Resumo:
O presente artigo procura investigar as semelhanças entre A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy (1759-1767), de Laurence Sterne, e o Doutor Fausto (1947), romance do autor alemão Thomas Mann. Para além da referência direta a Sterne dentro do romance de Mann e da clara semelhança quanto a comentários metaficcionais, procuramos demonstrar que há igualmente uma ressonância do Tristram Shandy na estrutura narrativa da obra de Mann. Isso se manifesta em dois sentidos: primeiramente, pelo tratamento do tempo, que se altera entre passado (tempo da narrativa) e presente (tempo da narração, no qual os narradores fazem seus comentários metaficcionais). Ademais, ambas as obras trazem uma representação complexa e multifacetada dos fatos narrados, além de uma discussão sobre o gênero romance dentro das próprias obras. Por fim, procuramos apontar como tais mecanismos têm na obra de Mann uma função primordialmente política, uma vez que os artifícios narrativos utilizados são a base da reflexão de Serenus Zeitblom sobre a ascensão dos ideais fascistas na Alemanha.
Palavras-chave:
Doutor Fausto; Tristram Shandy; literatura alemã; literatura comparada
Abstract:
This paper seeks to investigate the similarities between Laurence Sterne’s The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman (1759-1767) and Doctor Faustus (1947), a novel written by the German author Thomas Mann. Beyond the direct reference to Sterne within Mann’s novel and the clear similarity regarding metaficional commentary, we seek to demonstrate that there is also a resonance of Tristram Shandy in the narrative structure of Mann’s work. This is manifested in two main senses: firstly, by the treatment of time, which shifts between past (time of the narrative) and present (time of narration, in which the narrators make their metaficional comments). Furthermore, both novels contain a complex and multifaceted representation of the novel as a genre in the works themselves. Finally, we seek to point out how such mechanisms have a primarily political function in Mann’s work, since the narrative artifices used are the basis of Serenus Zeitblom’s reflection on the rise of fascist ideals in Germany.
Keywords:
Doctor Faustus; Tristram Shandy; German literature; comparative literature
Zusammenfassung:
In diesem Artikel werden Parallelen zwischen Laurence Sternes The Life ans Opinions of Tristram Shandy, Gentleman (1759-1767) und Doktor Faustus (1947), einem Roman des deutschen Schriftstellers Thomas Mann, untersucht. Über die direkte Bezugnahme auf Sterne in Manns Roman sowie die eindeutige Ähnlichkeit in Bezug auf den metafiktionalen Kommentar hinaus zeigen wir auf, dass es auch in der Erzählstruktur von Manns Werk eine Resonanz in Bezug auf Tristram Shandy gibt. Diese Resonanz wird vor allem in zweierlei Hinsicht sichtbar: erstens in der Behandlung der Zeit, die zwischen Vergangenheit (erzählte Zeit) und Gegenwart (Erzählzeit, in der die Erzähler ihre metafiktionalen Kommentare abgeben) wechselt. Darüber hinaus thematisieren beide Werke den Roman als Gattung auf eine komplexe und vielschichtige Weise. Abschließend zeigen wir auf, wie solche Mechanismen bei Mann eine primär politische Funktion haben, da die verwendeten narrativen Kunstgriffe die Grundlage für Serenus Zeitbloms Reflexion über den Aufstieg faschistischer Ideale in Deutschland bilden.
Stichwörter:
Doktor Faustus; Tristram Shandy; deutsche Literatur; Komparatistik
He has realized at last, that imaginary guitar notes
And imaginary vocals
Exist only in the imagination of the imaginer.
(Frank Zappa, Watermelon in Easter Hay)
1 Introdução
No ano de 1942, em uma apresentação sobre José e seus irmãos, na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, Thomas Mann mencionou leituras que serviram de apoio à escrita de seu monumental romance, cujos primeiros três volumes haviam sido publicados entre os anos de 1933 e 1936. Neste ponto, não se tratava das fontes históricas reunidas por Mann, que chegou a viajar ao Egito a fim de coletar material para a formulação do enredo, mas sim de obras literárias capazes de inspirar um autor enquanto ele escreve as suas próprias. Seriam livros “[…]whose contemplation keeps him [the author] in the right mood, and which he seeks to emulate” ( Mann 1973 Mann, T. “The Theme of Joseph Novels”. In: Literary Lectures Presented at the Library of Congress. Washington: Library of Congress, 1973, p. 9.: 9). Aqui, nos deparamos com dois nomes. O primeiro é o de Goethe, menção mais que esperada por parte de um autor alemão. O outro nome, entretanto, surpreende. É o do irlandês Laurence Sterne:
Well then, such strengthening reading during the last Joseph years was provided by two books: Laurence Sterne’s Tristram Shandy and Goethe’s Faust – a perplexing combination; but each of the two heterogeneous works had its particular function as a stimulant and in this connection it was a pleasure for me to know that Goethe had held Sterne in very high esteem, and had called him one of the finest intellectuals who had ever lived.
( Mann 1973 Mann, T. “The Theme of Joseph Novels”. In: Literary Lectures Presented at the Library of Congress. Washington: Library of Congress, 1973, p. 9.: 9).
Não seria descabido afirmar que o Tristram Shandy realmente impressionou Thomas Mann, pois alguns anos depois o romance reapareceria não como menção externa, mas nas linhas do próprio Doutor Fausto (1947), obra de maturidade que, segundo o próprio Mann, “[...]me consumiu muito mais que qualquer outra, vindicando minhas forças mais profundas” ( Mann 2001 Mann, T. A gênese do Doutor Fausto: romance sobre um romance. São Paulo: Mandarim, 2001.: 13). Na obra, o narrador Serenus Zeitblom menciona Sterne e o diálogo com a leitora desatenta, uma das passagens mais icônicas do Tristram Shandy 2 2 A passagem mencionada está no vigésimo capítulo do primeiro volume. O narrador-personagem se dirige à leitora da seguinte forma: “———— Como pôde a senhora mostrar-se tão desatenta ao ler o último capítulo? Nele eu vos disse que minha mãe não era uma papista. — Papista! O senhor absolutamente não me disse isso. Senhora, peço-vos licença para repetir outra vez que vos disse tal coisa tão claramente quanto as palavras, por inferência direta, o poderiam dizer. — Então, senhor, devo ter pulado a página. — Não, senhora — não perdestes uma só palavra. — Então devo ter pegado no sono, senhor. — Meu orgulho, senhora, não vos permite semelhante refúgio. — Então declaro que nada sei do assunto. — Essa, senhora, é exatamente a falta de que vos acuso; e, à guisa de punição por ela, insisto em que volteis imediatamente atrás, isto é, tão logo chegueis ao próximo ponto final, leiais o capítulo todo novamente ( Sterne 1984 : 94) :
Por isso, acho, se me permitem a digressão chistosa, que, com relação a pessoas que naquele monstruoso capítulo das palestras tiverem saltado ou sobrevoado algumas páginas, se deveria proceder da mesma maneira como fez Laurence Sterne com uma leitora imaginária, que revela por um aparte não ter prestado atenção ininterruptamente; motivo por que o autor a obriga a retornar a um capítulo anterior, para que preencha as lacunas de seus conhecimentos épicos. Mais tarde, mais bem informada, a dama reúne-se novamente com o público do narrador, onde é acolhida cordialmente
( Mann 2015 Mann, T. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 86).
A presença de Sterne no Doutor Fausto, entretanto, não se limita à menção direta. Como Tristram e Serenus são conscientes de seus papeis como narradores, eles inevitavelmente comentam sua própria obra enquanto a escrevem. Dessa forma, em uma série de trechos a narração de Zeitblom lembra a de Tristram Shandy naquilo que ela traz de autorreferencial. Um bom exemplo é o momento em que Serenus pausa para refletir sobre a constituição e ordenamento de um capítulo enquanto o escreve, revelando ao leitor suas dúvidas e erros:
Também asteriscos podem servir para refrescar os olhos e o espírito do leitor. Nem sempre será necessário que algum algarismo romano marque mais fortemente o prosseguimento do relato, quando se alcança um novo ponto de partida. Seria impossível para mim outorgar o caráter de um capítulo próprio à precedente incursão numa atualidade posterior à morte de Adrian Leverkühn. Após ter clarificado tipograficamente o meu texto por meio desse simpático sinal, completarei, portanto, este trecho mediante alguns detalhes dos anos que Adrian passou em Leipzig, sem dissimular o fato de que, na sua função de capítulo, ele perde sua unidade e parece composto de fragmentos heterogêneos – embora devesse bastar que incorri no mesmo erro já no capítulo anterior. Ao reler tudo quanto nele se tratou (...) pergunto-me, com boa razão, se elementos tão díspares são realmente capazes de conferir unidade a um capítulo. Mas permitam-me relembrar que, desde o começo deste trabalho, tive que me censurar a ausência de uma estrutura regular, controlada, da apresentação
( Mann 2015 Mann, T. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 206).
Como Serenus, Tristram escancara frequentemente seus pensamentos sobre a composição da autobiografia. No seguinte exemplo, há a ausência das dez páginas que comporiam o capítulo vinte e quatro do quarto volume, excluído pelo narrador porque teria sido escrito em um tom superior e estaria em desequilíbrio com o restante da obra. Ele usa o capítulo vinte e cinco para justificar a exclusão e ainda reflete sobre outros capítulos:
— Sem dúvida alguma, senhor, — falta aqui todo um capítulo — e há um hiato de dez páginas no livro, por isso — mas o encadernador não é tolo, nem velhaco nem fátuo — tampouco o livro se tornou mais imperfeito, o mínimo que fosse (ao menos por tal motivo) — muito ao contrário, tornou-se mais perfeito e mais completo pela falta do capítulo do que pela sua presença, conforme irei demonstrar em seguida a vossas senhorias; — pergunto primeiramente, de passagem, se o mesmo experimento não poderia ser levado a cabo, com igual êxito, no tocante a outros capítulos tomados ao acaso; —— todavia nunca se chega ao fim, se me permitem vossas senhorias, em matéria de experimentos com capítulos — e já tivemos o que basta — pelo que está dado um fim à questão
( Sterne 1984 Sterne, L. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Prefácio e tradução de José Paulo Paes. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1984.: 319).
Os dois narradores comentam a estrutura das obras (ordenação de capítulos) e seus elementos tipográficos (Serenus foca em algarismos e asteriscos e Tristram pensa em numeração de páginas) e o fazem sempre no meio da própria obra, escancarando sua composição.
Também salta aos olhos a semelhança do papel dos narradores Serenus Zeitblom e Tristram Shandy. Antes de mais nada, ambos se intitulam biógrafos e negam categoricamente o papel de romancistas 3 3 Tomemos os seguintes exemplos como ilustração: “O que escrevo não é nenhum romance, em cuja composição o autor tente revelar ao leitor os corações dos personagens indiretamente, colocando-os em cena. Como biógrafo que sou, tenho pleno direito de chamar as coisas claramente pelo nome e constatar sem rodeios fatos psicológicos que influíram sobre os acontecimentos da vida que me cabe apresentar.” ( Mann 2015 : 342, o itálico é nosso). “Não vou completar esta sentença antes de fazer uma observação a respeito do estranho estado de coisas entre mim e os leitores, tal como as ditas coisas ora estão – observação aplicável a nenhum autor biográfico que tenha existido desde o começo do mundo que não seja eu próprio.” ( Sterne 1984 : 294, o itálico é nosso). . Zeitblom quer contar a vida trágica de seu amigo Adrian Leverkühn, como já aponta o subtítulo do romance (“a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada opor um amigo”); Tristram, por sua vez, está interessado em escrever uma bem-humorada autobiografia. Quem pensa em escrever um romance, de fato, são os autores Laurence Sterne e Thomas Mann, de modo que os livros são romances para os autores e leitores, mas não para os narradores – o que torna irônica a reiteração sobre não estarem escrevendo justamente aquilo que o leitor tem em mãos.
