann 2005), um estudo impressionante de tão minucioso, e que recompensa o leitor ao convencê-lo como pode ser proveitosa a leitura espelhada das obras de Thomas e Heinrich Mann, como se um sempre fosse motivado por uma provocação estética gerada pelo outro. Proponho aqui, porém, uma análise espelhada ausente no livro de Koopmann, a saber: uma comparação entre os personagens centrais de O anjo azul (Professor Unrat), um romance satírico, e Morte em Veneza (Gustav von Aschenbach), uma novela composta a partir da estrutura da tragédia clássica (Kurzke 1997: 121-122). Koopmann vê O anjo azul (1905) como uma resposta ao romance de estreia de Thomas Mann, Os Buddenbrooks (Koopmann 2005:173).
A minha proposta, nada além de um comentário face ao esforço gigantesco de Koopmann, pode ter alguma procedência, e pelas seguintes razões: em primeiro lugar, porque o próprio Koopmann nos dá uma pista, pois o desafio estético de O anjo azul, muito bem caracterizado em seu livro, será retomado tematicamente em Morte em Veneza: “O romance de Heinrich Mann é agressivo, direcionado contra o que o incomodava no culto da beleza feito pelo irmão, e no centro das agressões está a concepção esotérica e ascética da essência da arte que, aos olhos de Heinrich, parecia arrogante” (Koopmann 2005:176). Afinal, este ascetismo pode ser visto como um tema central de Morte em Veneza, e, portanto, temos aqui um indício de que uma interpretação da história do asceta Gustav von Aschenbach como uma resposta de Thomas Mann não é totalmente descabida. E em segundo lugar, porque o problema da forma está presente nos dois romances, seja na construção dos seus protagonistas em si, seja, sobretudo, como o tema da forma faz parte do conteúdo. As histórias de decadência de Unrat e de von Aschenbach expõem de maneiras distintas como eles lidam com as formas encontradas no mundo, no caso, uma artista de cabaré e a beleza clássica de um adolescente. O problema da forma, portanto, é encenado nas duas obras, deixando de ser exclusivamente um tema para ensaios e se tornando material da ficção. Tendo lado a lado um romance satírico (Fenner 2008:54-79) e uma novela trágica (Kurzke, 1997: 121-122) como poderíamos compreender que a segunda forma seria uma resposta à primeira, ou, para ser mais preciso: a tragédia de Gustav von Aschenbach é a de um herói (como devemos ter em toda tragédia), mas de um “herói da fraqueza” (Mann, T. 2015: 10). E a sátira conta a história de um “tirano”. Se “tragédia” e “sátira” são termos concernentes às formas, “fraqueza” e “tirania” pertencem ao mundo moral. E em terceiro lugar, ainda que não se possa deixar de lado, por exemplo, a opinião não de todo positiva de Thomas Mann sobre O anjo azul - segundo ele, um livro de mero entretenimento, amoral e fruto da compulsão por escrever (cf Kesting 2003: 33-34) - há semelhanças estruturais entre as obras, que já foram percebidas por Walter Sokel (Sokel 1976). Todavia, minha abordagem da semelhança estrutural não coincide com a percebida por Sokel. Destacaria as seguintes distinções: (a) em seu estudo, Sokel mostra convergências temáticas entre as obras, sendo a principal, a seu ver, a ideia da “representação repressiva” (Sokel 1976: 389) na qual se reflete o ideal monárquico da Prússia e o espírito prussiano como um todo (Sokel 1976: 392). Meu objetivo não consiste em tentar identificar na obra de arte sintomas de outros elementos, a saber, uma determinada mentalidade, ideologia, estrutura social ou concepção de poder. Aqui pretendo ver como a dimensão estética é pensada como problema, e não como indício. Se, para Sokel, não deve ser enfatizada a diferença entre o que ele denomina “construção caricatural” de Unrat e do binômio “trágico” presente em Aschenbach (Sokel 1976: 399), penso o contrário: esta diferença na construção dos personagens será central para responder ao problema da “arte como forma da moral”, e, como se verá mais adiante, é importante refletir sobre Anjo azul ser um romance e Morte em Veneza uma novela. É bem verdade que o próprio Thomas Mann se referiria décadas depois a Gustav von Aschenbach como exemplo irônico-trágico do espírito prussiano, mas, aqui deve interessar tanto o elemento trágico quanto o “prussiano” (apud Sokel 1976: 392); (b) Sokel enfoca as obras em busca de um paralelismo, e a ideia do paralelismo exclui, por definição, a ideia do encontro, e, portanto, do choque e do conflito. Neste sentido, me alinho antes à abordagem de Koopmann, isto é, a de que uma obra pode ser entendida a partir da tensão, e não de uma quase absoluta semelhança perante a qual as divergências são elementos meramente aparentes que escondem uma suposta realidade essencial; (c) Por fim, salta aos olhos a concepção teleológica de Sokel, para quem “ambos os heróis representam, precisamente na e através sua decadência, um sistema social ao qual pertencem, e antecipam, com isso, o que realmente ocorreu na história alemã desde o Império Guilhermino até o Terceiro Reich” (Sokel 1976: 389). O argumento de Sokel chega a um tal ponto que a estrutura da ação das novelas anteciparia a da história da própria Alemanha, ou seja, embora realmente possa se ver uma semelhança entre ambas, hesitaria em denominar suas etapas constitutivas como “consequência de um posicionamento de manutenção e adoração do existente” até a “refutação e dissolução de si mesmo”, passando por uma etapa intermediária de repressão. (Sokel 1976: 411), na medida em que Sokel parece nomeá-las com o intuito de buscar um espelhamento com o percurso que vai do Império Guilhermino até o fim da Segunda Guerra Mundial. A hesitação aumentaria ainda mais quando um suposto narcisismo projetivo de Aschenbach é equiparado ao de... Adolf Hitler! (Sokel 1976: 410-411). A meu ver, a teleologia inerente só se justifica caso se admita que o nazismo foi uma consequência necessária e incontornável de uma crise iniciada no Império Guilhermino, algo que, para dizer o mínimo, tira a responsabilidade dos agentes históricos envolvidos com os fatos ocorridos entre 1933 e 1945 na Alemanha e na Europa. Uma crítica a uma interpretação teleológica não nega necessariamente a relevância da relação entre literatura e sociedade, mas prefiro perceber a disputa estética entre os irmãos naquele momento histórico preciso, e resultados muito interessantes têm sido obtidos pela produção historiográfica mais recente sobre a cultura alemã do século XX, e que é capaz de nos mostrar o quão problemático pode ser analisar as décadas imediatamente anteriores ao surgimento do nazismo como antecipadoras do que viria a ocorrer - e um bom exemplo seria o livro decisivo de Anton Kaes7 (Kaes 2011: 141-151) sobre a elaboração do passado, a saber, do trauma da derrota na Primeira Guerra Mundial, através do cinema da República de Weimar, que, na obra clássica de Siegfried Kracauer (Kracauer 1988: 17), é visto como antecipação profética do futuro. Algumas das percepções pontuais de Sokel permanecem válidas e ainda merecem destaque, mas, dadas as três distinções apresentadas, creio que é possível fazer uma releitura da semelhança estrutural entre O anjo azul e Morte em Veneza.
