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Portfólio acadêmico: reflexões sobre o ensino de enfermagem em interculturalidade

Resumo

Este estudo busca refletir acerca do cuidado intercultural quanto ao modo de agir no processo de enfermagem ante as diferentes culturas. Trata-se de estudo teórico de abordagem reflexiva baseado na experiência do acadêmico na construção de seu portfólio, realizado no ano de 2020 por meio de reflexões pautadas em portfólio acadêmico do quinto semestre de um curso de enfermagem do Sul do Brasil. Após análise do material produzido e das reflexões anotadas no diário do portfólio, emergiram as seguintes categorias: cuidado intercultural em disciplinas de enfermagem e interculturalidade e pandemia. Assim, após reflexão e discussão sobre o cuidado de enfermagem, abordar-se-ão a interculturalidade diante das disciplinas cursadas, as experiências da trajetória acadêmica nesse período e, por fim, os impactos da pandemia de covid-19 no processo de cuidado das pessoas do ponto de vista da interculturalidade. Essa temática torna-se importante por suscitar uma reflexão sobre a relação enfermeiro-paciente.

Enfermagem; Cultura; Bioética; Ética

Abstract

This study seeks to reflect on intercultural care regarding the how to act in the nursing process in the face of different cultures. This is a theoretical study with reflexive approach based on the experience of the academic in building their portfolio carried out in 2020 by means of reflections based on academic portfolios of the fifth semester of a nursing program in the South region of Brazil. After analysis of the produced material and of the noted reflections in the portfolio diary, the following categories emerged: intercultural care in nursing courses and interculturality in the pandemic. Thus, after reflection and discussion on nursing care, we will focus on interculturality in the face of the courses taken, the experiences of the academic trajectory in this period, and, finally, the impacts of the COVID-19 pandemic in the process of care for people from the point of view of interculturality. This thematic becomes important for bringing up a reflection on the nurse-patient relation.

Nursing; Culture; Bioethics; Ethics

Resumen

Este estudio reflexiona sobre el cuidado intercultural en la forma de actuar de la enfermería ante las diferentes culturas. Se trata de un estudio teórico, de tipo reflexivo, sobre la experiencia de académicos en la construcción de su portafolio, que cursaban el quinto semestre de enfermería en el sur de Brasil, en el periodo de 2020. Tras realizados el análisis de datos y las reflexiones anotadas en el diario de portafolio, surgieron las siguientes categorías: cuidado intercultural en las materias de enfermería e interculturalidad y pandemia. Luego de la reflexión y discusión sobre el cuidado de enfermería, se aborda la interculturalidad en las materias cursadas, las vivencias de la trayectoria académica en este periodo, y los impactos de la pandemia del Covid-19 sobre el proceso de cuidado de las personas desde el punto de vista de la interculturalidad. Este tema es importante para suscitar una reflexión sobre la relación enfermero-paciente.

Enfermería; Cultura; Bioética; Ética

Pode-se definir cultura como a construção coletiva de valores, em que cada indivíduo, baseado em sua experiência de vida, coloca sentido em suas ações. Assim, a cultura acompanha o ser humano em sua existência, orientando-o em suas atitudes e tomadas de decisão 11. Morgado AC. As múltiplas concepções da cultura. Múltiplos Olhares em Ciência da Informação [Internet]. 2014 [acesso 4 abr 2022];4(1):1-8. Disponível: https://bit.ly/37qAGA5
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. Nesse sentido, cabe aos profissionais de enfermagem compreender a dimensão cultural, a complexidade e o significado de saúde/doença para cada indivíduo, respeitando seus valores e crenças 22. Ramos N. Comunicação em saúde e interculturalidade: perspectivas teóricas, metodológicas e práticas. RECIIS [Internet]. 2012 [acesso 17 abr 2022];6(4). DOI: 10.3395/reciis.v6i4.742
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A interculturalidade fundamenta-se na interação entre pessoas, com diferentes percepções sociais ou não, em que estas promovem relações recíprocas e interações com diferentes grupos, tornando-se capazes de construir diálogos transformadores e valorizando diferentes cenários 33. Stanislaus LT, Ueffing M, editores. Intercultural living: explorations in missiology. Maryknoll: Orbis; 2018. .

