Resumo:
O objetivo deste artigo é compreender as possibilidades e os limites para que a hospitalidade genuína se concretize em hostels, segundo a visão de anfitriões que trabalham neste meio de hospedagem em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. O tema proposto é, ainda, incipiente no contexto brasileiro, do ponto de vista dos estudos acadêmicos, das iniciativas governamentais e dos investimentos mercadológicos nesse meio de hospedagem. A metodologia foi de abordagem qualitativa e envolveu pesquisa de campo em três hostels selecionados mediante critérios preestabelecidos, nos quais foram realizadas observações e entrevistas com seis anfitriões que trabalham nesse segmento. As informações recolhidas foram sistematizadas pela análise de conteúdo, contando com o suporte do software NVivo. Os principais resultados evidenciam que os atos de receber/acolher e hospedar são regados por um calor humano dedicado aos hóspedes por parte dos anfitriões dos hostels estudados. Tal constatação coloca em realce aspectos como o sacrifício de si, em prol do bem-estar da pessoa acolhida, revelando a linha tênue existente entre o ato de servir e o servilismo na trama hospitaleira. A hospitalidade em hostels é regida pela tônica comercial, mas as observações e entrevistas evidenciaram que os anfitriões abrem possibilidades para que a hospitalidade genuína se manifeste nesse contexto, não se resumindo, portanto, a um mero exercício cênico. A presente pesquisa pretende, desse modo, contribuir com os estudos sobre a hospitalidade, tendo em vista o embrionário debate, no que se refere à manifestação da dádiva em contextos comerciais, que para a sua concretização, entram em cena sentidos e significados que são, constantemente, desafiados por limites e possibilidades presentes na trama hospitaleira.
Palavras-chave: Hospitalidade; Hostel; Dádiva; Anfitriões; Hóspedes
Resumen:
El objetivo de este artículo es comprender las posibilidades y los límites para que la hospitalidad genuina se dé en hostal, según la visión de los anfitriones que actúan en este tipo de alojamiento en Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. El tema propuesto es aún incipiente en el contexto brasileño desde el punto de vista de los estudios académicos, iniciativas gubernamentales e inversiones de mercado en este tipo de alojamiento. La metodología fue de enfoque cualitativo e involucró una investigación de campo en tres hostal seleccionados según criterios preestablecidos, en los cuales se realizaron observaciones y entrevistas a seis anfitriones. La información recolectada fue sistematizada mediante análisis de contenido, con el apoyo del software NVivo. Los principales resultados muestran que los actos de recepción/acogida y hospedaje están regados por una calidez humana dedicada a los huéspedes por parte de los anfitriones de los hostales estudiados. Este hallazgo destaca aspectos como el sacrificio de sí mismo por el bienestar de la persona acogida, revelando la fina línea entre el acto de servir y el servilismo en el tejido hospitalario. La actitud de los anfitriones está en consonancia con la llamada grandeza detrás de la dinámica de la hospitalidad, característica ampliamente transmitida por los estudios sobre el tema, especialmente en lo que se refiere a la hospitalidad doméstica. La hospitalidad en los hostales se rige por el tono comercial, pero las observaciones y entrevistas mostraron que los anfitriones abren posibilidades para que la genuina hospitalidad se manifieste en este contexto, no reduciéndose, por lo tanto, a un mero ejercicio escénico. La investigación pretende, de esta manera, contribuir a los estudios sobre hospitalidad, frente al embrionario debate sobre la manifestación del don en contextos comerciales, que, para su realización entran en juego sentidos y significados que son, constantemente interpelados por los límites y las posibilidades presentes en la trama de la hospitalidad.
Palabras Clave: Hospitalidad; Regalo; Hostal; Anfitrión; Huéspedes
Abstract:
The purpose of this article is to understand the possibilities and limits for genuine hospitality to materialize in hostels, according to the vision of hosts who work in this type of accommodation in Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil. The proposed theme is still incipient in the Brazilian context from the point of view of academic studies, government initiatives and market investments in this type of accommodation. The methodology used a qualitative approach and involved field research in three hostels selected according to pre-established criteria, in which observations and interviews were carried out with six hosts. The collected information was systematized by content analysis, with the support of the NVivo software. The main results show that the acts of receiving/welcoming and hosting are watered by a human warmth dedicated to the guests by the hosts of the studied hostels. This finding highlights aspects such as self-sacrifice for the well-being of the person being welcomed, revealing the fine line between the act of serving and servility in the hospital context. The posture of the hosts is in line with the so-called greatness behind the act of welcoming a person, a characteristic widely conveyed by studies on the subject, especially with regard to domestic hospitality. Hospitality in hostels is governed by the commercial tone, but the observations and interviews showed that the hosts open possibilities for genuine hospitality to manifest itself in this context, not being limited, therefore, to a mere scenic exercise. The research in question intends, in this way, to contribute to the studies on hospitality, in view of the embryonic debate regarding the manifestation of the gift in commercial contexts, which, for its realization, come into play senses and meanings that are, constantly challenged by limits and possibilities present in the hospitable plot.
Key-words: Hospitality; Hostel; Gift; Hosts; Guests
INTRODUÇÃO
A hospitalidade genuína, concebida enquanto dádiva (Mauss, 2003), em geral, é destacada na produção teórica sobre o tema como aquela que se concretiza no espaço doméstico (Camargo, 2015; Gotman, 2009). Será que a hospitalidade genuína pode se manifestar em meios de hospedagem comerciais? Buscando respostas para essa indagação, o objetivo do presente artigo é compreender as possibilidades e os limites para que a hospitalidade genuína se concretize em hostels, segundo a visão de anfitriões que trabalham nesse meio de hospedagem em Belo Horizonte.
A dádiva dar-receber-retribuir proposta por Marcel Mauss (2003) garantiu o sustentáculo para se compreender a dinâmica da hospitalidade. Para o autor, a hospitalidade constitui-se por um processo de dar e receber/acolher, por parte dos anfitriões, os hóspedes, e estes, por sua vez, devem retribuir o acolhimento outrora recebido, durante a trama hospitaleira. Esta “trama” inclui, entre outros aspectos, as relações estabelecidas entre anfitriões, hóspedes e o espaço de acolhimento em que se manifesta a hospitalidade.
No contexto de empresas e negócios turísticos, por sua vez, a hospitalidade também vem sendo estudada por autores brasileiros (Valduga, 2019; Murgel, 2018; Oliveira, 2017) e estrangeiros (Lashley, 2018, 2015, 2000; Chon & Sparrowe, 2003). No entanto, muitas vezes, são ressaltadas, nesta produção acadêmica, as (im)possibilidades de a hospitalidade genuína ocorrer fora do espaço doméstico (Gotman, 2009, 2008). Ao manifestar-se em um ambiente comercial, por vezes, a hospitalidade pode ser encenada, teatralizada, rumo à monetização e ao lucro, em detrimento de uma manifestação genuinamente hospitaleira. Como afirma Camargo (2004, p. 45), “a hospitalidade sempre foi atributo de pessoas e de espaços, e não de empresas”. Seguindo essa linha de interpretação, indaga-se: quais são as possibilidades e os limites para que a hospitalidade genuína se concretize na dinâmica social de estabelecimentos turísticos comerciais, como os hostels?