III
Conforme disse acima, concordo com Sokel quanto à semelhança estrutural entre O anjo azul e Morte em Veneza. Todavia, gostaria de vê-las sob outro ângulo. Ambas partem de uma caracterização bem delineada dos seus protagonistas. Impulsionados por um necessário deslocamento, ambos terão encontros perturbadores da caracterização inicial. A este encontro Unrat e von Aschenbach serão submetidos a destinos distintos, mas terríveis, como se tivessem sido subjugados por uma lei muito mais forte do que eles. Caracterização, deslocamento gerador de um encontro perturbante e destinos são, portanto, as três etapas percorridas pelos próprios personagens em seu sentido formal. A cada uma corresponde uma situação moral: disciplina, comunhão8e lei.
Começo a caracterização pelos nomes dos protagonistas. Neles já há algo de notoriamente sombrio. Aschenbach quer dizer ribeiro de cinzas, uma água morta, parada, seca. Unrat é mais explícito ainda: quer dizer “lixo”, “detrito”, mas, na verdade, como se vê logo no início do romance, é um apelido dado por todos os alunos para o sobrenome Raat. Ou seja: por mais que Aschenbach seja estimado e reverenciado pelo público e Unrat seja motivo de medo (enquanto se é aluno dele) e chacota saudosista (no exato momento em que não mais se está sob seu jugo), os seus sobrenomes indicam o caráter de ruína. Se entendermos ruína como o que resta da forma, como um rio sem água ou uma matéria descartável e inútil para o uso, temos já aqui um sinal de como devemos compreender tanto um, como o outro.
Ambos, como disse, são socialmente reconhecidos como autoridades. E todos os dois têm a disciplina burguesa como estruturas de suas vidas. Neste sentido, Unrat e von Aschenbach parecem estar de acordo com a caracterização da profissão burguesa feita por Lukács: “a vida dominada pela repetição regular, sistemática, pela rotina do cumprimento do dever, por aquilo que tem de ser feito sem consideração ao prazer ou desprazer” (Lukács 2015: 101). Não se poderia ver de outra maneira o método de Unrat como professor:
[...] havia anos era-se educado, nos cursos de redação alemã, para cobrir um certo número de páginas com frases sobre questões de cuja existência não se estava de modo algum convencido, como, por exemplo, a consciência do dever, a bênção da escola e a dedicação ao serviço militar. O tema não interessava a ninguém, mas todos escreviam [...] A classe ocupava-se com a Virgem de Orleans desde a Páscoa (Mann, H. 2002: 14-15).
Helmut Koopmann e Walter Sokel veem aí, e com razão, a perversão dos valores prussianos de disciplina, institucionalização do conhecimento e, sobretudo, do ideal humboldtiano de homem culto (Koopmann 2005: 166-172; Sokel 1976: 393-394). A ausência absoluta de consciência do próprio trabalho e da cultura histórica e poética é marca bem distinta no perfil de Unrat: importavam-lhe mais as finalidades, isto é, o dever, as forças armadas, a instituição escolar e muito menos o conteúdo. Schiller, uma das figuras mais importantes do ideal do ser humano culto (gebildeter Mensch) torna-se, então, objeto de repetição exaustiva, muito mais um instrumento de tortura do que de desenvolvimento pessoal, e, assim, após frequentaram as aulas de Unrat sobre o poeta, os alunos precisariam de pelo menos vinte anos para poder ter alguma chance para realmente apreciar A Virgem de Orleans (Mann, H. 2002:15-16). E não foi escolhido aleatoriamente, afinal, é de Schiller uma definição precisa de sátira: “o poeta satírico toma como objeto o afastamento em relação à natureza e a contradição da realidade com o Ideal” (Schiller 1991: 64). Heinrich Mann não poderia ter sido mais irônico: em O anjo azul, a exposição da diferença entre ideal e realidade seria perfeitamente verificável no uso feito de Schiller na sociedade guilhermina. Fica nítido para o leitor o quanto a disciplina autoritária do velho professor é resultado de sua absoluta estreiteza espiritual, e, assim, podemos ver Unrat como alguém que não somente cobra um conteúdo de maneira extremamente rigorosa de seus alunos, mas também como um professor que vê o mundo como uma sala de aula, e, apesar da suposta autoridade (mais temida do que reconhecida), fala como se fosse um estudante, estando sua rigidez presente tanto nas exigências disciplinares com os outros, mas como na sua inconsciente incapacidade de agir e ser de outra maneira:
[...] como tinha passado toda a sua vida em escolas, era-lhe impossível tratar os meninos e seu mundo sob a perspectiva de uma pessoa experiente [...] falava e pensava na língua deles [...] uma vez que seus próprios membros tinham se enrijecido9, exigia o mesmo dos outros internos da instituição (Mann, H. 2002: 16).
O enrijecimento de Unrat pode ser compreendido como a ausência de qualquer traço de consciência de sua historicidade, pois ele tanto usa o passado (Schiller e Homero) como instrumento repressivo, bem como fala como um jovem, mostrando-se incapaz de ter passado por transformações e, assim, de se diferenciar das gerações mais novas, e o único processo pelo qual atravessa é o do enrijecimento dos membros. Assim, fora de todo e qualquer contexto, totalmente imune aos efeitos das circunstâncias, Unrat é mostrado como um homem profundamente solitário. Viúvo de uma mulher “ossuda e severa”, da qual teve um filho caolho, e suficientemente distante a ponto de tratar o pai da mesma forma como seus alunos, chamando-o também de “lixo”. Sem demonstrar qualquer consciência de seu isolamento, Unrat vivia como se jamais saísse de um “cubículo” (Kabuff), nome dado a ele ao guarda-roupa no qual gostava de enfiar seus alunos mais rebeldes, como medida punitiva. A sala de aula era seu cubículo.