Aqui, entretanto, já é perceptível uma diferença: se Serenus é bem-sucedido em sua tarefa e maneja contar a história do amigo do começo ao fim, mesmo que entrecortada por digressões, Tristram se perde definitivamente em seus pensamentos e associações. Como consequência, o Tristram Shandy é mais sobre as opiniões (suas e de seus familiares) que sobre a vida de Tristram. É, em realidade, uma tentativa do personagem principal de escrever uma autobiografia. Dessa forma, enquanto nas primeiras páginas Serenus dá conta de se apresentar e apresentar Adrian – onde ele nasceu, sua primeira infância, quem eram os membros de sua família –, o mesmo não se passa com Tristram. O início do romance, com sua concepção e a discussão dos pais na cama diante da pergunta inoportuna de sua mãe (“ ------- Por favor, meu caro, disse minha mãe, não te esqueceste de dar corda ao relógio?” ( Sterne 1984 Sterne, L. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Prefácio e tradução de José Paulo Paes. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1984.: 47), já dá os primeiros sinais de que não estamos diante de uma autobiografia ficcional à la Daniel Defoe com seus Robinson Crusoe (1719) e Moll Flanders (1722). Algo estranho está acontecendo nas linhas iniciais do Tristram Shandy, e o leitor cuja opinião é a de que o dito início ab ovo seria o prenúncio de uma narrativa linear hiper detalhada (o que já seria peculiar por si só) logo percebe que as coisas tampouco irão por esse caminho.
Logo após a questão de sua concepção, Tristram perde o fio principal e se distancia cada vez mais de sua própria história: ele esclarece a pergunta desagradável da mãe (responsável por dissipar os homúnculos do pai no momento decisivo da concepção e torná-lo uma figura melancólica), conta que ficou sabendo de tal anedota pelo tio Toby, explica seu apego aos detalhes em sua narração, se posiciona contra as regras artísticas estabelecidas por Horácio, e assim continua, guiado por sua pena e pensamentos. Entre comentários metaficcionais, associações de ideias, a transcrição de documentos (o contrato de casamento de seus pais, o sermão perdido do pároco Yorick) e até mesmo a inserção de uma página preta no meio do livro em homenagem à morte de Yorick, Tristram só nasce mesmo no terceiro volume, que seria publicado em 1761. Ou seja, o leitor de 1760, que tinha apenas os dois primeiros volumes em mãos, terminou sua leitura sem ao menos ver o protagonista da autobiografia nascer. Por fim, depois de nove volumes e mais de seiscentas páginas, são poucas as informações biográficas sobre Tristram: além de sua concepção, há o relato das três grandes tragédias de sua vida – o achatamento de seu nariz pelo fórceps do Dr. Slop, a troca de seu nome (ele deveria se chamar Trimegistus, não Tristram) e sua circuncisão por uma janela.
Apesar dessas diferenças, ainda existem ressonâncias fundamentais do Tristram Shandy naquela que é a obra mais experimental de Mann. Os exemplos até aqui citados são importantes e notórios, mas há ainda outras implicações decorrentes da presença de um certo espírito shandeano no Doutor Fausto. Nesse sentido, há dois elementos absolutamente dignos de nota: o primeiro é o tratamento do tempo, que gera dois planos narrativos alternados e desencadeia comentários metaficcionais e digressões; como decorrência do primeiro, o segundo é uma representação complexa dos fatos narrados e um questionamento sobre o gênero romance. São tais implicações que o presente artigo procura investigar mais a fundo, partindo da premissa de que a comparação entre os dois romances pode ajudar a entender melhor a já mencionada “ausência de uma estrutura regular, controlada de apresentação” da obra de Mann.
2 Uma questão de tempo
O leitor do século XVIII encontrou algo incomum não só no caráter fragmentário da autobiografia de Tristram, como também em sua estrutura narrativa. Para entendermos melhor Sterne, pensemos antes em Defoe, o qual, de acordo com Ian Watt ( 2010Watt, I. A ascensão do romance: estudos dobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.), é um dos grandes representantes da ascensão do romance moderno. O termo romance ( novel 4 4 Em inglês fica mais evidente a ideia de novidade implícita no termo novel (romance) em contraste com romance (romanesco). Watt elenca uma série de diferenças entre os dois tipos narrativos. Se, por um lado, o romanesco é menos apegado à causalidade e à verossimilhança – seja pelas coincidências extremas ou por elementos fantásticos que podem aparecer –, o romance moderno procura criar uma imagem circunstancial da vida ao utilizar um conjunto de técnicas narrativas que o teórico denominou realismo formal. Dentre elas, podemos citar a especificidade de tempo e espaço, a individualização dos personagens, a causalidade e o uso da linguagem referencial. O realismo formal, para Watt, é uma maneira possível de representação da realidade, é o denominador comum do romance e seu caráter distintivo em relação a outros gêneros literários. ) só seria consagrado no fim do século XVIII – o que não excluiu automaticamente a desconfiança em relação ao gênero e a visão de que era inferior quando comparado às formas mais tradicionais da epopeia e do teatro –, mas Defoe foi um dos responsáveis por torná-lo popular já no início do século ao representar valores importantes para as classes médias em ascensão, como o protestantismo e uma ética capitalista do trabalho derivada daí.
Além disso, a experiência individual, crucial para a modernidade, é representada na forma da memória autobiográfica de pessoas comuns. Ao fazê-lo, Defoe não somente dispensou os enredos conhecidos do mito e da História, como situou suas narrativas em um tempo e espaço determinados historicamente e com acontecimentos baseados em causalidade, de modo que nelas “[...]percebemos um sentido de identidade pessoal que subsiste através da duração e, no entanto, se altera em função da experiência.” ( Watt 2010 Watt, I. A ascensão do romance: estudos dobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.: 26).
A fim de gerar o efeito de uma personalidade individual que se desenvolve com a experiência, Defoe criou narradores como Robinson Crusoe e Moll Flanders, que relatam suas vidas pregressas de forma distanciada no tempo. Os acontecimentos passados rumam linearmente para um ponto no presente da narração, o momento do desfecho – que não é literalmente o fim da vida, mas o momento de calmaria, quando as aventuras sucessivas deixam de ocorrer. O presente da narração não é o foco, ele é mencionado brevemente na forma de comparação entre um passado de ignorância e erros e um presente de maior sabedoria. Dessa forma, o tempo da narrativa e o tempo da narração se sucedem naturalmente, formando uma linha de chegada que vai se configurando linearmente.
Tudo muda radicalmente com Sterne, já que “[...]o autor brinca com o que é provavelmente o mais fundamental dos problemas do realismo formal, o tratamento da dimensão tempo na narrativa” ( Watt 2010 Watt, I. A ascensão do romance: estudos dobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.: 311) 5 5 Para os fins deste artigo, exploraremos apenas as questões temporais relativas aos dois níveis narrativos (o tempo da narração e o tempo da narrativa), mas é importante ter em mente que o Tristram Shandy traz ainda uma série de outras experimentações importantes com o elemento temporal. Entre elas, poderíamos destacar a tentativa frustrada de correspondência exata entre o tempo narrado e o tempo do relógio (de modo que a narração de um dia de sua vida deveria durar exatamente 24 horas de leitura) e o congelamento do tempo, utilizado para que o narrador possa suspender uma determinada cena enquanto seus pensamentos o levam a outro lugar. Sérgio Paulo Rouanet, ao analisar o romance de Sterne em Riso e melancolia (2007), nomeou esse último artifício como “efeito Bela Adormecida”. Dois exemplos seriam o momento em que Walter e Toby estão descendo as escadas e Tristram “congela” a cena no momento da descida e quando a mãe de Tristram é deixada inclinada na fechadura da porta, tentando ouvir o que se dizia dentro da sala. . Agora não há mais a figura do narrador que se dissolve na narrativa e a ordena de longe, como rememoração linear e sequencial, mas a mistura frequente entre o tempo da narrativa e o tempo da narração de acordo com a irrupção dos pensamentos de Tristram.
O narrador Tristram, a figura mais velha, interrompe reiteradamente a autobiografia para dizer um oi ao leitor, revelando sua posição no presente da narração. Nesses momentos sabemos até o dia em que Tristram está escrevendo: “mal faz uma semana hoje, em que escrevo este livro para a edificação do mundo, ― ou seja, 9 de março de 1759” ( Sterne 1984 Sterne, L. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Prefácio e tradução de José Paulo Paes. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1984.: 84); “tal observação é minha própria; ― e foi-me sugerida por este mesmo dia tão chuvoso de 26 de março de 1759, entre as nove e dez horas da manhã” ( Sterne 1984 Sterne, L. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Prefácio e tradução de José Paulo Paes. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1984.: 99); “(...) e até hoje (10 de agosto de 1761) estou pagando parte do preço da reputação desse homem” ( Sterne 1984 Sterne, L. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Prefácio e tradução de José Paulo Paes. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1984.: 377). Em outros momentos, Tristram fala sobre seu estado momentâneo, narrando a si mesmo enquanto narrador. Desse modo, ele vira uma espécie de personagem de si mesmo em duplo sentido, pois narra a si mesmo no tempo passado e no momento da narração:
Passo a esta parte da minha história no mais meditativo e melancólico estado de espírito jamais experimentado por uma alma simpática — Meus nervos se afrouxam enquanto a narro. — A cada linha escrita, sinto diminuir-me o rápido batimento do pulso e daquela descuidada alacridade com que, todos os dias da minha vida, vejo-me impelido a dizer e escrever coisas que não devia. — E no momento em que por fim mergulhei a pena no tinteiro, não pude deixar de notar que semblante cauteloso de triste compostura e solenidade assumiu meu modo de fazê-lo. — Deus! Que diferença dos arrancos impetuosos e dos repentes estouvados com que te habituaste, Tristram! a avir-te com outros humores, — a deixar cair a pena, — sujando de tinta tua mesa e teus livros, — como se pena, tinta, livros e mobília nada te custasse
( Sterne 1984 Sterne, L. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Prefácio e tradução de José Paulo Paes. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1984.: 231-232).
Essas e outras interrupções de Tristram são o ensejo para os comentários metaficcionais, que acontecem no momento da narração e levam o leitor a refletir sobre a composição da narrativa.
É igualmente importante manter em mente que esses dois níveis temporais são parte essencial na configuração do romance, e é isso que faz com que o Tristram Shandy seja um livro sobre a tentativa de se escrever um livro. Nesse sentido, Jeffrey Williams pontua muito acertadamente que o ato de narrar é parte essencial do enredo, e não algo separado dele:
The plot of the narrating is not “digressive” from or disruptive to the “plot” but constitutes a salient aspect of the narrative of the Tristram Shandy. It might seem slightly perverse to take these events as a predominant plot of the novel; however, on a very literal reading, they are temporally more immediate, in exact historical terms the first-order narration, to which all other narrative levels are subordinate (Williams 2004: 27).
De fato, no caos do Tristram Shandy – caos apenas aparente, pois é, na verdade, cuidadosamente planejado e calculado por Sterne – a linearidade reside somente no presente da narração, o qual só pode andar para a frente por retratar o momento atual da mente do narrador. É o plano da narrativa aquele que varia entre diferentes momentos e que o próprio narrador tenta exemplificar por meio de um desenho:
Começo agora a avançar bastante na minha obra; e com a ajuda de uma dieta vegetariana, acompanhada de umas sementes frias, não tenho dúvida de que conseguirei ir adiante com a história do meu tio Toby, e com a minha própria, segundo uma linha razoavelmente reta. Assim,
Estas foram as quatro linhas que segui no meu primeiro, segundo, terceiro e quarto volumes
( Sterne 1984 Sterne, L. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Prefácio e tradução de José Paulo Paes. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1984.: 461).
Desse modo, poderíamos dividir o Tristram Shandy em dois blocos: o que vai de 1695 a 1718, representando os momentos não lineares da narrativa, subordinados ao fluxo de ideias da mente de Tristram; e o que vai linearmente de 1760 a 1767, representando sempre o momento presente da narração e coincidindo com a publicação do último e nono volume do romance.