Em alguns momentos, as relações interculturais podem sofrer conflitos, haja vista a diversidade cultural existente em uma mesma sociedade. Assim, o diálogo torna-se uma importante ferramenta de trabalho do enfermeiro com sua equipe ou com usuários do serviço, podendo haver barreiras decorrentes das diferenças culturais ou microculturas de cada um, por exemplo, a compreensão de determinado termo pode variar de uma cultura para outra 44. Pereira LA, Hirsch CD, Silveira RS, Barlem JGT, Schalenberger CD, Barlem ELD. Barreiras no processo de construção do enfermeiro-líder: uma etnoenfermagem. Rev Enferm UFPE [Internet]. 2018 [acesso 4 abr 2022];12(5):1381-9. DOI: 10.5205/1981-8963-v12i5a230730p1381-1389-2018 .

A enfermagem assume a centralidade do cuidado em saúde e, nesse sentido, é preciso ser capaz de reconhecer a identidade cultural dos pacientes, a fim de ultrapassar as barreiras impostas pelo desrespeito às diferentes culturas ou àquelas que parecem conflitantes. Para alcançar a integralidade do cuidado, é imprescindível compreender o indivíduo como um todo, com suas crenças, valores e hábitos, fatores estes que condicionam o processo de saúde-doença 55. Coutinho E, Amaral S, Parreira V, Chaves C, Amaral O, Nelas P. O cuidado cultural na trajetória da enfermagem transcultural e competência cultural [Internet]. In: Atas do 6º Congresso Ibero-Americano em Investigação Qualitativa; 12-14 jul. 2017. Piracicaba: Esalq-USP; 2017 [acesso 4 abr 2022]. p. 1578-87. Disponível: https://bit.ly/393JFr9
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Para garantir a qualidade do cuidado diante de conflitos interpessoais, o enfermeiro deve fazer uso do conhecimento ético, a fim de gerir os conflitos, ser sensível a estes e, consequentemente, respeitar as diversidades culturais com base na ética. É imprescindível que se busque prevenir a ocorrência de conflitos interpessoais, os quais se tornam inevitáveis em algumas situações, dados os valores de cada indivíduo, podendo tornar-se dilemas éticos. Nesses casos, é fundamental não se deixar consumir por esses conflitos, para não perder sua identidade 66. Teixeira NL, Silva MM, Draganov PB. Desafios do enfermeiro no gerenciamento de conflitos dentro da equipe de enfermagem. Rev Adm Saúde [Internet]. 2018 [acesso 4 abr 2022];18(73). DOI: 10.23973/ras.73.138 . Nesses momentos, o enfermeiro, como gestor do cuidado e líder de equipe, deve garantir que o usuário receba a assistência necessária.

O cuidado intercultural e os conflitos interpessoais gerados podem acabar ocasionando dilemas bioéticos. Nesse contexto, é necessário um conhecimento aprofundado que vá além de técnicas de cuidado em enfermagem, isto é, são necessários instrumentos que problematizem as questões para a busca de soluções. Assim, a bioética adentra o universo do cuidado em saúde, possibilitando mudanças e novas discussões 77. Façanha TRS, Maluf F. A presença do ensino da bioética na Enfermagem. Revista Pró-UniverSUS [Internet]. 2017 [acesso 4 abr 2022];8(1):17-25. Disponível: https://bit.ly/3wd3Drx
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Este artigo constitui estudo de reflexão por meio de portfólio acadêmico realizado a partir das perspectivas do quinto semestre do curso de enfermagem. Na disciplina de Integração Ensino, Serviço e Comunidade II (Iesc II), discutiu-se a temática relacionada a cultura e multiculturalidade. Diante disso, escolheu-se a questão norteadora: Como agir no processo de cuidado a pacientes de diferentes culturas? O objetivo deste artigo, portanto, é refletir acerca do cuidado intercultural no que tange à maneira de agir no processo de enfermagem diante de diferentes culturas.

