Resumo
O presente artigo discute o agenciamento do corpo na modernidade reflexiva com base na teoria do sociólogo britânico Anthony Giddens. Orienta essa estruturação a articulação entre os conceitos de autoidentidade e reflexividade desenvolvidos em obras do referido autor. As reflexões oriundas da análise teórica levam a compreender o processo de construção e sustentação da “narrativa biográfica do eu” como um projeto relacional à reflexividade do corpo e que tem por objetivo maior oferecer e ampliar a margem de segurança ontológica aos agentes no contexto da modernidade tardia.
Palavras chave: Corpo humano; Sociologia; Educação Física
Abstract
This article discusses body assemblage in reflexive modernity based on the theory of British sociologist Anthony Giddens. It is guided by interconnection between the concepts of self-identity and reflexivity developed in the author’s works. The reflections resulting from the theoretical analysis lead us to understand the process of building and sustaining the “biographical narrative of the self” as a project related to body reflexivity and aimed at offering and extending agents’ margin of ontological security in the context of late modernity.
Keywords: Human Body; Sociology; Physical Education
Resumen
El presente artículo discute el agenciamiento del cuerpo en la modernidad reflexiva con base en la teoría del sociólogo británico Anthony Giddens. Esta estructuración es orientada por la articulación entre los conceptos de autoidentidad y reflexividad desarrollados en obras del autor. Las reflexiones oriundas del análisis teórico llevan a comprender el proceso de construcción y sustentación de la “narrativa biográfica del yo” como un proyecto relacional a la reflexividad del cuerpo y que tiene por objetivo mayor ofrecer y ampliar el margen de seguridad ontológica a los agentes en el contexto de la modernidad tardía..
Palabras clave: Cuerpo Humano; Sociología; Educación Física
1 INTRODUÇÃO
O debate epistemológico acerca do estatuto do corpo na contemporaneidade é intenso e está documentado em quadros de teorização geral da sociedade (BOURDIEU, 2008, 2009; GIDDENS, 1991, 1994, 2002; FOUCAULT, 1987, 2007, 2009), fornecendo uma série de subsídios teóricos que impactaram não só nos esforços de construção de uma Sociologia do Corpo (LE BRETON, 2003, 2004, 2010; TURNER, 1995, 1996, SHILLING, 1993; 1997) mas também nas agendas investigativas sobre esporte (SILK; FRANCOMBE; ANDREWS, 2014; McDONALD, 2007), gênero (EVERS; GERMAN, 2017; COFFEY, 2017; PAVLIDIS; FULLAGAR, 2015), cultura física (HARGREAVES; VERTINSKY, 2007; GIARDINA; NEWMAN, 2011), arte (FITZPATRIC, 2017) e saúde (DE PIAN, 2012; WRIGHT; BURROWS; RICH, 2012; GARD, 2017). Ademais, tais produções sinalizam para esforços intelectuais adensados no sentido de ampliação dos horizontes de entendimento sobre o corpo, afinal, como observa Ferreira (2013, p. 496): “[...] o corpo tem deixado de ser equacionado enquanto realidade una e homogênea para ser colocado num lugar de interseção de múltiplos discursos [...], cada um com uma variedade de pontos de vista, modelos de inteligibilidade ou elaborações conceptuais possíveis”.
Nessa esteira, identifica-se que, de fato, são muitos os percursos teóricos para se levar a rigor uma abordagem sociológica do corpo. Compete a este ensaio, todavia, localizar suas reflexões em torno dos escritos de Anthony Giddens, um autor que, até onde se sabe, ainda é pouco explorado no campo da Educação Física, no Brasil. Ademais, o interesse pelo trabalho do autor justifica-se pelas questões relevantes que sua teoria ventila ao emergente programa de pesquisa denominado de Educação Física Reflexiva (SOUZA, 2018, 2019)1, em particular, no que tange à possibilidade de apreender o corpo e o ‘se-movimentar’ no lastro das dinâmicas relacionais de reflexividade, destradicionalização e autoidentidade, ambas estruturantes de um novo marco ontológico do social, sintetizado não só no entendimento de Giddens (1994, 1996, 2002), mas também de Beck (1994, 2011) e Lash (1994), na expressão modernidade reflexiva.
De acordo com Giddens (2002), as três dinâmicas supracitadas - tal como será exposto e desenvolvido ao longo do texto - auxiliam na compreensão das ações corporais que se constroem e se efetivam em meio a novas formas sociais demarcadas nas sociedades pós-tradicionais, concretizadas numa relação estabelecida entre o individual e o social. Essa perspectiva teórica, formulada pelo sociólogo britânico, almeja captar a produção de sentidos e significados localizados socialmente sem que os aspectos gerais da sociedade sejam deixados à margem da análise, relacionando dimensões locais e globais. Nesse sentido, a escolha de Giddens como campo de diálogo nesse escrito dá-se justamente pelo fato do corpo, em sua teoria, ocupar posição central, o que permite outros olhares equalizadores para a dicotomia “agente” versus “estrutura”, dinamizando as ações dos sujeitos no interior das instituições sociais, o que reforça seus contornos e sentidos reflexivos.
Oportuno ainda reconhecer que um dos elementos de novidade da teoria sociológica de Giddens consiste em reabilitar a agência dos atores, de modo a ultrapassar tanto explicações de ordem substancialista quanto explicações que, ao recaírem em variações de determinismo estrutural, tendem a situar os agentes como sujeitos passivos, destituídos de escolhas e tomadas de decisões frente às dinâmicas sociais, culturais, políticas e econômicas2. Na proposta do autor, o que está em voga é justamente a ampliação da discussão sociológica sobre ação social por meio do conceito de “reflexividade”, aqui entendida em parâmetros de “[...] uso regularizado de conhecimento sobre as circunstâncias da vida social como elemento constitutivo de sua organização e transformação” (GIDDENS, 2002, p. 26).