Já em Morte em Veneza, o protagonista é apresentado como um personagem com outra imagem de sua relação com o trabalho: “verdade é que desde a sua juventude, Aschenbach considerara a pouca satisfação consigo mesmo a essência e íntima natureza do seu talento” (Mann, T. 2015: 15). Ao contrário da repetição sem sentido de Unrat, a insatisfação e a consciência da incompletude do próprio trabalho se transformam em uma força temporal capaz de acordá-lo às cinco da manhã para tomar uma ducha fria antes de começar a escrever. Aschenbach tem um horizonte pela frente, e não um cubículo no qual se enfiar. Todavia, a disciplina também é o esqueleto de Aschenbach, de onde o narrador de Morte em Veneza definirá o seu protagonista:
Quem olhasse de perto [...] perceberia o elegante domínio de si que escondia dos olhos dos espectadores até o último momento a decadência biológica, o fato de estar intimamente solapado [...] Quem examinasse [...] chegaria a duvidar que pudesse haver heroísmo que não fosse o da fraqueza. Mas que heróis condiriam melhor com a nossa época do que, precisamente, os débeis? Gustav Aschenbach era o bardo de todos aqueles que labutam à beira do colapso, dos sobrecarregados, dos triturados, dos que se mantêm de pé à custa de um esforço supremo, dos moralistas da proeza [Leistung], que, não obstante o físico franzino e a escassez de recursos, conseguem, pelo menos temporariamente, criar a impressão de grandeza graças à força mística da vontade [...] Deles há muitos. São os heróis da nossa época (Mann, T. 2015:20).
O que são os heróis da nossa época? O narrador de A Morte em Veneza, ao caracterizar seu protagonista, chama o leitor para dentro do romance, pedindo-lhe para “examinar” com paciência, indicando que não somente por detrás da aparência há decadência e até “fealdade amarelenta” (idem), mas a existência mais discreta da decadência e da feiura reforça o domínio de si. Mais ainda: na caracterização, o narrador mostra Aschenbach não somente como um “herói da fraqueza”, mas como alguém consciente de ser um herói, ou, pelo menos, como um artista que se vê como tal: “Quanto ao novo tipo de herói, tão ao gosto desse escritor que se repetia sob os mais diferentes disfarces individuais [...]” (Mann, T. 2015: 19) e que, para ir um pouco mais fundo, se reconhece como herói por supostamente já saber qual forças se lhe opõem e delas tira a sua capacidade criativa, “[...] a disciplina conservada em face do destino” (Mann, T. 2015: 20). Walter Sokel, com razão, mostra como Aschenbach se encena como herói (Sokel 1976: 400), mas não aborda devidamente o porquê dele ser caracterizado como herói da fraqueza; afinal, conforme aprendemos com Alexander Honold, o herói adquire seu caráter de novidade em função de sua fraqueza, razão pela qual é tão ambivalente em sua construção. De maneira diversa da visão teleológica de Sokel, Honold mostrou como não foi necessária a Guerra para que a ideia de um herói “grandioso” e forte fosse substituída por outra (Honold 2015a: 470-471).10
E aqui já devemos comparar os personagens: tal como Unrat, Aschenbach é um moralista; tal como Unrat, Aschenbach também é rígido, e as pessoas próximas observavam nele alguém incapaz de relaxar (Mann, T. 2015: 18). E, conforme observou de maneira precisa Walter Sokel, tal como Unrat, Aschenbach também é solitário, sem nenhum contexto afetivo familiar, pois é igualmente viúvo e tem uma filha (Sokel 1976: 407), da qual o leitor nada sabe além do fato de já ser casada (Mann, T. 2015: 22). Mas Aschenbach esconde algo atrás de si, e, para olhos distraídos, sua aparência é enganosa. Portanto, esconde sua substância (“a fealdade amarelenta”). Não me parece ser o caso de Unrat, cuja rigidez parecia ser determinada pelo “cubículo” em que estava, as paredes da instituição escolar, da sala de aula que o isolava do mundo ao convencê-lo que aquele era o único mundo possível, privando-lhe de uma relação real e verdadeira de troca afetiva. A rigidez de Aschenbach nutria-se do próprio alimento: acordado às cinco da manhã com duchas frias, o corpo de Aschenbach dispensava cubículos, se entesando sozinho. Para além disto, o trabalho de Aschenbach cria obras temporárias, não se iludindo com a eterna e inquestionada permanência do mesmo, tendo consciência do dispêndio necessário para criá-la. A disciplina do escritor-criador, do produtor, é lapidada, sua proveniência é interna e serve como meio para um fim, a sua criação reverenciada e admirada pelos outros (Mann, T. 2015: 15); a do professor-repetidor Unrat é um fim em si mesmo, só pode ser exercida automaticamente como função prevista pelo único lugar no qual ele respira (a escola) e é a razão mesma do escárnio do qual é vítima. Enquanto Unrat respeita de maneira mecânica as instituições, reconhecendo de maneira automática só o existente, Aschenbach, de maneira e até mesmo voluntarista, reconhece o resistente, isto é, a matéria bruta que nem sempre cede facilmente à criação. Aqui discordo novamente, ainda que de forma apenas parcial, da interpretação de Walter Sokel, para quem um personagem luta contra um inimigo interno e o outro contra um inimigo fora de si (a cidade, os alunos etc.) e outro um inimigo dentro de si. Para Sokel, Unrat “internalizou o Machtstaat dos Hohenzollern” (Sokel 1976: 392), agindo em nome dele perseguindo os estudantes e os cidadãos. Aschenbach se veria como representante da elite de uma sociedade que o admira (Sokel 1976: 397). Sim, há inimigos, e ambos são disciplinados, mas a diferença entre a afirmação e atemporal cega do existente e o enfrentamento angustiado e desejoso de futuro no resistente marca uma diferença importante entre Unrat e von Aschenbach e, portanto, uma diferença entre modos de disciplina. E esta seria uma possível resposta de Morte em Veneza a O anjo azul.
Poderia perceber nos primeiros traços que definem Aschenbach algo que realçasse a beleza de sua disciplina, uma vez que sua atividade “[...] é uma ascese, pois todo brilho da vida é subtraído a fim de ser salvo em outro lugar: na obra de arte” (Lukács 2015: 100). É, sobretudo, na ambivalência de von Aschenbach que devemos pensar: em sua construção como herói da fraqueza, como resposta à construção da figura tirânica de Unrat. Ambos são formas rígidas, mas a razão pela qual Aschenbach é um “herói da fraqueza” ainda precisa ser compreendida com mais calma. Por enquanto, prevalece somente a ideia heroica inerente à toda figura resistente.