A transição constante entre os dois planos temporais é confusa quando comparada à linearidade de Defoe, mas, segundo Ian Watt, nem por isso deixa de ser verossímil. Segundo o crítico, diferentemente de Henry Fielding – que no Tom Jones (1749), por exemplo, destinou o primeiro capítulo de cada livro aos comentários metaficcionais –, Sterne consegue inserir os momentos metaficcionais de forma mais convincente no enredo, sem quebras expressivas justamente por situá-los dentro da mente de Tristram, como parte da própria narrativa:
Sterne pode manipular à vontade sem quebrar a autenticidade da narrativa, pois cada transição faz parte da vida mental do herói, a qual naturalmente não tem compromisso nenhum com ordem cronológica. Assim, Sterne consegue dispor os elementos de seu romance em qualquer sequência que lhe apraza, sem as arbitrárias mudanças de ambiente e personagens que esse tipo de contraponto acarreta em Fielding
( Watt 2010 Watt, I. A ascensão do romance: estudos dobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.: 313).
Fica claro, portanto, que uma das grandes diferenças entre a autobiografia ficcional de Sterne e as autobiografias ficcionais de Defoe acontece em termos estruturais, pelo estabelecimento de dois níveis temporais que se alternam sem nenhuma ordem aparente e, por isso, impedem a narração linear da vida de Tristram – se é que não impedem sua narração como um todo. E apesar da experimentação extrema do Tristram Shandy, Watt ainda assim o situa como parte da tradição iniciada no século XVIII por Defoe, Richardson e Fielding e afirma que “Sterne dispensa cuidadosa atenção a todos os aspectos do realismo formal” ( Watt 2010 Watt, I. A ascensão do romance: estudos dobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.: 311).
Caberia ressaltar, entretanto, que se o conceito de realismo formal já é problemático quando tenta abarcar a obra de Fielding, ele tampouco poderia deixar de sê-lo em relação a Sterne. Michael McKeon ( 2002Mckeon, Michael. The Origins of the English Novel, 1600-1740. 15th anniversary edition. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2002. ) trabalha essa questão quando debate a tese de Watt e demonstra como Fielding difere de Defoe e especialmente de Richardson, cujos romances Fielding satirizou e com quem teve uma querela pública. Fielding de fato escreveu romances, mas os elementos que remetem ao romanesco e sobretudo a presença constante do comentário autorreferencial ressaltam a diferença em relação aos outros dois autores e evidenciam as limitações do realismo formal de Watt, que depende de uma série de concessões para abarcar romances como Tom Jones e Joseph Andrews (1742). É, portanto, uma teoria que demonstra limitações diante da complexidade do romance.
Isso acontece porque, segundo McKeon, o romance, como gênero representativo da modernidade, reflete um intrincado processo de mudança histórica que envolve as tensões entre duas categorias coexistentes: de um lado, as classes médias e o romance moderno, cuja ascensão já tinha começado antes do século XVIII; de outro, a aristocracia e o romanesco, que estavam em lento processo de dissolução, mas que ainda existiam no século XVIII. Os romances de Fielding desafiam o conceito do realismo formal porque refletem esse processo complexo de mudanças profundas e paulatinas através de elementos romanescos e de ideias representativas de uma pequena nobreza ( gentry). Dessa forma, o teórico reafirma a necessidade de uma teoria que abarque a ascensão do romance e das classes médias como um processo mais dialético, menos abrupto e definitivo do que apresentado por Watt.
Para dar conta de obras com esse caráter desafiador, McKeon elaborou a categoria do “ extreme skepticism”, uma terceira opção ao “ romance idealism” (forma típica do romanesco) e ao “ naive empiricism” (romances nos moldes de Defoe e Richardson). Romances pertencentes ao “ extreme skepticism” são só trazem, concomitantemente, elementos do romance e do romanesco, como não procuram camuflar sua natureza ficcional. Pelo contrário: são romances que trazem a reflexão metaficcional, o que demonstra, ao mesmo tempo, seu desconforto com a forma literária em ascensão no século XVIII e a necessidade de questionar suas limitações em termos representativos. Como consequência, há uma quebra na impressão de verdade que se queria passar aos leitores - crucial para autores como Defoe e Richardson, que se apresentavam como meros editores dos diários e cartas de seus personagens.
Logo, se para Watt as obras de Fielding e Sterne são representativas do realismo formal, para McKeon seu caráter autorreferencial é um senão à definição de Watt, é um meio de questionamento e de desestabilização das soluções narrativas utilizadas em obras como as de Defoe e Richardson. Por isso, poderíamos afirmar que a obra de Sterne se encaixa tão bem na categoria do “ extreme skepticism” como a obra de Fielding, e que o realismo formal é insuficiente para dar conta de ambas. O caráter desestabilizador do Tom Jones também está presente no Tristram Shandy, o que traz consequências importantes para ambas as obras dentro da história do romance, pois seu estilo ressoará em uma série de autores.
Essa constatação é importante para a nossa análise porque aponta para uma primeira semelhança importante entre o Tristram Shandy e o Doutor Fausto, romance herdeiro do caráter desafiador do “ extreme skepcitism”: a estruturação temporal da narrativa de Zeitblom também acarreta comentários metaficcionais que abalam a impressão de verdade da narrativa e geram questionamentos sobre a própria forma do romance. Nesse sentido, algo deveras shandeano já acontece na abertura do romance de Mann:
O que me induz a isso é a suposição de que o leitor – ou melhor, o futuro leitor, pois no momento ainda não existe a menor probabilidade de minha obra chegar a ser publicada (a não ser que, por algum milagre, ela consiga sair da nossa assediada fortaleza Europa e transmitir aos de fora um sopro dos segredos de nossa solidão) – me permita retomar o fio: somente a suposição de que possa desejar uma informação perfunctória sobre o autor e sua situação me leva a redigir como introdução umas poucas linhas sobre o indivíduo que sou – se bem que, na verdade, eu receie suscitar, precisamente com isso, dúvidas no espírito do leitor, que não sabe se está ou não em boas mãos, quer dizer, se eu, em virtude de toda minha condição de vida, sou o homem indicado para uma tarefa à qual talvez me atraiam os impulsos de meu coração mais do que qualquer afinidade justificadora. Releio as linhas precedentes e não posso deixar de verificar nelas certa intranquilidade e alguma opressão, por demais características do estado de ânimo no qual me encontro hoje, a 27 de maio de 1943, dois anos após a morte de Leverkühn
( Mann 2015 Mann, T. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 11).
Os elementos apontados na obra de Sterne estão todos aqui: a tendência digressiva (“me permita retomar o fio”); a metaficcionalidade ao comentar as escolhas narrativas (“somente a suposição de que possa desejar uma informação perfunctória sobre o autor e sua situação me leva a redigir como introdução umas poucas linhas sobre o indivíduo que sou – se bem que, na verdade, eu receie suscitar, precisamente com isso, dúvidas no espírito do leitor”); a mistura entre tempo da narrativa e tempo da narração, interrompendo o fio principal para situar a data na qual escreve e como está se sentindo (“não posso deixar de verificar certa intranquilidade e alguma opressão, por demais característica do estado de ânimo no qual me encontro hoje, a 27 de maio de 1947”). Esses elementos se repetirão à exaustão ao longo do romance, e sua aparição concentrada no início já dá o tom do restante do livro.
Não é de se espantar que a estrutura temporal dos dois romances seja tão similar, apesar de em Mann os dois tempos intercalados serem sempre lineares, variando entre o que o humanista Serenus Zeitblom escreve em seu gabinete entre 1943 e 1945 e a trágica vida de Adrian, que vai de 1885 a 1940. Como em Sterne, aqui, os dois tempos transitam de acordo com o fluxo de pensamento e frequentemente descambam em comentários metaficcionais, de modo que, no Doutor Fausto, “[…]the reader’s attention is drawn to the”the mechanics of the illusion”, in a Sternean “[…]conscious accentuation of the creation of fiction” – another example the use of Zeitblom to make art a theme in the novel” ( Rushing 1982 Rushing, J. Zeitblom as Contrapuntist: The function of the Narrator in Thomas Mann’s Doktor Faustus. A Thesis in German. Graduate Faculty of Texas Tech University, 1982.: 57).
Primordial para a transição temporal é o extravasamento da angústia no momento presente da narração. Afinal, os dois narradores são interrompidos diante de questões subjetivas e pessoais que os comovem ao ponto de tomarem conta de suas penas. Apesar de a seguinte citação fazer referência apenas a Serenus, poderíamos dizer que em ambos é possível ver “[...]o papel do biógrafo completamente envolvido e comovido por seu objeto de trabalho, sempre ansioso, antecipando os fatos e se perdendo” ( Mann 2001 Mann, T. A gênese do Doutor Fausto: romance sobre um romance. São Paulo: Mandarim, 2001.: 35).
Para Tristram Shandy, a comoção aparece principalmente na antecipação e narração das tragédias que o acometem, mas também naqueles que são trechos de rara beleza (vale sempre a pena ressaltar que o Tristram Shandy é uma obra cômica e satírica, mas nem por isso deixa de ser um livro sensível, que lida com questões profundas como a morte, o amor e a amizade). Assim, há momentos em que a dificuldade na escrita da autobiografia se desdobra em reflexões sobre a complexidade da própria vida. Em um deles, Tristram fala sobre o passar do tempo:
Não vou discutir a questão; o Tempo passa célere demais; cada letra que traço fala-me da rapidez com que a Vida acompanha minha pena; seus dias e suas horas, mais preciosas, minha querida Jenny! do que os rubis à volta do teu pescoço, estão voando por sobre nossas cabeças, quais leves nuvens num dia de vento, para nunca mais voltar – tudo tem pressa – enquanto aí estás a frisar essa madeixa – vê! ela encanece; e toda vez que beijo a mão para dar adeus, e cada subsequente ausência, são prelúdios daquela eterna separação que em pouco nos sobrevirá. –
– Que o céu tenha piedade de nós dois!
( Sterne 1984 Sterne, L. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Prefácio e tradução de José Paulo Paes. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1984.: 587).
Para Serenus (ironicamente, aquele que está sempre agitado), a interrupção tem como seu principal ensejo a antecipação da tragédia do amigo. Por isso, o narrador não se contém e menciona o pacto de compra e venda de Adrian já nas primeiras linhas, repreendendo-se imediatamente: “Neste ponto interrompo-me com a humilhante sensação de ter cometido um erro artístico e de não haver logrado refrear-me” ( Mann 2015 Mann, T. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 13). Contudo, há ainda algo mais no Doutor Fausto. O bombardeio durante a escrita de Zeitblom é, afinal de contas, propositadamente situado na narrativa por Thomas Mann e mais uma causa para a aflição de Serenus. Os choques e barulhos desviam Serenus intencionalmente da história da vida do amigo para o momento atual da guerra, e o sofrimento progressivamente revela ter um sentido duplo, que conecta passado e presente:
O terrível bombardeio da cidade de Dürer e Williband Prickheimer já não era um acontecimento distante, e quando o Juízo Final feria a Munique também, ficava eu sentado no meu gabinete, lívido, a tremer da mesma forma que as paredes, as portas, as janelas da casa – e com a mão trêmula escrevia a presente biografia. Pois esta minha mão treme de qualquer jeito durante o trabalho, em virtude do assunto, e por isso não me importava com o fato de o fenômeno costumeiro tornar-se levemente intensificado pelos horrores externos
( Mann 2015 Mann, T. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 205).
Um assunto comovente potencializado por horrores externos é o que estrutura o romance. Por isso, a forma da narrativa é derivada diretamente daquilo que Serenus está vivendo no tempo da narração - ou seja, não é apenas a emoção diante da tragédia do amigo, mas também aquilo que a guerra provoca nele o que impede a escrita de uma biografia linear. A alternação entre dois níveis temporais tem uma estrutura semelhante à shandeana, mas tem no romance de Mann uma importante função política, capaz de estabelecer uma ligação simbólica entre a vida de Adrian e a história alemã.
No Doutor Fausto, portanto, a transição entre diferentes tempos estabelece um determinado sentido de crítica política e histórica. James Rushing ( 1982Rushing, J. Zeitblom as Contrapuntist: The function of the Narrator in Thomas Mann’s Doktor Faustus. A Thesis in German. Graduate Faculty of Texas Tech University, 1982.) entende tal procedimento como um paralelo simbólico derivado da estrutura temporal da obra. Segundo ele, um narrador como Zeitblom é essencial para a criação da estrutura temporal complexa que estabelece uma relação entre Adrian, a Alemanha e o Fausto. Tal se dá porque Zeitblom é personagem de si mesmo (uma vez que narra a si mesmo no passado e no presente) e encara os fatos de um ponto de vista distanciado e privilegiado, já ciente das consequências das ações passadas e de seus desdobramentos. Ele é o centro da multiplicidade de assuntos que o romance aborda, tornando o Doutor Fausto, segundo Rushing, um romance irônico e polifônico, que traz uma unidade diante de uma miríade de temas, com diferentes níveis temporais e possibilidades de interpretação.
