Resumo:
O objetivo deste artigo é analisar o episódio do enforcamento de um escravizado, em Quincas Borba (1891), e oferecer uma possível interpretação de seu papel para a compreensão global do romance. A conjunção de capitalismo e escravidão parece operar na passagem em diversos níveis, tanto na subjetividade das personagens como nos tempos e na voz narrativa.
Palavras-chave:
Machado de Assis; escravidão; Literatura e Sociedade; forma literária e processo social
Abstract:
The aim of this article is to analyze the hanging episode of a slave in Quincas Borba (1891) and provide a possible interpretation of its role in the overall understanding of the novel. The conjunction of capitalism and slavery appears to operate in the passage on various levels, both in the subjectivity of the characters and in the times and narrative voice.
Keywords:
Machado de Assis
;
slavery
;
Literature and Society
;
literary form and social process
Segundo romance da trilogia realista de Machado de Assis, Quincas Borba (1891) é geralmente entendido como um dos mais complexos da obra do escritor, embora seja menos discutido e não tenha a mesma fama de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) ou de Dom Casmurro (1899). Machado começa a publicá-lo em folhetim na revista A Estação , em 1886, e só vai encerrar as publicações quase seis anos depois, em 1891, no fim do qual lança o romance em formato de livro. Ao longo desses anos, ele interrompe a publicação em dois períodos – de maio a outubro de 1888 e de julho a novembro de 1889. Nessas ocasiões, o escritor procurou resolver problemas com o foco narrativo, além de desbastar o aspecto íntimo, de proximidade com o leitor, que caracteriza o folhetim. Também buscou dar centralidade à figura de Rubião e enfatizar o seu gradativo enlouquecimento (GLEDSON, 2011GLEDSON, John. Quincas Borba: um romance em crise - Dossiê duas crises machadianas. Machado de Assis em Linha – Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 32-55, dez. 2011. , p. 42-46).
O enredo, que se passa de 1867 a 1871, é bem conhecido: Rubião, um professor de Barbacena, recebe uma herança de seu amigo Quincas Borba e muda-se para a Corte, no Rio de Janeiro. No caminho para a capital, numa estação de trem, ele conhece Palha, um especulador aspirante a banqueiro, e Sofia, filha de funcionário público. O casal vai se aproveitar da herança de Rubião para enriquecer, inclusive se valendo da paixão que o mineiro passa a nutrir por Sofia. Dividido entre os negócios com Palha e o amor pela mulher dele, além de estar cercado por toda sorte de aproveitadores no Rio de Janeiro, Rubião vai enlouquecendo progressivamente.
Um homem dividido
A nosso ver, um episódio decisivo para a compreensão do romance é o capítulo 47, o do enforcamento do escravo. Nele, Rubião acaba de se declarar a Sofia e perambula pela cidade imerso em seus pensamentos, quando três cocheiros oferecem seus serviços. Já aturdido com a paixão por Sofia, a indecisão na escolha do tílburi fará com que irrompa nele uma lembrança de quando ainda era rapaz: a cena da execução de um escravo.
Desde o início do romance, o protagonista mostra-se dividido: entre o passado de professor e o presente de capitalista; entre o espírito que acompanha uma canoa no mar e o coração que se alegra com a riqueza herdada fortuitamente; entre a bandeja de prata e as figuras de bronze na sala; entre os criados estrangeiros e os seus “crioulos de Minas” (ASSIS, 2012ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. , p. 48).
Imediatamente antes do episódio do enforcamento, a cisão na personalidade de Rubião vai, aos poucos, ganhando contornos dramáticos. Ele perambula pelas ruas a rememorar a declaração de amor que acabara de fazer a Sofia, ora se regozijando, ora se recriminando, ora se justificando: “Fui um maluco!, dizia em voz alta” e o narrador acrescenta “achava-se maluco, completamente maluco” (ASSIS, 2012ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. , p. 108).