IV
A resistência de Aschenbach e a tirania de Unrat começam a ruir quando ambos são afetados por dois corpos, ou pela imagem de dois corpos (os de Tadzio e de Rosa Fröhlich), isto é, quando o mundo os atinge. O que acontece quando estes dois personagens caracterizados por uma vida disciplinada se veem, e de maneira irreversível, em uma situação na qual se obrigam a mudar a partir de uma relação potencialmente erótica com o mundo, com o qual, então, se conciliam e estabelecem uma comunhão. Mas estes dois personagens sofrem mudanças porque houve um deslocamento. Portanto, antes da pergunta acima é necessário fazer uma outra: como acontece este deslocamento?
A resposta mais imediata é: contingencialmente. A transformação de Unrat se dá por acaso, e começa quando ele, mantendo seus hábitos, tenta impor a sua ordem afastando três de seus alunos - von Ertzum, Kieseleack e Lohmann - mandando-os para o “cubículo” (o guarda-roupas). A razão, como também de hábito, é risível: os cadernos de redação dos rapazes ainda permaneciam abertos sobre as mesas dos alunos agora ausentes, e Unrat decide confiscá-los, pois até mesmo isso - um caderno não fechado - lhe parecia uma grave desobediência. Lê rapidamente as composições de Ertzum e Kieselack, e se detém na de Lohmann, considerado por ele o pior caso dos três, e, após chegar à conclusão de que precisa puni-lo com severidade exemplar, nota que, atrás da folha onde o aluno fizera seu exercício sobre A virgem de Orleans, há um poema erótico dedicado a uma artista que está na cidade: Rosa Fröhlich. Unrat leva o caderno para a sua casa, onde lê com mais atenção o poema e toma a decisão de ir atrás da tal artista, de modo a encontrar seus alunos em um clube noturno para, é claro, puni-los depois.
O início da transformação de Aschenbach começa com o esgotamento físico. Exaurido pelo trabalho excessivo, o escritor deseja sair da cidade onde mora, Munique, para recobrar forças com uma viagem, e, assim como Unrat, ele precisou sair de uma posição (a do trabalho cotidiano) para estar aberto para o encontro com uma situação desestabilizadora: “Tratava-se do ímpeto de fugir - era preciso confessá-lo a si mesmo! - da saudade de coisas novas, longínquas, da ânsia de liberdade, exoneração, esquecimento. Era o afã de distanciar-se da obra, do lugar cotidiano de um serviço rígido, frio, fanático” (Mann, T. 2015: 14). “Confessar a si mesmo”. Como personagem, Aschenbach começa a sofrer transformações interiores das quais ele não somente está consciente, mas também deseja, e, por isto, ele possui uma primeira característica do personagem trágico ao se identificar com a lei, isto é, com a necessidade natural representada no cansaço corporal. Como disse Peter Szondi, essa identificação com a natureza é essencial para a realização do evento trágico, que, pelo menos na concepção de Schelling, parte da “indiferença entre liberdade e necessidade” (Szondi 2004: 32). A rigidez começava a sufocá-lo, ainda que este distanciamento venha a ser controlado, pois Aschenbach sequer cogita sair da Europa, pretendendo manter-se dentro do que ele considera um mundo no qual possa administrar o estranhamento. Mas é o encontro totalmente fortuito com um tipo estranho à cidade de Munique que lhe causa certa repulsa, e também lhe incutira o desejo de viajar (cf. Mann, T. 2015: 13). Fica uma pergunta: teria ele “confessado a si mesmo” a vontade de sair de Munique e da Alemanha caso não tivesse visto o estranho que lhe gerara um incômodo? Tem-se a impressão de que somente algo de experiência inteiramente contingente o levou à introspecção e à necessidade de sair de sua rigidez.
Aschenbach tem consciência da fragilização de sua rigidez. Unrat, por sua vez, julga apenas estar cumprindo seu papel habitual como professor, sem demonstrar a mínima intenção de querer sair da pele do tirano. Mas ainda assim também se desloca, pois ele precisa percorrer as ruas da cidade para encontrar a artista Fröhlich, ultrapassando os muros da escola onde leciona para tentar encontrar de qualquer maneira o local frequentado por seus alunos. Após ir a um teatro onde esperava encontrar Fröhlich como parte do elenco de Guilherme Tell - também uma peça de Schiller - ele, “sem perceber, desceu a rua e chegou ao porto” (Mann, H. 2002: 28). Importante destacar como seu deslocamento é involuntário. No porto encontrará outra forma de expressão bem diferente da por ele esperada quando lê Schiller. Ele precisará ouvir outras linguagens dialetais, além da escola na qual se aprisiona (Mann, H. 2015: 30). Com precisão, usando os termos dialetais no texto do romance, Heinrich Mann mostra os poros do mundo-cubículo de Unrat, abrindo-o à interferência da heterogeneidade social da qual sempre não somente sempre tentou se proteger, mas o fez tentando reprimi-la.
Por um ter consciência do seu desejo de mudança, e outro sequer saber pelo que está passando aponta, possivelmente, para uma diferença entre as formas das duas narrativas. Sokel não levou em consideração a necessidade de comparar (mesmo paralelamente) o fato de uma obra ser um romance e a outra, uma novela. Se formos, por exemplo, pensar nos termos propostos por Lukács em A alma e as formas, enquanto Morte em Veneza carrega consigo as implicações filosóficas de uma novela, O anjo azul se caracteriza sem problemas como um romance. Enquanto este “[...] abarca a totalidade da vida, inclusive em termos de conteúdo, pois situa o homem e seu destino na plena riqueza de um mundo inteiro” (Unrat precisando se haver com homens que falam em dialeto), a forma daquela “(...) consiste em que uma vida humana seja expressa mediante a força infinitamente sensível de uma hora do destino” (Lukács 2015:122). As definições não cumprem papel meramente classificatório, e, portanto, apaziguador. Meu objetivo é mostrar que Aschenbach já é exposto de maneira “infinitamente sensível”, ou seja, indisfarçável e inescapável, a “um destino”, sentido como uma ação inexorável, inabitual, mas que ele não pode não fazer. Seu encontro com Tadzio não é fruto de um gesto automático como é, para o professor Unrat, oprimir alunos. Aschenbach viaja, Unrat persegue: neste deslocamento, não encontram repouso nem exercem sua autoridade, mas algo que irá destruí-los, e, com razão, Helmut Koopmann vê a perambulação de Unrat pela cidade como uma viagem para mundos inferiores e uma provocação às narrativas de decadência do irmão em Os Buddenbrooks. Gostaria de observar que a viagem de gôndola de Aschenbach pelos canais de Veneza também pode ser vista como uma viagem de descida ao Hades e, portanto, como uma réplica ao irmão (Koopmann 2005: 190).