Não por acaso, a noção supracitada emerge como parte integrante da atividade social, liberando o indivíduo, a partir do exame que faz dos sistemas de conhecimento disponíveis em sociedade, para a possibilidade de escolha e de decisão no que diz respeito às próprias trajetórias biográficas. Tais construções biográficas, não destituídas de riscos e conflitos decorrentes da experiência cotidiana, são orientadas por práticas sociais “[...] constantemente examinadas e reformuladas à luz de informação renovada sobre essas próprias práticas” (GIDDENS, 1991, p. 45), o que confere aos agentes novos cursos de ação que rompem com determinados limites e normativas tradicionais oriundas de estruturas sociais pré-modernas.
A reflexividade, portanto, a que Giddens chama a atenção é decorrente, ao mesmo tempo que norteadora, de novos estilos de vida que emergem na sociedade pós-tradicional. Nesse modelo social, a tradição e os costumes, advindos da modernidade - organização social que surgiu na Europa pós-século XVII (GIDDENS, 1994) - passam a ser radicalizados, o que, por sua vez, oportuniza a pluralização de modelos sociais que instauram novos estilos de vida (BECK, 2012). Depreende-se, por seu turno, que a elaboração de questionamentos que visam problematizar diferentes papéis sociais, a exemplo do local do feminino e do masculino na sociedade, auxilia na desconstrução de noções fixas ligadas às questões de gênero. Como alerta Giddens, tal aspecto refere-se à destradicionalização3 das instituições e, logo, dos indivíduos e suas ações, uma vez que há rupturas e reelaborações sociais que exigem novas posturas individuais (GIDDENS, 1991, 1994, 2002).
Tem-se, desse panorama, a noção de reflexividade - tanto dos indivíduos, quanto das instituições - como categoria relevante para o entendimento do corpo, o qual, segundo Giddens (1991), constrói-se como elemento projetor da autoidentidade do indivíduo moderno. Essa autoidentidade, como discute o sociólogo, está ligada à maneira de manter em andamento uma narrativa particular, desfrutada em meio a tantas possibilidades que poderiam ser experimentadas junto à modernidade, projetadas pelas ações corporais (GIDDENS, 2002). Tais ações corporais, instituídas por meio da comunicação, do embelezamento corporal, da vestimenta, entre outras expressões, são compreendidas por Giddens (1991, p. 7) como “[...] um fluxo em que a monitoração reflexiva que o indivíduo mantém é fundamental para o controle do corpo [...]” e que devem ser sustentadas diariamente em suas vidas.
Dentre as questões problematizadas por Giddens no corpo de sua obra, duas assumem valor central para a escrita desse texto:
-
a) Como as elaborações teóricas desse autor podem ser mobilizadas para compreender o corpo na modernidade?
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b) O que significa dizer que o corpo se tornou parte da reflexividade da modernidade?
Do contexto apresentado, o texto estrutura-se em três seções que buscam elucidar a forma com que as ideias de Giddens impulsionam análises sobre o corpo, principalmente, pelo prisma sociológico. Tem-se, dessa maneira, a primeira seção, na qual são trazidos alguns contornos da modernidade reflexiva. Já a segunda seção direciona-se ao entendimento da formação da autoidentidade e, consequentemente, ao lugar do corpo nos cursos de ação social. Por fim, a terceira seção constrói-se a partir da articulação do agenciamento do corpo na modernidade tardia ao evidenciar como a modelação institucional reflexiva contribui para a consolidação de um novo olhar para o corpo.
2 CONTORNOS DA MODERNIDADE: DA TRADIÇÃO À REFLEXIVIDADE
De acordo com Giddens (2002), a modernidade refere-se às instituições e modos de comportamento estabelecidos pela primeira vez na Europa depois do feudalismo, mas que, no século XX, tornaram-se mundiais em termos de impacto. Dentre as dimensões que integram a modernidade, o sociólogo aponta a relação com a industrialização, com o sistema de produção de mercadorias e mercantilização da força de trabalho, com as instituições de vigilância e de controle dos meios de violência como centrais nessa dinâmica. Ademais, foi no seio dessa estrutura que houve a criação do Estado-Nação que contrasta com as organizações tradicionais anteriores, e que, atualmente, encontra-se numa relação global, repletas de organização burocrática, no sentido de estabelecer o “[...] controle regular das relações sociais dentro de distâncias espaciais e temporais indeterminadas” (GIDDENS, 2002, p. 22).
Para explicar as transformações na modernidade que direcionam as experiências tradicionais rumo às pós-tradicionais, Giddens (1991) elege três elementos que elucidam essa transição. O primeiro é o rompimento com as velhas formas de “comunidade”, ocorrido no fim do século XIX e com aspectos conservadores, o que desencadeou a “desinstitucionalização” da vida privada e a “demasiada institucionalização” da vida pública. O segundo recai na maneira como as instituições modernas penetram em áreas da vida social, despojando-as do conteúdo significativo inerente a elas em sua realidade constituída na tradição. Já o terceiro elemento pensado pelo autor está ligado às práticas sociais cotidianas, relacionadas ao lugar, ao parentesco, à amizade e às relações sexuais que, em situações modernas, tornam-se ativamente ressurgentes (GIDDENS, 1991). Tais características difundem-se e contribuem para o alargamento das experiências humanas que se instituem a partir de novas dinâmicas sociais (não destituídas de riscos), produzidas em meio a uma série de transformações que afeta a vida social cotidiana devido ao dinamismo e interferência nos hábitos e costumes tradicionais, condições que, no limite, sugerem um projeto societário pautado em novas oportunidades de intimidade e autoexpressão (GIDDENS, 2002).
