Resumo
O artigo discute o tema do conhecimento pático, enunciado por Félix Guattari, que trata de saberes e aprendizados da ordem das sensações, ambiências e atmosferas. Em ressonância com o método da cartografia, que supõe o pesquisador imerso na problemática investigada, nesta pesquisa um procedimento expressivo possível se deu por meio da produção de narrativas que capturam pequenas cenas e expressam brechas sensíveis, interstícios afetivos, atmosferas páticas em experiências de formação em psicologia. Com a aposta em acompanhar climas e escrever com acontecimentos vivos, incidiram questões do pensamento contemporâneo que problematizam o superinvestimento na racionalidade tecnicista, nos protocolos e na transformação da noção de experiência em comportamento apresentado. Assim, pôde-se sustentar o patos como possibilidade de preensão de complexidades frequentemente reduzidas à mera psicologia individual, contornadas pela ciência positivista e pelas políticas de subjetivação capitalísticas. Não há, enfim, pretensão de encerrar a temática e propor respostas, mas de, através de aproximações e distanciamentos na formação, compor ferramentas vivas, geralmente colocadas entre parênteses, experimentações.
Palavras chave:
produção de subjetividade; experiência; pático; narrativas; corpo
Abstract
The article discusses the theme of the pathos knowledge enunciated by Félix Guattari, which deals with knowledge and learning in the field of sensations, ambiences and atmospheres. In resonance with the cartography method, which supposes the researcher immersed in the problematic investigated, in this research, a possible expressive procedure was given by means of the production of narratives that capture small scenes and express sensitive breaches - affective interstices, pathos atmospheres - of training experiences in psychology. The aim was to follow climates and to write about live events and, thus, to focus issues of contemporary thinking that problematize overinvestment in the technical rationality, in the protocols and in the transformation of the notion of experience in presented behavior. Thus, pathos could be sustained as a possibility of holding complexities often reduced to mere individual psychology, being circumvented by positivist science and capitalist subjectivation policies. Finally, there is no pretension to conclude the theme, nor to propose answers but to compose living tools (usually placed in parentheses) and experiments through approximations and distancing in formation.
Keywords:
production of subjectivity; experience; pathos; narratives; body
Resumen
El artículo aborda el tema del conocimiento pático, enunciado por Félix Guattari, que aborda conocimientos y aprendizajes relacionados con sensaciones, ambientes y atmósferas. En resonancia con el método cartográfico, que supone al investigador inmerso en el problema investigado, en esta investigación un posible procedimiento expresivo ocurrió a través de la producción de narrativas que captan pequeñas escenas y expresan lagunas sensibles, intersticios afectivos, atmósferas páticas en experiencias de formación en psicología. Con el foco en seguir climas y escribir con eventos en vivo, se plantearon cuestiones del pensamiento contemporáneo que problematizan la sobreinversión en racionalidad técnica, protocolos y la transformación de la noción de experiencia en comportamiento presentado. Así, fue posible sostener el pathos como una posibilidad de captar complejidades a menudo reducidas a mera psicología individual, ignoradas por la ciencia positivista y las políticas de subjetivación capitalistas. No se trata, finalmente, de cerrar el tema y proponer respuestas, sino de, a través de aproximaciones y distancias en la formación, componer herramientas vivas, generalmente entre paréntesis, experimentación.
Palabras clave:
producción de subjetividad; experiencia; pático; narrativas; cuerpo
“Tudo olha para tudo, tudo vive o outro; neste deserto as coisas sabem as coisas. [...] não sei o que uma barata vê. Mas ela e eu nos olhávamos, e também não sei o que uma mulher vê. [será que talvez eu não seja uma mulher?] [...]- no mundo primário onde eu entrara, os seres existem os outros como modo de se verem. [...] há vários modos que significam ver: um olhar o outro sem vê-lo, um possuir o outro, um comer o outro, um apenas estar num canto e o outro estar ali também: tudo isso também significa ver. [...] A barata não me via com os olhos mas com o corpo[...]”.
(Clarice Lispector, 1964LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964.)
Ritmo 0
Insuficiências, De Formação
“Meus ombros pesados adentram a sala. Coloca-se ao lado de muitos outros ombros e nucas cheios de nós. Costumamos carregar todas as aulas e trabalhos acima dos membros, por aqui.
As testas estão enrugadas. Silêncio.
Blablablá e... ‘podemos escolher os campos, então’?
SIM!
As testas se dobram ainda mais. Penso na política das testas enquanto a discussão se desenrola. Uma voz balbucia ‘arte no dique’ e eu também enrugo a testa. Dois braços se erguem. Duas vagas disponíveis. Cada braço ocupa uma vaga e resolvemos.