Lembra, ainda, a estima que tem pelo marido dela, Palha, a quem emprestou dinheiro. Diz para si mesmo que é um “homem honrado, que trabalha muito”, mas volta a se lembrar de Sofia. “Confuso, incerto, ia a cuidar na lealdade que devia ao amigo, mas a consciência partia-se em duas, uma increpando a outra, a outra explicando-se, e ambas desorientadas...” (ASSIS, 2012ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. , p. 109). Se a declaração de amor a Sofia já colocava Rubião em dúvida, a lealdade ao amigo – lealdade misturada aos negócios, bem entendido – entra como mais um elemento para confundir sua cabeça. Rubião mostra-se dividido entre a paixão e os negócios, entre o amor e os favores, entre a relação amorosa e a monetária. Rubião decide, então, pegar um tílburi para ir a Botafogo. Três cocheiros oferecem o serviço, cada um propagandeando seus cavalos.
O breve capítulo seguinte parece apenas mais uma anedota, um episódio sem importância. No entanto, ele é esclarecedor na medida em que mostra as relações entre as classes sociais. Nele, um mendigo acorda com o rumor de vozes dos cocheiros, vê do que se trata e volta a se deitar, mas permanece acordado olhando o céu. O narrador imagina, então, um céu personificado, que também fita de volta o mendigo, e pontua o contraste entre os dois: enquanto o mendigo tem “rugas”, “sapatos rotos” e está vestido em “andrajos”, o céu é “claro, estrelado, sossegado, olímpico” (ASSIS, 2012ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. , p. 109). E fantasia um diálogo entre o mendigo, que diz que não há como o céu desabar sobre ele, e o céu, que responde que nem o mendigo tem como escalá-lo. O narrador, ao dar voz ao céu, parece assumir o ponto de vista do topo da escala social, das classes proprietárias, que olham com desdém a condição do mendigo. Parece saber que não é dado ao “pobre-diabo” (ASSIS, 2012ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. , p. 109) ascender socialmente.
No entanto, no começo do capítulo seguinte, ficamos sabendo que também Rubião vira o mendigo, inclusive se comparando a ele. Retrospectivamente, portanto, pode-se inferir que aquele diálogo entre o céu e o mendigo pode ter sido imaginado não apenas pelo narrador, mas pelo próprio Rubião, cujo progressivo enlouquecimento vimos acompanhando. Ele inveja o mendigo por este não precisar ter responsabilidade, nem precisar se decidir entre o amor e os negócios. “Aquele malandro não pensa em nada, disse ele consigo; daqui a pouco está dormindo, enquanto eu...” (ASSIS, 2012ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. , p. 110). E surgem novamente as vozes dos cocheiros, oferecendo os tílburis. A oferta dos serviços, além de ser mais um elemento para confundir a já atribulada cabeça de Rubião, dá indícios do patamar do desenvolvimento capitalista no Brasil de então: já existe um mercado concorrencial, os cavalos são mostrados como mercadorias, os cocheiros insistem na eficiência do serviço e há certa equivalência ou padronização entre eles – os cocheiros diziam a mesma coisa, “quase por iguais palavras” (ASSIS, 2012ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. , p. 110).
Rubião pega o mais próximo e lembra-se de uma cena que presenciara quando jovem. “Ou foi o episódio que lhe deu inconscientemente a solução” (ASSIS, 2012ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. , p. 111), como diz o narrador. Trata-se do enforcamento de um escravizado que ocorrera muitos anos atrás, quando Rubião era rapaz e pobre. Ele anda pela cidade, quando se depara com um cortejo que acompanha dois homens: um, de cor parda, é levado por uma corda no pescoço pelo outro, de cor fixa e retinta, o qual, além do mais, se mostra orgulhoso diante do público. Não deve ter sido à toa que Machado escolhe o negro de cor parda para ser a vítima e o de cor retinta para ser o carrasco, este ainda demonstrando uma postura orgulhosa aos olhos do público, o que reforça ainda mais a perversidade da situação.