Surge, desse panorama, o anúncio de uma época de finalizações que não só retrata uma dinâmica de “ruptura” com a tradição4, mas que também passa a ser identificada, segundo Giddens (1994), com sentimentos de desorientação, de mal-estar e de evidente transição. Tal finalização, sob o pano de fundo da emergência de uma sociedade pós-tradicional, sugere pensar na oposição à tradição não como dissolução dessa dimensão, mas como reconstrução contínua que ocorre em “movimento”. Por isso, há experiências do cotidiano que ainda refletem o papel da tradição no contexto do deslocamento e da (re)apropriação de especialidades, o que favorece uma multiplicidade de mudanças e adaptações na vida diária (GIDDENS, 1994). No caso da área de Educação Física, isso significa reconhecer, entre outras coisas, que o movimento humano, embora passe por crescentes processos de destradicionalização (SOUZA, 2018), ainda pode ser e continua sendo dimensionado a partir de pedagogias e modelos de ação tradicionais. Segundo Giddens (1996), a tradição nunca desaparece, mas deixa de ser dada sem questionamentos, passando a se tornar mais uma das possibilidades de existência no mundo social, requerendo, assim, sua justificação.
Nesses termos, cabe frisar que os processos de destradicionalização caracterizam-se pelo abandono, pela desincorporação e pela problematização da tradição no sentido de permitir novas racionalidades junto à modernidade, baseadas, principalmente, na interconexão entre local e global - a exemplo do impacto causado pelas ações cotidianas individuais no contexto global e da influência das ordens globais sobre a vida individual (GIDDENS, 1994). Nesse cenário, as relações entre local e global se reinventam, tanto em intencionalidade quanto em extensionalidade. Elas impulsionam novas formas de mediação social a partir de uma revisão que os indivíduos impõem competentemente às suas práticas no seio de ambientes institucionais modelares saturados de informação. O uso das tecnologias e dos novos veículos de comunicação interpessoal passam a ser poderosos aliados nesse processo (GIDDENS, 2002).
Dada, portanto, a complexidade social que envolve a etapa reflexiva da modernização, Giddens (1994) abandona a imagem da “jaula de ferro5” de Max Weber (2004), entre outras imagens que tentam captá-la seguindo tais orientações, pois, para ele, o mundo da modernidade é muito mais aberto, fruto do conhecimento acumulado sobre o próprio humano e o ambiente. Esse conhecimento, na perspectiva de Giddens (1994), produz oportunidades e, ao mesmo tempo, riscos - elementos causados por conta da noção de natureza invadida pela socialização -, o que atribui à dissolução da tradição e à criação de outras possibilidades espaço-temporais fadadas à penetração das instituições modernas nos acontecimentos da vida cotidiana.
A dinamicidade das relações sociais - equilibradas entre tradição e modernidade - é evidenciada como característica que demarca o entendimento da modernidade reflexiva e é explicada, segundo Giddens (2002), a partir de três elementos: a separação de tempo e espaço (que altera as noções estabelecidas nas sociedades pré-modernas); o desencaixe das instituições sociais (ligada aos sistemas abstratos - combinação das “fichas simbólicas” e dos “sistemas especializados”), que gera novas perspectivas de confiança na modernidade; a reflexividade institucional (que afasta a vida social da influência de práticas e preceitos preestabelecidos devido ao uso regularizado de conhecimento sobre a vida).
Somados a esses aspectos, os riscos presentes na modernidade reflexiva - e as implicações dos riscos para a confiança no conhecimento técnico dos sistemas abstratos - contribuem para a visualização de novas formas sociais que entrelaçam o local ao global e vice-versa, uma vez que a globalização não significa padronização (GIDDENS, 1996). Decorre desse processo a inter-relação entre indivíduo e sociedade num aspecto global, como jamais vista na história da humanidade (BECK, 2011). Além disso, também se reinventam, de acordo com Giddens (2002), os pilares que sustentam a elaboração do projeto reflexivo do “eu”, que já não se dá em meio a construções biográficas estáticas e consolidadas, tal como ocorria nas sociedades pré-modernas, mas por meio de uma narrativa identitária de vida, a qual é informada pelos sistemas abstratos e pelos riscos percebidos.
Tais alterações, como argumenta o autor, não emergem apenas no âmbito das relações macro, mas estão intimamente ligadas ao “eu”, à vida individual e à visualização da modernidade como algo que revela a crescente interconexão entre contingências globais e regionalismos (GIDDENS, 2002). A autoidentidade, nessa perspectiva, consolida-se como trajetória a ser escolhida em meio a diferentes situações institucionais, o que desemboca na experiência local-global de uma “[...] biografia reflexivamente organizada em termos do fluxo de informações sociais e psicológicas sobre possíveis modos de vida” (GIDDENS, 2002, p. 20). Daí a necessidade de discussão da construção da autoidentidade para se compreender os mecanismos de projeção do corpo na modernidade reflexiva.
3 A CONSTRUÇÃO DA AUTOIDENDETIDADE E A PROJEÇÃO DO CORPO
Giddens (2002, p.11) atenta-se à construção do “eu” na mediação com contextos amplos, a partir do processo de reflexividade, uma vez que essa tarefa é “[...] realizada em meio a uma enigmática diversidade de opções e possibilidades”. Dessas circunstâncias, alteram-se as noções de confiança6 e risco, haja vista que a primeira é responsável pela criação de um casulo de proteção que afasta as ameaças e os riscos que, embora pareçam ter sido reduzidos na modernidade pelas instituições modernas, continuam sendo introduzidos a partir de novos parâmetros, pouco conhecidos, invisíveis e de teor altamente destrutivo. Um exemplo disso, no tocante ao redimensionamento do self, é o trabalho que os agentes passam a investir em seus corpos a partir da adesão ao grande mercado dos estilos de vida. Esse supermercado, por sua vez, oferece possibilidades de existência mediante um clímax de insegurança, no qual a tomada de decisão - ser fisiculturista, fazer uma dieta, tatuar seu corpo, entre outras possibilidades - desempenha papel fundamental na construção de uma existência mais segura do ponto de vista do indivíduo. Construir um estilo de vida impresso reflexivamente no corpo pode ser uma fonte de supressão de angústias, compulsões e ansiedades, mas também pode indicar o impulso para a criação de outras.