Impulsionados pela contingência, por situações que poderiam não ter acontecido, por uma folha solta de caderno, ou por um estranho com que se esbarra na rua, as duas figuras disciplinadas sofrem o exercício de perda de controle, a ponto dos deslocamentos produzirem os encontros de Aschenbach com Tadzio e de Unrat com Rosa Fröhlich. São encontros amorosos. A estes dois homens viúvos e solitários é dada novamente a chance de estabelecer, se não um casamento legal, ao menos um laço de comunhão com o mundo (Lukács 2015: 72), e ainda que o encontro de Aschenbach se dê no estrangeiro, o de Unrat, em sua cidade, ambos são postos em novas circunstâncias morais, e a despeito da diferença entre o horizonte da praia de Veneza e um cabaré esfumaçado, os novos encontros triscam a rigidez com a qual os personagens nos são apresentados. Tentei localizar, com o máximo de precisão possível, o momento desses encontros.
O artista de renome projeta no jovem uma beleza inédita, ideal, não correspondente à realidade, ou seja, uma forma pura e autônoma:
Descortinava-se um horizonte amplo, que tolerantemente abrangia grande diversidade. Abafados, mesclavam-se os sons de todos os idiomas importantes. O traje que no mundo inteiro se usa de noite, como uma espécie de uniforme da civilização, harmonizava exteriormente quaisquer variantes do tipo humano, fazendo com que se fundissem na mais decorosa unidade. Viam-se as fisionomias oblongas e secas de americanos, a numerosa família russa, senhoras inglesas, crianças alemãs com babás francesas. Aparentemente predominava o elemento eslavo. Bem na vizinhança falava-se polonês.
Era um grupo de adolescentes e quase adultos, sob a proteção de uma governanta ou dama de companhia, e que se juntara em torno de uma mesinha de vime: três mocinhas, de quinze a dezessete anos, segundo parecia, e um garoto de cabeleira comprida, a aparentar uns catorze anos. Com alguma surpresa Aschenbach constatou a perfeita beleza desse rapazinho. O rosto pálido, fino, fechado, os cabelos ondulados cor de mel que o emolduravam, a boca meiga, o nariz reto, a expressão de suave e divina dignidade - tudo isso lembrava esculturas gregas dos melhores tempos e, ao lado da pureza ideal das formas, tinha um encanto tão raro, tão pessoal que o observador julgava jamais ter visto, nem na natureza, nem nas artes plásticas, alguma obra igualmente perfeita (Mann, T. 2015: 34)
A razão da longa citação é a seguinte: o “rapazinho” se destaca em um todo. O narrador parece seguir a atenção de Aschenbach, a sua percepção do lugar, que paulatina e continuamente sai do mais geral, de um ambiente indistinto e até confuso (“horizonte amplo”, “grande diversidade”, “mundo inteiro”, “uniforme da civilização”), lentamente começa a distinguir unidades menores (americanos, ingleses, alemães etc.), percebe um grupo de destaque (os eslavos), e, dentro deste grupo, uma língua eslava (polonês), cujos sons vinham de uma família, descrita minuciosamente até chegar à surpreendente beleza do menino. É como se a percepção de Aschenbach esculpisse a realidade, saindo da matéria mais bruta para a mais pura, algo talvez próximo do que Sokel chama da “visão analítica” com a qual Aschenbach constrói a realidade (Sokel 1976: 400). Mesmo de férias, Aschenbach lapida, trabalha. Não abandona o seu modo de procedimento que permite ver no rapazinho (que ainda será nomeado como Tadzio) uma forma perfeita, sem equivalente na natureza, ou, quando muito, em alguma escultura grega clássica. A forma pura se revelava aos olhos de Aschenbach como um corpo, a única forma capaz de se destacar do cotidiano marcado pelo caos das impressões sensíveis, mas esse corpo jamais seria tocado por Aschenbach; seria, sim, olhado, contemplado, mas isto seria o suficiente para tomar uma decisão consciente, quando diz para si mesmo que desejava permanecer em Veneza, e, assim, o lugar conscientemente escolhido, uma opção racional, tornava-se algo maior: “Pois então, ficarei [...] Que lugar melhor do que este poderei encontrar?” (Mann, T. 2015: 39). Aschenbach vivia uma sensação de plenitude: “ele sentia-se divertido e ao mesmo tempo emocionado; numa palavra, sentia-se feliz” (Mann, T. 2015: 40). O desejo de sair de si fora extinto, e a angústia pela produção criadora, o constante dever fazer algo, tornava-se, por instantes que fosse, quietude e identidade com o presente, pois “quase que lhe parecia que a tarefa de velar pelo menino prendia-o a essas paragens” (Mann, T. 2015: 42).
Já o encontro de Unrat com Rosa Fröhlich traz algumas diferenças. Quando finalmente consegue localizá-la, o patético professor a ameaça por estar - segundo ele - seduzindo seus alunos. A reação dela não poderia ser outra, a não ser a de levá-lo ao ridículo. É um desafio diferente para Unrat:
No início, enquanto ela falava, Unrat tentou retomar a palavra. Aos poucos, suas opiniões formadas, que forçavam a passagem por entre seus maxilares, foram rechaçadas pelo vigor da vontade dela até as profundezas, onde desapareceram. Ele ficara paralisado; ela não era nenhum aluno fugitivo com a intenção de resistir, que merecia a palmatória durante o resto da vida; assim eram todos na cidade, todos os cidadãos. Não, ela era algo de novo. [...] Ela era um poder estranho e aparentemente com os mesmos direitos (Mann, H. 2002: 57).