O narrador compara, então, a indecisão em prosseguir no cortejo com as dúvidas quanto à escolha do tílburi. No entanto, ele não se decide e se deixa levar ao acaso. Enquanto segue no cortejo, as dúvidas permanecem, mas ele procede numa série de autojustificações: só seguiria na marcha, veria as cerimônias, mas não a execução. Tenta se confortar com os relatos sobre o réu, dado como “frio e feroz”, embora já não visse nele “a cara do crime” (ASSIS, 2012ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. , p. 112), só o terror escondendo a perversidade. Quando dá por si, Rubião já está no largo da execução. Ainda assim, poderia fugir ou fechar os olhos. A divisão de Rubião chega a seu ápice: sua hesitação é exteriorizada, descrita em termos físicos. A indecisão é figurada numa passagem estranha e emblemática: “Foi aqui que o pé direito de Rubião descreveu uma curva na direção exterior, obedecendo a um sentimento de regresso; mas o esquerdo, tomado de sentimento contrário, deixou-se estar; lutaram alguns instantes…” (ASSIS, 2012ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. , p. 113).
Essa duplicação da personalidade pode ser vista em outras obras de Machado. Com enredo muito parecido, o conto “Viagem à roda de mim mesmo”, publicado na Gazeta de Notícias em 4 de outubro de 1885 (pouco antes do início da publicação em folhetim de Quincas Borba , portanto), trata da história de Plácido, morador da província que também resolve se mudar para o Rio de Janeiro, tão logo se forma bacharel. Seus planos incluíam passar um tempo na Corte e depois conseguir um cargo de magistrado no interior. Mas ele se apaixona por Henriqueta, que acaba de perder o marido e resolve não mais se casar. Por esse motivo, decide permanecer na cidade e cortejar a viúva. Ao mesmo tempo, Plácido contrai uma dívida que é paga pelo deputado Veiga, um seu conhecido. Esse favor o deixa em obrigação com o político, que um dia se queda doente e precisa de cuidados. A personagem ficará dividida entre a retribuição do favor a Veiga e as investidas amorosas em Henriqueta. A passagem seguinte é ilustrativa das semelhanças com certas passagens de Quincas Borba: “Caí na poltrona; não me dividi fisicamente, como me parecera em criança; mas moralmente desdobrei-me em dois, um que imprecava, outro que gemia” (ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Contos avulsos II. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015a. v. 3, p. 228-234. , p. 233).
Do mesmo modo, Rubião se desdobrará em dois, um que quer permanecer para assistir ao enforcamento e outro que quer fugir da cena da execução. A passagem lembra a figura do duplo, tão presente em obras da literatura ocidental. José Pasta Jr. ( 2011PASTA JR., José Antonio. Formação supressiva. 2011. 282 f. Tese (Livre-docência em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. , p. 117) afirma que a filosofia estética e a crítica literária alemãs vão reconhecer a origem do duplo na desmedida da reflexão, movimento pelo qual o sujeito individual, então recentemente isolado e liberado pela revolução burguesa, procurava encontrar em si mesmo o seu fundamento: “No movimento da reflexão, portanto, o eu saía de si mesmo em direção ao outro unicamente para fletir de novo sobre si mesmo: ele re-fletia então, e nesse retorno sobre si ele se reconhecia, tornando-se um ser em si e para si”. A repetição exasperada desse movimento, no entanto, vai provocar não uma síntese, mas uma cisão da personalidade, que vai dar origem na literatura ao fenômeno do duplo.
No entanto, o crítico aponta a especificidade da questão no Brasil: aqui, essa figura se formará não pela reflexão desmesurada, mas pela conjunção de capitalismo e escravidão, que concebe o sujeito como distinto e, ao mesmo tempo, indistinto do outro. “Em vez de realizar o retorno sobre si, o eu se vê preso na má infinidade de um movimento pendular em que ele bascula interminavelmente entre o mesmo e o outro – condenado a repetir sem término e sem saída a mesma fórmula: o outro é o mesmo, o mesmo é o outro, e assim indefinidamente” (PASTA JR., 2011PASTA JR., José Antonio. Formação supressiva. 2011. 282 f. Tese (Livre-docência em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. , p. 118-119). É por esse motivo que a figura do duplo ocorre em nossa literatura com maior frequência e intensidade, afirma Pasta.
