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Estigma social no comportamento suicida: reflexões bioéticas

Resumos

Foi realizada uma revisão integrativa sobre o tema do estigma social imposto aos indivíduos que tentaram suicídio, trazendo à tona reflexões a partir da perspectiva bioética. A pesquisa foi conduzida em bases de dados eletrônicas. Foram incluídos apenas artigos de revistas científicas revisadas por pares com resumos disponíveis. Não houve limites quanto ao ano de publicação e idioma. Na primeira fase de busca, 272 manuscritos foram encontrados. Após a leitura dos textos completos, apenas 22 foram incluídos no estudo. Diante das limitações da pesquisa, acredita-se que o estudo aprofundado do estigma no comportamento suicida pode contribuir significativamente para o tratamento de pacientes que se submeteram à tentativa. Conclui-se que o estudo desse assunto apresenta ampla gama de discussões bioéticas, por ser um fenômeno que afeta aspectos relacionados à autonomia e à proteção da pessoa.

Suicídio; Tentativa de suicídio; Estigma social; Bioética; Vergonha


An integrative review on the theme of the social stigma imposed on individuals who have attempted suicide was conducted bringing to the fore reflections from a perspective of bioethics. The research was conducted in electronic databases. Only scientific articles by peer reviewed scientific journals with available abstracts were included. There were no limits to the year and language of publication. Two hundred and twenty-seven manuscripts were found in the first phase of the search. Only 22 complete texts were included in the study after the complete texts had been read. Despite the limitations of the research, it is believed that deeply studying the stigma of suicide can contribute significantly to patients who have attempted suicide. It is concluded that the study of this topic represents a range of bioethical discussions, forming, as it does, part of a phenomenon that affects aspects related to the autonomy and protection of the person.

Suicide; Suicide, attempted; Social stigma; Bioethics; Shame


Fue realizada una revisión integrativa sobre el tema del estigma social impuesto a los individuos que intentaron suicidarse trayendo a tono algunas reflexiones a partir de la perspectiva de la bioética. La investigación fue conducida a partir de bases de datos electrónicas. Fueron incluidos sólo los artículos de revistas científicas, revisadas por pares, con resúmenes disponibles. No hubo límites en relación al año de publicación y al idioma. 272 manuscritos fueron encontrados en la primera fase de búsqueda. Luego de la lectura de los textos completos, sólo 22 fueron incluidos en el estudio. Frente a las limitaciones de la investigación, se cree que el estudio profundo del estigma en el comportamiento suicida puede contribuir significativamente para el tratamiento de pacientes que se sometieron a un intento. Se concluye que el estudio de esta temática presenta una amplia gama de discusiones bioéticas, por ser parte de un fenómeno que afecta aspectos relacionados a la autonomía y a la protección de la persona.

Suicidio; Intento de suicidio; Estigma social; Bioética; Vergüenza


Para a Organização Mundial da Saúde (OMS) 1. Organização Mundial da Saúde. Relatório mundial da saúde. Saúde mental: nova concepção, nova esperança. Lisboa: OMS; 2002., o suicídio pode ser conceituado como ato deliberado e levado a cabo por alguém que tem plena consciência de seu resultado final. Por sua vez, quando o suicida não consegue êxito, passa a ser classificado pela literatura como tentativa de suicídio. Ademais, pode-se considerar que tanto a tentativa como o ato suicida em si são motivados por ideações, ou seja, pensamentos geralmente relacionados à desvalia, que levam o indivíduo a cogitar e planejar sua própria morte 2. Cardoso HF, Baptista MN, Ventura CD, Brandão EM, Padovan FD, Gomes MA. Suicídio no Brasil e América Latina: revisão bibliométrica na base de dados Redalycs. Diaphora. 2012;12(2):42-8..