Ora, temos aqui novamente a relação especular capaz de gerar comunhão. Unrat sai de seu lugar habitual de professor, e sua linguagem, uma costura de lugares comuns, é bloqueada pela aparência de Rosa Fröhlich. Mas, ao contrário da beleza clássica e escultural de Tadzio, o que Unrat tem a frente é uma dançarina, e, por isto, um artifício puro, nada natural. Seus cabelos estão pintados de rosa que se aproxima do lilás, nos quais se penduram joias verdes; no seu rosto se misturam azul, vermelho, branco-pérola. Para me apropriar de uma divertida expressão de Scott Fitzgerald, Fröhlich é uma “conspiração de cores”, ou seja, um distúrbio formal, a própria negação da forma. Neste momento inicial do encontro de Unrat com a artista, o narrador mal descreve o corpo de Rosa, e, quando o faz, fala em braços roliços e pernas carnudas (Mann, H. 2002: 61-62): é um procedimento muito bem percebido por Heinz Drügh (Drügh 2008: 171) como demonstração da visão fragmentada de Unrat, incapaz de perceber Rosa como um todo, mas em pedaços, como se uma parte do seu corpo não tivesse relação com a outra: - uma forma estilhaçada, e não pura e autônoma. Uma forma obtida aos pedaços, como se fosse uma montagem cinematográfica, como interpretou Drügh (Drügh 2008: 171-173), e não uma pacientemente lapidada, mesmo que somente com os olhos. Todavia, tal como Tadzio, a imagem de Rosa Fröhlich se distancia da realidade cotidiana e prosaica do corpo, e, justamente por isto, atrai Unrat, assim como o jovem atraíra Aschenbach. Talvez não por outro motivo Rosa Fröhlich seja mencionada, em todo o romance, como “a artista Fröhlich”. Fascinado, Unrat passa a frequentar diariamente o camarim de Fröhlich, que, por deslize, acaba chamando também de “cubículo” (Mann, H. 2002: 100). Mas, tal como Aschenbach, ele estava contente com seu novo ambiente, pois passaria a se dedicar ao camarim de Rosa Fröhlich com esmero e cuidado, e, ao invés de reprimir, passava a servir: “arrumava os objetos de toalete, procurava as anáguas e as calcinhas mais limpas e colocava à parte, sobre uma cadeira, o que era para ser remendado [...]” (Mann, H. 2002: 105). Um cubículo confortável. Nossos dois homens disciplinados entregam-se com prazer ao que um dia fora apenas dever. Estavam felizes.
V
Chego agora ao final da comparação: após sofrerem deslocamentos involuntários e sendo conduzidos pelas circunstâncias contingenciais, uma vez submetidos aos encontros com Fröhlich e Tadzio e a uma comunhão com o mundo, cabe perguntar pelo destino dado por Heinrich e Thomas Mann a Unrat e Aschenbach. Ao leitor conhecedor de ambos os livros é clara a diferença, e dela devemos partir: os encontros amorosos levam os protagonistas à derrocada. Afinal, o que os irmãos Mann contam são histórias de quebra de identidade prévia através de situações contingentes, após o que ambos personagens reagirão de maneiras distintas: uma vez perdida a estabilidade e a rigidez iniciais, o que fazer?
A trajetória de Unrat tece a própria forma do romance. Ele não se descola da cidade onde vive, e, sobretudo, dos três alunos perseguidos por ele, von Ertzum, Kieselack e Lohmann. Não há como entrar aqui nos detalhes do enredo, mas a paixão de Unrat por Fröhlich faz com que von Ertzum deixe de ser apenas mais um aluno e passe a ser o seu rival amoroso. Um atentado menor a um monumento público da cidade faz com que os jovens sejam levados ao tribunal, onde todos descobrem - Unrat, inclusive - que Fröhlich havia se relacionado brevemente com o aluno Kieselack. Transtornado, Unrat decide se dedicar ainda mais a ela. As consequências não demoram a ocorrer: os alunos saem da escola, cada um por uma razão (mas nenhum da maneira como Unrat desejava), enquanto o grotesco professor, de fato, perde seu emprego e, com o tempo, transforma sua casa em um cabaré, onde se diverte toda uma cidade “[...] que não oferecia outra escapatória do tédio da responsabilidade familiar a não ser algum vício rudimentar e tedioso” (Mann, H. 2002: 202), propiciado, agora, precisamente por Unrat. Mas isto não significou uma liberação. Essencialmente, Unrat não mudara, e nem havia feito qualquer tentativa de mudar. Suas alterações são superficiais, e basta lembrar como seu linguajar continua limitado, e até mesmo homens feitos, quando em seu cabaré e cassino improvisado em casa, eram ainda chamados como “alunos”. Seu desejo de punir e expulsar alunos se transformara em prazer com a degradação dos habitantes da cidade. Ele não se purifica, passando até mesmo a se identificar com o apelido dado por todos: “sim, sim, sou um verdadeiro lixo” (Mann, H. 2002: 207). Se há alguma transformação decorrente do encontro com Fröhlich, é a consciência de que ele se tornara o lixo que sempre vira nos outros, e, assim, a “desmoralização de uma cidade [...] ocorria por meio de Unrat e para o seu triunfo. Estava forte; podia se sentir feliz” (Mann, H. 2002: 208). A comunhão com Rosa Fröhlich leva a uma perfeita identificação entre Unrat e a cidade, entre o personagem e seu meio: aquele passa a gozar com o apelido que antes o ofendia, mas, em troca, oferece-se como espelho, como se dissesse: “vocês são iguais a mim”. Essa comunhão, portanto, de caráter social, parece ser ainda mais forte do que a supostamente amorosa entre Unrat e Fröhlich.
Mas esta identificação especular entre Unrat e a sua cidade termina. Após uma briga com Rosa e Lohmann, que haviam se envolvido afetivamente após o regresso deste à cidade, Unrat acaba sendo preso com Rosa, para delírio da multidão que, assim, se via expiada do vício, uma vez que sua suposta causa (Unrat) fora afastada. Unrat termina o romance na escuridão de um camburão da polícia. Seu terceiro e último “cubículo”. Unrat termina o romance tão solitário quanto começara.
Já a reação de Aschenbach, em um primeiro momento, é de fuga. Conscientemente, o grande escritor deseja sair de Veneza para fugir dos ares sufocantes da cidade e de uma epidemia de peste. E, de fato, ele abrevia sua estadia, encerra prematuramente a conta no hotel e parte para a estação ferroviária com uma sensação de estar traindo a si mesmo, de estar indo contra sua vontade mais íntima. Todavia, sua mala é enviada para um outro destino, e ele, então, volta para aguardar a bagagem extraviada. Novamente sujeito aos caprichos da contingência, mas aquiescendo aos mesmos, von Aschenbach decide permanecer em Veneza, e não esconde de si a felicidade por reencontrar Tadzio. Aschenbach aproveita a oportunidade acidental, e volta para contemplar a beleza onde ele se reconhece somente ao sair de si:
“Quanta disciplina (Zucht), quanta precisão de pensamento não se expressavam na perfeição juvenil deste corpo delgado! Mas a vontade austera, puríssima, que, na sua ação obscura, conseguira trazer à luz tal plástica divina - não era ela conhecida e familiar ao artista? [...] estátua e espelho! [...] Aschenbach pensava compreender nesse olhar a própria beleza, a forma como ideia divina [...]” (Mann, T. 2015: 53, grifo meu).