Poder-se-ia apontar que narradores distanciados no tempo e com um ponto de vista privilegiado também aparecem nas obras de Defoe, mas o Doutor Fausto, além de remeter ao elemento mais complexo de um Tristram Shandy (a mistura dos dois tempos de acordo com o fluxo de pensamentos do narrador), acrescenta uma relação de sentido simbólico e político na alternação entre tempo da narrativa e tempo da narração 6 6 É importante ressaltar que o romance de Sterne também possui importantes menções à história política da Irlanda. Segundo Clare ( 2016), alguns desses elementos são a canção Lillabullero, reiteradamente assoviada pelo tio Toby e símbolo da querela entre protestantes e católicos no país; o cerco de Limerick e as atrocidades ali perpetradas contra os irlandeses; e a presença de personagens irlandeses, como Bridget e Trim. As referências presentes no romance são importantes pois reforçam a identidade híbrida de Sterne – o qual nasceu na Irlanda, mas logo cedo foi para a Inglaterra – ao mesmo tempo em que se relacionam “[...]to issues of great importance to the Irish Anglican subculture within which Sterne was partially raised” ( Clare 2016 : 15). Naturalmente, o levantamento de tais questões na narrativa suscita uma discussão a respeito de questões históricas (como, por exemplo, a dominação inglesa sobre a Irlanda) e gera o questionamento sobre a relação entre forma e história política no Tristram Shandy, como, por exemplo, em que medida as experimentações de Sterne não poderiam evidenciar a insuficiência das mobilizações narrativas inglesas para lidar com questões de áreas periféricas (da Irlanda ou do Norte da Inglaterra, onde Sterne era pároco), que possuem o que Clare classifica como uma subcultura. Contudo, a maneira como a história política aparece no Tristram Shandy não deixa de diferir do Doutor Fausto, onde o elemento político dita toda a estrutura do livro e transforma os diferentes níveis narrativos em simbolismo para uma interpretação específica da história da Alemanha. . Zeitblom não está rememorando e entrelaçando diferentes tempos gratuitamente, mas selecionando e interpretando eventos específicos e importantes para a vida do amigo e para aspectos da história alemã – e aquilo que ele seleciona e como conta é determinado pelo momento presente, por aquilo que ele já sabe que aconteceu. Desse modo, à medida em que a história de Adrian prossegue, o leitor percebe a função de cada um dos eventos mencionados e como eles são importantes para estabelecer uma relação entre as esferas particular e universal, música e história, tragédia pessoal e a derrocada de uma nação.
Um exemplo é quando Adrian revela o pacto fáustico no quadragésimo sétimo capítulo, um dos últimos do livro. Até então, esse fato era desconhecido para Serenus no tempo da narrativa. Contudo, quando começa a escrever a biografia, Serenus já tem o conhecimento, no tempo da narração, de algo que não tinha como saber em 1885, mas que, em 1943, traz um inevitável tom fáustico 7 7 O “tom fáustico” não diz respeito apenas ao momento do pacto fáustico, mas também à constante menção do elemento fáustico, o que cria a sensação de que há uma presença diabólica e pactária ao longo de toda a narrativa. Não por acaso, logo no primeiro capítulo do romance Serenus já faz menção ao Diabo e à ideia de pacto, o que é retomado o tempo todo, apesar de o pacto só ser narrado em um momento posterior. Além disso, os elementos mencionados ao longo da narrativa são marcados por seu caráter fáustico: Zeitblom, no início da narração, se lembra de um livro ilustrado, no qual são descritas borboletas da América do Sul. O narrador se detém especificamente em um tipo de borboleta, a Haeterea Esmeralda, remetendo ao nome da prostituta Esmeralda, que, ao infectar Adrian com sífilis, completa o pacto. Algo semelhante acontece, por exemplo, no Grande Sertão: Veredas, quando, ainda no início do monólogo, Riobaldo se questiona sobre a existência do Diabo e, consequentemente, sobre a possibilidade de um pacto ser firmado com ele – um questionamento que cria a atmosfera e dita o tom de toda a narrativa. para sua obra desde as primeiras linhas. Assim, quando o leitor se depara com a cena do pacto de Adrian, percebe que os elementos mencionados anteriormente não são fortuitos – e, até mais, são mencionados possivelmente em função do próprio pacto, para que ele tenha um determinado sentido para o leitor e, claro, para Zeitblom; para que, ao mesmo tempo, a busca pelo entendimento do pacto do amigo seja também a busca pelo entendimento do pacto que a nação de Zeitblom fez com forças muito suspeitas. Vale lembrar que a cena do pacto, justamente o momento do rompimento, é quando Zeitblom abdica de seu papel e se recusa a narrar, optando por apenas transcrever as palavras do amigo. As palavras faltam a Serenus diante de tanto horror, e como no Tristram Shandy, vemos a inserção integral de um documento no meio da narrativa 8 8 É verdade que o acordo com o Diabo também aparece como inserção integral de um documento na Historia do Doutor Johann Fausto, de 1587, uma das principais fontes de Mann para escrever seu romance. Contudo, apenas no Tristram Shandy e no Doutor Fausto tal inserção tem a função de gerar reflexões metaficcionais e sobre qual seria o papel de tais documentos como escolhas narrativas. : a descrição do pacto pelo próprio Adrian, em um dos papeis que ele legou ao amigo. Ao lê-lo, descobrimos que são justamente os elementos mencionados por Adrian nesse relato aqueles que serão reiterados por Serenus ao longo do romance. Desse modo, o relato de Adrian é um dos princípios organizadores do romance, o que estabelece os eventos e temas eleitos por Serenus no momento da escrita.
Os elementos da vida de Adrian que reaparecem no pacto são quando o Diabo assume o modo de falar do Professor Kumpf; a menção da relação amorosa de Adrian com a prostituta Esmeralda; o aparecimento da forma física do Professor Schleppfuss, o qual já apresentava elementos tipicamente fáusticos em sua aparência e trejeitos; e a menção das opiniões artísticas anteriormente exteriorizadas por Adrian, que enxerga a impossibilidade de concretização artística a partir de fórmulas tradicionalmente consagradas e, por isso, almeja uma polifonia com elementos dissonantes entre si, baseada em uma hierarquia de notas – um projeto artístico que remonta às aulas de Kretzschmar e que culminaria numa Nona Sinfonia às avessas, algo que apenas poderes diabólicos poderiam ajudar a concretizar, como uma espécie de solução final.
Tudo isso serve como base para Zeitblom tentar compreender a vida de Adrian a partir do pacto, além de trazer um tom de complexidade psicológica, a percepção de que tudo pode ser, em realidade, fruto das memórias de Adrian e criação de sua mente afetada pela febre cerebral oriunda da sífilis. Assim, Serenus expressa seu horror diante da mera possibilidade de Adrian ter forjado todas as ideias que diz ter testemunhado:
E, por essa razão, não posso tampouco acreditar que Adrian, no fundo de sua alma, tenha considerado real o que via e ouvia, seja enquanto o via e ouvia, seja mais tarde, quando o assentava no papel – não obstante o cinismo com que o interlocutor tentava convencê-lo de sua presença objetiva. Se todavia esta não existia – e me horrorizo ao admitir, ainda que apenas condicionalmente, a possibilidade de sua existência real! –, é pavorosa a ideia de que também aqueles argumentos cínicos, aqueles escárnios, aquelas trampolinices tenham brotado da própria alma do acossado...
( Mann 2015 Mann, T. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 260).
Ora, quando Serenus se horroriza diante da possibilidade de Adrian ter criado todas aquelas imagens e ter firmado um pacto com coisas tão suspeitas, ele está falando indiretamente de sua nação e do pacto que ela firmou com um outro espectro ameaçador, que buscava uma solução final para uma questão política. Não espanta, portanto, que no fim da biografia Zeitblom acabe por estabelecer de forma direta e consciente um laço entre a tragédia de Adrian e a da Alemanha. O sentido da intercalação de tempos e aproximação dos temas se concretiza nas palavras do narrador:
Quão singularmente se concatenam entre si os tempos, a época em que escrevo com a que constitui o fundo desta biografia! Pois os últimos anos da vida espiritual de meu herói, esses dois anos de 1929 e 1930, após o fracasso de seu projeto de casamento, a perda do amigo e o finamento da maravilhosa criança que a ele se juntara, já fazem parte da aproximação e do incremento daquilo que em seguida se apossaria do país e agora se afoga em sangue e chamas
( Mann 2015 Mann, T. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 560, o itálico é nosso).
É uma ligação feita voluntariamente por Serenus e diz muito mais sobre ele, sobre a maneira como ele enxerga os fatos em retrospectiva e os une ao presente, do que propriamente sobre Adrian – afinal, cabe lembrar que, fora os elementos transcritos pelo próprio compositor, o relato da vida de Adrian não passa pela perspectiva pessoal do compositor, mas pela visão que o amigo tem dele.
Por isso, no romance de Mann a perspectiva de Zeitblom tem a função de crítica política para além da ligação simbólica entre o destino de Adrian e o da Alemanha: ao vermos como Serenus se vê no momento presente, entendemos como ele (declaradamente representante do Humanismo e do Iluminismo) também se vê retrospectivamente como parte de uma resistência ineficaz contra o nazismo, que não se colocou ativamente contra as ideias reacionárias em ascensão e agora se enxerga como figura derrotada e arrependida. Por tal complexidade de níveis temporais e pela referência a problemas históricos, podemos compreender o Doutor Fausto como um Zeitroman à maneira da Montanha mágica (1924), um romance
[...]sobre a época, sobre os tempos difíceis de uma guerra vivida no exílio, sobre a simultaneidade das frentes de batalha, acompanhadas à distância; mas também sobre o próprio tempo, matéria-prima das vidas narradas – a do narrador-personagem, a de seu biografado, as do próprio autor e de seu possível leitor – e essência da própria música, a mais temporal das artes
( Almeida 2015 Almeida, J. Dialética humanista em tempos sombrios. In: MANN, Thomas. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 608).
Entretanto, existe ainda algo mais incomodando Zeitblom. Em determinado momento, ele afirma que “[...]a nossa época não é propriamente favorável a uma tarefa igual à minha” ( Mann 2015 Mann, T. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 204). As bombas explodem lá fora, sabemos, mas a declaração do humanista está revelando uma outra questão importante, relacionada à crise da cultura: o debate sobre o romance como gênero e sobre a crise que ele sofre diante da impossibilidade de se escrever um romance diante dos horrores de mais uma guerra mundial. Essa é mais uma questão que estabelece um paralelo importante entre o Doutor Fausto e o Tristram Shandy e merece ser investigada com atenção.