Todavia, apesar dos esforços relativos à prevenção, o ato suicida ainda se apresenta como algo inesperado, devendo ser analisado de forma ampla, já que sua ocorrência muitas vezes se dá pela somatória de variáveis de risco, bem como pela incapacidade do indivíduo de resolver conflitos 3. Araújo ES, Bicalho PPG. Suicídio: crime, pecado, estatística, punição. Rev Psicol IMED. 2013;4(2):723-34.. Essas questões, agregadas ao aumento das taxas de prevalência de suicídio e da tentativa de suicídio no Brasil, engendram discussões constantes e necessárias sobre o encaminhamento de novas medidas de prevenção 4. Vidal CEL, Gontijo ECDM, Lima LA. Tentativas de suicídio: fatores prognósticos e estimativa do excesso de mortalidade. Cad Saúde Pública. 2013;29(1):175-87..

Outro aspecto relevante no estudo do comportamento suicida diz respeito à complexidade do evento mesmo após sua ocorrência, na qual se entende que o ato afeta não apenas o indivíduo que realizou a tentativa, mas também a todos os que de certa forma convivem com ele 5. Buus N, Caspersen J, Hansen R, Stenager E, Fleischer E. Being the parent of a son or daughter who has attempted suicide: a qualitative focus group study. J Adv Nurs. 2014;70(4):823-32.. Além disso, conforme alegam Sand e colaboradores 6. Sand E, Gordon KH, Bresin K. The impact of specifying suicide as the cause of death in an obituary. Crisis. 2013;34(1):63-6., historicamente as pessoas que cometeram suicídio são vistas de modo mais negativo, se comparadas com os indivíduos que morrem de outras causas. Assim, pode-se dizer que, de certa forma, o comportamento suicida predispõe à imputação de estigmas, os quais podem contribuir negativamente para a evolução da intervenção terapêutica 7. Witte TK, Smith AR, Joiner TB Jr. Reason for cautious optimism? Two studies suggesting reduced stigma against suicide. J Clin Psychol. 2010;66(6):611-26..

Diante dessas questões e na tentativa de melhor compreender as repercussões do estigma social do suicídio, o presente estudo objetivou correlacioná-lo à temática da reflexão bioética, considerada importante para aprofundar a compreensão desse fenômeno.

Método

O trabalho baseia-se na realização de revisão da literatura do tipo integrativa, que consiste na localização e consulta de fontes diversas de informação, orientada pelo objetivo explícito de coleta de materiais mais genéricos ou mais específicos a respeito de determinado tema 8. Mendes KDS, Silveira RCCP, Galvão CM. Revisão integrativa: método de pesquisa para a incorporação de evidências na saúde e na enfermagem. Texto & Contexto Enferm. 2008;17(4):758-64.. Para o levantamento dos artigos, optou-se por realizar a busca nas bases de dados eletrônicas Portal de Periódicos da Capes/MEC e PubMed. Foram utilizados os descritores em ciência da saúde: “tentativa de suicídio”, “estigma social” e “bioética”, tanto de forma isolada quanto combinada, nesse caso conjugados com os operadores booleanos “and” e “or”. A estratégia de busca consistiu em método sistemático, com restrição dos dados apenas pelo tipo de documento, sendo incluídos artigos de periódicos revisados por pares.

Foram incluídos textos cujos resumos estivessem disponíveis para leitura, sem restrição de idioma. Na busca, não houve limite de ano e tipo de publicação. O período de busca compreendeu o mês de fevereiro de 2014. De acordo com os critérios, foram identificados 35 artigos na base Portal de Periódicos da Capes/MEC e 232 na PubMed. Inicialmente foi realizada a leitura dos títulos e resumos, sendo selecionados aqueles mais pertinentes à temática.

Em uma segunda etapa, optou-se pela realização da leitura dos textos completos, que totalizaram 22 artigos da base PubMed. Para avaliação dos manuscritos, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo temática, que corresponde ao desmembramento do texto analisado em unidades por reagrupamentos analógicos 9. Roman AR, Friedlander MR. Revisão integrativa de pesquisa aplicada à enfermagem. Cogitare Enferm. 1998;3(2):109-12., de forma que a interpretação do material foi dividida em quatro tópicos: a) apreciação crítica do material; b) decomposição dos elementos essenciais; c) agrupamento e classificação; d) análise final.