O hostel, geralmente, é caracterizado como um meio de hospedagem descontraído que propicia o encontro de pessoas, favorecendo a criação de vínculos de amizade (Giaretta, 2003). Normalmente, esse tipo de empreendimento oferece “[...] mais e melhores oportunidades para os hóspedes socializarem e conhecerem pessoas de diferentes culturas, dada a existência de áreas comuns e dormitórios” (Cró, 2018, p. 42). Diversas são as facilidades disponibilizadas pelos hostels e algumas delas consistem na partilha constante de ambientes coletivos, assim como no convívio de pessoas, incluindo hóspedes e profissionais que trabalham nesse tipo de estabelecimento, ou seja, os “anfitriões”. Sob esse viés, um hostel se insere na perspectiva relacional humana preconizada na trama da hospitalidade.
Foi a partir dos anos 2000 que a produção científica nacional sobre hostel teve início, estimulada, sobretudo, pelos estudos e pelas pesquisas empreendidas por docentes e discentes dos cursos de hospitalidade e de turismo e hotelaria, vinculados a universidades, como a Anhembi-Morumbi, em São Paulo, e a Univali, esta última localizada no Vale do Rio Itajaí, em Santa Catarina (Bahls & Pereira, 2017). Em geral, as publicações sobre hostel colocam em evidência três aspectos relevantes. O primeiro se refere à urgência de sistematizar estudos sobre essa temática, dada a incipiência de pesquisas sobre hostels, especialmente no contexto brasileiro (Pereira & Gomes, 2021; Thomazi, 2019; Bahls & Pereira, 2017; Bahls, 2015; Silva & Kohler, 2015).
O segundo aspecto diz respeito à ausência ou embrionária presença desse tipo de hospedagem em iniciativas governamentais de nosso país. Como exemplo, pode ser citado o Sistema Brasileiro de Classificação de Meios de Hospedagem criado pelo Ministério do Turismo (MTur), um instrumento de referência para o turismo nacional encarregado de regular o setor de meios de hospedagem do país. Embora esse sistema de classificação esteja suspenso e em processo de reestruturação desde 2016 (Aguiar, Brito, & Perinotto, 2020), cabe ressaltar que o tipo de alojamento caracterizado como hostel não foi contemplado na referida iniciativa, sendo, portanto, negligenciado por parte do poder público (Pereira & Gomes, 2020; Bahls & Pereira, 2017).
Por último, no que diz respeito ao contexto brasileiro, embora possam ser verificadas algumas iniciativas pontuais, a maioria dos hostels concentra-se no eixo Rio-São Paulo. Isso é válido quando se considera tanto o campo acadêmico, como o âmbito mercadológico. Dessa forma, as publicações científicas nacionais sobre hostel e a localização de estabelecimentos deste tipo se mostram em maior número nesses dois Estados, quando comparados aos demais Estados brasileiros (Bahls, 2015). Desse modo, torna-se relevante investigar esse meio de hospedagem em diferentes contextos, tendo em vista ampliar os estudos e aprofundar conhecimentos sobre hostels. Este artigo está dividido em quatro partes. A seguir, o fenômeno da hospitalidade será tratado no âmbito de produções teóricas sobre o tema. O tópico seguinte dedica-se à metodologia seguida na investigação. Posteriormente, apresentam-se os resultados e discussões da pesquisa, e, por fim, são feitas as considerações finais.
REVISÃO TEÓRICA
Um olhar para a hospitalidade
Hodiernamente, a hospitalidade é pauta de debates e diálogos, especialmente no contexto acadêmico internacional. Essas discussões evidenciam o caráter transversal da hospitalidade, que, por vezes, é ambíguo, polissêmico e paradoxal. Nas últimas décadas, escritos e reflexões “sobre o que venha a ser hospitalidade e colaborações sobre como construir um conceito que reúna sentido, amplitude e consistência têm sido dadas por um já vasto conjunto de pesquisadores do mundo todo” (Spolon, 2015, p. 1). A autora menciona o fato de os estudiosos da hospitalidade estarem vinculados a distintas áreas do conhecimento, o que sugere formações diversificadas, bem como diferentes posicionamentos teórico-metodológicos acerca dessa temática.
De maneira síncrona a tal pluralidade, tem-se a base que sustenta a maior parte da produção teórica sobre a hospitalidade: a “Teoria da Dádiva”. Contida na obra intitulada “Ensaio sobre a Dádiva” datada de 1923, essa sistematização foi desenvolvida por Marcel Mauss, pioneiro da antropologia francesa (Mauss, 2003). Ao conceber a tríade dar-receber-retribuir, Mauss (2003) garantiu a base para se compreender a dinâmica da hospitalidade. Embora a obra do autor não seja dedicada especificamente à hospitalidade, as reflexões basilares sobre esse tema podem ser nela encontradas (Gotman, 2004).
“É a partir, portanto, das diferentes interpretações e enfoques que se dão sobre o Ensaio sobre a Dádiva que todas as discussões teóricas sobre a hospitalidade vão tomar corpo e caminhos diversos” (Murgel, 2018, p. 3). O ato de dar-receber-retribuir rege as relações entre anfitriões e hóspedes nos incontáveis espaços de acolhimento, cada um dos envolvidos no processo hospitaleiro deve cumprir um papel, o anfitrião conceder a hospitalidade ao receber/acolher os hóspedes, e estes devem retribuir o acolhimento recebido. As relações estabelecidas entre os sujeitos (anfitriões e hóspedes) durante a acolhida constituem na denominada trama da hospitalidade.
No Brasil, Luiz Octávio de Lima Camargo é um autor de destaque na produção teórica sobre hospitalidade. Uma análise de publicações sobre o tema evidencia que muitas pesquisas brasileiras sobre a hospitalidade se fundamentam nas publicações deste autor. Isso pode ser devido às diversas reflexões, discussões e aos debates por ele formulados, com vistas a compreendê-la em suas infindáveis possibilidades (Camargo, 2015).
Há que se ressaltar, no entanto, que vários autores brasileiros vêm realizando estudos e pesquisas dedicados à hospitalidade. De acordo com Oliveira e Santos (2010, p. 1-2), dentre os variados estudiosos da área no país, alguns acreditam que a hospitalidade está presente “[...] em todas as circunstâncias do fazer humano relacionado ao ato de acolher pessoas”. As autoras supracitadas prosseguem: “No Brasil, a hospitalidade vem sendo abordada sob essa perspectiva, por autores como Luiz Octávio de Lima Camargo (2003, 2004, 2005, 2007), Ada de Freitas Maneti Dencker (2004, 2005), Celia Maria de Moraes Dias (2002), Lúcio Grinover (2007, 2008)”.