3 Uma questão de forma
“Não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração ( Adorno 2012 Adorno, T. “Posição do narrador no romance contemporâneo.” In: Notas de Literatura I. Tradução e apresentação Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012, 55-63.: 55)”. A célebre sentença de Adorno sobre o estado do romance no pós-guerra, sobre o subjetivismo que toma o lugar do preceito épico da objetividade, se aplica muito bem ao Doutor Fausto. A convergência não é mero acaso, já que Thomas Mann fez questão de debater as ideias de seu novo romance com o crítico, algo crucial para definir a trajetória musical de Adrian e o fim da narrativa de Zeitblom 9 9 A importância de Adorno para a composição do Doutor Fausto fica evidente em relatos como o seguinte: “Passemos a falar da cantata, para a qual tivera algumas ideias o ‘real secreto conselheiro’, conforme chamei Adorno ao dedicar-lhe um exemplar do livro impresso. E mesmo assim sou tentado a dizer que sua maior contribuição ao capítulo não foi no âmbito da música, mas no da linguagem e suas nuanças, na forma com que, ao final, envolvem elementos teológicos, religiosos, morais. Após quinze dias de trabalho, quando acabei, ou julguei ter acabado a parte, certa noite fiz uma leitura para ele em meu gabinete. Ele nada opôs ao aspecto musical, mas demonstrou preocupação com as quarenta linhas finais, que falam de esperança e misericórdia após as trevas. Eram simplesmente ruins, bem diferente do resultado final, agora publicado. Eu tinha sido otimista em excesso, bondoso e direto, tinha acendido muita luz, exagerado na consolação, e tive de reconhecer como justas as restrições do crítico. Na manhã seguinte, dediquei-me à revisão escrupulosa das quase duas páginas, dando-lhes a forma circunspecta que agora têm. (...) Algumas semanas depois, novamente visitando Adorno, li para ele a parte modificada e perguntei-lhe se agora estava bom. Em vez de responder, chamou a esposa, dizendo que ela precisava ouvir aquilo. Voltei a ler duas folhas, olhei para eles – e não precisei perguntar mais nada” ( Mann 2001 : 172-3). . De fato, o conflito do narrador humanista exemplifica muito bem a crise identificada pelo crítico: Zeitblom quer escrever a biografia direta e objetivamente, mas é constantemente impossibilitado por sua subjetividade, representada nos sentimentos pelo destino de Adrian e na aflição causada pela guerra. Nesse sentido, Adorno reconhece o paradoxo da narração na obra tardia do amigo e aponta como Mann escancara os mecanismos da ilusão narrativa, que no realismo à la século XIX ficavam camuflados por trás de uma distância estética característica à objetividade épica:
A violação da forma é inerente a seu próprio sentido. Só hoje a ironia enigmática de Thomas Mann, que não pode ser reduzida a um sarcasmo derivado do conteúdo, torna-se inteiramente compreensível, a partir de sua função como recurso de construção da forma: o autor, com o gesto irônico que revoga seu próprio discurso, exime-se da pretensão de criar algo real, uma pretensão da qual nenhuma de suas palavras pode, entretanto, escapar
( Adorno 2012 Adorno, T. “Posição do narrador no romance contemporâneo.” In: Notas de Literatura I. Tradução e apresentação Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012, 55-63.: 60).
Como visto anteriormente, as dúvidas de Zeitblom sobre a própria narrativa, fonte da ironia apontada por Adorno uma vez que dão forma ao romance e desestabilizam a impressão de verdade da ficção, são colocadas no enredo através de uma estrutura temporal alternada. A maneira como essa forma funciona remonta à crise do romance e, por isso, o Tristram Shandy retorna mais uma vez como referência inescapável. Afinal de contas, Thomas Mann não colocou as linhas de qualquer romance do século XVIII na pena de Zeitblom, mas de uma obra que traz em si, ainda durante a ascensão e consolidação do romance moderno, um importante questionamento sobre os mecanismos utilizados para representar a realidade por meio da literatura.
Antes de mais nada, é importante ter em mente que os questionamentos autorreferencias característicos de Tristram não são algo completamente novo. Em Sterne, the Moderns and the Novel ( 2002Keymer, T. Sterne, the Moderns and the Novel. New York: Oxford University Press Inc., 2002.), Thomas Keymer demonstra como havia romances que já comentavam metaficcionalmente aspectos narrativos comuns às obras que se popularizavam. Como já salientado, tais comentários aparecem nos romances de Henry Fielding, mas a vertente específica comentada por Keymer se expandiu nos anos 1750 em obras como The Adventures of Peregrine Pickle (1751) de Smollett, The Card (1755) de John Kidgell e The Life and Memoirs of Mr. Ephraim Bates (1759). Às referências de Sterne pode-se também acrescentar tanto as autorreferenciais de um Dom Quixote (1605 – 1615), como as satíricas de Rabelais e Swift – todos autores adorados por Tristram Shandy e citados por ele. Por isso, em meio ao debate sobre o Tristram Shandy ser uma sátira ou um romance, Keymer afirma que, na verdade ele traz muito dos dois. É uma obra profundamente de seu tempo, a qual utiliza elementos tipicamente satíricos para fazer referência a algo contemporâneo: o romance moderno e as convenções narrativas que se consolidavam com sua ascensão. Nesse sentido, ele afirma:
If Tristram Shandy is a satire, I argue, it is above all a satire on the novel. (…) It is only with Tristram Shandy in the 1760s, when mid-century novelists including Fielding himself had lifted the novel to generic prominence and even prestige, that Swift’s hack could be fully reinvented as narrator whose writing evokes, exaggerates, and subverts the ambitions and techniques of modern fiction
( Keymer 2002 Keymer, T. Sterne, the Moderns and the Novel. New York: Oxford University Press Inc., 2002.: 32).
As diferentes convenções narrativas que foram sendo estabelecidas e debatidas ao longo do século XVIII, Sterne as parodiou e problematizou radicalmente já dentro da própria obra. Assim, todas as questões referentes à construção narrativa – como apresentar e descrever personagens, como dispor os capítulos de uma obra, como começar e terminar uma história e o que narrar entre um ponto e outro – são colocadas como problemas a serem debatidos junto ao leitor, de modo que o enredo é atingido e as questões sobre como escrever um livro se sobrepõem à própria autobiografia. Nesse ponto, Sterne está lidando com as mais diferentes vertentes existentes à época, até mesmo com a obra já autorreferencial de Fielding:
Conventions of the adventure novel and the novel of sentiment, of development, and of consciousness supply Sterne with large structural principles that he can both exploit and challenge. He also drew on convention of less obviously far-reaching implication. From Fielding, perhaps, he approached the practice of addressing the reader directly and repeatedly. This procedure, too, he adapted to new purposes, in such a way to raise questions about his predecessor’s use of it
( Spacks 2006 Spacks, Patricia. Novel Beginnings: Experiments in Eighteenth-Century English Fiction. New Haven and London: Yale University Press, 2006.: 264).
Isso tudo não passa necessariamente por uma menção direta a Richardson, Fielding e Defoe, mas, como afirma Patricia Spacks ( 2006Spacks, Patricia. Novel Beginnings: Experiments in Eighteenth-Century English Fiction. New Haven and London: Yale University Press, 2006.), é certo que Sterne estava familiarizado com os mecanismos que vinham sendo criados por diferentes autores e que eram facilmente reconhecíveis pelos leitores de romances à época – o que confirma também a progressiva consolidação do gênero ao longo do século XVIII.
Os questionamentos do romance de Sterne, entretanto, não residem apenas naquilo relacionado às técnicas narrativas e à metaficção. Em realidade, a problemática sobre a escrita do romance é efeito colateral de uma reflexão ainda mais complexa: como representar uma existência? Os modelos narrativos que vinham se estabelecendo davam conta de representar a vida, matéria-prima de uma (auto)biografia? Se pensarmos na imensidão de todas as coisas que nos acontecem, deixar algo de fora, por mínimo que seja, não seria lesar essa totalidade, essa imensidão? E quando, de fato, começa a história da vida de alguém: no momento da concepção ou ainda antes, quando decisões importantes são tomadas e culminam em um nascimento? E, diante disso, será que a linguagem consegue dar conta de narrar elementos tão complexos?
Tristram Shandy acredita que escrever significa fazer o esforço de literalmente não deixar nada de fora, ou seja, incluir elementos que fazem parte da nossa vida e são geralmente omitidos em prol da ordem e da causalidade. Dessa forma, falar sobre sua própria vida remete ao tempo anterior à concepção, inclui a caracterização de pessoas que foram fundamentais para a formação de seu caráter e os acontecimentos que moldaram tais pessoas, como as teorias malucas do pai ou a ferida e o caso amoroso fracassado do tio. Ironicamente, o apego excessivo ao detalhe gera a confusão e a inconclusão daquele que quer ser o mais fiel possível à imensidão da realidade. E o interessante é: ao fazê-lo, o romance evidencia como a confusão e a inconclusão são, também, a própria realidade, representam um aspecto da vida excluído das histórias mais ordenadas e lineares.
A vontade de abarcar essa totalidade complexa, levada ao pé da letra, é o que conduz todos os elementos de uma narrativa mais tradicional ao seu extremo lógico: o princípio da causalidade é bagunçado porque tudo está sujeito às conexões dos pensamentos de Tristram e seu desejo de esclarecer minuciosamente todos os pontos, e não a uma sucessão ordenada de acontecimentos; o elemento temporal não é linear, além de haver a tentativa frustrada da correspondência perfeita entre o tempo do relógio e o tempo da narrativa, evidenciando como esta não dá conta de representar literalmente o andamento da vida; a simples caracterização de um personagem como o tio Toby pode levar mais de cem páginas porque isso incluí falar de seu caráter, de sua vida pregressa e de tudo que deriva daí; a capacidade da linguagem em narrar é constantemente questionada, como acontece na famosa cena em que Tristram deixa uma página em branco para que o leitor possa descrever a viúva Wadman de acordo sua fantasia, “[...]tão parecida quanto puderdes com a vossa amante – tão diferente de vossa esposa quando a consciência vos permitir” ( Sterne 1984 Sterne, L. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Prefácio e tradução de José Paulo Paes. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1984.: 458). Por isso, Robert Alter classifica o Tristram Shandy como “the first novel about the crisis of the novel” ( Alter 1975 Alter, R. Partial Magic: The Novel as a Self-Conscious Genre. Berkeley and Los Angeles: University California Press, 1975.: 44), um romance no qual os elementos são tirados de seu lugar costumeiro e o narrador, confrontado com a imensidão da vida, abdica de qualquer posição de controle absoluto e pede ajuda sobre o que fazer diante da miríade de possibilidades que se lhe apresentam:
Óh PODERES! (pois poderes sois, e dos grandes) — que habilitais um mortal a narrar uma história digna de ouvir-se, — que bondosamente lhe mostrais onde deve começá-la, — e onde deve acabá-la, — o que deve nela incluir, — e o que deve excluir, — quanto deve ser deixada na sombra — e onde se deve lançar luz! — Vós, que presidis a este vasto império de flibusteiros biográficos e vedes em quantos atoladeiros e transes vossos súditos se metem a toda hora, — quereis fazer algo por mim?
( Sterne 1984 Sterne, L. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Prefácio e tradução de José Paulo Paes. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1984.: 225).
Apesar de o Tristram Shandy não negar a possibilidade da narração como teorizada por Adorno – afinal de contas, o mais tradicional do realismo europeu ainda estava por vir e não havia o contexto de duas guerras mundiais –, ele abre as portas para a reflexão sobre a narração dentro de uma obra como nenhum outro romance havia feito até então e poucos fariam posteriormente. Não por acaso, muitos dos autores do modernismo do pós-guerra, quando confrontados com a questão de como, em um contexto de crise, representar a vida de uma forma diferente do realismo do século XIX, citam Sterne como modelo. É o caso de James Joyce ( apud New 1994 New, M. Tristram Shandy: A Book for Free Spirits. New York: Twayne, 1994.: 21) durante a escrita de Finnegans Wake (1939), quando afirma:
Time and the river and the mountain are the real heroes of my book. Yet the elements are exactly what every novelist might use: man and woman, birth, childhood, night, sleep, marriage, prayer, death. There is nothing paradoxical about this. Only am I trying to build as many planes of narrative with a single esthetic purpose. Did you ever read Laurence Sterne?
Poderíamos mencionar igualmente a forma proustiana – no sétimo volume de Em busca do tempo perdido (1927), o leitor se dá conta de que toda a imensidão lida até então é na verdade o processo para que Marcel se reconheça como escritor e encontre um modelo para escrever sua autobiografia, o que a torna autorreferencial e circular em termos temporais – ou o ápice da forma virginiana em As ondas (1931), que se condensa em uma formulação digna de Tristram Shandy ao afirmar que a vida “[...]talvez não seja suscetível ao tratamento que lhe damos quando tentamos contá-la” ( Woolf 2021 Woolf, V. As ondas. Tradução Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica: 2021.: 209).