A fim de oferecer aporte teórico-científico aos questionamentos e objetivos do estudo, foram realizadas buscas nas listas de referências dos artigos selecionados, além da descrição de seus resultados. Os estudos foram lidos individualmente por dois pesquisadores. Quando se observaram discordâncias entre eles, um terceiro pesquisador era consultado para opinar quanto à inclusão ou não do artigo. Ao final das análises, seis artigos foram incluídos na revisão.

Decidiu-se por apresentar os dados ao longo do estudo, em tabela descritiva, contendo as informações mais relevantes dos autores acerca dos fatores de estresse.

Resultados e discussão

Na Tabela 1 são apresentadas as características dos estudos incluídos de acordo com o periódico, o fator de impacto e o ano de publicação. Os achados evidenciam que, nos anos de 2010 a 2013 foram publicados um maior número de artigos. Os resultados apontam que a área de maior concentração das publicações foi a Medicina, na qual a maioria dos estudos – 86% – foi publicada em periódicos de psiquiatria.

Tabela 1
Síntese dos resultados mais expressivos dos artigos incluídos de acordo com título do artigo, autores, ano de publicação, periódico, fator de impacto e desenho do estudo e comentários dos autores sobre a temática, obedecendo à ordem cronológica inversa de publicação, de 2014 a 2005.

Galileu e colaboradores 1010 . Galileu D, Rocha FF, Nicolato R, Teixeira AL, Romano-Silva MA, Correa H. Produção brasileira em periódicos psiquiátricos de alto fator de impacto em 2005. J Bras Psiquiatr. 2006;55(2):120-4. destacam a participação do Brasil no aumento da produção de dados científico mundiais na área de psiquiatria. Segundo os autores, o Brasil em 2004 já era responsável por 0,4% dos artigos publicados em periódicos ligados à pesquisa da área psiquiatria/psicologia, com 3,01 citações/artigo, obtendo um dos melhores índices ao se compararem as inúmeras áreas científicas, apenas 12% abaixo do índice mundial de 3,43 citações/artigo 1111 . In-Cities. Science in Brazil 2000-04 [tabela]. [Internet]. 2005 [acesso 18 jan 2014]. Disponível: http://www.in-cites.com/research/2005/july_11_2005-1.html
http://www.in-cites.com/research/2005/ju...
. Apesar dos expressivos achados nacionais, no estudo foram incluídos poucos artigos oriundos de pesquisas brasileiras ou publicados em periódicos do país.

A respeito da classificação em termos de nível de evidência, foram analisados os fatores de impacto das publicações. Dos seis artigos incluídos no estudo, cinco obtiveram impacto superior a 1 ponto. Esse critério corresponde a uma medida bibliométrica que possibilita a reflexão sobre a qualidade do periódico em termos de citação e acesso, fornecendo assim algumas das melhores evidências relativas a determinada temática 1212 . Elkis H. Fatores de impacto de publicações psiquiátricas e produtividade científica. Rev Bras Psiquiatr. 1999;21(4):231-6..

Na Tabela 1, os estudos também são apresentados de acordo com seus autores, ano de publicação, desenho do estudo e concepções dos autores sobre o estigma após a tentativa de suicídio. Posteriormente, são evidenciados os pontos relevantes para discussão, como a compreensão do comportamento suicida, história e repercussões do estigma no comportamento suicida e reflexões bioéticas diante do estigma que envolve o comportamento suicida.