Em geral, a produção teórica sobre a hospitalidade enfatiza que ela se faz presente em todo o processo humano de receber pessoas, sendo dotada de uma complexidade inerente. Por um lado, a hospitalidade tem um caráter aparentemente livre, voluntário, gratuito e desinteressado, sendo este último no sentido de não se esperar reciprocidade ao doar-se ao outro de forma hospitaleira (Derrida, 2003; Grassi, 2004). Nessa perspectiva, ela é dotada de incondicionalidade latente. Como revelam os estudos de Derrida (1997), a ausência de imposições e obrigações culminam na dita hospitalidade genuína.
Por outro lado, concomitantemente, o interesse, a obrigatoriedade, a imposição de limites, leis e regras podem resultar na perda do caráter incondicional da hospitalidade (Bastos, Rameh, & Bitelli, 2016). Destarte o risco de perda da incondicionalidade, a hospitalidade pode ser compreendida como uma virtude “[...] que se espera quando nos defrontamos com o estranho (e todo estranho é também um estrangeiro), alguém que ainda não é, mas deve ser reconhecido como o outro” (Camargo, 2015, p. 3).
Abrangendo, portanto, interações bem ou mal sucedidas entre os sujeitos, a trama da hospitalidade desemboca na urbanidade e na hospitabilidade. A primeira consiste no encontro entre pessoas respaldado por um tratamento polido, porém carregado de impessoalidade, com o intuito de gerar a impressão agradável de um serviço profissional eficiente. A urbanidade denota, assim, uma hospitalidade encenada, ou seja, o exercício cênico da hospitalidade, tônica que prevalece tanto em âmbito comercial assim como em todos os ambientes voltados para o atendimento ao público e prestação de serviços, seja tanto na forma presencial como na virtual (Camargo, 2021; Gotman, 2008, 2009).
Todavia, a sociedade moderna, cada vez mais, acelera o contato entre desconhecidos e estranhos e esse processo acaba por alterar as “[...] instituições basilares da sociedade como casa, vizinhança, família, trabalho. A garantia de ser bem recebido em todos os lugares para onde vamos torna-se uma necessidade” (Camargo, 2021, p. 1), mas, por vezes, consiste apenas em um exercício cênico. Segundo o autor, a urbanidade acaba limitando as interações sociais, uma vez que “crescem as reivindicações por uma hospitalidade mais carregada de calor humano” (p. 1).
Em face disso, parte-se para o segundo tipo de interação bem sucedida, a hospitabilidade. Ela consiste na hospitalidade dotada de calor humano, ou seja, a hospitalidade genuína. Segundo o autor, ela é a chancela que marca os encontros cotidianos “entre pessoas que sabem e gostam de receber e de serem recebidas, que conhecem e praticam instintivamente ou por aprendizado as leis da hospitalidade” (Camargo, 2021, p. 6).
Ancorado em Guimarães (2019), Camargo (2021) afirma que a hospitabilidade é basicamente motivada - intrínseca e extrinsecamente - pelo gosto de encontrar pessoas e, sob este viés, ainda que o autor mencione o fato de não pretender definir um perfil padrão de pessoas com habilidades hospitaleiras, a vocação, o gosto por servir e o traço de personalidade hospitaleira são algumas das características dos conhecidos como “dotados de hospitabilidade”. De acordo com o autor, “são como aqueles personagens bastante representados na ficção que, ao serem confrontados entre o protocolo, a atitude mais cômoda, e a essência de suas missões, optam por este caminho mais difícil e arriscado” (p. 6).
Similarmente, para Lashley (2015) esse perfil de pessoas tende a ofertar uma hospitalidade para além do ganho pessoal, voltada para a satisfação das pessoas acolhidas. Em face disso, o autor defende a hospitalidade “como uma característica fundamental, onipresente na vida humana e a hospitabilidade, em si, indicaria a disposição das pessoas de serem genuinamente hospitaleiras, sem qualquer expectativa de recompensa ou de reciprocidade” (Lashley, 2015, p. 3). Considerando essa fundamentação sobre a hospitalidade, apresenta-se, na sequência, a metodologia da pesquisa realizada.
METODOLOGIA
A pesquisa contou com uma metodologia de abordagem qualitativa, envolvendo, inicialmente, o estudo bibliográfico relacionado aos temas hostel e hospitalidade. A investigação contemplou, ainda, uma pesquisa de campo que foi concretizada por meio de duas estratégias: observações e entrevistas semiestruturadas em três hostels da cidade de Belo Horizonte. Foram considerados três critérios previamente estipulados para selecionar os estabelecimentos a serem pesquisados, e destacados na produção bibliográfica ou nas fontes de pesquisa:
-
Localização central, devido ao fato de a localização ser considerada um dos atributos representativos para se qualificar um hostel (Macedo, 2018).
-
Proximidade de atrativos turísticos, tendo em vista a importância para os hóspedes de se hospedarem em locais que facilitam o deslocamento no destino visitado, sobretudo a pé (Presser, Kroth, Laudelino, & Menezes, 2016).
-
Disponibilização de atividades de lazer, uma vez que os hostels são caracterizados como espaços que oferecem experiências de lazer aos hóspedes, tanto internas quanto externas ao meio de hospedagem (Pereira, 2019; Bahls, 2018; Silva & Kohler, 2015; O’regan, 2010; Volante, 2011; Saraiva, 2013; Hetch & Martin, 2006; Giaretta, 2003).
Na pesquisa de campo, primeiramente foi feita uma imersão em cada hostel pesquisado, visando a estabelecer os primeiros contatos com os sujeitos e com o objeto de estudo (Woortmann & Woortmann, 1997). Essa imersão foi essencial para o reconhecimento dos hostels e para a realização das observações. Em relação às entrevistas semiestruturadas, elas seguiram um roteiro que foi tomado como referência para as perguntas feitas a seis profissionais, dois de cada hostel selecionado. Cabe mencionar que cada entrevistado será denominado de “anfitrião”. Essa palavra foi escolhida devido ao fato dos profissionais entrevistados se autonomearem desse modo, em detrimento de termos como recepcionista, funcionário ou colaborador.
As entrevistas foram transcritas na íntegra e, com a intenção de manter a fidelidade dos relatos, os vícios de linguagem e o modo de falar dos sujeitos foram respeitados. Além disso, os depoimentos desses sujeitos são destacados neste artigo em itálico, para diferenciá-los das citações de autores. A identidade tanto dos entrevistados quanto dos hostels foi mantida em sigilo, visando a preservar seu anonimato e sua integridade. Para os anfitriões, elaborou-se codinomes relacionados a aspectos dos sujeitos que se sobressaíram durante as entrevistas. Já em relação aos espaços a codificação dividiu-se em: HB1, HB2 e HB3.