Para discutir a temática, foi necessário abordar as relações pessoais, visto que o cuidado de enfermagem requer a participação de pelo menos dois atores: o profissional de enfermagem e o paciente. Nesse contexto, é importante desenvolver competências de comunicação que permitam às pessoas interagir e comunicar-se em um contexto intercultural, devendo envolver, ainda, a ética nas relações pessoais, com vistas ao respeito diante das diferentes culturas, e na realização do cuidado de enfermagem.

Método

Trata-se de estudo teórico com abordagem reflexiva, baseado na experiência do acadêmico na construção do portfólio. Saliente-se que o portfólio reflexivo, sendo um método ativo de ensino/aprendizagem nas disciplinas que compõem a base curricular 2019 do quinto semestre do curso de graduação em Enfermagem de uma universidade do Sul do Brasil, fomenta um processo ativo para a construção de pensamento crítico. Os aprendizados, experiências e reflexões emergidas durante o processo de formação no decorrer das práticas foram relatados no portfólio reflexivo utilizado como critério avaliativo das disciplinas do referido semestre.

Assim, optou-se por utilizar recortes do portfólio de um discente e, a partir de então, descrever as percepções, potencialidades e fragilidades da utilização de tal portfólio, além de refletir acerca da importância do emprego de portfólio reflexivo na construção de conhecimento, habilidades e atitudes em contextos interculturais.

Resultados e discussões

Cuidado intercultural em disciplinas de enfermagem

O cuidado deve sempre seguir os preceitos éticos e técnicos da enfermagem, com respeito aos costumes, valores e hábitos de profissionais e pacientes. Para que o processo de cuidar seja resolutivo, não se pode ignorar a integridade de cada pessoa. Assim, surge o questionamento de como agir em determinadas situações, que tem como base disciplinas do quinto semestre do curso de enfermagem, a saber: Atenção Integral à Saúde Mental; Atenção Integral à Saúde do Idoso; Bioética e Cidadania; Cuidado de Enfermagem ao Adulto; Iesc II; Psicologia e Saúde; e Clínica Ampliada.

Na disciplina Cuidado de Enfermagem ao Adulto, frequentemente se discute sobre o raciocínio clínico ante o processo de saúde-doença, incluindo a investigação de diferentes fatores relacionados à saúde do paciente. Para isso, durante a sistematização da assistência de enfermagem, o enfermeiro deve compreender outros fatores que estão relacionados à saúde do paciente, como seu aspecto cultural, pois, durante a realização do cuidado de enfermagem, é preciso atender e respeitar os valores morais e culturais do paciente.

A prática do cuidado de enfermagem deve considerar a diversidade cultural encontrada em seu campo de atuação, com respeito às diferenças culturais, como costumes, crenças, rituais, hábitos de vida e valores, e a atuação profissional do enfermeiro deve estar voltada a um cuidado que tenha relevância 88. Lima MRA, Nunes MLA, Klüppel BLP, Medeiros SM, Sá LD. Atuação de enfermeiros sobre práticas de cuidados afrodescendentes e indígenas. Rev Bras Enferm [Internet]. 2016 [acesso 4 abr 2022];69(5):840-6. DOI: 10.1590/0034-7167.2016690504 . No âmbito da enfermagem, a interculturalidade refere-se à capacidade de o enfermeiro compreender e respeitar a origem das pessoas, ofertando cuidados de maneira integral 99. Jeong GH, Park HS, Kim KW, Kim YH, Lee SH, Kim HK. A concept analysis of cultural nursing competence. Korean J Women Health Nurs [Internet]. 2016 [acesso 17 abr 2022];22(2):86-95. DOI: 10.4069/kjwhn.2016.22.2.86 .

Seguindo na mesma perspectiva, cabe citar o trabalho desenvolvido na disciplina Clínica Ampliada, em que se discutiram as temáticas abordadas e casos clínicos, com grande ênfase no cuidado com a família e a comunidade e no preparo da família para o cuidado do familiar, estabelecendo a relação entre esses fatores e a postura do profissional de enfermagem em situações de interculturalidade. Cabe ao enfermeiro identificar hábitos, rotinas, estilos de vida e crenças antes de prescrever cuidados, visando tornar o processo de cuidado o mais saudável, eficiente e com a melhor aceitação possível.