É nítido que todos os autores enfatizam que o estigma é algo prejudicial à pessoa que tentou o suicídio e que estes rótulos tendem de certa forma a dificultar o cuidado junto a estes indivíduos. Conforme também ressaltam Buus e colaboradores 5. Buus N, Caspersen J, Hansen R, Stenager E, Fleischer E. Being the parent of a son or daughter who has attempted suicide: a qualitative focus group study. J Adv Nurs. 2014;70(4):823-32., o estigma afeta não apenas o sujeito, mas todos os familiares, e que as marcas de tal associação podem estar diretamente associadas a novas tentativas. Adicionalmente, Reynders e colaboradores1313 . Reynders A, Kerkhof AJ, Molenberghs G, Van Audenhove C. Attitudes and stigma in relation to help-seeking intentions for psychological problems in low and high suicide rate regions. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol. 2014;49(2):231-39. alegam que esses rótulos podem também culminar em outras comorbidades, como a predisposição ao uso de substâncias psicotrópicas, ou ainda dificultar o processo de busca de ajuda, por se sentirem discriminados e marginalizados. Paralelamente, Dyregrov 1414 . Dyregrov K. What do we know about needs for help after suicide in different parts of the world? A phenomenological perspective. Crisis. 2011;32(6):310-8. evidencia tendências positivas, já que seu estudo permite observar que nas sociedades onde o estigma não é associado ou é desvinculado, a busca por ajuda tende a aumentar consideravelmente.

Sudak e colaboradores 1515 . Sudak H, Maxim K, Carpenter M. Suicide and stigma: a review of the literature and personal reflections. Acad Psychiatry. 2008;32(2):136-42. apontam ainda questões preocupantes como o fato do estigma da doença mental ser mais aceito do que o da tentativa de suicídio. Alertam que em ambos os casos o estigma deve ser desvinculado, pois pode comprometer ainda mais a condição clínica tanto da pessoa portadora de transtorno mental quanto do indivíduo que realizou a tentativa 1616 . Cvinar JG. Do suicide survivors suffer social stigma: a review of the literature. Perspect Psychiatr Care. 2005;41(1):14-21..

Compreensão do comportamento suicida

Ressalte-se, inicialmente, que poucos estudos foram incluídos na pesquisa (seis). Quanto à classificação dos artigos, observou-se equivalência entre os tipos de estudo: três eram descritivos e três, revisões de literatura. Tais achados remetem à ideia de que pesquisar situações de risco iminente de morte, associadas a questões polêmicas, como a estigmatização das vítimas, constitui tarefa de difícil execução, razão pela qual são poucas as publicações na área. Além disso, tais estudos são extremamente necessários, tanto para compreensão do problema quanto para o planejamento e realização de medidas eficientes de prevenção 1717 . Flavio M, Martin E, Pascal B, Stephanie C, Gabriela S, Merle K et al. Suicide attempts in the county of Basel: results from the WHO/EURO Multicentre Study on Suicidal Behaviour. Swiss Med Wkly. 2013;28(143):1-15.

18 . American Psychiatric Association. Diretrizes para o tratamento de transtornos psiquiátricos. Porto Alegre: Artmed; 2006. (Compêndio 2006).
-1919 . Rudd MD, Goulding JM, Carlisle CJ. Stigma and suicide warning signs. Arch Suicide Res. 2013;17(3)313-8..

Diversos estudos voltam-se para a análise e compreensão do comportamento suicida2020 . Osváth P. Life-cycles, psychopathology and suicidal behaviour. Neuropsychopharmacol Hung. 2012;14(4):266-72.

21 . Dwivedi Y. The neurobiological basis of suicide. Boca Raton: CRC Press; 2012.
-2222 . Amitai M, Apter A. Social aspects of suicidal behavior and prevention in early life: a review. Int J Environ Res Public Health. 2012;9(3):985-94..Sena-Ferreira e colaboradores2323 . Sena-Ferreira N, Pessoa VF, Barros RB, Figueiredo AEB, Minayo MCS. Risk factors associated with suicides in Palmas in the state of Tocantins, Brazil, between 2006 and 2009 investigated by psycho-social autopsy. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(1):115-26. enfatizam que o conhecimento dos motivos que levam o indivíduo a desistir da própria vida não deve ser atividade específica da área médica. Para os autores, a compreensão desse fenômeno passa pelos estudos da suicidologia, sociologia, antropologia, psiquiatria e várias outras ciências.