Vale mencionar, sobre o processo de coleta de informações, a prévia aprovação da pesquisa pelo COEP (Comitê de Ética em Pesquisa) da universidade responsável pela investigação, sob o n. 16972719.1.0000.5149, assim como do TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido), e das Cartas de Anuência dos hostels estudados. Tais instrumentos apresentaram as informações sobre o referido estudo, bem como a solicitação para os sujeitos participarem voluntariamente da pesquisa.
A pesquisa fundamentou-se na análise de conteúdo proposta por Bardin (2011, p. 15), tratando-se da sistematização e análise dos dados. Esse método, para a autora, consiste em um “[...] conjunto de instrumentos de cunho metodológico em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a discursos extremamente diversificados”. Nesse sentido, adotaram-se os três critérios propostos por Bardin (2011):
-
Pré-análise: consistiu na organização e seleção material que compôs o corpus da pesquisa. Nesta etapa, recorreu-se à sugestão da autora de utilizar recursos para agrupar e auxiliar na análise dos dados da pesquisa. Sendo assim, contou-se com o auxílio do software NVivo (versão 11), programa que contribuiu com a análise e sistematização de informações, uma vez que organiza e facilita o processo de categorização de dados (Freitas, Arruda, & Falqueto, 2017).
-
Exploração do material: compreendeu a definição de categorias da pesquisa, considerando a classificação e codificação dos dados coletados.
-
Tratamento dos resultados e interpretações: destinou-se a inferência, interpretação e análise crítico-reflexiva das informações coletadas.
O software NVivo subsidiou a elaboração de modelos que condensaram os dados da pesquisa, além de contribuir com a sistematização e o agrupamento das informações. Dentre os variados recursos disponibilizados pela ferramenta, selecionou-se o recurso ‘frequência de palavras’. Por meio desta estratégia, o software produz ‘nuvens’ contendo uma padronização de 30 palavras mais recorrentes do material da investigação, ou seja, as entrevistas transcritas.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Esta seção apresenta alguns dos principais resultados da pesquisa de campo que, como já mencionado, contou com duas estratégias de coleta de informações: observações e entrevistas semiestruturadas em três hostels da cidade de Belo Horizonte.
“Propensão em servir”; “alma de receber pessoas”; “ser completamente educado”, “o foco é no hóspede”, “ser o mais agradável possível”, “se colocar no lugar do hóspede”. Tais palavras ecoaram no discurso dos anfitriões entrevistados, quando foram convidados a discorrer sobre o processo de recebimento dos hóspedes. Palavras que, no convívio diário, materializaram-se em ações, gestos e posturas que demonstravam, por vezes, um sacrifício de si mesmo, na busca pelo servir ao outro constantemente.
Eram recorrentes as situações em que o anfitrião interrompia a refeição que estava preparando ou ingerindo, abandonava pela metade a água que estava tomando, tardava a vontade de ir ao banheiro, cessava as suas pausas de trabalho de forma repentina, saía apressadamente do banheiro, e tantas outras ocasiões, para atender às necessidades dos hóspedes. O ato de receber o hóspede nos hostels pesquisados, por parte do anfitrião, coloca em realce uma disposição de ser genuinamente hospitaleiro (Camargo, 2021; Lashley, 2015), sugerindo um constante despir-se de si mesmo para cobrir o outro, como é possível constatar nos relatos a seguir.
Se eu tô ali naquela recepção e eu posso estar mal-humorado, de saco cheio, comendo, doido pra ir ao banheiro. Se a pessoa vira e me pede, vamos dizer assim, um copo d’água, eu tenho que largar tudo aquilo que eu “tô” fazendo para resolver aquilo. Enquanto eu não resolvo aquilo, eu não posso servir a mim mesmo, eu tenho que servir aquela pessoa. (Antenado, mineiro, 29, HB1).
Quando alguém me pergunta ou solicita qualquer coisa, eu paro na hora o que eu estiver fazendo pra poder atender aquela pessoa da melhor forma possível. Então, eu acho que quando você tem aquela alma de receber pessoas tudo fica mais fácil aqui. (Ubuntu, mineira, 34, HB2).
No contexto profissional dos hostels estudados, servir pode significar uma renúncia às próprias necessidades, até mesmo fisiológicas, como relata Antenado, o que, por vezes, pode se tornar um processo exaustivo. Conforme exemplificado por Buscadora, “[...] você não tinha tempo pra fazer hora de almoço, você tinha que ficar por conta do hostel o tempo todo, então eu achei bem cansativo” (Buscadora, mineira, 31, HB1). Esta disposição integral, muitas vezes, é notável nesses espaços, evidenciando um servir dotado de raízes profundas que atravessam tempos e espaços, manifestando-se nos hostels contemporâneos.
Um exemplo disso refere-se à carga religiosa por trás dos atos de receber e hospedar o outro, pois, historicamente existe o chamado “elo sagrado” da hospitalidade (Noguero, 2019; Castelli, 2005). Vale lembrar os tempos longínquos da Grécia, em que o hóspede era considerado maior que Deus, devendo ser tratado com profunda diligência pelo anfitrião. “A hospitalidade deve prevalecer sobre a oração e sobrepujar a presença de Deus: é preferível fazer Deus esperar do que deixar de receber ao hóspede com diligência” (Talmud - Livro sagrado dos judeus).
Seja em maior ou menor grau, essa característica está enraizada no imaginário social da dinâmica “hosteleira”, mesmo com o passar dos tempos. Ela se manifesta, cotidianamente, por meio de práticas orientadas sob tal perspectiva no momento de acolher os hóspedes. Segundo Castelli (2005, p. 7), embora o elo sagrado tenha sido “testemunhado ao longo da história da humanidade”, não podendo “ser menosprezado para quem exercer, na modernidade, o comércio da hospitalidade”, esse cenário reforça a preocupação do autor em não confundir a comercialização da hospitalidade com servilismo, tendo em vista a errônea utilização do segundo termo, especialmente na prática, como sinônimo de hospitalidade.
Nesse sentido, no contexto dos hostels investigados, observa-se como é tênue a linha existente entre o ato de acolher e o servilismo na prática de receber os hóspedes, como notou-se no discurso dos entrevistados. Isso sinaliza os cuidados por parte do anfitrião ao desempenhar essa função sem, contudo, perder a dignidade, rebaixando-se durante a acolhida. Pois, em caso da atuação de forma subserviente para atender às necessidades dos hóspedes, figuraria como uma relação de servilismo.