O cuidado intercultural implica adentrar o universo do outro com respeito e compreensão, interpretando sua realidade e seu mundo. A interculturalidade caracteriza-se como ferramenta que auxilia os profissionais a romper barreiras e divergências nas relações pessoais 1010. Silveira RS, Martins CR, Lunardi VL, Vargas MAO, Lunardi Filho WD, Avila LI. A dimensão moral do cuidado em terapia intensiva. Ciênc Cuid Saúde [Internet]. 2014 [acesso 4 abr 2022];13(2):327-34. DOI: 10.4025/ciencuidsaude.v13i2.19235 . Dessa maneira, os profissionais podem estabelecer vínculos e interpretar a realidade do outro, colocando o cuidado como objeto central.

Cabe ao enfermeiro, durante sua atuação profissional, reconhecer as diferenças e saber respeitá-las de maneira integral, agindo com ética, visto que, em determinadas situações de fragilidade do paciente, o enfermeiro se torna responsável pela tomada de decisões. Essas decisões devem ocorrer de modo a não causar mais sofrimento e fragilidade ao paciente em sua dimensão biopsicossocial.

Para sua atuação profissional e para respeitar a diversidade cultural dos pacientes, o enfermeiro deve fazer uso da ética e da bioética, indo ao encontro de alguns temas abordados na disciplina Bioética e Cidadania. Assim, nesse contexto, a ética refere-se, principalmente, ao respeito por indivíduos de diferentes culturas e com diferentes particularidades. Com isso, adentra-se o campo da bioética, tornando-se uma ferramenta voltada à problematização de determinadas situações e buscando fazer que o profissional aja de maneira correta e seja capaz de identificar iniquidades sociais no processo de cuidado.

Na perspectiva de promover saúde de maneira humanizada, é necessário que a enfermagem tenha um olhar voltado à interculturalidade, num trabalho conjunto com a bioética, ferramenta essencial para a solução de dilemas morais relacionados a crenças e hábitos culturais 1111. Albuquerque A. Perspectiva bioética intercultural e direitos humanos: a busca de instrumentos éticos para a solução de conflitos de base cultural. Tempus [Internet]. 2015 [acesso 4 abr 2022];9(2):9-27. DOI: 10.18569/tempus.v9i2.1760 .

Na disciplina Iesc II, promoveu-se um seminário entre os alunos, com mediação da professora, em que se discutiu a temática relacionada aos chás e suas relações no processo de saúde. Com isso, dado que a turma tem alunos de diversas cidades, eles apresentaram chás consumidos em suas microculturas. Assim, foi possível identificar a grande diversidade cultural em um pequeno espaço territorial, cabendo aos indivíduos promover o respeito mútuo para uma convivência harmônica.

O enfermeiro, no papel de gestor do cuidado, precisa estar atento às necessidades e particularidades de seus pacientes. Assim, quando um paciente optar por fazer uso de um chá, deve ser respeitado, visto que isso tem valor cultural. Ressalte-se que essa situação se aplica desde que o chá em questão não esteja sendo preparado de maneira equivocada e provocando efeito reverso aos cuidados em saúde, momento no qual pode ser necessária a intervenção do enfermeiro.

O profissional de enfermagem deve atentar ao cuidado em todas as suas dimensões, livre de quaisquer preconceitos, na medida em que atos de preconceito bloqueiam o acolhimento e a criação de vínculos. Assim, no exercício da profissão, o enfermeiro deve considerar todos os fatores e determinantes sociais de saúde e fazer que eles impulsionem um cuidado de excelência 1212. Conselho Federal de Enfermagem. Resolução nº 654, de 6 de novembro de 2017. Aprova o novo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 233, p. 157, 6 dez. 2017 [acesso 4 abr 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3P3nPVn
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. Com vistas a um cuidado que respeite a diversidade cultural de cada indivíduo, o modo de agir do enfermeiro nessas situações pode impactar positiva ou negativamente a saúde mental dos pacientes, pois uma intervenção drástica da equipe de enfermagem tem potencial para despertar algum trauma ou atitude prejudicial à saúde.