Ombros e testas, agora tranquilos, se levantam e seguem seus rumos.
Levo os sentidos às sensibilidades. Um espaço que produz corpos. Cria órgãos e organizações... Ali, o tempo é outro e as pessoas não são as mesmas. Piso e meu passo já muda de jeito, marcas e sensações daquela sala vazia e, por isso mesmo, cheia de tudo. Sala de mundos que, fora dali, são mudos. Quase imperceptíveis. Sensíveis.
Encontro-me com mais uns 12 pares de olhos. ‘Vocês por aqui?!’
Coexistimos, ainda preservando distâncias. Até que uma chegada se anuncia.
Movimentos. Correria. Vapt. Vupt. Todo mundo se apronta para a recepção. As luzes se apagam e é dada a largada.
A convidada começa seu caminho com pés pesquisadores e nós permanecemos grudados ao chão, nos fundimos ao piso e incorporamos obstáculos. Que momento delicado... Inicia-se a dança de bambolês, cones, braços, ouvidos. Percursos sonoros. Percalços.
Vou me aproximando mais de cada vida ali presente. E somos povoados, finalmente, e de luzes acesas, de novos sentidos nos olhos. Veio-me uma frase: ‘O olho pensa’. E quantos impensados compartilhamos... Teve verde, preto, castanho, azulzinho. Histórias azuis, sentimentos castanhos... Duas pequenas bolinhas logo acima do nariz que me sorriam. Sorri de volta um sorriso que me veio do estômago.
E seguimos ouvindo e dizendo histórias. Ao mesmo tempo em que gestávamos novas contações... Geríamos... Girávamos. Escutei-me falando de minha história com a arte pela primeira vez na vida. Primeira vez que absorvia isso pelos ouvidos. Entrava pelo ouvido e saía num sei de onde...
Jogamos mais algumas palavras na roda e descobrimos que tudo o que dissemos não escapou pela porta nem pelas janelas da sala... Continuaram pairando pelos vãos dos nossos dedos, pelas brechas entre uma perna e outra, preenchendo todos os milimétricos espaços vazios dos corpos. Há, então, que se tomar cuidado com as palavras mortas.”
(Diário de campo, 2018)
Esse trecho compõe uma narrativa produzida no Eixo Trabalho em Saúde, que participa da grade curricular de todos os cursos da área de saúde da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), campus Baixada Santista. Ele vem à tona justamente como parte do percurso que se trilha até um objeto de pesquisa, não como um fechamento de algo, mas como o traçar de aproximações e distâncias de campos habitáveis.
Há aqui ecos do que se pode chamar de uma “formação boa por insuficiência”,1
1
A expressão emerge de uma inflexão no escrito de Luiz Claudio Figueiredo: A preparação do psicólogo: formação e treinamento (1996, p. 115), que se refere a uma formação em psicologia suficientemente boa. A noção de uma formação boa por insuficiência é um desvio produzido no artigo de Sidnei J. Casetto et al. (2016): “Uma formação em psicologia insuficientemente boa: o trabalho em saúde como uma ética”.
isto é, uma aposta em ações das quais se lança mão em situações inusitadas e deficitárias e que se relacionam, muitas vezes, “com a problematização dos ideais e modelos na formação (que tentam ser suficientes) que se sobrepõem à experiência do trabalho vivo em ato” (Casetto et al., 2016CASETTO, Sidnei J. et al. A good training based on insufficiency: Work in health care as an ethics. Journal of Health Psychology, v. 21, n. 3, p. 291-301, 2016. Disponível em: http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/1359105316628747?journalCode=hpqa . Acesso em: 10 out. 2018.
http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1...
, p. 299). E, se de alguma maneira, esse meio pode deixar a desejar e nos colocar em íntima relação com que o que falta, falha e vaza, também pode irromper em potências que abrem fissuras num fazer rígido. Quais possíveis podem ser criados quando o imperativo do sucesso deixa de ser o único operante? Quando se pode criar espaços e tempos de emergência, mais do que de urgência?2
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O trecho ecoa com o artigo “Secalharidade como ética e como modo de vida: o projeto AND Lab e a investigação das práticas de encontro e de manuseamento coletivo do viver juntos”, de Eugénio e Fiadeiro (2019).