Observe-se que existe, atualmente, tendência de considerar os fatores biológicos como predominantes e que o ato suicida tem correlação importante com transtornos psiquiátricos 2424 . Hayashi N, Igarashi M, Imai A, Osawa Y, Utsumi K, Ishikawa Y et al. Psychiatric disorders and clinical correlates of suicidal patients admitted to a psychiatric hospital in Tokyo. BMC Psychiatry. 2010;10(109):1-8.,2525 . Carter GL, Safranko I, Lewin TJ, Whyte IM, Bryant JL. Psychiatric hospitalization after deliberate self-poisoning. Suicide Life Threat Behav. 2006;36(2):213-22.. Mahon 2626 . Mahon K, BurdicK KE, Wu J, Ardekani BA, Szeszko PR. Relationship between suicidality and impulsivity in bipolar I disorder: a diffusion tensor imaging study. Bipolar Disord. 2012;14(1):80-9. menciona a presença de transtornos de impulso como fator de risco para tentativa de suicídio, e, paralelamente, outros trabalhos2727 . Zalsman G. Genetics of suicidal behavior in children and adolescents. In: Dwivedi Y, editor. The Neurobiological Basis of Suicide. Boca Raton: CRC Press; 2012. p. 1-47.,2828 . Rujescu D, Giegling I. Intermediate phenotypes in suicidal behavior focus on personality. In: Dwivedi Y, editor. The Neurobiological Basis of Suicide. Boca Raton: CRC Press; 2012. p. 1-81. indicam a importância de aspectos genéticos envolvidos no comportamento suicida. Já Bertolote e Fleischmann 2929 . Bertolote JM, Fleischmann A. Suicídio e doença mental: uma perspectiva global. In: Werlang BG, Botega NJ, organizadores. Comportamento suicida. Porto Alegre: Artmed; 2004. p. 35-44. destacam o papel do transtorno mental como um dos mais importantes fatores de risco para o suicídio.

Sena-Ferreira e colaboradores 2323 . Sena-Ferreira N, Pessoa VF, Barros RB, Figueiredo AEB, Minayo MCS. Risk factors associated with suicides in Palmas in the state of Tocantins, Brazil, between 2006 and 2009 investigated by psycho-social autopsy. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(1):115-26. indicam que, em termos econômicos, tanto os suicídios quanto as tentativas resultam em elevado gasto para os sistemas de proteção social e cuidados com a saúde, considerando aspectos como: a perda de capital humano, estimada em termos de anos de vida; os gastos públicos da saúde com procedimentos hospitalares; internações e tratamentos, e, no que tange à seguridade social, o pagamento de pensões e aposentadorias por morte ou invalidez.

Apesar de ainda apresentar baixo coeficiente de mortalidade por suicídio, dadas suas dimensões continentais, que ocupam 47% do território da América do Sul3030 . Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system history, advances, and challenges. The Lancet. 2011;377(9779):1778-97., o Brasil está entre os nove países com maiores números absolutos de suicídio 3131 . Associação Brasileira de Psiquiatria. Comportamento suicida: conhecer para prevenir [manual dirigido para profissionais de imprensa]. São Paulo: ABP; 2009.. Diante disso, a compreensão e o estudo do comportamento suicida torna-se uma necessidade premente, visto que as tentativas de suicídio acarretam custo considerável ao sistema de saúde e à sociedade.