Os centros de atenção psicossocial são unidades de saúde responsáveis pela promoção e pela recuperação da saúde. O uso de ferramentas como arte, teatro e música pode servir como transformação de ordem social. Assim, os pacientes que fizerem uso dos métodos sociais e culturais receberão um cuidado humanizado e não invasivo 1313. Galvanese ATC, Pereira LMF, D’Oliveira AFPL, Nascimento AP, Lima EMFA, Nascimento AF. Arte, saúde mental atenção pública: traços de uma cultura de cuidado na história da cidade de São Paulo. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos [Internet]. 2016 [acesso 4 abr 2022];23(2): 431-52. DOI: 10.1590/S0104-59702016000200006 .

Na disciplina Psicologia e Saúde, discutiu-se o tema “diferenças étnicas”, que remete diretamente a cultura, sobretudo em um país como o Brasil, de vasta diversidade cultural, onde a população nativa é menosprezada e sua cultura não é respeitada. Porém, em consonância com a saúde do idoso, cabe ressaltar o trabalho desenvolvido no cuidado com as pessoas, que busca atender à singularidade de cada um e compreender suas demandas conforme suas peculiaridades.

Por fim, uniram-se as duas disciplinas, psicologia e clínica ampliada, a fim de estudar a perspectiva do isolamento social do idoso, uma vez que muitos idosos passam a morar com os filhos e, com isso, acabam sofrendo uma mudança drástica em sua rotina. Isso, muitas vezes, pode ser causa de depressão geriátrica. As mudanças vão contra a cultura da pessoa idosa, que viveu boa parte de sua vida com hábitos e rotinas diferentes. O cuidado multiprofissional busca identificar e ser sensível a esses valores e hábitos.

Interculturalidade e pandemia

A pandemia de SARS-CoV-2 trouxe consigo isolamento, morte, insegurança, restrições e dúvidas, o que gerou mudanças no modo de viver das pessoas e, consequentemente, um estado de adaptação sociocultural a um momento de grave crise sanitária 1414. Corá MAJ. Reflexões acerca das culturas e das artes em tempo de pandemia. NAU Soc [Internet]. 2021 [acesso em 17 abr 2022];11(21):321-29. DOI: 10.9771/ns.v11i21.38602 . Nesse sentido, a prática profissional também sofreu alterações, como restrição do contato entre profissional e paciente, perdendo acolhimento e humanização no processo de cuidado.

Os impactos provenientes da pandemia de covid-19 são de foro individual, social, coletivo e cultural. A necessidade de isolamento social e de medidas de proteção e prevenção foram absorvidas de maneiras distintas, de acordo com a identificação cultural dos indivíduos. Por ser uma emergência, as medidas tomadas em grande escala têm elevada relevância na saúde das pessoas, haja vista as consequências produzidas sobre as expressões culturais e ao modo como as pessoas convivem em sociedade 1515. Cruz RM, Borges-Andrade JE, Moscon DCB, Micheletto MRD, Esteves GGL, Delben PB et al. Covid-19: emergência e impactos na saúde e no trabalho. Rev Psicol Organ Trab [Internet]. 2020 [acesso 4 abr 2022];20(2):10-1. DOI: 10.17652/rpot/2020.2.editorial
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A pandemia provocou mudanças de ordem social, trazendo impactos à saúde mental e a grupos vulneráveis, além de problemáticas relacionadas a bens essenciais para a sobrevivência do ser humano. Além disso, houve os impactos devidos ao isolamento social e à quarentena 1616. Impactos sociais, econômicos, culturais e políticos da pandemia [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020 [acesso 4 abr 2022]. Disponível: https://bit.ly/3FoMH5H
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, com destaque para os relacionados à diversidade cultural, na medida em que distintos grupos sociais demonstraram diferentes posturas e concepções perante a pandemia, ressaltando a necessidade de cuidado intercultural. Portanto, a necessidade de medidas restritivas obrigatórias em função da pandemia de covid-19 repercutiu na expressão cultural das pessoas, pois tais medidas fizeram que os indivíduos tivessem de mudar seus comportamentos de convivência em sociedade 1717. Duarte AP, Ferreira AA, Mairink IMC, Muniz VC, Freitas EAM. A epidemiologia da COVID-19 na definição de políticas públicas à luz da teoria sociocultural e histórica de Vygotsky. Braz J Hea Rev [Internet]. 2020 [acesso 4 abr 2022];3(4):8581-93. DOI: 10.34119/bjhrv3n4-108 .