A própria expressão deixar a desejar é sintomática, quando capturada por um valor moral de negatividade, de falta. Isso porque, quando se deixa a desejar, se entende que o processo ficou em aberto, que não houve um fim triunfante, que poderia ter sido melhor, que poderia ter sido aquilo, que poderia ter sido mais. Expectativas impregnadas de uma aposta no modelo e triunfo, preocupadas com o que um trabalho poderia ter sido, que não acessam muitas das camadas “da vida como ela é”, do que um trabalho é.3 3 Desinvestindo na escrita, do cativante platonismo, percebemos a necessidade de dizer aquilo que se passou, que está se passando e nada além disso. O escritor russo Anton Tchekhov (2002), em uma de suas cartas, anuncia uma escrita avessa às metas, que narra “a vida como ela é”, e diz acerca dos “escritores que chamamos eternos ou simplesmente bons, que nos inebriam, possuem um traço comum e extremamente importante: rumam para um lugar determinado e nos chamam para lá”, e sublinha que “os melhores entre eles são realistas e escrevem sobre a vida como ela é, mas, uma vez que cada linha está impregnada, como se fosse de uma seiva, pela consciência da meta, nós, além da vida como ela é, também pressentimos a vida tal como deveria ser, e isso nos cativa. E nós? Nós! Nós escrevemos a vida tal como ela é e não damos nem mais um pio. Mesmo chicoteados, não avançaremos um passo além daí.” Propõe-se, então, uma inflexão também nos significados desse termo, porque pode ser interessante deixar a desejar para manter pulsante e sem conclusão um processo, inspirar continuidades, abrir espaço para desejos. Para uma ideia de desejo que produz, faz produzir e que possibilita sustentar um elogio a esta formação que deixou a desejar e permitiu desejar4 4 Acerca do desejo, interessa a problematização de Luiz Orlandi, que diz da importância de “[…] [uma] guerrilha contra nós mesmos, ou melhor, uma guerrilha contra as potências maiúsculas - sejam Partidos, Religiões, Mídias ou quaisquer proeminências transcendentes - que nos invadem, que nos habitam e habilitam, que desejam em nós”. E que há de se perguntar “o que deseja em mim quando desejo”, “o que em mim quer, o que na minha vontade está querendo?” É essa a questão. Com essa pergunta somos lançados para além da psicologização imediata, para duvidar de certa naturalização do sujeito, que faz crer que o que pensa e deseja é individual e se expressa da interioridade, desde dentro (Laboratório de Sensibilidades, 2016a). diferentemente do modelo.
“Ao olhar adiante, me deparei com a paisagem mais silenciosa que já vi. Os ruídos da rua, o barulho das crianças, as vozes das pessoas ao meu lado... Tudo parecia ser sugado e, imediatamente, transformado em silêncio quando tocava a margem daquele rio. Uma água turva, densa. O rio parecia correr arrastado, como se fosse difícil carregar tudo o que flutuava em sua superfície. A primeira vez que vejo as palafitas.”
“A primeira vez que vejo não... Já tinha visto foto, já tinha ouvido falar, já tinha lido um monte... Mas essa foi a primeira vez que experienciei as palafitas. Que senti o cheiro forte, corrosivo. E tive os ouvidos tapados por aquele silêncio esmagador. E olhei para a madeira úmida, podre, retorcida. E pensei em como era possível chegar àquela construção. E em como se construía ali. E em como é que se poderia dormir tranquilo se, à noite, além do silêncio, viesse a escuridão... E não tive nenhuma resposta. E sentia que não teria. Porque tudo o que eu absorvia de lá era silêncio. E não que aquele lugar não dissesse - não gritasse - muitas coisas. Era só que tudo ali parecia circular numa frequência que eu não captava.”
(Diário de campo, 2018)
Iniciamos estes escritos acerca da formação dizendo das situações de insuficiência e precariedade, pois, entre outras coisas, elas levaram a experimentar outras formas de conhecer e compor. De habitar lugares e estados cujos nomes não se sabiam, indo a contrapelo em uma onda que impera e impõe que o conhecimento se dá por nomeação, denominação - primeiro aprende, depois executa. É no desconforto, na iminência do desastre que nos é dada a possibilidade e a quase obrigação de inventar outras formas de preensão.5
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Nesse caso, preensão tem o sentido de segurar, contrair, e se relaciona com a ideia de contemplação. Uma contração é um exercício de contemplar, e, em vez de submeter a contemplação ao mero negativo da atividade, Deleuze (2006, p. 106) em Diferença e Repetição diz que: “contemplar é questionar”.
Algumas delas próximas ao que aqui chamamos de patos, isto é, “um lugar sensível, um regime de sensibilidade até então desconhecido que poderia ser o próprio procedimento clínico do acontecimento” (Inforsato, 2010INFORSATO, Erika Alvarez. Trajetórias de uma clínica nas dobras das artes. Revista ArteFilosofia, n. 9, p. 109-125, 2010. Disponível em: https://www.anpof.org.br/periodicos/artefilosofia/leitura/890/27779 . Acesso em: 11 abr. 2018.
https://www.anpof.org.br/periodicos/arte...
, p. 110). Um aprendizado tátil, que chega na pele antes de ser cognoscível e encontra seu fim nela mesma.