Com efeito, essa conjunção de capitalismo e escravidão pode ser a chave para o entendimento não só da cena do enforcamento, mas da obra como um todo. Como se sabe, Roberto Schwarz ( 2000SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor, as batatas: forma literária e processo social no romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. , p. 9-31) demonstrou à exaustão como essa combinação aparentemente contraditória, embora bem presente na realidade, permeia a obra machadiana. Em resumo, e grosso modo , o ideário liberal importado da Europa, que pregava a universalidade da lei, as liberdades individuais e a igualdade entre os homens, era negado pela realidade local da escravidão. Eram ideias fora de lugar, uma comédia ideológica em que liberalismo e escravidão se negavam reciprocamente. Assim, nos primeiros romances, um narrador distanciado conta a história de indivíduos livres e pobres que buscam a ascensão social em meio a uma sociedade patriarcal e escravocrata, sempre malogrando em suas tentativas. Já nos romances da maturidade, Machado faz que ganhe a voz narrativa a elite proprietária, cujos arbítrios assumem a forma literária da volubilidade. Assim é que o narrador de Memórias póstumas vai e volta no enredo a seu bel-prazer, destrata o leitor, apropria-se de ideias estrangeiras e faz uso distorcido delas etc.
No entanto, José Pasta Jr. ( 2011PASTA JR., José Antonio. Formação supressiva. 2011. 282 f. Tese (Livre-docência em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. , p. 101) afirma que “esse traço de movência contínua ultrapassa em muito o próprio Brás Cubas” e está presente em muitas personagens das principais obras da literatura brasileira, que pertencem a diferentes camadas sociais, como Macunaíma, negro e filho de índia, e Riobaldo, um jagunço. Para o crítico, a conjunção de capitalismo e escravidão tem efeito não somente na elite proprietária, mas na formação da subjetividade em todos os níveis sociais. Segundo ele,
[...] cada indivíduo vê-se em face de dois regimes da concepção de si e de sua relação com o outro, dois regimes contraditórios, que logicamente deveriam excluir um ao outro, mas que se encontram um e outro bem presentes e bem atestados pela realidade da experiência. Por um lado, um regime antes de tudo moderno que corresponde, grosso modo , às relações capitalistas de produção, que prescreve a separação ou a diferença entre o mesmo e o outro ; e, por outro lado, um regime que não reconhece a diferença entre o mesmo e o outro, no qual essa diferença é mesmo rigorosamente inconcebível, isto é, um regime que, por sua vez, corresponde aos laços do patriarcalismo escravista, nos quais o indivíduo não se reconhece verdadeiramente como tal, ou dito de outra forma, como algo realmente diferente de seu senhor, de seu grupo, de seu clã etc.
(PASTA JR., 2011PASTA JR., José Antonio. Formação supressiva. 2011. 282 f. Tese (Livre-docência em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. , p. 101-102).
Dessa maneira, nossa subjetividade, continua o crítico, vê-se submetida a exigências contraditórias de dois regimes: a de que ela seja distinta do outro e, simultaneamente, indistinta do outro. A saída desse paradoxo é apontada numa pequena equação: o outro é o mesmo ou, invertendo, o mesmo é o outro. A volubilidade de diversas personagens da literatura brasileira, assim, adviria dessa contradição. O crítico menciona justamente o caso de Machado de Assis, em cujos romances e contos diversas personagens se tornam, por esse motivo, “frequentemente doidas – e muitas vezes doidas varridas” (PASTA JR., 2011PASTA JR., José Antonio. Formação supressiva. 2011. 282 f. Tese (Livre-docência em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. , p. 102).