Aschenbach se reconhece em Tadzio, reconhece a disciplina abandonada em Munique. O dever fazer inicial, a disciplina matinal e estafante, agora seria um não poder não fazer, mas o reencontro com a disciplina é mediado pela imaginação de Aschenbach. As constantes referências a Platão, especialmente ao Fedro (Mann, T. 2015: 54), não podem ser vistas como uma maneira dissimulada de ilustração literária de conceitos filosóficos, mas como uma ação da consciência de Aschenbach como personagem: “Essa cópula estranhamente produtiva do espírito com um corpo” (Mann, T. 2015: 55). Pode ser perigoso perceber em Tadzio uma mera simbolização de um conceito de arte de Thomas Mann, e, por isto, talvez seja melhor vê-lo como veículo para as mediações de Aschenbach, que precisou projetar uma imagem divina para tornar a criar, como se Tadzio fosse uma “exigência religiosa”, para usar a expressão de Szondi em sua análise do trágico em Hölderlin (Szondi 2004: 36). Não era a primeira vez em que Aschenbach era movido pela necessidade inerente a toda lei. No início da novela, ele fora exigido pela natureza que se apresentava sob a forma do cansaço; após o encontro contingencial e, portanto, de caráter histórico, com Tadzio, ele se move por outra necessidade, mas, agora, uma lei religiosa e mítica que aparece no corpo de Tadzio, ou, para ser mais preciso, como corpo de Tadzio.
A remissão ao passado grego é decisiva na novela: é uma revolta contra o tempo, pois, uma vez consciente de seu amor, perante a obra de arte pura que se manifesta viva à sua frente, Aschenbach tenta se embelezar para Tadzio, pintando os cabelos grisalhos e se maquiando com um pó branco que transforma seu rosto em uma pavorosa máscara de si mesmo (magnificamente mostrado por Visconti em seu filme), ele se torna uma pálida imagem da beleza vista em Tadzio: “As rugas da boca, das faces, dos olhos sumiam sob a influência de cremes e águas remoçadoras. Com o coração a palpitar, Aschenbach deparava com um jovem viçoso” (Mann, T. 2015: 78). Todavia, é uma revolta ambígua, pois, ao mesmo tempo em que busca o rejuvenescimento, “nem sequer lhe ocorria a ideia de regressar” (Mann, T. 2015: 57). O “heroísmo da fraqueza” era o heroísmo da “decadência biológica”, sentida como cansaço, como uma lei que atua diretamente no corpo e faz suas exigências. A “ideia divina” é uma outra exigência, mas de uma lei religiosa, originada a partir de um encontro, de uma situação circunstancial e, portanto, histórica. A historicidade é negada por Aschenbach ao ver a forma não como algo passível de ser dissolvido, mas como aparência divina.
VI
Para tentar concluir: como a tragédia da fraqueza pode ser uma forma da moral? E por que esta forma da moral é uma resposta possível à “tirania” de Unrat?
A maneira como Thomas Mann criou o destino de Aschenbach é sutilmente diferente do movimento que seu irmão fizera com Unrat. Alexander von Fenner tem razão em distinguir três etapas na relação de Unrat com Fröhlich (Fenner 2008: 59). Na primeira, enquanto o romance é uma “sátira do mundo escolar” (Fenner 2008: 55), a artista não passa de um instrumento do qual Unrat quer se apossar para punir seu aluno Lohmann; posteriormente, quando a escola dá lugar ao cabaré e a opressão ao mundo dos sentidos confusos e estabanados do erotismo de Unrat, a dançarina se torna objeto da paixão, mas, ao mesmo tempo, Unrat deixa de ser tirano e passa a ser súdito (Fenner 2008: 69). A crítica de Heinrich Mann é muito aguda: além de fazer uma sátira feroz de uma sociedade que, por se espelhar em Unrat, o julga - tirando-lhe o emprego - e depois o prende (não sem antes se divertir bastante em sua casa), Unrat acaba tendo o destino que queria impor aos seus alunos: o banimento da sociedade. É a essência da sátira, como já dizia Schiller, pois o ideal que a sociedade faz de si é bem diferente de sua realidade; e o ideal buscado por Unrat acaba sendo seu desfecho deplorável. Mas não posso deixar de notar que, apesar de tais mudanças, ele nada faz além de mudar a aparência do “cubículo”, saindo da sala de aula, passando pelo camarim no cabaré e terminando no camburão da polícia. Heinrich Mann o condena impiedosamente ao que ele sempre fora, e viveria possivelmente no ambiente delimitado e aparentemente seguro dos cubículos, sempre guiado por uma lei de cuja existência jamais chegara a suspeitar, e que só se apresenta no final de maneira escancarada: ele termina o romance preso pela polícia, sob o jugo direto e sem mediações da lei objetiva que opera para além de qualquer consciência que Unrat e todos os outros cidadãos tenham dela. É um tirano não porque abusa da lei, mas porque a ignora e a desconhece completamente (como fazem os tiranos da vida política real, agindo de acordo com seus caprichos e sem qualquer consciência de uma ordem superior aos seus humores). A sátira está em mostrar que um tirano é, na verdade - para lembrar do título de outro romance importante de Heinrich Mann - súdito de um mecanismo que reproduz a sua identidade por onde quer que passe. As mudanças superficiais de Unrat não mascaram a sua constante identidade consigo mesmo, revelando a incapacidade do protagonista em ver como ele jamais sai de cubículos. Unrat está preso a um presente permanente.
A estrutura da temporalidade em Morte em Veneza, a meu ver, é distinta. As mudanças de Gustav von Aschenbach não são superficiais e percorrem outra trajetória, pois Thomas Mann o submete a uma dupla negação: a negação da disciplina no amor, e a negação do amor na tentativa (na máscara) em permanecer jovem, em ser o outro que já não é, ou, melhor ainda, em voltar a assumir a forma da disciplina sendo no outro imaginado miticamente. O rosto encoberto por uma camada de pó derretida pelo suor é, portanto, bem diferente da sua rigidez inicial, da mão que estava sempre tensa e fechada, sempre escrevendo, e do corpo que recebia jatos de água fria às cinco da manhã.