História e repercussões do estigma no comportamento suicida

Ressalte-se que, historicamente, o suicídio tem sido conotado como algo inquietante; algumas civilizações, como a greco-romana, toleravam a tentativa de suicídio, porém não sem alguma reserva, a qual pode ter contribuído para o surgimento do estigma. Segundo Tadros e Jolley 3232 . Tadros G, Jolley D. The stigma of suicide. Br J Psychiatry. 2001;179(2):178., Aristóteles, ao argumentar que o suicídio enfraquece a economia e perturba os deuses, deu início à estigmatização do ato. Os autores ainda apontam o estudo de Barraclough, que também traz concepções históricas relacionadas ao suicídio. Para esse autor, na tradição judaico-cristã, o estigma do suicídio não é evidente até o século IV 3333 . Barraclough MB. The Bible suicides. Acta Psychiatr Scand. 1992;86(1):64-9.. Sobre essa questão, Tadros e Jolley 3232 . Tadros G, Jolley D. The stigma of suicide. Br J Psychiatry. 2001;179(2):178. citam Pritchard3434 . Pritchard C. Suicide: the ultimate rejection? A psychosocial study. Philadelphia: Open University Press; 1995., segundo o qual foi a partir de Santo Agostinho que a autoridade religiosa passou a considerar o suicídio como ato inaceitável no contexto dos valores cristãos – visão essa significativamente mais difundida a partir do século III. Assim, compreende-se que o estigma do suicídio foi, paulatinamente, ganhando força na Europa, de modo que o ato em si, bem como sua tentativa, tornou-se grande pecado, vergonha e, por fim, crime, tudo isso sob a égide da tradição religiosa, que contribuiu sobremaneira para essa marginalização.

Quanto aos rótulos associados ao suicídio, Tadros e Jolley 3232 . Tadros G, Jolley D. The stigma of suicide. Br J Psychiatry. 2001;179(2):178. mencionam que os indivíduos que tentam ou de fato cometem esse ato são normalmente apontados como fracos, sem fé, provenientes de famílias de má índole. Se alguém declara seus pensamentos e planos suicidas, chega até mesmo a ser tachado de “louco”. Cabe ressaltar, todavia, que esse rechaço ou o comportamento pejorativo pouco contribuem para a detecção e prevenção do ato suicida.

Reflexões bioéticas e o estigma que envolve o comportamento suicida

Para Daolio 3535 . Daolio ER. Suicídio: tema de reflexão bioética. Rev. bioét. (Impr.). 2012;20(3):436-41., o comportamento suicida é tema inquietante, primeiramente pela complexidade de fatores associados a essa temática e, posteriormente, pelo fato de que dados oficiais indicam crescimento considerável das taxas de suicídio: cerca de 1 milhão de pessoas cometem suicídio anualmente, segundo a OMS 1. Organização Mundial da Saúde. Relatório mundial da saúde. Saúde mental: nova concepção, nova esperança. Lisboa: OMS; 2002.. Outro ponto frisado pelo autor 3535 . Daolio ER. Suicídio: tema de reflexão bioética. Rev. bioét. (Impr.). 2012;20(3):436-41. refere-se às abordagens associadas ao comportamento suicida, que abarcam várias correntes de pensamento para as quais as causas do fenômeno vão desde questões biológicas até aquelas de cunho médico e sociológico. No entanto, ainda segundo Daolio 3535 . Daolio ER. Suicídio: tema de reflexão bioética. Rev. bioét. (Impr.). 2012;20(3):436-41., quase todas essas explicações estão focadas no impacto do fenômeno ou no estudo unilateral de suas causas, o que desfavorece a compreensão desse tema tão complexo e afetado por inúmeros fatores.

De tal constatação, depreende-se a importância de abrir o horizonte das pesquisas para permitir a elucidação dos aspectos paralelos envolvidos na temática do suicídio, como o estigma, por exemplo. Para Daolio 3535 . Daolio ER. Suicídio: tema de reflexão bioética. Rev. bioét. (Impr.). 2012;20(3):436-41., essa perspectiva expandida auxilia tanto no entendimento dos fatores possivelmente associados ao comportamento quanto no tratamento das pessoas e familiares que conviveram com o problema. Dessa forma, compreender o estigma é procedimento eficaz para alicerçar medidas futuras de tratamento.

Desse panorama emergem as questões bioéticas que possibilitam perceber que o homem contemporâneo não está habituado à morte e ao morrer. Pode-se dizer que, para a sociedade atual, a finitude e a morte estão estreitamente associadas ao fracasso; por isso, ela não os admite, conotando-os como sinais de fraqueza.

Diante disso, certos aspectos que denotam fragilidade, como é o caso do ato suicida, além de ser rechaçados, alimentam a presença de rótulos cômodos, dos quais o estigma é exemplo. E, como visto, tal estima pode trazer graves consequências, tanto para o sujeito vítima de suicídio ou que não obteve êxito em sua tentativa, quanto para a família.