Na contramão desse panorama, Castelli (2005) chama a atenção para a importância da sociedade moderna entender os sentidos e significados da hospitalidade para os seres humanos desde os primórdios dos tempos. Para ele, “[...] isso certamente trará valiosos subsídios para uma melhor compreensão do exercício das atividades nos meios de hospedagem atuais” (p. 7). A ideia está centrada na perspectiva de estimular os profissionais da área a compreenderem a “grandeza” por trás do ato de receber ou acolher uma pessoa. Essas pessoas, segundo o referido autor, são os protagonistas da trama da hospitalidade. “Grandeza” essa que pode ser notada nas palavras dos anfitriões entrevistados na pesquisa, devido à importância dada no tratamento direcionado ao hóspede no início da acolhida. Nas entrevistas, o bem receber foi destacado como um diferencial da competitividade na área comercial.
A recepção, o momento que os hóspedes chegam, eu tenho que prestar um bom atendimento que eu acredito que não seja mais do que minha obrigação ser completamente educado e fazer já no primeiro momento com que a pessoa se sinta minimamente em casa, me movem assim, sabe? (Sonhador, mineiro, 29, HB3). (Grifos nossos).
[...]eu sou assim [gentil] porque eu acho que a melhor coisa que tem é você ser bem tratado, eu acho que faz uma diferença imensa em qualquer experiência que você vai ter. Então logo na recepção eu trato a pessoa do jeito que eu gostaria de ser tratada. [...] é essa coisa de receber bem, de ser gentil, de colocar o hóspede não diria em primeiro lugar, mas o foco é no hóspede. (Gentil, mineira, 33, HB3). (Grifos nossos).
Nesses relatos, observa-se a preocupação dos anfitriões em tratar os hóspedes da melhor maneira possível. Bom atendimento, gentileza e sentir-se em casa são algumas das características expressas pelos anfitriões, que regem o processo de receber os visitantes, sem, contudo, requerer destes uma atitude recíproca frente ao tratamento prestado. Esse pressuposto remete à ideia de acolher um desconhecido de forma genuína, como já disse Derrida (2003) em suas pesquisas: “que eu o deixe vir, que o deixe chegar, e ter um lugar no lugar que ofereço a ele, sem exigir dele nem reciprocidade” (Derrida, 2003, p. 23-25).
Tal cenário pode ser exemplificado na Figura 1, que agrupa os principais resultados da pesquisa no que concerne ao processo de receber e acolher, segundo o ponto de vista dos anfitriões. Nota-se que a palavra “hóspede” está no cerne da figura, evidenciando sua importância para o anfitrião. Ao receber as demandas dos hóspedes, o anfitrião de cada hostel estudado busca expressar calor humano, sanar as possíveis intercorrências e garantir a manutenção do conforto físico e emocional ao longo da hospedagem.
Há um destaque, também, para as palavras “gosto” e “conversar”, associadas aos hóspedes e, ainda que em menor grau, cabe mencionar alguns vocábulos como: “dar”, “receber”, “atenção”, “melhor”, “recepção”, “saber ouvir” e “resolver”. Tais palavras podem ser resumidas na fala da entrevistada Buscadora, para quem o tratamento direcionado a cada hóspede, desde o início, tem como finalidade fazê-lo “se sentir em casa, se sentir querido”. Tal depoimento ratifica, assim, a sensação por parte dos anfitriões de ofertar uma ‘cena agradável’ para os hóspedes durante a acolhida (Camargo, 2021). Afinal, é no processo de abertura para o desconhecido, de si próprio e da própria casa, como diria Derrida (2003), que o ato da hospitalidade se faz poético, se faz genuíno.
A hospitalidade genuína, tal como frisado por Camargo (2021), faz parte de um processo em que os encontros hospitaleiros geraram uma interação bem-sucedida entre os sujeitos, interação esta que o autor subdivide, conforme mencionado anteriormente, em urbanidade (exercício profissional eficiente) e hospitabilidade (hospitalidade genuína). Nesse sentido, a partir da visão dos entrevistados, nota-se a manifestação de ambos tipos de interação humana. Os anfitriões, por exemplo, demonstram saber e, especialmente, gostar de receber os hóspedes. Seja ou não instintivamente, eles praticam a hospitabilidade.
Quando as pessoas chegam aqui e recebem esse tratamento [hospitaleiro] não só meu, mas de toda a equipe, desde a hora que chega, é orientado a ter esse tratamento, e se não conseguir ter acaba não dando certo aqui, porque isso é um dos pilares aqui do hostel. [...] no momento da recepção, nesse momento de seja bem-vindo, manter as coisas organizadas, alguém me pedir e eu ir lá e resolver é o que me faz vestir a camisa, literalmente, e vir pra cá todos os dias, e aí eu já deixei avisado pro pessoal aqui também que o dia que eu perder esse brilho no olho eu pego as minhas coisas e vou embora. (Sonhador, mineiro, 29, HB3). (Grifos nossos).
Os resultados obtidos na pesquisa permitem inferir dois aspectos, o primeiro diz respeito à urbanidade, ou seja, a orientação dada para prestar um serviço hospitaleiro eficiente por parte da equipe. Essa constatação coloca em evidência a hospitalidade como um pilar do hostel: “Então, não só da minha parte, eu vejo que é um esforço coletivo que a gente tem. E sempre que a gente faz reunião, sempre que a gente conversa, a gente fala sobre isso, que é essa coisa de receber bem, de ser gentil” (Gentil, mineira, 33, HB3).
Mediante a isso, a não concretização de um atendimento hospitaleiro, ou seja, o tratamento calcado na urbanidade, pode culminar em demissão, tal como apontado no relato de Sonhador. Como exemplo deste cenário as palavras “serviço”, “diferente” e “experiência” podem ser visualizadas na Figura 1, como algumas das características da prestação do serviço nesses espaços.
Ainda que este estudo não pretenda definir um perfil de anfitrião com habilidades hospitaleiras, um segundo aspecto a ser mencionado relaciona-se com a ideia de que esse profissional precisa demonstrar um “[...] caráter intimista e familiar que possuem desde sua gênese” (Bahls, 2015, p. 164). Frente a isso, o profissional anfitrião no contexto dos hostels investigados se mostra imprescindível para que o encontro com cada hóspede seja bem sucedido. Como lembra Camargo (2021, p. 6), “[...] nunca é demais reforçar a existência de um aspecto essencial da personalidade do indivíduo que gosta de ser hospitaleiro, a prevalência do gosto de servir”. O autor prossegue afirmando: “Se, em regra, as pessoas gostam de ser servidas, há - supõe-se, caso de minoria - pessoas que, ao contrário, gostam de servir” (p. 6).