Tais obras são a culminância de projetos estéticos longamente desenvolvidos, o que é típico de autores modernistas, e há, de fato, uma ressonância importante da leitura de Sterne na obra de tais autores. O mesmo se passa na obra de Thomas Mann, apesar de seu experimentalismo não ser tão extremo como em Proust, Woolf ou Joyce. O leitor que comparar Os Buddenbrook (1901) ao Doutor Fausto o perceberá com facilidade: enquanto aquele faz pensar no realismo de Fontane, este remete a Sterne e, para citar um conterrâneo, às Reflexões do gato Murr (1819) de E. T. A. Hoffmann 10 10 O livro de Hoffmann lembra o Doutor Fausto por relatar a história de um compositor, Johannes Kreisler, e por trazer comentários metaficcionais e uma alternância entre vozes narrativas, uma vez que a autobiografia do compositor se reveza com os escritos autobiográficos de seu gato Murr. Foi, inclusive, uma das leituras de Mann enquanto escrevia o Doutor Fausto. Também há em Murr referências claras a Sterne: além da citação à Viagem sentimental dentro do livro, o título do romance no original, Lebensansichten des Katers Murr, se assemelha muito a The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman. A edição para o inglês de Anthea Bell conservou a referência a Sterne no título ao traduzi-lo por The Life and Opinions of Tomcat Murr. . Depois do primeiro romance, é como se Mann já anunciasse uma caminhada estilística que se distancia cada vez mais do modelo dos clássicos realistas do século anterior. A montanha mágica, por exemplo, poderia ser entendida como uma espécie de meio do caminho entre esses dois pontos pois, ao mesmo tempo em que traz um ar ainda tradicional de uma narração objetiva, com uma onisciência parcial ligada a Hans Castorp, já carrega algo da ironia evidenciada por Adorno e tem trechos que inevitavelmente lembram o Tristram Shandy, como o seguinte diálogo com o leitor, o qual culmina em uma reflexão sobre o tempo na narrativa:
Mynheer Peeperkorn residiu no Sanatório Berghof durante todo esse inverno – quer dizer, durante os meses que ainda restavam dele – e uma parte da primavera, de modo que por último pôde-se realizar uma notável excursão em grupo (também Naphta e Settembrini tomaram parte) ao vale de Flüela e à cascata que lá existe... Por último? Quer dizer que não ficou mais tempo? – Não, não ficou mais tempo. – Partiu então? – Sim e não. – Sim e não? Nada de mistérios, por favor. É preciso resignar-se. O tenente Ziemssen também faleceu, sem falar de muitas outras pessoas menos honradas que entraram na dança da morte. De maneira que o confuso Peeperkorn morreu daquela febre tropical maligna? – Não, não foi assim. Mas por que tanta impaciência? Deve-se respeitar a condição da vida e da narrativa, segundo a qual as coisas não podem acontecer todas ao mesmo tempo
( Mann 2016 Mann, T. A montanha mágica. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.: 661).
O narrador da Montanha mágica, sobre o qual não sabemos nada além de suas reiteradas afirmações sobre ser do mundo “lá de cima”, também se parece com Shandy quando fala sobre seu estado enquanto narra, revelando-se como instância narrativa ao leitor e comentando a construção da obra de forma metaficcional:
Ao enunciarmos isso, mudamos a expressão do nosso rosto e assinalamos que, se nos ocorreu até agora falar das relações em apreço num tom leve e chistoso, fizemo-lo pelos mesmos motivos secretos que frequentemente prevalecem, sem que isso enuncie coisa alguma acerca da natureza leve ou chistosa do próprio assunto. No ambiente onde nos encontramos, esse tom seria, de fato, ainda menos indicado do que em outra parte
( Mann 2016 Mann, T. A montanha mágica. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.: 274).
Os exemplos citados podem ser vistos como o início de um estilo que se radicalizaria no Doutor Fausto. Em todo esse percurso de mudanças, entretanto, é importante lembrar que Mann nunca rumou para o caminho vanguardista nem abdicou da forma do romance e de uma literatura “[...]‘burguesa’, pois não haveria outra – capaz de explicitar no interior de suas próprias obras os problemas formais e históricos que a afetavam” ( Almeida 2015 Almeida, J. Dialética humanista em tempos sombrios. In: MANN, Thomas. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 601). Contudo, para explicitar tais problemas, contar apenas com a forma tradicional do romance não seria suficiente, e é então que Sterne entra mais uma vez como referência incontornável.
Encarar o romance de Sterne como uma obra meramente cômica, ou encontrar em sua complexidade um jogo intrincado e autorreferencial que diz respeito apenas a si mesmo seria muito pouco. Como dito anteriormente, ela também é uma obra que abarca assuntos sensíveis e importantes, na qual “[...]artifice and artificer collapse into vulnerable man trying to add something to his Fragment of Life” ( Alter 1975 Alter, R. Partial Magic: The Novel as a Self-Conscious Genre. Berkeley and Los Angeles: University California Press, 1975.: 43). Evidentemente não seria possível classificar o Doutor Fausto como essencialmente cômico nem dizer que Zeitblom tem um apego como o de Tristram aos mínimos detalhes, mas poderíamos dizer que Zeitblom, em sua escrivaninha, está igualmente trabalhando artifícios narrativos para acrescentar algo ao fragmento de vida de seu amigo (e, consequentemente, ao seu próprio). Ele enfrenta e expõe questões tipicamente shandeanas e, em trechos como o seguinte, também pede ajuda a poderes superiores para conseguir organizar algo que lhe parece tão intrincado como o ato de narrar:
Ao relatar esse acontecimento, tenho a impressão de dever invocar Apolo e as Musas, para que me insuflem as palavras mais puras, mais delicadas: delicadas para com o leitor sensível, delicadas para com a memória de meu saudoso amigo, delicadas, finalmente, para comigo mesmo, sobre o qual a incumbência de tal relato pesa como uma grave confissão pessoal. Mas a direção que eu queria imprimir à dita invocação mostra-me nitidamente a antinomia entre a minha própria condição espiritual e a cor peculiar dessa história que me cabe narrar, a cor que provém de bem outras camadas da tradição, totalmente alheias à serenidade da cultura clássica
( Mann 2015 Mann, T. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 180).
A invocação no Doutor Fausto, diferentemente da de Tristram, aparece já com a plena impossibilidade de sua realização. O elemento clássico, típico de um humanista como Zeitblom, se contradiz com o material que ele quer narrar. O estranhamento diante do elemento clássico atinge Zeitblom até em seu estilo: a ausência da serenidade épica faz com que ele se desconcerte nos momentos de antecipação, diferentemente do que ocorre em textos clássicos como epopeias homéricas e, para citar um exemplo tipicamente germânico, na Canção dos Nibelungos. No início deste último, por exemplo, o leitor já fica sabendo que Kriemhild irá se casar com Siegfried e que ela “[...]haveria de vingar-se de seus próprios familiares, que mais tarde o matariam! Por uma única morte, morreram os filhos de muitas mães” ( Canção dos Nibelungos 1993 Canção dos Nibelungos. Anônimo. Tradução Luís Krauss. São Paulo: Martins Fontes, 1993.: 11). A informação é dada com uma tranquilidade impensável para Serenus, que sempre se recrimina diante do leitor quando se antecipa.
A inocuidade do apelo de Zeitblom às Musas acarreta outro apontamento importante: se tanto o Doutor Fausto quanto o Tristram Shandy trabalham metaficcionalmente os artifícios narrativos do romance como parte integral da própria narrativa – o que faria deles, segundo Robert Alter, self-conscious novels 11 11 Segundo Alter, “[…] a novel that systematically flaunts its own condition or artifice and that by so doing probes into the problematic relationship between real-seeming artifice and reality” ( Alter 1975 : xi). – é sobretudo na obra de Mann que os elementos estruturais são o reflexo de uma crise que se instalou historicamente. Por isso, quando Zeitblom se interrompe, se antecipa e pensa sobre as dificuldades de seu trabalho, ele não está apenas lidando com o questionamento de como narrar uma vida. Ele situa a dúvida em um momento histórico e parece perguntar: diante dos horrores do nazismo e da guerra, como, leitor, é possível contar a vida de Adrian? Como é possível narrar qualquer coisa diante do horror que deixaria qualquer um sem palavras? A resposta passa novamente por Adorno: a tentativa de narrar todos os eventos como se o mundo de antes fosse possível acabaria apenas em “[...]um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, apenas auxilia na produção do engodo” ( Adorno 2012 Adorno, T. “Posição do narrador no romance contemporâneo.” In: Notas de Literatura I. Tradução e apresentação Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012, 55-63.: 58). E a incompatibilidade não reside apenas no elemento clássico, mas também na forma estabelecida do romance. A história de Adrian e a história da Alemanha, diante de suas implicações políticas, não poderiam ser contadas nem com a serenidade clássica dos antigos nem com a objetividade distanciada dos clássicos realistas do século anterior. A fragmentação do indivíduo e da sociedade gerada por uma segunda guerra ainda mais violenta e pelos morticínios não se coaduna com um narrador controlado, que tudo sabe, tudo ouve, tudo vê. Portanto, diante do horror que Zeitblom se propõe a narrar, o romance só é possível se for configurado como reflexo da crise que procura representar, tanto na forma quanto no conteúdo.
Uma crise já estabelecida em Sterne, portanto, é agora utilizada como maneira de evidenciar uma crise histórica, política, filosófica, cultural e representacional (logo, artística e literária). Justamente por se distanciar da obra e criar um narrador como Zeitblom, Mann consegue tratar a crise de forma dialética e fazer de sua obra não apenas uma experimentação formal, mas igualmente uma reflexão do papel da arte e do artista na sociedade. Por um lado, essa crise da época aparece nas questões artísticas concernentes à música de Adrian, parte central da narração de Zeitblom. Ao mencioná-las, ele rememora uma série de diálogos com o compositor, o qual associa a crise da arte às questões sociais do tempo presente. Na confissão precedente à sua derrocada final, Leverkühn sintetiza a questão:
[E]sta é a época em que já não é possível realizar uma obra de modo piedoso, correto, com recursos decentes. A arte deixou de ser exequível sem a ajuda do Diabo e sem fogos infernais sob a panela... Sim, sim, meus caros companheiros, certamente cabe aos nossos tempos a culpa de que a arte estagna, que se tornou por demais difícil e zomba de si mesma, que tudo se tornou por demais difícil e a pobre criatura de Deus já não percebe nenhuma saída de sua miséria
( Mann 2015 Mann, T. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 579).
Eis o dilema central da música de Adrian. Como as composições mais tradicionais não lhe parecem suficientes, ele as emprega por meio da parodia e da ironia, usa elementos tradicionais apenas para submetê-los a um tratamento e manipulação não convencionais – uma forma de evidenciar sua inadequação para representar os dilemas do momento presente por meio da arte. Já está anunciado aí seu desejo pelo rompimento, pela resposta à pergunta: “como se rompe o casulo, para vir a ser borboleta?” ( Mann 2015 Mann, T. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 357). Para tanto, ele questiona a harmonia clássica e propõe uma dissonância objetiva e rígida, baseada em um sistema hierárquico de notas – ideia retirada da dodecafonia de Schönberg.
Como o próprio Adrian anuncia, a realização plena de seus objetivos artísticos só seria possível por meio de um pacto com o Demônio. É por meio deste que Adrian ruma para uma resposta, para uma obra vanguardista que se distancia da parodia rumo a uma forma própria. A necessidade de um pacto para conseguir compor o que deseja é, em muitos sentidos, uma solução que lembra a encontrada pelos nazistas: diante das dificuldades da época, rumar para uma ruptura violenta. Tal semelhança é percebida e apontada pelo próprio Serenus, que compara o caminho artístico do amigo às conversas protofascistas do círculo Kridwiss, nas quais, como nas composições de Adrian, “[...]as ideias vanguardistas se confundem com as reacionárias” ( Mann 2015 Mann, T. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 329). A obra do amigo teria um espírito e uma mentalidade
[...] que estavam inteiramente de acordo com as opiniões desdenhosas que meus interlocutores na Martiusstrasse haviam proferido com relação à situação do indivíduo e de qualquer individualismo neste mundo; mentalidade, acho eu, que já não tinha nenhum interesse no lado psicológico e apenas visava ao objetivo, tendia para um linguajar que expressasse o absoluto, o obrigatório, o coercitivo, e, portanto, se impunha preferencialmente às piedosas peias das rígidas formas pré-clássicas. Quantas vezes, ao contemplar atentamente as atividades de Adrian, não me recordava do que nos inculcara muito cedo, na nossa infância, aquele gago loquaz, professor de Leverkühn, quanto à oposição entre “subjetividade harmônica” e a “objetividade polifônica”! O caminho ao redor da esfera, do qual se falara das conversas penosamente sutis do lar do Kridwiss, esse caminho no qual se confundiam retrocesso e progresso, o antigo e o novo, passado e futuro – aqui ele aparecia diante de mim, realizado mediante um recuo inovador, mais além da arte já harmônica de Bach e Händel, até o passado mais remoto da genuína polifonia
( Mann 2015 Mann, T. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 431, o itálico é nosso).