A marginalização que envolve o comportamento suicida, cabe ressaltar, não se manifesta apenas por meio dos estigmas com os quais a sociedade rotula os indivíduos que o possuem. O despreparo para lidar com o fenômeno também é patente nas ações do poder público, que conta com poucas estratégias de promoção de políticas ou programas especificamente dirigidos tanto à prevenção de suicídios quanto a acolhida, encaminhamento e cuidado dos indivíduos que tentaram esse ato, de forma a atendê-los em sua integralidade, bem como seus familiares 3434 . Pritchard C. Suicide: the ultimate rejection? A psychosocial study. Philadelphia: Open University Press; 1995.,3535 . Daolio ER. Suicídio: tema de reflexão bioética. Rev. bioét. (Impr.). 2012;20(3):436-41..

Nessa perspectiva, a estigmatização tende a intensificar-se, haja vista o apoio mínimo da sociedade e das esferas governamentais ao sujeito e seus familiares – situação essa que contribui para dificultar ainda mais o enfrentamento das questões ligadas ao suicídio. Como resultado, pode-se ter o desencadeamento de novos motivos para a tentativa, por parte do indivíduo 3434 . Pritchard C. Suicide: the ultimate rejection? A psychosocial study. Philadelphia: Open University Press; 1995., bem como novas fases de desestruturação e conflito, para a família 3535 . Daolio ER. Suicídio: tema de reflexão bioética. Rev. bioét. (Impr.). 2012;20(3):436-41..

Do ponto de vista bioético, é possível entender o suicídio como objeto de interesse latente, uma vez que afeta o respeito à humanidade e as questões relativas à autonomia 3636 . Nunes SOV. Atendimento de tentativas de suicídio em hospital geral. J Bras Psiquiatr. 1988;37(1):39-41.. Nesse sentido, o suicídio, como ação autodestrutiva, poderia corresponder a um ato de violência intencional que leva a refletir sobre o fato de que esse comportamento também atinge a própria essência de nossa civilização e compromete o bem e o futuro da própria humanidade 3535 . Daolio ER. Suicídio: tema de reflexão bioética. Rev. bioét. (Impr.). 2012;20(3):436-41.. Tais hipóteses remetem à reflexão de que o indivíduo contemporâneo vive em um cenário muitas vezes imposto por ideologias, sistemas políticos e sociais que costumam impingir cobranças severas. Nesse contexto, os sujeitos, que muitas vezes se encontram despreparados para lidar com tais situações, não enxergam outra opção que não o fim de sua própria vida3535 . Daolio ER. Suicídio: tema de reflexão bioética. Rev. bioét. (Impr.). 2012;20(3):436-41..

Partindo desse pressuposto, é preciso refletir também acerca da importância da ética a serviço da proteção. Daolio 3535 . Daolio ER. Suicídio: tema de reflexão bioética. Rev. bioét. (Impr.). 2012;20(3):436-41. afirma que a proteção, em sua condição de princípio bioético, não pode ser entendida como paternalismo, e sim como ato da pessoa, dos órgãos públicos e da própria sociedade, praticado com o intuito de identificar e entender aqueles sujeitos considerados vulneráveis aos complexos e variados problemas que podem levar ao suicídio.

Corroborando tal argumentação, Schramm e Kottow 3737 . Schramm FR, Kottow MH. Principios bioéticos en salud pública: limitaciones y propuestas. Cad Saúde Pública. 2001;17(4):949-56. salientam que a proteção, como princípio bioético, pode ser entendida como o ato de devolver ao sujeito a autonomia total sobre seus atos, a fim de ser capaz de decidir sobre seu futuro com liberdade e discernimento. Assim, o conflito bioético permeia a necessidade do indivíduo estigmatizado de ser acolhido e compreendido, permitindo a ele e aos seus o direito de conviver de forma igualitária com os demais, sem que recaiam sobre ele, e, de certa forma, sobre seus familiares, o rótulo de “despreparado”, por ter decidido pela “fuga da realidade” em um momento difícil de sua vida.