Assim ocorre com Rubião: indeciso desde o começo, tanto em episódios mais comezinhos como em circunstâncias que podem decidir seu destino, ele se depara com situações que, de um lado, exigem racionalidade (como os negócios com Palha) e, de outro, reclamam afetividade (como sua amizade com o próprio Palha e seu amor por Sofia). Do mesmo modo, por exemplo, ele tem de decidir entre criados estrangeiros, uma postura moderna para a época, ou seus “crioulos de Minas” (ASSIS, 2012ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. , p. 48), que já era visto como antiquado. Nos dois casos, a subjetividade de Rubião vê-se frente a situações que exigem a separação do outro e o exercício da autonomia individual (a racionalidade dos negócios e a relação salarial do trabalho livre) ou a indistinção do outro e a proximidade afetiva (a amizade com o casal Palha e com os escravos domésticos). A cada impasse, o protagonista, incapaz de decidir, vai enlouquecendo gradativamente.
Tempos e vozes misturados
Além da cisão na personalidade de Rubião, também os tempos se misturam em certas passagens do capítulo. Enquanto Rubião perambula pela cidade, a oferta dos cavalos o põe em dúvida, no presente da narração. Já na lembrança passada, é o enforcamento do escravo que o divide. O passado invade o presente, ou permanece nele. Os tempos misturam-se, tornando-se indiferentes. A escravidão, cuja extinção já começava a se discutir, ainda se fazia sentir e continuava atuando no moderno presente capitalista. Vejamos como isso ocorre numa das passagens do capítulo: “Rubião naturalmente ficou impressionado. Durante alguns segundos, esteve como agora à escolha de um tílburi. Forças íntimas ofereciam-lhe o seu cavalo, umas que voltasse para trás ou descesse para ir aos seus negócios, – outras que fosse ver enforcar o preto” (ASSIS, 2012ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. , p. 112).
Nessa passagem, a dúvida do passado é ilustrada com uma imagem do presente: é como se o impulso interior de Rubião para fugir ao cortejo pudesse ser comparado aos apelos dos cocheiros oferecendo os cavalos. No entanto, esse ímpeto também vai na direção contrária: a oferta dos cavalos bem pode ser a atração para o ritual do enforcamento. O termo “cavalo”, aqui, também pode ser entendido no contexto das religiões afro-brasileiras, como incorporação de entidades durante um transe.
Esse tempo que se repete e não chega a um termo pode ser considerado “uma transposição narrativa do ritmo peculiar da formação do Brasil, que sob aspectos essenciais se desenvolve como uma história paradoxal, que ao mesmo tempo conhece e não conhece a distinção entre o tempo passado e o tempo presente” (PASTA JR., 2011PASTA JR., José Antonio. Formação supressiva. 2011. 282 f. Tese (Livre-docência em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. , p. 92). Ainda nas palavras do crítico, Machado de Assis parece dar forma, assim, à nossa modernização conservadora, em que “um período é diferente do período que o precedeu, sendo entretanto ‘a mesma coisa’” (PASTA JR., 2011PASTA JR., José Antonio. Formação supressiva. 2011. 282 f. Tese (Livre-docência em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. , p. 92).
Além dessa indistinção entre passado e presente, o emprego do discurso indireto livre também torna indistinguíveis as vozes de narrador e personagens, além de pontuar a narração de ambiguidades. Veja-se a seguinte passagem: “Era tão raro ver um enforcado! Senhor, em vinte minutos está tudo findo! – Senhor, vamos tratar de outros negócios” (ASSIS, 2012ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. , p. 112). [A primeira sentença parece ser a do narrador assumindo um dos ímpetos de Rubião. A segunda, por sua vez, sinaliza o narrador assumindo a voz de um cocheiro que oferece uma viagem rápida, ou dessa voz ecoando em Rubião, ou ainda de uma terceira voz impelindo Rubião para a cena da execução, apelando para a rapidez do ato. Já a terceira é o narrador assumindo a voz provavelmente de um cocheiro, que dissuade Rubião de ver a cena. Nessa última sentença, chama a atenção o tratamento dado ao enforcamento, como se este fosse um negócio entre outros.