No processo de receber os hóspedes nos hostels analisados constata-se, portanto, uma junção da hospitabilidade e da urbanidade. Por um lado, manifesta-se o exercício profissional da hospitalidade que, por vezes, pode ser encenado como já disse Gotman (2008, 2019) em suas pesquisas. Por outro lado, transbordando a encenação, tem-se a hospitabilidade enquanto “[...] fruto de uma motivação intrínseca e extrínseca para o gosto de encontrar pessoas. Nesta categoria, as pessoas definem o gesto de servir como a sua vocação e um aspecto importante da sua personalidade” (Camargo, 2021, p. 6). Esses aspectos foram constatados nas seguintes narrativas:
Eu não sei, acho que tá faltando hospitalidade, não é que eu tenho demais, é que tá faltando. Não sei, talvez o mínimo de cuidado, esse olhar no olho igual eu te falei, essa boa vontade em prestar um serviço, em me pedir uma estrela e eu tentar pegar uma estrela e... você quer um pedacinho da lua também? Então eu acho que isso tá faltando lá fora. Não sei se as pessoas são maltratadas lá fora, o que eu fico muito satisfeito na hora que eu tiro a conclusão pra mim, sonhador como pessoa, é que eu não tenho que pensar pra ser assim, entendeu? Parece que isso meio que já tá em mim. (Sonhador, mineiro, 29, HB3). (Grifos nossos).
[...] se você já tem aquela alma de receber as pessoas... eu acho que nisso eu sou boa, sabe, de contactar com as pessoas, de fazer as pessoas se conectarem umas com as outras, eu gosto muito disso, de ser esse elo (...), sabe? (Ubuntu, mineira, 34, HB2). (Grifos nossos).
Cabe ainda um destaque, retomando a Figura 1, para a palavra “pagar”, uma vez que esta remete à relação comercial, à prestação de serviço no hostel. Ainda que a acolhida nesse contexto envolva a monetização, os resultados da pesquisa evidenciaram que há o predomínio da citada poética no ato de receber e hospedar por parte dos anfitriões. Conforme enfatiza o entrevistado Sonhador: “[...] por mais que a pessoa esteja pagando, eu falo: venha, é sua casa, tô aqui, conta comigo no que você precisar durante sua estadia aqui” (Sonhador, mineiro, 29, HB3).
Nesse sentido, há uma oferta de lugar àquele desconhecido, há uma abertura íntima quando o anfitrião se mostra disposto a atender às necessidades de um hóspede que transcende a troca monetária. O que reitera a oferta de uma hospitalidade por parte dos anfitriões para além de ganhos monetários, direcionada para gerar satisfação, alegria e prazer aos hóspedes acolhidos (Lashley, 2015), características observadas nos hostels estudados.
Vale chamar a atenção, no entanto, para os meandros da hospitalidade quando associada à lógica do mercado, que tende a reforçar a ideia de servir incondicionalmente os clientes de forma mimética, uma vez que a hospitalidade se mostra encenada, tanto nos negócios comerciais, como na prestação de serviços turísticos (Gotman, 2009). Faz-se um paralelo com o bordão “o cliente tem sempre razão”. Esta máxima demonstra que, mesmo com o passar dos anos, tal perspectiva se faz presente. Ainda que, por vezes, questionável, o prevalecimento desse princípio pode ser notado nos variados serviços e comércios turísticos.
Segundo Garcia e Araújo (2013), por exemplo, tal prática é consolidada no cenário brasileiro, sendo assim, na realidade dos hostels investigados, isso não seria diferente. Sobre tal aspecto, Gentil afirma que o foco do hostel é o hóspede e, por sê-lo: “sempre que tiver que pender pra algum lado, tem que pender pro lado do hóspede” (Gentil, mineira, 33, HB3). Esse contexto acaba reforçando a priorização do hóspede em relação ao anfitrião. Isso porque, tanto no fenômeno turístico de maneira geral, quanto nos meios de hospedagem pagos “interferem na assimetria da hospitalidade, o pagamento, conferindo àquele que é recebido uma posição de superioridade diante daquele que recebe” (Camargo, 2015, p. 18).
Dessa maneira, para Gotman (2009, p. 8), a relação comercial acaba “liberando os anfitriões face aos hóspedes, desliga-os de toda obrigação de dádiva”. A autora acrescenta o fato de que o cliente não deve obrigações ao devedor: “daí o tratamento cerimonioso e a fórmula do ‘cliente-rei’ da linguagem comercial” (Gotman, 2009, p. 8). Há ainda uma característica comum nos hostels investigados a ser pontuada na presente discussão: a atuação desacompanhada, ou seja, atuar individualmente na recepção é uma particularidade recorrente nesses espaços, se comparado a hotéis, sobretudo as redes hoteleiras que normalmente - a depender do porte -, contemplam dois ou mais funcionários trabalhando na recepção.
Os hostels, em geral, são empreendimentos de pequeno porte, em que a sobreposição de tarefas é perpetuada, assim como a necessidade constante de disposição incondicional por parte dos membros da equipe. Esse traço acaba por reforçar o processo de abster-se de si mesmo e os sacrifícios provenientes do ato de servir ao receber os hóspedes nesses espaços.
Isso remete à tônica da inexistência da hospitalidade caso não haja sacrifício, como defende Camargo (2006). Então, dificilmente, haverá a manifestação da hospitalidade sem que o sacrifício seja posto em cena, seja ele espaço ou pessoa, tangível ou intangível, desvelando que a hospitalidade, ou seja, o ato de receber no contexto “hosteleiro” investigado, portanto, se faz pelo e para o sacrifício. A figura 2 sintetiza o panorama exposto, reafirmando o lugar do hóspede como central, e o anfitrião como garantidor de todo processo ritualístico requerido na trama hospitaleira.
O conjunto de palavras representadas na Figura 2 - vontade, atendimento, diferença, empenho, cuidado, empatia, confiança, elogios - envolve os atributos e características necessárias à hospitalidade em hostel na perspectiva de anfitriões. Já as palavras confortável e agradável sugerem a oferta de uma hospedagem que beira a ideia de casa, sustentada na icônica frase “faça de conta que está em casa” (Camargo, 2007). E, alicerçado a isso, para o cumprimento desse processo se faz necessário, por parte dos anfitriões, entender e atender às necessidades e demandas do hóspede, bem como solucionar possíveis eventualidades durante a estadia. Isso é referendado pelos seguintes termos contidos na nuvem: contornar, contratempo, resolver, problema, mediador, conflitos.
Não se pode deixar de mencionar os vocábulos Booking, estrela e avaliações, o que coloca em evidência a preocupação, por parte dos anfitriões, de serem avaliados positivamente pelos hóspedes no ambiente virtual. Isso é visto por eles como uma forma de ratificar, pós estadia, o tratamento hospitaleiro prestado, ou seja, o calor humano outrora ofertado:
[A hospitalidade] é... uma coisa que é muito recorrente aqui pra gente, que a gente fica extremamente feliz, é quando a gente vai fazer o check-out o pessoal fica: nossa! Obrigado, eu fui muito bem recebido, vocês são gente boa demais. A gente fica ligado o tempo todo no Booking, nas avaliações, é um hábito que a gente tem. E direto aparece nosso nome lá, e sempre é: o staff é ótimo. (Gentil, mineira, 33, HB3, anfitriã).