Ao contrário de Unrat, Aschenbach cria as próprias leis, cria a própria identidade (ao invés de reproduzi-la inconscientemente) e não somente tem consciência de havê-las criado como, ao menos no início, reconhece o limite de sua vigência. Francesco Rossi diz, com razão, que a insuperável distância entre Aschenbach e Tadzio mostra como a tragédia se desenvolve no interior do protagonista (Rossi 2015: 128), mas creio que seria importante compreender essa interiorização precisamente como este gesto de ver a si mesmo como herói, como quem define a sua relação com o mundo a partir da existência de leis imaginárias, algo que, como o próprio Rossi afirma, constitui o elo da narrativa da novela (Rossi 2015: 129). Aschenbach, como bom artista burguês, estabeleceu sua dura rotina de trabalho, mas também tem consciência ao reconhecer a força de outra lei, de ordem natural, ao aquiescer ao cansaço físico que o leva a querer e precisar viajar e sair de Munique. No final, ele tem consciência de estar amando Tadzio, mas ao imaginá-lo como uma figura mítica, sendo vítima de seu próprio poder criador de formas, seja pela imaginação, seja pela pintura de máscaras rejuvenescedoras, ele sucumbe. Ele estabelece suas próprias leis, reconhece quando estas mesmas leis (o excesso de disciplina) saem do controle (o cansaço), mas inventa, no lugar, outra ainda mais forte, uma lei religiosa na qual o próprio corpo, antes signo de cansaço, decadente e fraco, torna-se divino no outro, divino porque simboliza a autonomia da arte na cópula do corpo com o espírito. Nesta fusão entre corpo e espírito, temos o trágico. E aqui Lukács é decisivo: “[...] trágico é quando não há mais sentido em distinguir entre o doce e o amargo, a saúde e a doença, o perigo e a salvação, a morte e a vida, quando o que destrói a vida se torna algo tão inevitável quanto o que é indiscutivelmente bom e útil” (Lukács 2015: 104). Poderíamos acrescentar: quando não se distingue mais entre a lei do corpo e lei do espírito, algo que, ao menos no início da novela e antes do encontro com Tadzio, Aschenbach sabia estabelecer.
A fraqueza de Aschenbach não está na “decadência biológica”, mas em sua orientação temporal. Ele começa como um personagem cuja ação é voltada para o futuro - a obra de arte sempre por fazer, o dia longo de trabalho que começa bem cedo - para, no momento, seguinte, se render ao encontro de Tadzio e viver em constante atenção na presença visual do corpo do jovem e na satisfação plena de estar em Veneza, para, no final, voltar-se completamente para o passado, imaginando no rapaz uma divindade clássica e, sobretudo, tentando se rejuvenescer. Ele é fraco porque, ao se movimentar, ao decidir se deslocar no espaço (a viagem), ele retrocede, como se uma força estranha, uma corrente marinha contrária o levasse ao sentido oposto ao desejado. Mas a corrente fora criada por ele.
Referências bibliográficas
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Para Kreis, os lugares comuns de Thomas Mann refletiriam ideias já circulantes a propósito de (a) uma concepção imperialista da Alemanha na geopolítica da época; (b) as relações entre Alemanha e França, e (c) as relações políticas internas na própria Alemanha, concebidas por Thomas Mann desde uma perspectiva claramente aristocrática e hierárquica. (Kreis 2015: 132) Ver, por exemplo, sua crítica ao voto universal e uma defesa de uma concepção orgânica em que, pelo fato do todo não ser a soma das partes, mas um conjunto que adquire harmonia através da proporção hierárquica, o voto não poderia seria igualitário, mas censitário e de acordo com o nível educacional (Mann, T. 2013: 283, 306).
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Tradução minha. Verti para o português os trechos de obras e trabalhos acadêmicos ainda não publicados em português (ou de cujas tradução não tive conhecimento ainda). Mantive as traduções existentes em língua portuguesa, pois considero suas soluções melhores se comparadas com as que eu mesmo tentaria e poderia dar.
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Uma ótima visão sobre o que poderíamos entender como um dos elementos de transformação da literatura pode ser encontrada em Honold, que nos mostra como a técnica passa a ser tema central das obras, e elemento presente na própria formação de alguns escritores decisivos do momento (incluindo aí o pós-guerra), como Robert Musil e Alfred Döblin. (Honold 2015a: 34).
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Reproduzo aqui brevemente as duas posições. Para Kaes, “[...] o cinema de Weimar foi acossado pela memória de uma guerra cujo desfecho traumático jamais foi reconhecido, que dirá aceito [...] Muda e escondida, pressuposta e latente, reprimida e negada, a experiência do trauma tornou-se o inconsciente de Weimar” (Kaes 2011: 141-151). Agora, a proposta de Kracauer: “Os filmes de uma nação refletem a mentalidade desta, de uma maneira mais direta do que qualquer outro meio artístico, por duas razões: Primeiro, os filmes nunca são produto de um indivíduo [...] já que qualquer unidade de produção cinematográfica engloba uma mistura de interesses e inclinações heterogêneas, o trabalho de equipe nesse campo tende a excluir o tratamento arbitrário do material de cinema, suprimindo peculiaridades individuais em favor de traços comuns a muitas pessoas. Em segundo lugar, os filmes são destinados, e interessam, às multidões anônimas [...]” (Kracauer, 1988:17).
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Todavia, não acompanho totalmente aqui a afirmação de Honold de que esta ideia de fraqueza seria deixada em segundo plano nas Considerações de um apolítico. Nas passagens por ele mesmo citadas (Honold, 2015:470), vejo, sem estar totalmente convicto, mais uma ambiguidade do que uma tentativa de recuperação de um ideal de artista heroico mais antigo: “Um artista [...] permanece até o último suspiro um aventureiro do sentimento e do Espírito, inclinado ao desvio e ao abismo, aberto ao perigo nocivo [...] ele é necessariamente dialético. Dialética, porém, é, segundo Goethe, “a instrução para o espírito da contradição, que é dada ao ser humano para que ele reconheça a diferença entre as coisas” (Mann, T. 2013: 438). Nesta própria ideia de heroísmo da fraqueza não estaria contido um espírito de contradição? Fica a pergunta.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Maio 2019
Histórico
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Recebido
14 Nov 2018 -
Aceito
15 Fev 2019