A presença do estigma após tentativa de suicídio é algo indiscutivelmente marcante, e muitas vezes pode desencadear inúmeras repercussões na vida dos sujeitos e de sua família, principalmente no que diz respeito à convivência em sociedade, já que não é rara a tendência à marginalização dessas pessoas, expressa pela exclusão do convívio, rotulação e sensação de despersonalização do indivíduo. Nesse contexto de marginalização, o evento suicida passa a configurar-se, para o sujeito, como o ponto mais representativo de sua história pessoal.

Sobre a questão da autonomia, Cabrera 3838 . Cabrera J. Suicidio: aspectos filosóficos [verbete]. In: Tealdi JC, diretor. Diccionario Latinoamericano de bioética. Bogotá: Unesco/Universidad Nacional de Colombia; 2008. p. 496-9.,3939 . Cabrera J. A ética e suas negações: não nascer, suicídio e pequenos assassinatos. Rio de Janeiro: Rocco; 2011. traz à tona as discussões filosóficas sobre o suicídio e a bioética, ao enfatizar que o ato suicida deve ser compreendido e reconhecido como a máxima manifestação desse conceito, pois corresponde à possibilidade da pessoa de poder decidir sobre a condução ou interrupção de sua vida.

Estudos de cunho histórico pontuam que a autonomia do ato suicida por ser considerada expressão de salvação da honra e preservação da moralidade 3939 . Cabrera J. A ética e suas negações: não nascer, suicídio e pequenos assassinatos. Rio de Janeiro: Rocco; 2011., de forma que esse aspecto, por representar uma das perspectivas filosóficas relacionadas ao tema, não pode ser olvidado nas discussões bioéticas.

Considerações finais

Diante da grande importância do tema, considera-se que estudos como este podem contribuir de forma incipiente para o aperfeiçoamento da análise da conduta de pessoas que apresentam tendências suicidas. Ademais, torna-se evidente que a bioética voltada para a proteção da dignidade humana deve ser ponto de partida na abordagem desse tema, considerando as questões de autonomia e proteção da pessoa humana.

A esse campo do saber cabe contribuir para a redução de preconceitos e julgamentos equivocados, passíveis de estigmatizar um ser humano que, levado ao extremo sofrimento, acaba por atentar contra a própria vida. Cada sujeito caracteriza-se por sua individualidade; portanto, a abordagem do sofrimento diante da ideação de suicídio deve ter especificidades que contemplem essa singularidade.

O presente estudo contribuiu para a compreensão do estigma que envolve o comportamento suicida em um contexto no qual se observa que poucas publicações correlacionaram as temáticas do estigma ao comportamento suicida. Diante disso, enfatiza-se a necessidade de maiores investigações sobre essa temática que se apresenta tão relevante para o universo da suicidologia e da bioética, já que a redução dos estigmas pode favorecer consideravelmente o tratamento de pacientes que vivenciaram esse ato extremo de autoagressão.

Referências

  • 1
    Organização Mundial da Saúde. Relatório mundial da saúde. Saúde mental: nova concepção, nova esperança. Lisboa: OMS; 2002.
  • 2
    Cardoso HF, Baptista MN, Ventura CD, Brandão EM, Padovan FD, Gomes MA. Suicídio no Brasil e América Latina: revisão bibliométrica na base de dados Redalycs. Diaphora. 2012;12(2):42-8.
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    Araújo ES, Bicalho PPG. Suicídio: crime, pecado, estatística, punição. Rev Psicol IMED. 2013;4(2):723-34.
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    Vidal CEL, Gontijo ECDM, Lima LA. Tentativas de suicídio: fatores prognósticos e estimativa do excesso de mortalidade. Cad Saúde Pública. 2013;29(1):175-87.
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  • 6
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2015

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2014
  • Revisado
    14 Fev 2015
  • Aceito
    28 Abr 2015
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