Os relatos a seguir reiteram características da manifestação da cena hospitaleira nesses espaços, além de contemplarem a percepção dos anfitriões em relação à hospitalidade em hostels. Neles, os entrevistados realçam aspectos como o tratamento direcionado aos hóspedes e a consolidação do sentimento de “casa”, enquanto atributos necessários, na visão dos anfitriões, para a concretização da hospitalidade:
Hospitalidade em hostel [...] é tratar bem, é se colocar no lugar dele, é saber que ele chegou cansado, chegou cheio de expectativas, qual a necessidade daquele hóspede e tentar ajudá-lo [...]. Isso daí faz uma diferença muito grande. (Buscadora, mineira, 31, HB1).
Boa parte dos hóspedes faz a reserva virtual, conhece o quarto pela internet. O que vai impactar para eles de bom ou ruim é no momento que chegam aqui e veem o atendimento. (Antenado, mineiro, 29, HB1).
Eu acredito que o hostel [...] se garante como um hostel hospitaleiro, quando ele consegue fazer com que o hóspede dele se sinta em casa. (Ubuntu, mineira, 34, HB2).
[...] mesmo eu não sendo a dona eu sinto que esse espaço também é minha casa, então eu cuido, respeito e tento que seja o mais agradável possível. Quando eu interajo com um hóspede eu tento que ele sinta a mesma coisa. (CABJ, argentina, 29, HB2).
A fala de Sonhador sugere um dever de ser hospitaleiro: “Pra mim o que faz o coração bater é a hospitalidade, é poder proporcionar isso, abrir os braços [...] inclusive isso me faz pensar muito porque eu acho que isso é uma obrigação minha ” (Sonhador, mineiro, 29, HB3. Grifo nosso). Nota-se, portanto, a valorização de um tratamento dotado de calor humano, em detrimento do tom de impessoalidade (Camargo, 2021). Contudo, essa ideia da obrigatoriedade em ser hospitaleiro é um tema controverso e que tem sido objeto de debates e conflitos para os sistemas morais dos seres humanos, em nível internacional, em todos os tempos (Lashley, 2015).
A hospitalidade nos contextos estudados, portanto, é vista pelos anfitriões para além de uma troca de serviço em âmbito comercial. Em face desse cenário, a hospitalidade entra em cena manifestando-se de forma incondicional, ou seja, genuína (Derrida, 1997). Nesse viés, ela pode ser percebida como um atributo entre sujeitos e espaços, e não apenas de negócios, e sim para “o que as pessoas e os espaços proporcionam além do contrato estabelecido” (Camargo, 2006, p. 24). Em face disso, a hospitalidade em contexto de hostels permanece viva, indo além do viés contratual.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo teve como finalidade compreender as possibilidades e os limites para que a hospitalidade genuína se concretize em hostels, segundo a visão de anfitriões que trabalham nesse meio de hospedagem em Belo Horizonte (MG). Os resultados evidenciam que os atos de receber/acolher e hospedar são regados por um calor humano dedicado aos hóspedes por parte dos anfitriões dos hostels pesquisados. Tal constatação coloca em realce aspectos como o sacrifício de si em prol do bem-estar da pessoa acolhida, revelando a linha tênue existente entre o ato de servir e o servilismo na trama hospitaleira nos meios de hospedagem da “hostelaria”.
Foram identificados resquícios do elo sagrado da hospitalidade que situa o hóspede como um Deus, devendo, por isso, ser tratado com diligência, ideia que se perpetua no imaginário intuitivo dos anfitriões entrevistados. Esse princípio reverbera na forma de tratamento dos hóspedes desde o momento de chegada ao hostel, até o cumprimento das demandas por eles solicitadas ao longo da hospedagem. Os anfitriões demonstram, sob esse quadro, uma preocupação em prestar um atendimento considerado hospitaleiro, na tentativa de estimular, no hóspede, o sentimento de “estar em casa”. Os anfitriões, com esse intuito, são cuidadosos para construir e manter uma interação bem sucedida. Isso acaba abrindo espaço para a concretização de um tratamento direcionado ao hóspede com o viés da hospitabilidade, ou seja, a hospitalidade genuína. Os anfitriões entrevistados acreditam que a forma de tratamento desempenhada no hostel está associada ao seu perfil hospitaleiro, seja como profissional e/ou como pessoa, revelando uma predileção e vocação pelo servir.
Nos hostels que se inserem no setor de negócios turísticos receptivos, o viés comercial entra em cena interferindo na assimetria da hospitalidade: o pagamento confere àquele que é acolhido uma posição de superioridade diante de quem acolhe. Ainda que o valor monetário prevaleça e oriente as relações comerciais em cada hostel estudado, para os anfitriões entrevistados é imprescindível o recebimento do hóspede de forma hospitaleira, desprendendo, assim, calor humano e um acolhimento genuíno. Nesse sentido, o gosto pelo receber e servir por parte dos anfitriões revela que a postura destes profissionais vai ao encontro da denominada grandeza por trás do ato de acolher os hóspedes, característica amplamente abordada pelos estudos sobre o tema, em especial no que concerne à hospitalidade doméstica.
Em suma, mesmo que o processo de hospitalidade seja regido pela tônica comercial em hostels, não estando, portanto, isento de complexidades, ambiguidades e limites, a pesquisa de campo evidenciou que esse contexto abre possibilidades para a manifestação da hospitalidade genuína. Tal constatação coloca em xeque alguns fundamentos que alegam que a dádiva é própria da hospitalidade doméstica.
Além disso, as observações e entrevistas evidenciaram que os anfitriões são imprescindíveis para que a hospitalidade genuína se manifeste em hostels, não se resumindo, portanto, a um mero exercício cênico nesse contexto. A presente pesquisa, sob esse viés, abre possibilidades de contribuir com os estudos sobre a hospitalidade, tendo em vista o embrionário debate no que se refere à manifestação da dádiva em contextos comerciais. Assim, para a sua concretização, entram em cena sentidos e significados que são, constantemente, desafiados por limites e possibilidades que se abrem na trama hospitaleira de receber/acolher os hóspedes no contexto “hosteleiro”.
REFERÊNCIAS
- Aguiar, F. L. S. Brito, A. S., & Perinotto, A. R. C. (2020). Uma análise do antigo Sistema Brasileiro de Classificação de Meios de Hospedagem a partir do Complexo Turístico do Porto das Dunas, Fortaleza/Brasil. Revista de Turismo Contemporâneo, Natal, 8(2), 168-197.
- Bahls, A. A. D. S. M. (2018). Hostel: Uma proposta conceitual Itajaí: Univali.
- Bahls, A. A. D. S. M. (2015). Hostel: Proposta conceitual, análise socioespacial e panorama atual em Florianópolis (SC) Dissertação de Mestrado. Universidade do Vale do Itajaí, Santa Catarina, Brasil.