Em outra passagem, em que Rubião já está no largo da execução, as vozes dos cocheiros tornam a ecoar em sua mente: “Olhe o meu cavalo! – Veja, é um rico animal! – Não seja mau! – Não seja medroso!” (ASSIS, 2012ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. , p. 113). Veja-se que as duas primeiras orações não deixam dúvidas quanto a quem as profere: são os cocheiros oferecendo os serviços. Já as duas últimas estão impregnadas de ambiguidade: são ainda os cocheiros falando ou a consciência de Rubião? Ser “mau” e “medroso” referem-se a aceitar a viagem ou a assistir à cena da execução?
De homens e cavalos
Mas não são apenas as vozes que se misturam; opera no romance um certo intercambiamento ou contaminação entre certos significantes, principalmente numa metáfora que aparece ao longo de toda a obra e que é central na cena do enforcamento: o cavalo. Parece haver, na cena, um paralelismo operado pelo narrador: os cavalos de hoje são os escravos da lembrança. A confirmação da equivalência entre cavalo e escravo se dá no momento da execução, na descrição breve, mas incisiva, construída por Machado: “O instante fatal foi realmente um instante; o réu esperneou, contraiu-se, o algoz cavalgou-o de um modo airoso e destro ; passou pela multidão um rumor grande, Rubião deu um grito, e não viu mais nada” (ASSIS, 2012ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. , p. 113, grifos nossos).
À maneira de um montador, o algoz cavalga o condenado, e o faz ágil e elegantemente. Os termos usados para qualificar o movimento (“airoso e destro”), além de tudo, ainda remetem à montaria de cavalos. Essa estratégia de subir sobre os ombros dos condenados à forca tinha, com efeito, o nome de “cavalinho” (SCHERER JR., 2013 SCHERER JR., Cláudio Roberto Antunes. Corda branca em carne negra: os escravos e a pena de morte por enforcamento no Brasil Império. Analecta, Guarapuava, v. 14, n. 1, p. 37–54, 2013. Disponível em: https://revistas.unicentro.br/index.php/analecta/article/view/3771 . Acesso em: 8 nov. 2021.
https://revistas.unicentro.br/index.php/...
, p. 46) e seu objetivo era acelerar a morte do réu. O pintor Jean-Baptiste Debret, que retratou a vida na corte do Rio de Janeiro do século XIX, também remete ao termo “cavalo” ao descrever um ritual de enforcamento, no qual um dos carrascos “põe-se a cavalo sobre os ombros do condenado”, permanecendo nessa posição “até que a elasticidade dos ombros da vítima mostre que sucumbiu” ( apud RIBEIRO, 2005RIBEIRO, João Luiz. No meio das galinhas as baratas não têm razão: a Lei de 10 de junho de 1835: os escravos e a pena de morte no Império do Brasil, 1822-1889. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. , p. 13).
Nesse final de capítulo, portanto, ficamos sabendo o motivo pelo qual Rubião escolheu determinado cocheiro ou por que o episódio do enforcamento lhe forneceu a solução para a dúvida que o afligia: a lembrança do algoz sobre os ombros do réu remetia justamente a cavalos. Não se trata, no entanto, da primeira vez que um escravizado aparece equiparado à figura do cavalo na obra de Machado. A cena evoca também a personagem Prudêncio em Memórias póstumas , do qual um Brás Cubas ainda criança costumava tripudiar:
Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia – algumas vezes gemendo – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um “ai, nhonhô!”, ao que eu retorquia: “Cala a boca, besta!”
(ASSIS, 2015bASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015b. v. 1, p. 596-733. , p. 612).
Numa crônica da série Bons Dias! , publicada entre abril de 1888 e agosto de 1889 na Gazeta de Notícias , é mencionada a morte de um carrasco de Minas Gerais, cuja notícia sublinhava o seu “desprezível” ofício (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. Bons Dias! Introdução e notas de John Gledson. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. , p. 212). O cronista fica perplexo com o adjetivo, argumentando que o ofício fora “criado por lei” e que a “bela sociedade” (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. Bons Dias! Introdução e notas de John Gledson. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. , p. 212) é quem estabelecera a pena de morte. E completa: “[…] se o carrasco sai a matar um homem, é porque o mandam” (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. Bons Dias! Introdução e notas de John Gledson. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. , p. 213). O trecho é importante porque ressalta a opinião de Machado de Assis sobre as execuções da pena de morte então vigentes: a culpa não deveria recair sobre os carrascos, mas sobre a sociedade que a instituiu. Do mesmo modo, a equiparação dos escravizados a cavalos na cena da forca não é feita pelo autor, mas pelo narrador, um membro da “bela sociedade” de seu tempo.