Nota-se, além disso, que, na modernidade reflexiva, a estrutura reflexiva do “eu” visa manter narrativas biográficas coerentes, embora continuamente revisadas, baseadas em múltiplas escolhas, filtradas por sistemas abstratos que assinalam novos estilos de vida7 que consideram riscos evidenciados pelo conhecimento especializado. Dessa estrutura, a intimidade transforma-se e aparece como fruto das novas relações entre global e local e como demarcação das novas formas de confiança - não mais amparada nos aspectos exteriores (laços familiares, religiosos, comunitários, entre outros), mas baseadas no caráter interno das próprias relações.
Trata-se, portanto, da emergência de um novo cenário sustentado pela dinâmica daquilo que Giddens (2002) denominou “relações puras”, isto é, relações construídas socialmente pela simples retribuição que elas próprias podem dar. Para o sociólogo, tais relações puras dizem respeito à não subversão a condições exteriores à vida social e econômica, pois dependem apenas das recompensas oferecidas pela própria relação e da confiança negociada entre os envolvidos. Além disso, tais relações são reflexivamente organizadas a partir de uma construção diária (GIDDENS, 2002). Não por acaso, as relações entre professores e alunos, pais e filhos, patrões e empregados, entre outras, deixam de se pautar somente na autoridade dos primeiros e passam, no contexto da modernidade reflexiva, a se construírem mais pelo diálogo horizontal, a partir de relações sociais mais trabalhosas do ponto de vista das energias cognitivas e do debate que demandam, porém com contornos e feições muito mais democráticos.
No âmbito das relações construídas no/pelo corpo, esses direcionamentos se traduzem, por exemplo, na possibilidade de se negociar socialmente com os múltiplos valores que os indivíduos corporalmente externalizam, sem, todavia, abolir os pontos de discordância e de tensão. Uma das diferenças substanciais em relação à modernidade simples, portanto, é que, com a emergência de uma ética das “relações puras”, o que era desqualificado de antemão por marcadores estruturais externos passa a ser valorizado e considerado merecedor de atenção e negociação no jogo das relações íntimas, de amizade, de trabalho, de lazer, entre outros. Com isso, uma série de marcas e atributos corporais que, em outros contextos, funcionavam muito mais como estigmas adicionais e provas da existência de mecanismos de exercício de poder de alguém sobre alguém - e, portanto, motivos de embaraço e ocultamento -, são agora, no âmbito da modernidade reflexiva, redesenhadas sob a ótica de relações abertas e negociáveis, do empoderamento e da adoção de políticas dos estilos de vida (GIDDENS, 1993, 2002).
Soma-se a essas dinâmicas uma plêiade de desdobramentos que envolvem relações com a segurança e a ansiedade, por exemplo. Ao chamar atenção para a consciência prática - e não para a mera consciência discursiva das ações cotidianas -, Giddens (2002) dimensiona o processo de construção da autoidentidade, entendendo-o como monitoramento reflexivo da construção do “eu” na modernidade e como maneira de “seguir em frente”, ligada à segurança ontológica8, ou seja, à fé mediante situações de risco a serem enfrentadas. Disso decorre o fato de a consciência prática estar intimamente relacionada à vida cotidiana pela provisão de interpretações simbólicas das questões existenciais.
O corpo, sob esse ponto de vista, passa a ser integrado nas decisões sobre estilos de vida. Ademais, no contexto do meio ambiente criado, o corpo potencialmente se desnaturaliza de modo a escapar às verdades formulares da tradição que o localizavam como entidade presa aos destinos controlados pela razão e, portanto, se ressocializa no sentido de que aqueles usos “desviantes” dos corpos - motivos de correção, de punição e de censura - passam a ser convertidos também em positividade mediante uma modelagem institucional reflexiva que não abole a tradição, mas a contrapõe e exige dela uma justificação social.
Nesses termos, o corpo e os usos dos corpos então se dessubmetem a essa pedagogia tradicional explicitada, não evidentemente por algum ato de rebeldia, mas porque o fluxo ininterrupto de informações sobre o corpo nos âmbitos institucionalizados da ciência e da cultura - fluxo esse que a própria Educação Física, em alguma medida, ajudou a propagar (SOUZA, 2019) - promove uma gama de possibilidades de ser corpo e dos indivíduos viverem seus corpos, por via de uma nova pedagogia ou, melhor dizendo, de uma política de decisões de estilo de vida biograficamente assumidas pelos indivíduos na perspectiva de que possam produzir uma maior segurança ontológica para suas existências em um mundo cada vez mais em descontrole.
Nisso consiste, portanto, o entendimento de que a autoidentidade está vinculada a questões de ordem existencial, ou seja, aos parâmetros básicos da vida, compreendida “[...] reflexivamente pela pessoa em termos de sua biografia” (GIDDENS, 2002, p. 54). Mais que isso, a autoidentidade liga-se à maneira de manter em andamento uma narrativa particular que é sólida e, ao mesmo tempo, frágil: relaciona-se à fragilidade porque a biografia construída por um indivíduo é apenas uma entre tantas possibilidades que poderiam ser experimentadas; relaciona-se à solidez na medida em que os processos autoidentitários decorrem da segurança que muitos indivíduos dispõem ao passarem por tensões e transições disponíveis nos ambientes sociais (GIDDENS, 2002). Há que se ressaltar que essa dinâmica apresentada não é apreendida por Giddens (2002) de forma normativa, uma vez que os indivíduos estabelecem diferentes pontos de contato com a reflexividade da modernidade. O impulso individualizante que os impele a tomadas de decisões biográficas atua tanto na abundância quanto na limitação de recursos, fazendo-se presente tanto no centro quanto na periferia do capitalismo tardio.