A maneira como Adrian procura resolver a crise da cultura em sua época permite estabelecer mais uma ligação entre a música de Adrian e a história da Alemanha. Não por acaso, a Lamentação do Doutor Fausto, o projeto máximo de Adrian que é uma espécie de revogação da Nona Sinfonia, pode ser entendido como tão tipicamente alemão quanto a própria composição de Beethoven, mas ex negativo. A possibilidade de realizá-lo por meio de um pacto fáustico evidencia as contradições históricas de uma nação que deu ao mundo Goethe e Schiller, Hitler e Goebbels. Nesse sentido, ao falar sobre o regime nazista, Zeitblom aponta igualmente para essa dubiedade ao dizer que um patriotismo “[...]que ousasse afirmar que esse regime tenha sido algo totalmente alheio à natureza de nosso povo, imposto a ela, desprovido de raízes em seu íntimo, me pareceria mais magnânimo do que consciencioso” ( Mann 2015 Mann, T. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 559).
A crise da cultura e a duplicidade alemã, contudo, não se limitam à figura de Adrian. Elas passam igualmente pela figura de Zeitblom. Se Adrian vê nas formas tradicionais de composição uma inadequação para representar artisticamente a época de crise em que vive, Zeitblom também não poderia consegui-lo em termos narrativos. Como já foi salientado, sua figura aponta para a crise de uma cultura humanista que não pode mais pedir ajuda às Musas e que, “[...]marcada pelos valores universais – na arte, na filosofia e na música – havia cedido lugar a um nacionalismo bárbaro e racista” ( Almeida 2015 Almeida, J. Dialética humanista em tempos sombrios. In: MANN, Thomas. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 599). Zeitblom também representa a crise da cultura burguesa e do gênero que lhe é mais representativo: o romance. Por isso há uma tensão constante entre a linguagem e os valores típicos de um humanista burguês (a maneira como Serenus quer narrar) e a atitude possível frente ao tema narrado (o modo como Serenus consegue narrar). Serenus percebe sua inadequação e a irrupção de suas emoções, o que causa desconforto e descamba para o comentário metaficcional e a autocensura diante do leitor. Por meios narrativos, o que vemos não é um humanista seguro de seus valores – algo que ainda era possível na Montanha mágica na figura de Settembrini, mesmo que como prenúncio de uma decadência inevitável –, mas um humanista já reconhecendo a falibilidade de suas referências e a insuficiência dos meios que tem para relatar a loucura do pacto de Adrian e de sua nação. Ao fazê-lo, Mann aponta para o fato de que a forma tradicional do romance não é mais adequada diante das novas forças políticas e horrores de seu tempo. Isso é igualmente verdade para os valores mais tradicionais da burguesia, o que se reflete na culpa de Serenus, na incapacidade de se impor no círculo Kridwiss e de narrar o pacto do amigo com as próprias palavras.
Diante da crise da cultura, a saída de Zeitblom é diametralmente oposta à do amigo. Ela passa inevitavelmente pela confusão, pela emoção, pela crise. Ele cede à subjetividade para falar de seus sentimentos e proporcionar uma interpretação pessoal da complexa história de seu país. Sua narração pessoal é uma maneira de abordar aspectos múltiplos da realidade política e dos sentimentos conflituosos que alemães como Mann sentiam pelo próprio país – uma complexidade digna de um Tristram Shandy lidando com os infinitos detalhes que giram em torno de uma única vida. Dessa forma, fica cada vez mais claro para o leitor que o sentimento complexo e dúbio em relação à pátria é o sentimento que ele carrega pelo amigo pactário. Ele é a pessoa que “[...]almeja a derrota clara, constante e conscientemente, porém sob ininterruptos tormentos de consciência” ( Mann 2015 Mann, T. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 42); é a pessoa que reconhece o horror do pacto do amigo ao mesmo tempo em que tem que admitir que “[...]aqueles argumentos cínicos, aqueles escárnios, aquelas trampolinices tenham brotado da própria alma do acossado” ( Ibidem: 260). Ao construir uma figura tão complexa como narrador, Mann não apenas torna a construção narrativa complexa, ele dá a complexidade que a questão política e a crise representacional merecem, e o resultado é tão complexo como a própria obra: “no single view of the reality presented in the novel is forced on he reader, who can interpret he himself the symphony of perception” ( Rushing 1982 Rushing, J. Zeitblom as Contrapuntist: The function of the Narrator in Thomas Mann’s Doktor Faustus. A Thesis in German. Graduate Faculty of Texas Tech University, 1982.: 64).
Romances metaficcionais incomodam alguns leitores por tirá-los do lugar de conforto e da impressão de ilusão muitas vezes atribuídos à ficção. Eles não permitem a leitura de um romance sem a reflexão sobre seu caráter de invenção e chamam atenção para sua própria ficcionalidade, para os mecanismos utilizados em sua composição. A partir daí, toda história deixa de ser apenas uma história: o leitor pode ver seu esqueleto e precisa refletir sobre as escolhas feitas para que a história seja contada como é. Isso pode ser entendido como entrave para a diversão, mas também pode ser o oposto. A diversão pode estar justamente em dar um passo para trás e atentar para a estrutura narrativa de um livro enquanto ele é narrado. E se um romance se propõe a descrever um pouco da vida enquanto ela está acontecendo, então um romance metaficcional pode servir igualmente como outra forma de entender a própria vida. Se aproximarmos a existência de uma narrativa (ou seja, se a encararmos distanciadamente, quase que metaficcionalmente), podemos ponderar as razões pelas quais tomamos determinadas escolhas ao invés de outras, por que adotamos certa linguagem ao relatar fatos e por que elegemos alguns acontecimentos como mais ou menos importantes dentro da história que escrevemos para nós mesmos.
Se há uma semelhança entre o Tristram Shandy e o Doutor Fausto é justamente essa atitude em dar um passo para trás e encarar a complexidade de uma história e suas questões naquilo que as constitui estruturalmente. Ao eleger uma forma autorreferencial que toca na crise do romance, portanto, Mann lança um olhar distanciado e indagador sobre mecanismos narrativos e sociais, e, por meio da figura de Zeitblom, para outra questão central: como o humanismo mais clássico, cuja filosofia remete ao iluminismo e à democracia, acabou sendo insuficiente como resistência diante do horror que se desenrolava na Alemanha.
4 Conclusão
Em Humano, demasiado humano (1878), Nietzsche, como Thomas Mann o faria anos depois em sua palestra sobre José e seus irmãos, aproxima os nomes de Goethe e Sterne. Em sua grande admiração para com o irlandês, ele diz:
Como poderia, num livro para espíritos livres, não ser mencionado o nome de Laurence Sterne, que Goethe festejou como o mais livre espírito de seu século? Que ele se satisfaça com a honra de ser aqui chamado de o escritor mais livre de todos os tempos, em relação ao qual todos os demais parecem rígidos, atarracados, intolerantes e francamente rústicos. Nele não se deve celebrar a melodia fechada, clara, mas a “melodia infinita”: se com esse termo se designar um estilo de arte em que a forma determinada é continuamente quebrada, adiada, retraduzida de volta ao indeterminado, de forma a significar uma coisa e ao mesmo tempo outra
( Nietzsche 2008 Nietzsche, F. Humano, demasiado humano: Um livro para espíritos livres, volume II. Tradução, notas e prefácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.: 49).
As palavras de Nietzsche sobre a melodia infinita e a quebra da forma em Sterne lembram ainda um outro livro, um romance alemão do século XX que, coincidentemente, teria como base a biografia do filósofo: o Doutor Fausto. Nosso objetivo foi identificar importantes semelhanças estruturais entre esses dois romances tão originais e que, para utilizar a expressão de José Paulo Paes, têm horror à linha reta.
Como procuramos demonstrar, a relação entre o Tristram Shandy e o Doutor Fausto vai muito além da referência explícita a Sterne por parte de Zeitblom. Há uma importante semelhança estrutural entre os dois romances, e isso se comprova primeiramente pelo elemento temporal. Ambos os romances giram em torno da tarefa de contar uma vida (Zeitblom a do amigo, e Tristram a própria biografia), mas as narrações não acontecem de forma linear e transitam frequentemente entre o tempo da narrativa e o tempo da narração. Os narradores não conseguem evitar a expressão de seus pensamentos no momento da narração, os quais geralmente tratam de uma grande emoção ou das dúvidas sobre o andamento do que está sendo escrito. Assim, as dúvidas sobre como escrever a respeito de assuntos que envolvem sentimento e pesar descambam em muitos dos comentários metaficcionais e questões sobre como dispor a matéria narrada, qual linguagem deve ser usada, etc. Contudo, enquanto no Tristram Shandy os comentários metaficcionais progressivamente tomam conta da narrativa e a ideia da autobiografia não se concretiza, Zeitblom consegue contar a biografia do amigo do começo ao fim. Apesar da diferença, entretanto, em ambos os casos os comentários metaficcionais quebram a suspensão causada pela ficção e chamam a atenção do leitor para o fato de que ele está lendo uma obra ficcional.
Os comentários metaficcionais que aparecem através da alternância de tempos trazem outra questão crucial para a comparação: tanto o livro de Sterne quanto o de Mann pensam a forma do romance na medida em que trazem a discussão da escrita como parte integrante do próprio enredo. Por mais que Tristram e Zeitblom rejeitem o título de romancistas, Sterne e Mann escreveram romances e elegeram propositadamente como narradores figuras digressivas, de forma que seus livros são obras essencialmente metaficcionais.
É importante ressaltar ainda que a distância temporal entre os dois autores gera uma diferença em como trabalharam a forma do romance. No caso de Laurence Sterne, o romance moderno estava ainda em seu momento de ascensão e passava por uma série de experimentações. Apesar de o Tristram Shandy ser comumente considerado um romance, o termo novel ainda era incipiente e dizia respeito a uma nova forma que surgia na vida burguesa da Inglaterra do século XVIII. Nesse sentido, Sterne não está debatendo a crise de todo um gênero dentro da própria obra, mas sim as tendências narrativas da época e suas limitações como forma de representar a vida e a realidade. No caso de Mann, temos um autor que iniciou sua carreira quando o romance já era um gênero estabelecido, escrevendo seu primeiro romance como algo próximo ao realismo do século XIX. Quando o alemão retoma o projeto fáustico que estava parado desde 1901, muita coisa havia se alterado no mundo e na forma de representá-lo. Depois de duas guerras mundiais, o romance passava por uma verdadeira crise à medida em que se evidenciava a irremediável inadequação de seus mecanismos tradicionais para descrever o mundo fragmentado e arrasado do pós-guerra. Thomas Mann está ciente dessa questão e a traz à tona quando fala sobre a concepção do Doutor Fausto:
“As his subject-matter reveals the decomposition of the middle class”, escreve Levin, “Joyce’s technique passes beyond the limits of realistic fiction. Neither the Portrait of the artist nor Finnegan’s Wake is a novel, strictly speaking, and Ulysses is a novel to end all novels”. Isso se aplica também à Montanha mágica, ao José e ao Doutor Fausto, e a questão de T. S. Eliot “weather the novel had not outlived its function since Flaubert and James, and weather Ulysses should not be considered an epic” coincidia plenamente com minha própria questão: não parece que, no âmbito do romance, hoje só é levado em consideração aquilo que não é mais romance?”
( Mann 2001 Mann, T. A gênese do Doutor Fausto: romance sobre um romance. São Paulo: Mandarim, 2001.: 76).
Se A montanha mágica já indica uma reflexão sobre o romance por parte de seu autor, no Doutor Fausto a crise está aprofundada e o debate é mais explícito porque, como em Sterne, ele é o próprio assunto da obra, evidenciado através da figura do narrador e de seus comentários metaficcionais.