- Bahls, A. A. D. S. M., & Pereira, Y. C. C. (2017). Hostel: o estado da arte e considerações para futuras pesquisas. Caderno Virtual de Turismo Rio de Janeiro, 17(3), 50-65.
- Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo São Paulo: Edições 70.
- Bastos, S. R., Rameh, L. M., & Bitelli, F. M. (2016). O conceito de hospitalidade de Jacques Derrida nos artigos científicos do Portal de Periódicos da Capes. In: Anais do XIII Seminário da ANPTUR, São Paulo, SP.
- Camargo, L. O. L. (2021). As leis da hospitalidade. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, São Paulo, 15(2), 1-16.
- Camargo, L. O. de L. (2015). Os interstícios da hospitalidade. Revista Hospitalidade, São Paulo, 12(especial), 42-69.
- Camargo, L. O. de L. (2007). A pesquisa em hospitalidade. In: XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Santos, SP.
- Camargo, L. O. de L. (2006). Hospitalidade sem sacrifício? O caso do receptivo turístico. Revista Hospitalidade , São Paulo, 3(2), 11-28.
- Camargo, L. O. de L. (2004). Hospitalidade São Paulo: Aleph.
- Castelli, G. (2005). Hospitalidade na perspectiva da gastronomia e da hotelaria São Paulo: Saraiva.
- Chon, K.; Sparrowe, R. T. (2003). Hospitalidade : conceitos e aplicações São Paulo: Thomson.
- Cró, S. R. G. (2018). A influência da segurança no preço dos hostels: aplicação do modelo de preços hedónicos Tese de Doutorado. Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.
- Dallen, T.; Teye, V. (2009). Tourism and the lodging sector Oxford: Butterworth-Heinemann.
- Derrida, J. (1997). Cosmopolites de tous les pays, encore um effort! Paris: Galilée.
- Derrida, J. (2003). Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade . Trans.: Antonio Romane. São Paulo: Editora Escuta.
- Freitas, L. D. C. de., Arruda, J. A. de., & Falqueto, J. M. Z. (2017). Uso do software Nvivo® em investigação qualitativa: ferramenta para pesquisa nas ciências sociais. Atas - Investigação Qualitativa em Ciências Sociais, Salamanca, 3, 621-626.
- Gotman, A. (2019). Hospitalidade em sentido próprio e figurado. Revista Hospitalidade , São Paulo, 16(3), 160-174.
- Gotman, A. (2009). O comércio da hospitalidade é possível? Revista Hospitalidade , São Paulo, 6(2), 3-27.
- Gotman, A. (2008). O turismo e a encenação da hospitalidade São Paulo: Senac.
- Gotman, A. (2004). Villes et Hospitalité: les municipalités et leurs "étrangers". Paris: Maison des Sciences de l'Homme.
- Giaretta, M. J. (2003). Turismo da juventude São Paulo: Manole.
- Guimarães, Gilberto A. (2019). Hospitabilidade: avaliação das características e motivações que determinam a capacidade de ser hospitaleiro Tese de Doutorado. Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, Brasil.
- Grassi, M. (2004). Hospitalité. Passer lê seuil In A. Montandon. Livre de l'hospitalité. Paris: Bayard.
- Hetch, J., & Martin, D. (2006). Backpacking and hostel-picking: an analysis from Canada. International Journal of Contemporary Hospitality Management, 18(1), 69-77.
- Lashley, C. (2018). What to do about how to do: Reflections on the future direction of hospitality education and research. Research in Hospitality Management, 8(2), 79-84.
- Lashley, C. (2015). Hospitalidade e hospitabilidade. Revista Hospitalidade . São Paulo, (12)especial, 70-92.
- Lashley, C. (2000). In search of hospitality: towards a theoretical frameworkq. Hospitality Management Leeds, 19, 3-15.
- Macedo, D. M. P. F. (2018). Modelo de Radar para avaliação da qualidade de hostels (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, Brasil.
- Mauss, M. (2003). Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.
- Murgel, L. F. (2018). Hospitalidade , dádiva e comércio moderno: impasses e ambiguidades em campos da teoria antropológica. In: 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, Brasília, DF.
- Oliveira, S. R. (2017). O acolhimento hoteleiro e a formação sócio-histórico cultural dos profissionais dos meios de hospedagem em Brasília Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.
- O’regan, M. (2010). Backpacker hostels: place and performance. In: Hannam, K., & Diekmann, A. (Eds.). Beyond backpacker tourism: mobilities and experiences (Cap.6, pp. 85-101). Bristol: Channel View Publications.
- Pereira, J. K. C., & Gomes, C. (2020). Panorama virtual dos hostels Belo-Horizontinos no contexto da pandemia de covid-19. Ateliê Do Turismo, 4(2), 72-94.
- Pereira, J. K. C. & Gomes, C. L. (2021). Mapeamento do estado da arte sobre hostel no cenário luso-brasileiro (2015 - 2019). Revista Hospitalidade . São Paulo, 18(1), 47-66.
- Pereira, J. K. C. (2019). Hostels belorizontinos e lisboetas: um panorama acerca da oferta das práticas de lazer. In: Anais Coletânea do I Colóquio Interdisciplinar de Estudos do Lazer Belo Horizonte, MG.
- Presser, N. H., Kroth, M. L., Laudelino, J. A. S., & Menezes, P. R. A. (2016). As redes sociais no setor da Hospitalidade: gerenciando as manifestações dos hóspedes. Revista Hospitalidade . São Paulo, 13(1), 198-217.
- Saraiva, A. V. das N. (2013). Hostels independentes: o caso de Lisboa 2013. (Dissertação de Mestrado). Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, Estoril, Portugal.
- Silva, T. M. da; Kohler, A. F. (2015). O mercado de albergues/hostels do Município de São Paulo-Brasil: caracterização e avaliação de estabelecimentos e empreendedores. Revista Iberoamericana de Turismo - RITUR, Penedo, 5(1), 54-78.
- Spolon, A. P. (2015). Um exercício de hospitalidade. Revista Hospitalidade . São Paulo, 12(especial), 3-8.
- Thomazi, M. R. (2019). Hostel: território de hospedagem marcado pela trama turístico-comunicacional Dissertação de Mestrado. Universidade de Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil.
- Valduga, M. C. (2019). Um olhar para a hospitalidade: percepção de gestores da oferta hoteleira em Portugal. Rosa dos Ventos - Turismo e Hospitalidade . Caxias do Sul, 11(3), 508-522.
- Volante, P. J. T. (2011). O segmento low-cost da indústria hoteleira em Portugal: o caso dos hostels Lisboa: ISCTE.
- Woortmann, E., & Woortmann, K. (1997). O trabalho da terra Brasília: Editora UNB.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Set 2023 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2023
Histórico
-
Recebido
22 Nov 2022 -
Aceito
12 Abr 2023