Em que pesem, portanto, os limites estruturais para a margem de ação e as diferenças contextuais que sobre elas incidem, o “eu” é cada vez mais forçado a tomar decisões em um mundo cosmopolita. Nos dizeres de Giddens (2002), o “eu”, posto como fruto da reflexividade, em parceria com a influência dos sistemas abstratos, afeta de modo difuso o corpo e os processos psíquicos, os quais passam a ser mobilizados na modernidade. O autor afirma que, por mais que pareça uma tendência narcisista de cuidado à aparência corporal, há “[...] uma preocupação muito mais profunda com a ‘construção’ e o controle ativo do corpo” (p. 15). Estabelece-se, nessa direção, a conexão entre desenvolvimento corporal e estilo de vida - a exemplo de regimes corporais específicos e da reprodução genética e intervenção médica. O corpo, como se vê, está se tornando uma questão de escolhas e opções que não afetam apenas o indivíduo, mas que estão intimamente ligadas às questões globais.
O tema da dieta orienta algumas reflexões.9 Para Giddens (1993, p. 42), hoje em dia, mesmo entre os materialmente desprivilegiados, há preocupações com a dieta, isto é, com o que comer ou não comer, bem como com a maneira pela qual isso acaba por se refletir nos corpos dos indivíduos. Paradoxalmente, nunca se produziu também tanto em quantidade quanto em variedade de alimentos no globo; muitos desses alimentos, aliás, foram geneticamente “melhorados” e distribuíram riscos e reflexividade para todas as direções sociais.
Nesse sentido, os agentes estão, tanto pelo que comem quanto pelo que deixam de comer ou fazer em termos de atividades físicas, imersos em uma grande sessão terapêutica no mundo em descontrole; uma sessão de terapia estruturalmente produzida nas instituições, mas ainda assim individualmente frequentadas, uma vez que é do ponto de vista da construção de suas biografias de risco que os agentes fazem suas reflexões não só sobre o que são ou não são corporalmente, mas em particular sobre aquilo que gostariam de ser ou, dentro de certos limites, poderão ser (afinal, se comerem em demasia sofrerão, mas se não comerem sofrerão também!). Para Giddens (2002), essa automonitoração da atividade corporal é “[...] intrínseca ao agente social competente; é transcultural mais do que especificamente ligada à modernidade; e é uma característica contínua da conduta na durée da vida diária” (p. 58-59). Assim, o trabalho regular sobre o corpo emerge como meio fundamental para a construção das biografias individuais que, ao mesmo tempo, estão em constante exposição para os outros como exibição simbólica do que se é ou daquilo que se acredita veementemente ser.
Ademais, tal como assinala Giddens (2002) diante desse grande mercado dos estilos de vida, pode-se ser qualquer coisa, desde que se acredite. Nessa linha de ação, os contornos da autoidentidade estão demarcados pelo/no corpo e possibilitam aos indivíduos participarem das dinâmicas da modernidade como agentes autorais e competentes. Essa competência, por sua vez, reflete no monitoramento contínuo e bem-sucedido da face e do corpo - de sua gestualidade e de suas expressões em meio às interações sociais -, estabelecendo níveis de segurança ontológica a partir da rotina criada, muito embora não de forma automática, mas sempre mediante decisões e revisões que envolvem reflexividade. Daí o controle rotineiro do corpo ser crucial para a manutenção do casulo protetor em situações de interação cotidiana; do contrário, sinaliza a tensão advinda da ameaça do referencial da segurança ontológica. Trata-se, portanto, de um agenciamento reflexivo do corpo que não só insurge como umas das marcas indeléveis da modernização reflexiva, mas que também garante níveis de reprodutibilidade às práticas sociais.
4 O AGENCIAMENTO REFLEXIVO DO CORPO
A partir das mudanças oriundas com a modernidade reflexiva, tem-se o “eu” que se constrói reflexivamente e se caracteriza por escolhas diárias. Tais escolhas, por sua vez, são feitas, metaforicamente falando, a partir de um exame reflexivo das prateleiras que estruturam o grande mercado dos estilos de vida. Nessas prateleiras, há uma variedade de produtos culturais que os indivíduos elegem ou desprezam no processo de construção de uma narrativa biográfica reflexiva. Como afirma Giddens (2002, p. 79), “[...] não temos escolha senão escolher”, afinal em um contexto marcado pela dúvida radical e pela insegurança generalizada, realizar escolhas pode restaurar os níveis de segurança psiquicamente rompidos no contexto da sociedade de risco global. Para o autor, os estilos de vida podem ser definidos como “[...] conjunto mais ou menos integrado de práticas que um indivíduo abraça, não só porque essas práticas preenchem necessidades utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular de autoidentidade” (GIDDENS, 2002, p. 79). Conforme assegura o autor, tais estilos de vida são adotados e não outorgados, como visto em outros períodos pré-modernos. Simplesmente, estão abertos, de maneira reflexiva, à natureza mutável da autoidentidade, circunscrita em meio à escolha por determinadas ações, num mundo de escolhas plurais, repleto de alternativas.