Voltando a Quincas Borba , no capítulo seguinte ao do enforcamento há a adição de mais um componente nesse nivelamento. Depois de cessar a lembrança, Rubião volta a si e ouve um comentário do cocheiro que o leva. Este diz que tem amizade pelo seu cavalo e que podia contar coisas extraordinárias sobre ele, o cavalo, que outros dizem ser mentiras. Em seguida, o cocheiro interpela o interlocutor a concordar que cavalo e cachorro são os animais que mais gostam de pessoas. E acrescenta: “Cachorro parece que inda gosta mais…” ([ASSIS, 2012ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. , p. 114). O narrador intervém e diz que a menção ao animal faz Rubião lembrar de Quincas Borba, o cachorro.
Vê-se aqui uma operação sutil: depois de animalizar o escravo condenado, agora o cavalo é humanizado. Depois, o cavalo é equiparado ao cachorro, ou melhor, este é considerado superior, mais humano talvez que o cavalo. Em seguida, a referência ao cachorro faz Rubião recordar-se de Quincas Borba, o cachorro que tem o mesmo nome de seu antigo dono, fechando o círculo em que tudo está nivelado. 1 1 O procedimento lembra o dispositivo usado por Antonio Candido ao analisar O cortiço , de Aluísio Azevedo. Nesse ensaio, Candido recupera um dito humorístico do final do século XIX para desvendar a perspectiva do escritor ao construir o romance: “Para português, negro e burro, três pês: pão para comer, pano para vestir, pau para trabalhar”. O crítico diz que os termos refluem uns sobre os outros, tanto no plano sonoro como no semântico, e que resulta disso uma “contaminação ideológica”, em que tudo acaba se equiparando. Assim, tanto o português imigrante, que constrói sua riqueza por meio do trabalho, como o negro escravo, cujo trabalho é forçado, são rebaixados à animalidade por meio desse dito, usado por homens livre e pobres a fim de confirmar sua superioridade (CANDIDO, 2004 , p. 109-114).
Parte da crítica já havia chamado a atenção para o episódio do enforcamento. John Gledson ( 2003GLEDSON, John. Quincas Borba. In: GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 73-144. , p. 94), por exemplo, afirma que a cena mostra a “violência transferida” da escravidão, em nível mais institucionalizado do que Machado já mostrara no episódio de Prudêncio, em Brás Cubas . É um resumo do horror do regime, reforçado pela atitude “galharda”, pelo modo “airoso e destro” (GLEDSON, 2003GLEDSON, John. Quincas Borba. In: GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 73-144. , p. 94) do carrasco, também ele um escravo. Para Gledson ( 2003GLEDSON, John. Quincas Borba. In: GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 73-144. , p. 96), a passagem abre “um reino raramente penetrado de maneira tão direta nos romances de Machado – a escravidão e sua brutalidade”. Ele acrescenta que Machado pretendia retratar, com essa cena, “os conflitos com os quais estava aturdida a sociedade brasileira” (GLEDSON, 2003GLEDSON, John. Quincas Borba. In: GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 73-144. , p. 96), mesmo que em um nível inconsciente. No entanto, o crítico diz que o episódio fica isolado do resto da trama e nada do tipo torna a aparecer. Uma das razões apontadas seria porque a repetição de episódios semelhantes tornaria o romance didático e sem o distanciamento valorizado por Machado, e outra, ainda segundo Gledson, porque tornaria a trama inverossímil.