Por fim, poderíamos dizer que os dois romances aqui analisados, ao problematizarem os limites da representação literária, fornecem uma visão especialmente complexa da vida e da realidade. Em Sterne, isso se configura nos questionamentos sobre como retratar a vida em sua totalidade – o que leva ao excesso de detalhes e à incompletude da autobiografia de Tristram. Em Mann, tanto a configuração temporal como a complexidade na representação remetem à estrutura shandeana, mas agora trazem uma função política primordial. Por meio da alternância entre tempo da narrativa e tempo da narração, Zeitblom estabelece uma relação direta entre passado e presente, entre a biografia de Adrian e a história alemã, entre a teoria musical do amigo e o desenvolvimento de ideias políticas. Em ambos os casos, o fim é a tragédia resultante de pactos funestos. Para estabelecer esse paralelo, o pacto de Adrian é apresentado subjetivamente, podendo indicar, para horror de Serenus, que todos os horrores ditos e acordados sejam fruto da alma de Adrian, e não de um ser maligno externo e palpável. A ambiguidade do pacto possui igualmente uma função política: uma vez que o horror do pacto pode se encontrar na alma do pactário, o horror do pacto político com o Nazismo pode atingir Serenus, que se sente culpado por sua inação diante de ideias protofascistas e tem sentimentos ambíguos por sua pátria. Tudo leva à representação complexa não apenas de uma vida e dos modos de representá-la literariamente, mas também da realidade política alemã e da questão da culpa que envolveu a nação depois da derrota na Segunda Guerra Mundial.
A conclusão da análise aqui realizada é que há uma estrutura narrativa muito semelhante entre o Tristram Shandy e o Doutor Fausto, e que Mann pode ter encontrado, na obra de Sterne, soluções narrativas para contar a tragédia de seu país através de uma forma que dialogasse diretamente com as questões de seu tempo. Assim, a alternância temporal entre tempo da narrativa e tempo da narração, os comentários metaficcionais e uma representação complexa da realidade foram usadas por Sterne para pensar o gênero em ascensão no século XVIII, e foram igualmente úteis para Mann quando, tendo que pensar sobre o gênero agora em crise, fez da crise representacional espelho de uma crise social ainda mais profunda – crise que a literatura não poderia resolver, mas que poderia colocar as perguntas certas para ajudar a superá-la.
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Universidade de São Paulo, Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, Av. Prof. Luciano Gualberto, 403, Cidade Universitária, São Paulo, SP, 05508-010, Brasil. E-mail: luisa.coquemala@outlook.com. ORCID: 0000-0002-6608-2761.
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A passagem mencionada está no vigésimo capítulo do primeiro volume. O narrador-personagem se dirige à leitora da seguinte forma: “———— Como pôde a senhora mostrar-se tão desatenta ao ler o último capítulo? Nele eu vos disse que minha mãe não era uma papista. — Papista! O senhor absolutamente não me disse isso. Senhora, peço-vos licença para repetir outra vez que vos disse tal coisa tão claramente quanto as palavras, por inferência direta, o poderiam dizer. — Então, senhor, devo ter pulado a página. — Não, senhora — não perdestes uma só palavra. — Então devo ter pegado no sono, senhor. — Meu orgulho, senhora, não vos permite semelhante refúgio. — Então declaro que nada sei do assunto. — Essa, senhora, é exatamente a falta de que vos acuso; e, à guisa de punição por ela, insisto em que volteis imediatamente atrás, isto é, tão logo chegueis ao próximo ponto final, leiais o capítulo todo novamente ( Sterne 1984 Sterne, L. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Prefácio e tradução de José Paulo Paes. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1984.: 94)
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Tomemos os seguintes exemplos como ilustração: “O que escrevo não é nenhum romance, em cuja composição o autor tente revelar ao leitor os corações dos personagens indiretamente, colocando-os em cena. Como biógrafo que sou, tenho pleno direito de chamar as coisas claramente pelo nome e constatar sem rodeios fatos psicológicos que influíram sobre os acontecimentos da vida que me cabe apresentar.” ( Mann 2015 Mann, T. Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 342, o itálico é nosso). “Não vou completar esta sentença antes de fazer uma observação a respeito do estranho estado de coisas entre mim e os leitores, tal como as ditas coisas ora estão – observação aplicável a nenhum autor biográfico que tenha existido desde o começo do mundo que não seja eu próprio.” ( Sterne 1984 Sterne, L. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Prefácio e tradução de José Paulo Paes. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1984.: 294, o itálico é nosso).
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Em inglês fica mais evidente a ideia de novidade implícita no termo novel (romance) em contraste com romance (romanesco). Watt elenca uma série de diferenças entre os dois tipos narrativos. Se, por um lado, o romanesco é menos apegado à causalidade e à verossimilhança – seja pelas coincidências extremas ou por elementos fantásticos que podem aparecer –, o romance moderno procura criar uma imagem circunstancial da vida ao utilizar um conjunto de técnicas narrativas que o teórico denominou realismo formal. Dentre elas, podemos citar a especificidade de tempo e espaço, a individualização dos personagens, a causalidade e o uso da linguagem referencial. O realismo formal, para Watt, é uma maneira possível de representação da realidade, é o denominador comum do romance e seu caráter distintivo em relação a outros gêneros literários.
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Para os fins deste artigo, exploraremos apenas as questões temporais relativas aos dois níveis narrativos (o tempo da narração e o tempo da narrativa), mas é importante ter em mente que o Tristram Shandy traz ainda uma série de outras experimentações importantes com o elemento temporal. Entre elas, poderíamos destacar a tentativa frustrada de correspondência exata entre o tempo narrado e o tempo do relógio (de modo que a narração de um dia de sua vida deveria durar exatamente 24 horas de leitura) e o congelamento do tempo, utilizado para que o narrador possa suspender uma determinada cena enquanto seus pensamentos o levam a outro lugar. Sérgio Paulo Rouanet, ao analisar o romance de Sterne em Riso e melancolia (2007), nomeou esse último artifício como “efeito Bela Adormecida”. Dois exemplos seriam o momento em que Walter e Toby estão descendo as escadas e Tristram “congela” a cena no momento da descida e quando a mãe de Tristram é deixada inclinada na fechadura da porta, tentando ouvir o que se dizia dentro da sala.
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É importante ressaltar que o romance de Sterne também possui importantes menções à história política da Irlanda. Segundo Clare ( 2016Clare, David. “Under-regarded Roots: The Irish References in Sterne’s 'Tristram Shandy'.” The Irish Review (Cork). No. 52 (Summer 2016), pp. 15-26.), alguns desses elementos são a canção Lillabullero, reiteradamente assoviada pelo tio Toby e símbolo da querela entre protestantes e católicos no país; o cerco de Limerick e as atrocidades ali perpetradas contra os irlandeses; e a presença de personagens irlandeses, como Bridget e Trim. As referências presentes no romance são importantes pois reforçam a identidade híbrida de Sterne – o qual nasceu na Irlanda, mas logo cedo foi para a Inglaterra – ao mesmo tempo em que se relacionam “[...]to issues of great importance to the Irish Anglican subculture within which Sterne was partially raised” ( Clare 2016 Clare, David. “Under-regarded Roots: The Irish References in Sterne’s 'Tristram Shandy'.” The Irish Review (Cork). No. 52 (Summer 2016), pp. 15-26.: 15). Naturalmente, o levantamento de tais questões na narrativa suscita uma discussão a respeito de questões históricas (como, por exemplo, a dominação inglesa sobre a Irlanda) e gera o questionamento sobre a relação entre forma e história política no Tristram Shandy, como, por exemplo, em que medida as experimentações de Sterne não poderiam evidenciar a insuficiência das mobilizações narrativas inglesas para lidar com questões de áreas periféricas (da Irlanda ou do Norte da Inglaterra, onde Sterne era pároco), que possuem o que Clare classifica como uma subcultura. Contudo, a maneira como a história política aparece no Tristram Shandy não deixa de diferir do Doutor Fausto, onde o elemento político dita toda a estrutura do livro e transforma os diferentes níveis narrativos em simbolismo para uma interpretação específica da história da Alemanha.
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O “tom fáustico” não diz respeito apenas ao momento do pacto fáustico, mas também à constante menção do elemento fáustico, o que cria a sensação de que há uma presença diabólica e pactária ao longo de toda a narrativa. Não por acaso, logo no primeiro capítulo do romance Serenus já faz menção ao Diabo e à ideia de pacto, o que é retomado o tempo todo, apesar de o pacto só ser narrado em um momento posterior. Além disso, os elementos mencionados ao longo da narrativa são marcados por seu caráter fáustico: Zeitblom, no início da narração, se lembra de um livro ilustrado, no qual são descritas borboletas da América do Sul. O narrador se detém especificamente em um tipo de borboleta, a Haeterea Esmeralda, remetendo ao nome da prostituta Esmeralda, que, ao infectar Adrian com sífilis, completa o pacto. Algo semelhante acontece, por exemplo, no Grande Sertão: Veredas, quando, ainda no início do monólogo, Riobaldo se questiona sobre a existência do Diabo e, consequentemente, sobre a possibilidade de um pacto ser firmado com ele – um questionamento que cria a atmosfera e dita o tom de toda a narrativa.
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É verdade que o acordo com o Diabo também aparece como inserção integral de um documento na Historia do Doutor Johann Fausto, de 1587, uma das principais fontes de Mann para escrever seu romance. Contudo, apenas no Tristram Shandy e no Doutor Fausto tal inserção tem a função de gerar reflexões metaficcionais e sobre qual seria o papel de tais documentos como escolhas narrativas.
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A importância de Adorno para a composição do Doutor Fausto fica evidente em relatos como o seguinte: “Passemos a falar da cantata, para a qual tivera algumas ideias o ‘real secreto conselheiro’, conforme chamei Adorno ao dedicar-lhe um exemplar do livro impresso. E mesmo assim sou tentado a dizer que sua maior contribuição ao capítulo não foi no âmbito da música, mas no da linguagem e suas nuanças, na forma com que, ao final, envolvem elementos teológicos, religiosos, morais. Após quinze dias de trabalho, quando acabei, ou julguei ter acabado a parte, certa noite fiz uma leitura para ele em meu gabinete. Ele nada opôs ao aspecto musical, mas demonstrou preocupação com as quarenta linhas finais, que falam de esperança e misericórdia após as trevas. Eram simplesmente ruins, bem diferente do resultado final, agora publicado. Eu tinha sido otimista em excesso, bondoso e direto, tinha acendido muita luz, exagerado na consolação, e tive de reconhecer como justas as restrições do crítico. Na manhã seguinte, dediquei-me à revisão escrupulosa das quase duas páginas, dando-lhes a forma circunspecta que agora têm. (...) Algumas semanas depois, novamente visitando Adorno, li para ele a parte modificada e perguntei-lhe se agora estava bom. Em vez de responder, chamou a esposa, dizendo que ela precisava ouvir aquilo. Voltei a ler duas folhas, olhei para eles – e não precisei perguntar mais nada” ( Mann 2001 Mann, T. A gênese do Doutor Fausto: romance sobre um romance. São Paulo: Mandarim, 2001.: 172-3).
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O livro de Hoffmann lembra o Doutor Fausto por relatar a história de um compositor, Johannes Kreisler, e por trazer comentários metaficcionais e uma alternância entre vozes narrativas, uma vez que a autobiografia do compositor se reveza com os escritos autobiográficos de seu gato Murr. Foi, inclusive, uma das leituras de Mann enquanto escrevia o Doutor Fausto. Também há em Murr referências claras a Sterne: além da citação à Viagem sentimental dentro do livro, o título do romance no original, Lebensansichten des Katers Murr, se assemelha muito a The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman. A edição para o inglês de Anthea Bell conservou a referência a Sterne no título ao traduzi-lo por The Life and Opinions of Tomcat Murr.
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Segundo Alter, “[…] a novel that systematically flaunts its own condition or artifice and that by so doing probes into the problematic relationship between real-seeming artifice and reality” ( Alter 1975 Alter, R. Partial Magic: The Novel as a Self-Conscious Genre. Berkeley and Los Angeles: University California Press, 1975.: xi).
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Dez 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2024
Histórico
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Recebido
19 Jun 2023 -
Aceito
24 Set 2023