Emerge, no bojo dessa dinâmica de desencaixe, a “pluralização de mundos da vida” que, por conseguinte, representa a descentralização de estilos de vida ligados estritamente a contextos específicos de ação, abrindo espaços para ambientes de vida social moderna, diversos e segmentados. Tais escolhas se devem muito mais à inquietação individual que se produz em referência ao contexto da dúvida radical presente na modernidade e menos à crença nas verdades formulares. Aliás, é o excesso de conhecimento − e não a falta de dele − que gera o ambiente estrutural de dúvidas (GIDDENS, 1996, 2002). Muitos conhecimentos passam, então, a ser produzidos e reproduzidos nas mais diferentes instâncias sociais sob diferentes linguagens. Por essa razão eles se desmonopolizam e desencadeiam dúvidas nos indivíduos: como construir determinado tipo de corpo? A que rotina de treinos se submeter? Que dieta adotar? Condições como essas não escapam aos olhos de Giddens. Daí o autor refletir acerca do caráter provisório do conhecimento como estruturante da dúvida radical, uma vez que, nas sociedades modernas, sobretudo na modernidade tardia, a agência funciona a partir desse princípio estrutural, ou seja, é passível de revisão, sempre em referência aos sistemas peritos que informam a vida (GIDDENS, 1991, 1993, 1994, 1996, 2002).
Nessa esteira revisionista em que tanto peritos quanto leigos estão envolvidos sob diferentes pontos de conexão, o planejamento estratégico da vida assume papel importante diante de tantas alternativas e reitera a trajetória construída reflexivamente pelo indivíduo moderno, o que permite a preparação de “[...] ações futuras mobilizadas em termos da biografia do eu” (GIDDENS, 2002, p. 83). Esse planejamento, para além de integrar a vida cotidiana, também faz parte das instituições que regem a modernidade reflexiva. Por isso, a assinatura da modernização reflexiva está presente, em maior ou menor grau, em diferentes circunstâncias e situações sociais de grupos particulares. Por esse caminho, também deflagra-se a ideia de que o planejamento da vida é associado a um “pacote de riscos”, o que implica assumir o potencial dos riscos a partir do aceite de certos estilos de vida - embora esses sejam calculados a partir dos “limites toleráveis”. O casulo protetor - a concepção de um “eu” estável que sustentará a produção do sentimento de segurança ontológica - aparece, segundo Giddens (2002), como elemento de confiança que torna possível sustentar a noção de normalidade diante dos riscos disponíveis, o que possibilita a abertura de novas trajetórias que moldam a autoidentidade reflexiva do indivíduo moderno e, logo, sua projeção corporal.
Tais elementos também se aplicam à esfera do corpo, uma vez que, na modernidade reflexiva, o corpo torna-se “[...] cada vez mais socializado e integrado à organização reflexiva da vida social” (GIDDENS, 2002, p. 95). Tal processo é algo que transcende a mera dimensão física: “[...] é um sistema de ação, um modo de práxis, e sua imersão prática nas interações da vida cotidiana é uma parte essencial da manutenção de um sentido coerente da autoidentidade” (GIDDENS, 2002, p. 95). A partir dessa compreensão, os tipos de aparência e a postura corporal podem ser lidos como maneiras de expressão desencaixadas com o advento da modernidade, uma vez que esses modelos se desprendem dos lugares fixos e circulam pelo globo. Além disso, esses tipos diferem dos modelos padronizados das culturas tradicionais, as quais demarcavam muito mais a identidade social do que a identidade pessoal.
Nota-se, assim, cada vez mais na modernidade tardia, que a aparência emerge como “[...] elemento central do projeto reflexivo do eu” (GIDDENS, 2002, p. 96). Na atualidade, diferentemente dos contextos sociais pré-modernos, a aparência não se encontra presa a padrões tradicionais; ela se estabelece a partir da construção e reconstrução constante em meio a diferentes estilos de vida. Tem-se, nessa perspectiva, a aparência física moldada em meio a expectativas e experiências locais e globais que auxiliam os indivíduos, de maneira reflexiva, a construírem narrativas biográficas coerentes com suas autoidentidades. Dito isso, é a partir dessa aparência que, na modernidade reflexiva, os indivíduos projetam suas trajetórias por meio da exteriorização de sua autoidentidade a partir de vestimentas, cortes de cabelos, uso de maquiagens, regimes corporais, escolha de práticas corporais diversas, entre outras ações.
Sob esse pano de fundo institucional reflexivamente modelado, o corpo participa de maneira direta de processos que não o consideram definitivo, gerando novas maneiras de cultivo e criação, principalmente a partir de padrões de sensualidade e de regimes corporais - temas tratados por Giddens (2002). Nesse contexto, elenca-se a discussão sobre a anorexia nervosa, que integra a tessitura argumentativa do autor no sentido de problematizar tal “disfunção” como compromisso sustentado com a reflexividade do desenvolvimento corporal e não como mera fuga do controle da situação. A anorexia, portanto, é mais uma das experiências da modernidade, em seu sentido pleno e, também, contraditório, uma vez que é necessário abandonar identidades fixas.
Nesses termos, a anorexia já não pode ser devidamente sustentada e analisada como uma patologia - no sentido médico-psiquiátrico clássico - e pode ser entendida na perspectiva de uma “patologia de controle reflexivo” (GIDDENS, 2002, p. 101) ou, melhor dizendo, como uma resposta possível para uma autoidentidade confusa. Em outra ocasião, Giddens (2001, p. 43) afirma que a anorexia pode ser lida como um vício de estilo de vida alimentar, a exemplo de tantos outros vícios, como álcool, drogas, café, trabalho, exercício, esportes, sexo, etc. Em qualquer uma das situações, no entanto, o que se notabiliza é a participação ativa dos indivíduos - nesse caso específico, sobretudo, jovens mulheres - em tais escolhas orientadas sob o pano de fundo de uma atividade social compulsiva que disponibiliza essa pluralidade de opções como parte integrante da própria referencialidade interna da modernidade.