Com efeito, José Antonio Pasta Jr. ( 2016PASTA JR., José Antonio. Dialética do Alfenim. Teatrojornal: site de crítica teatral, 16 set. 2016. Disponível em: . , on-line) considera a cena do enforcamento o “coração das trevas” da obra, “a verdade do ponto de vista narrativo de Quincas Borba ”. Para o crítico, Machado pretendeu com o romance investigar as feições da barbárie brasileira num momento de atualização mercantil e financeira do país, que entretanto ainda mantinha tardiamente a escravidão, gerando um “copioso engendro de formas de crueldade” (PASTA JR., 2016PASTA JR., José Antonio. Dialética do Alfenim. Teatrojornal: site de crítica teatral, 16 set. 2016. Disponível em: . , on-line), em que o trabalho escravo e o cálculo capitalista se retroalimentavam.
De forma resumida, digamos que Rubião primeiro se debate entre o amor a Sofia e os negócios com Palha. Depois, a indecisão na livre escolha entre os tílburis é comparada à hesitação na cena do enforcamento. Os apelos dos cocheiros no presente invadem as lembranças da execução. As vozes do narrador, de Rubião e dos cocheiros, em certos momentos, mesclam-se por meio do discurso indireto livre. O narrador também opera uma associação livre entre cavalos, o carrasco e cachorros, que acabam por se equiparar.
Essa indistinção entre passado e presente, entre narrador e personagens e, no limite, entre humanos e animais é um dos efeitos que o sistema escravista produziu e que Machado divisou na sociedade brasileira, procurando transpô-la literariamente no capítulo do enforcamento. Nessa breve cena, é como se Machado imaginasse que o capitalismo, iniciando na época sua fase financeira, ainda conviveria por longo tempo com os efeitos da escravidão, então recentemente abolida, e que essa configuração moldaria a sociedade brasileira por anos afora.
Referências
- ASSIS, Machado de. Bons Dias! Introdução e notas de John Gledson. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.
- ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.
- ASSIS, Machado de. Contos avulsos II. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015a. v. 3, p. 228-234.
- ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015b. v. 1, p. 596-733.
- CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. O discurso e a cidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. p. 105-129.
- GLEDSON, John. Quincas Borba. In: GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 73-144.
- GLEDSON, John. Quincas Borba: um romance em crise - Dossiê duas crises machadianas. Machado de Assis em Linha – Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 32-55, dez. 2011.
- PASTA JR., José Antonio. Formação supressiva. 2011. 282 f. Tese (Livre-docência em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
- PASTA JR., José Antonio. Dialética do Alfenim. Teatrojornal: site de crítica teatral, 16 set. 2016. Disponível em: .
- RIBEIRO, João Luiz. No meio das galinhas as baratas não têm razão: a Lei de 10 de junho de 1835: os escravos e a pena de morte no Império do Brasil, 1822-1889. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
- SCHERER JR., Cláudio Roberto Antunes. Corda branca em carne negra: os escravos e a pena de morte por enforcamento no Brasil Império. Analecta, Guarapuava, v. 14, n. 1, p. 37–54, 2013. Disponível em: https://revistas.unicentro.br/index.php/analecta/article/view/3771 . Acesso em: 8 nov. 2021.
» https://revistas.unicentro.br/index.php/analecta/article/view/3771 - SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor, as batatas: forma literária e processo social no romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
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O procedimento lembra o dispositivo usado por Antonio Candido ao analisar O cortiço , de Aluísio Azevedo. Nesse ensaio, Candido recupera um dito humorístico do final do século XIX para desvendar a perspectiva do escritor ao construir o romance: “Para português, negro e burro, três pês: pão para comer, pano para vestir, pau para trabalhar”. O crítico diz que os termos refluem uns sobre os outros, tanto no plano sonoro como no semântico, e que resulta disso uma “contaminação ideológica”, em que tudo acaba se equiparando. Assim, tanto o português imigrante, que constrói sua riqueza por meio do trabalho, como o negro escravo, cujo trabalho é forçado, são rebaixados à animalidade por meio desse dito, usado por homens livre e pobres a fim de confirmar sua superioridade (CANDIDO, 2004CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. O discurso e a cidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. p. 105-129. , p. 109-114).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
31 Jan 2024 -
Aceito
22 Abr 2024