O cuidado intercultural realiza-se a partir do respeito à diversidade e de constante movimento de relações sociais. O cuidado multiprofissional, de acordo com a cultura à qual é direcionado, pode ser percebido como invasivo, visto que requer que o enfermeiro cumpra suas tarefas, porém interferindo o mínimo possível na cultura do indivíduo 1818. Falkenberg MB, Shimizu HE, Bermudez XPD. As representações sociais dos trabalhadores sobre o cuidado à saúde da população indígena Mbyá-Guarani. Rev Latinoam Enferm [Internet]. 2017 [acesso 4 abr 2022];25:e2846. DOI: https://repositorio.unb.br/handle/10482/22942
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A prestação do cuidado no contexto pandêmico vai desde o planejamento à execução das ações, com respeito às diversidades culturais e sociais. Por exemplo, a compreensão de saúde por parte de habitantes de um grande centro urbano difere da compreensão de saúde encontrada em uma aldeia indígena. Assim, devem ser diferentes, também, as orientações quanto ao uso de máscara e sobre como ocorre a transmissão do vírus.

A abordagem de saúde direcionada à pessoa idosa deve ser um processo de enfermagem voltado especificamente a essa população, e não mera adaptação dos cuidados prestados a adultos não idosos. O atendimento à pessoa idosa requer certas especificidades, haja vista a prevalência de doenças crônicas não transmissíveis e o modo como os idosos enfrentam suas condições de saúde 1919. Schenker M, Costa DH. Avanços e desafios da atenção à saúde da população idosa com doenças crônicas na atenção primária à saúde. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2019 [acesso 23 jun 2020];24(4):1369-80. DOI: 10.1590/1413-81232018244.01222019 . Isso se aplica, também, ao cuidado com a covid-19, visto que o idoso faz parte do grupo de risco e há possibilidade de surgimento de doenças crônicas. Com isso, a cultura desse indivíduo conduz a maneira como ele receberá o cuidado em saúde.

A promoção da saúde requer o reconhecimento das diferenças sociais, o que também se aplica à população indígena. Nesse contexto, em 2002, o Ministério da Saúde e a Fundação Nacional da Saúde (Funasa) publicaram a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas , que busca garantir a essa população acesso à atenção integral à saúde, considerando a diversidade social, cultural, geográfica, histórica e política dos povos indígenas, a fim de favorecer a superação de fatores que os tornam mais vulneráveis a agravos de saúde de maiores magnitude e transcendência entre os brasileiros 2020. Brasil. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas [Internet]. Brasília: Funasa; 2002 [acesso 10 maio 2022]. Disponível: https://bit.ly/39Figw2
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. Para tanto, é necessário considerar as especificidades desses povos no desenvolvimento e no uso de tecnologias apropriadas 2121. Mota SEC, Nunes M. Por uma atenção diferenciada e menos desigual: o caso do Distrito Sanitário Especial Indígena da Bahia. Saúde Soc [Internet]. 2018 [acesso 4 abr 2022];27(1):11-25. DOI: 10.1590/S0104-12902018170890 .

Assim, as ações de prevenção à covid-19 entre povos indígenas ganham outra dimensão, incluindo desde a maneira como a informação é distribuída até a adaptação de medidas, visto que essa população é adepta de outras formas de cuidado com a saúde, como uso de plantas medicinais.

O cuidado prestado a pacientes com transtornos mentais demanda um acolhimento bem realizado, sendo necessária, por parte do profissional, a compreensão dos fatores do processo saúde-doença. A atenção à saúde mental utiliza o modelo de matriciamento, que busca o atendimento integral a esses indivíduos. Portanto, é fundamental integrar o paciente à sociedade, sem excluí-lo, tal como o modelo biomédico fazia e, em determinados momentos, ainda faz 2222. Gryschek G, Pinto AMM. Saúde mental: como as equipes de saúde da família podem integrar esse cuidado na atenção básica? Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2015 [acesso 4 abr 2022];20(10):3255-62. DOI: 10.1590/1413-812320152010.13572014 . Assim, o paciente com transtorno mental necessita de abordagem diferenciada dos demais no combate à covid-19, pois, para ele, podem ser diferentes a compreensão e a efetivação das medidas de proteção e isolamento, sendo necessário, nesses casos, que haja ação multiprofissional.