Essa referencialidade interna dos sistemas sociais, por seu turno, está na origem do projeto reflexivo do “eu”, influenciado por diversas mudanças sociais concorrentes, a exemplo da alteração da noção de “ciclo de vida”, de localidade, dos laços e dos rituais, em uma dinâmica que adquire nova roupagem na modernidade. Tais situações sugerem que a construção da autoidentidade ocorre, em tempos modernos, via processos internos que são fruto da reflexão do indivíduo e não dos elementos exteriores a ele, embora o mundo social também contribua para essa construção, uma vez que “[...] o eu estabelece uma trajetória que só pode tornar-se coerente pelo uso reflexivo do ambiente social mais amplo” (GIDDENS, 2002, p. 139).
O agenciamento reflexivo do corpo e das ações corporais não só reflete, portanto, a produção de atividades criadoras que denotam graus de autonomia individual, como também capacita os agentes a transferirem reflexividade aos ambientes institucionais que os modelam como seres liberados para agência. Depreende-se, desse panorama, a oferta diversificada de práticas corporais e procedimentos voltados ao corpo, a qual é informada por uma ciência da vida em suas mais diferentes especialidades. Isso, por sua vez, produz novos conhecimentos em relação à postura dos indivíduos quanto às escolhas dos estilos de vida e aos tratamentos voltados ao corpo na modernidade reflexiva. Daí a importância do projeto reflexivo do “eu” como elemento fundamental para se pensar a vida cotidiana na modernidade reflexiva.
Ainda sobre as relações entre corpo e a construção do “eu”, Giddens (2002) declara que, na modernidade reflexiva, o corpo ultrapassa seus limites biológicos, ou seja, deixa de ser compreendido como um aspecto da natureza, governado por processos apenas marginalmente sujeitos à intervenção do ser humano. Com a invasão do corpo pelos sistemas abstratos, essa noção altera-se com mais intensidade, o que faz com que se torne “[...] o lugar da interação, apropriação e reapropriação, ligando processos reflexivamente organizados ao conhecimento especializado sistematicamente ordenado” (p. 200).
Esse registro demarca a própria emancipação do corpo como parte referida do processo de reflexividade do “eu” na modernidade reflexiva. Daí a sensibilidade de Giddens (2002, p. 2001) em entender que “[...] o corpo não virou simplesmente uma entidade inerte, sujeita à mercantilização ou à ‘disciplina’, no sentido de Foucault”; por isso, também, a identificação do corpo como sendo cada vez menos dócil do que jamais foi em relação ao “eu”. Segundo Giddens (2002), o corpo e o projeto reflexivo do “eu” se relacionam em outro domínio, inteiramente penetrado pelos sistemas internamente referidos da modernidade; ligam-se principalmente à reprodução social dos indivíduos e, também, da espécie - demarcada cada vez mais pela natureza criada (BECK, 2011), por processos de melhoramento genético e fertilização in vitro.
Nesse sentido, a aparência e a projeção corporal servem como pontos focais para a reflexividade e, por isso, o corpo, como parte visível da autoidentidade, é capaz de apresentar a própria personalidade, construída reflexivamente em meio à possibilidade de estilos de vida disponibilizados socialmente. Cabe reiterar que o agenciamento reflexivo do próprio corpo se torna não só uma condição necessária de segurança ontológica, como também de coerência da autoidentidade e de competência no campo das relações sociais (GIDDENS, 2002). Por via desse agenciamento, que examina e remodela estilos, aparência e preferências sexuais, o corpo insurge como projeção atraente no campo das relações interpessoais.
Para Giddens (2002), tal agenciamento emerge do esforço do “eu” em se proteger da marginalização social e do esquecimento total, bem como em garantir certa popularidade e estabilidade nas relações interpessoais, uma vez que os indivíduos participam ativamente do processo de criação reflexiva de sua própria imagem corporal. Daí a possibilidade de visualizar, na sociedade contemporânea, inúmeros aplicativos relacionados às mídias sociais em que o corpo aparece como elemento fundamental a partir da disponibilização de imagens corporais (Facebook, Instagram, Tinder, para citar alguns). Essas imagens estruturam-se como maneiras de projetar autoidentidades por meio da aparência corporal, o que ilustra diversos estilos de vida escolhidos em meio à pluralidade social, numa forma de construir narrativas biográficas coerentes.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao tecermos notas e excertos giddensianos acerca do agenciamento do corpo no contexto da modernidade reflexiva, trouxemos ao debate questões que envolvem autoidentidade e reflexividade. A abordagem adotada e adensada ao longo do texto abriu possibilidades para se compreender a construção de tais conceitos sob uma perspectiva sociológica com potencial para ampliar a discussão sobre a ação social por meio da reflexividade tornada corpo.
De acordo com o que foi aqui apresentado, a formação da autoidentidade, na modernidade reflexiva, assume contornos diferenciados se pensada em relação à dinâmica das sociedades tradicionais. As elucidações de Giddens (2002) apontam inicialmente para a tradição como meio de identidade, seja pessoal ou coletiva, pressupondo significado e, ao mesmo tempo, recapitulação e reinterpretação. Na sequência, Giddens (1994, 2002) identifica em todas as sociedades o processo de manutenção da identidade pessoal e sua conexão com identidades sociais mais amplas, ressaltando, no entanto, que, na segunda modernidade, o corpo passou a ser muito mais invadido que antes, adquirindo, por isso mesmo, um lugar central para o estabelecimento da dimensão de segurança ontológica na vida dos indivíduos.
Conclui-se que, em Giddens, o “eu” não é fixo e, por isso, o corpo também não o é; há uma relação direta com a narrativa biográfica a ser sustentada. Nesse contexto, as relações do “eu” com o corpo por meio das práticas corporais passam a ser entendidas a partir de um projeto de “chances arriscadas” (BECK, 2011) no qual os indivíduos buscam a projeção de suas autoidentidades, construídas e mantidas por meio do constante monitoramento da superfície projetada socialmente - o corpo. Sob esse ponto de vista, o “projeto corporal” insere-se no tratamento do corpo como “forma” a ser desenvolvida e como parte da autoidentidade de um indivíduo que se organiza de maneira reflexiva a partir das infinitas possibilidades de construções biográficas abertas na modernidade tardia.
À maneira de fechamento, destaca-se que, da diagnose inspirada pelos escritos de Giddens, abrem-se contribuições e desafios à teoria pedagógica da Educação Física, sobretudo no sentido de devolver às análises teóricas sobre o “se-movimentar” e sobre o corpo, uma agência socialmente encarnada e protagonizada pelos indivíduos como “biografias de movimento”. Esses esforços, no entanto, são motivo para investimentos futuros, quiçá, motivados pelas análises e possibilidades investigativas que estiveram em pauta nesse texto a partir de interlocuções com a teoria sociológica de Giddens.
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1
Sobre o que trata e quais postulados integram o núcleo duro do referido programa, ver: SOUZA (2018, 2019).
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2
Cabe reconhecer, em linhas gerais - e a partir de um exercício de confrontação teórica entre escolas diferentes -, que a direção analítica eleita por Giddens oferece suporte para contrapor o entendimento do corpo a partir da instrumentalização das ações corporais. Giddens (2002, p. 200) assume o corpo como “[...] lugar da interação, apropriação e reapropriação, ligando processos reflexivamente organizados ao conhecimento especializado sistematicamente ordenado”.
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3
A destradicionalização refere-se ao processo de dissolução da tradição e criação de outras possibilidades espaço-temporais fadadas à penetração das instituições modernas nos acontecimentos da vida cotidiana, a exemplo da tecnologia. Decorrem desse processo rupturas com o status da tradição que, na modernidade reflexiva, passa a ser reformulada, perdendo seu caráter orientador das ações sociais (GIDDENS, 1994).
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4
Sobre a tradição, Giddens (1994) declara que essa é a cola que liga as ordens sociais pré-modernas, com forte orientação ao passado, de tal forma que o passado tem uma pesada influência sobre o presente e o futuro. Ainda, afirma o autor que, na ordem pós-tradicional, não há desaparecimento total das tradições e, pelo contrário, há casos em que elas florescem por meio do processo discursivo.
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5
O posicionamento de Giddens, nesse debate, pode ser sintetizado nos seguintes termos: “Para os pensadores do Iluminismo - e muitos de seus sucessores -, pareceu que a crescente informação sobre os mundos social e natural traria um controle cada vez maior sobre eles. Para muitos, esse controle era a chave para a felicidade humana; quanto mais estivermos - como humanidade coletiva - em uma posição ativa para fazer história, mais podemos orientar a história rumo aos nossos ideais. Mesmo os observadores mais pessimistas relacionaram conhecimento e controle. A ‘jaula de ferro’ de Max Weber - em que, segundo suas reflexões, a humanidade estaria condenada a viver no futuro previsível - é uma prisão domiciliar de conhecimento técnico; alterando a metáfora, todos nós devemos ser pequenas engrenagens na gigantesca máquina da razão técnica e burocrática. Mas nenhuma imagem chega a capturar o mundo da alta modernidade, que é muito mais aberto e contingente do que sugere qualquer uma dessas imagens, e isso acontece exatamente por causa - e não apesar - do conhecimento que acumulamos sobre nós mesmos e sobre o ambiente material. É um mundo em que a oportunidade e o perigo estão equilibrados em igual medida” (GIDDENS, 1994, p. 24).
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6
Para o autor, a confiança “[...] é um fenômeno genérico crucial do desenvolvimento da personalidade e tem relevância distintiva e específica para um mundo de mecanismos de desencaixe de sistemas abstratos [...] ligada à obtenção de um senso precoce de segurança ontológica” (GIDDENS, 2002, p. 11).
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7
O termo refere-se às decisões tomadas e cursos de ações seguidos em condições de severa limitação material e envolvem rejeição ou aceitação de formas difundidas de comportamento e consumo; e, por isso, não está presente apenas nas classes mais prósperas da sociedade, como discute Giddens (2002) ao antecipar-se à crítica.
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8
“Ser ontologicamente seguro é ter, no nível do inconsciente e da consciência prática, ‘respostas’ para questões existenciais fundamentais que toda vida humana de certa maneira coloca” (GIDDENS, 2002, p. 49).
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9
Um interessante estudo realizado na cidade de Salvador/BA traz elementos empíricos que contemplam tanto os marcos estruturais do fenômeno quanto a agência reflexiva que incide sobre essa temática. Trata-se de um estudo que mobilizou horizontalmente as dimensões locais e globais da reflexividade alimentar e corporal. Nos termos da proponente do trabalho, a investigadora Ligia Amparo da Silva Santos, o estudo que desenvolveu “[...] parte da cidade de Salvador e, ao apurar as lentes do estudo sobre esta cidade, tal escolha não significou desenvolver um trabalho “regionalizado”. O intuito foi também analisar o contexto nacional a partir deste espaço, inter-relacionando “baianidades” e “brasilidades” e os “cidadãos do mundo”. Ou seja, como os soteropolitanos pensam os seus corpos e as suas práticas alimentares modernas, como traduzem para as suas vidas, considerando ainda o arcabouço histórico cravado nestes corpos e nestas comidas. Desta maneira, este projeto se propôs a vasculhar as especificidades desta problemática no contexto soteropolitano sendo, ao mesmo tempo, local, nacional e mundial” (SANTOS, 2008, p. 16). Para um maior aprofundamento sobre o assunto, ver: SANTOS, Ligia Amparo da Silva. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais e alimentares no mundo contemporâneo. Salvador: EDUFBA, 2008.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Jul 2022 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
-
Recebido
09 Abr 2018 -
Aceito
03 Fev 2019 -
Publicado
11 Jul 2019