Os exemplos estudados revelam que a pandemia atinge todos os indivíduos, em diferentes realidades, abrangendo muitas culturas e exigindo mudanças e adaptações de toda ordem. Entretanto, essas mudanças são absorvidas de diferentes maneiras por cada realidade, inclusive por cada pessoa, pois, mesmo que todos tenham de seguir as mesmas orientações, a interpretação destas é individual e interfere diretamente na cultura de cada um.

Diante da atual situação, cabe aos serviços de saúde ter um olhar diferenciado aos grupos sociais minoritários, os quais, em sua maioria, demandam atenção às diferenças culturais. Com isso, programas e protocolos de saúde devem ser pensados de acordo com a subjetividade de cada indivíduo, por exemplo, o incentivo a pesquisas para o combate ao coronavírus, diante de diferentes perspectivas.

A interculturalidade e o multiculturalismo são ferramentas de auxílio para o reconhecimento de diferenças. Assim, parte-se da proposta de inter-relação entre as culturas, bem como da construção de uma nova identidade cultural. A ferramenta intercultural adentra o universo das sociedades, para uma proposta em que exista uma relação de respeito, sem desigualdades e conflitos 2323. Pires D, Siqueira VHF. Multiculturalismo, identidades, formação profissional e as cotas: construções por estudantes de medicina da UFRJ. Revista Eletrônica de Educação [Internet]. 2019 [acesso 4 abr 2022];13(3):1082-102. DOI: 10.14244/198271992546 . Nesse sentido, ao pensar em saúde, deve existir essa relação do profissional de enfermagem com os grupos menos favorecidos, conforme regulamentam as leis do Sistema Único de Saúde (SUS).

É importante salientar que o cuidado voltado à interculturalidade considerará as individualidades dos sujeitos, percebendo a importância de cada um no contexto social. Portanto, a interculturalidade é uma ferramenta que une a grandeza do olhar individual à consciência coletiva do ser humano.

Considerações finais

A temática abordada neste artigo é importante pois suscita uma reflexão acerca da relação enfermeiro/paciente, visto que a interculturalidade busca minimizar diferenças e preconceitos, promovendo uma condição de harmonia entre diferenças culturais, em busca de um cuidado humanamente sensível e profissionalmente ético, condicionado à melhora do paciente.

O processo de enfermagem contempla eixos para a sistematização da assistência de enfermagem, os quais devem ser seguidos integralmente pelo enfermeiro. Nesse sentido, como líder da equipe de enfermagem, o enfermeiro deve capacitá-la para a execução da integralidade, considerando as perspectivas culturais de cada indivíduo.

Cabe ressaltar que essa forma de cuidado coloca o paciente e sua concepção de saúde no centro do processo, com seus valores, hábitos e crenças. Assim, os profissionais de saúde poderão propor uma forma de cuidado adequada a esse indivíduo. Com isso, busca-se alcançar um cuidado de excelência, sem causar danos ao paciente, sendo necessário conhecê-lo e colocá-lo na centralidade das ações, a fim de sistematizar o cuidado de acordo com seus valores socioculturais.

Durante a pandemia de covid-19, foi – e ainda é – necessário o trabalho em equipe de diversos profissionais de saúde na luta contra o vírus. Além disso, os centros de maior densidade tecnológica recebem pacientes provenientes de outras regiões e, consequentemente, de culturas diferentes, de microssociedades com valores e hábitos diferentes. Assim, a equipe deve compreender a singularidade dos pacientes para pôr em prática o cuidado em saúde, visando ao bem comum. Ainda, a crise sanitária fez com a enfermagem reestruturasse seu modo de agir, estabelecendo novas formas de cuidado e buscando atender o indivíduo em sua integralidade, mas com os cuidados necessários e impostos pela pandemia.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Fev 2022
  • Revisado
    8 Abr 2022
  • Aceito
    25 Abr 2022
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