Interessa aqui concentrar-se nessas vozes daquilo que se passou, produziu interferência e não foi representado, nem comunicado. Não como tentativa de sobrepor essas experiências a outras ou amplificar os ruídos dessa esfera pática, mas como forma de considerar e sustentar modos operantes que, muitas vezes, são inauditos e participam ativamente de encontros de formação.
Reparamos - parando de novo - nas marcas dessas experiências, a princípio, impensadas, gestos que não têm uma explicação profunda. E estão muito mais ligadas a um plano de exposição, disposição, posição oportunizada por percursos para os quais não fomos preparados, mas habitamos, na iminência da falha e da deficiência. Lançando mão de um modo de pesquisa que não se afasta do objeto para conhecê-lo, mas encontra na imersão e no corpo a possibilidade de percorrer itinerários e pôr em análise as políticas e forças em jogo nesses atos. Deleuze (1990DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990., p. 227) diz:
O corpo não é mais o obstáculo que separa o pensamento de si mesmo, aquilo que ele deve ultrapassar para chegar a pensar. Ao contrário, o corpo é aquilo em que o pensamento mergulha ou deve mergulhar, para atingir o impensado, isto é, a vida. Não que o corpo pense; porém, obstinado, teimoso, ele força a pensar, e força a pensar o que escapa ao pensamento, a vida. Não mais se fará a vida comparecer perante as categorias do pensamento; lançar-se-á o pensamento nas categorias da vida. As categorias da vida são precisamente as atitudes do corpo, suas posturas.
Ao fim, quase sempre nos ocorre que as explicações são insuficientes.
“E, tão logo o lanche termina, já começamos as despedidas. Abraço cada mulher, desta vez ainda mais conectada com cada uma delas. E os abraços demorados são quase tentativas de absorver, no corpo, a força e a beleza daquelas vidas e suas histórias.”
“Por último, me despeço e abraço Helena. Não consigo falar nada além de “obrigada por isso”. Mas sinto-me tranquila em não encontrar as palavras. Acho que pudemos compartilhar coisas mais sutis nessa tarde... Substantivos que precisam passar anos “deitados de barriga, até que [...] possam carrear para o poema um gosto de chão”, como diz Manoel de Barros. Coisas que só os estômagos sabem sentir e dizer...”
(Diário de campo, 2018)
Ritmo 3
Como dizer 6 6 O subtítulo é também o nome de um poema de Samuel Beckett que possui ecos com as questões desse escrito, especialmente no trecho a seguir: “[...] como dizer/ vendo tudo isso/ todo este isso/ loucura ao ver o quê/ entrever/ crer entrever/ querer crer entrever/ali lá longe mal-e-mal o quê/ loucura em querer crer/ entrever lá o quê/ o quê/ como dizer/ como dizer”. O poema “Como dizer” foi traduzido por Tomaz Tadeu da Silva e está disponível em: https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2013/04/28/como-dizer-samuel-beckett/. Acesso em: 10 out. 2018.
“Andávamos, acompanhando-a, numa das ruas próximas ao Mercado Municipal de Santos. Entrei numa das construções e caminhei por um corredor denso e escuro. Prendi-me à brecha da porta que ficou entreaberta e sentia que todo o ar que eu respirava vinha dali. Conforme ia entrando naquele espaço, todavia, o ar ia ficando rarefeito. E mantinha os olhos e a postura voltada à porta, um tanto enredada. Com uma intensidade quase bichana, sabia que era presa fácil ali. E pisava com leveza para não ser notada. Sem sucesso, pois os olhares se demoravam em mim. Havia tantos medos que eram fantásticos... Mas havia também o corpo, que só se fazia apontar à fresta da porta.”
(Diário de campo, 2018)
Como acompanhar atmosferas e criar línguas que possam expressar experiências singulares? Como produzir narrativas que não sejam mero recurso estético ou reprodução metodológica irrefletida, mas experimentações com conhecimentos páticos? Como dizer do que se esfumaça? Como afinar um instrumento de preensão para aquilo que é das ambiências, das atmosferas?
Essas perguntas, que trazem certa preocupação com as políticas de registro, apontam para uma ética que supõe os recursos expressivos implicados, interferindo diretamente naquilo que se prospecta, produzindo dados, efeitos e modos de aproximação dos problemas. Nesse âmbito e na perspectiva de uma imersão cartográfica,7 7 A perspectiva cartográfica refere-se a um modo de investigação e criação que se dá no próprio percurso da pesquisa e que não pressupõe uma separação asséptica do pesquisador e do problema com o qual ele versa. De Barros e Kastrup (2009, p. 59) dizem, a esse respeito, que “[...] o caminho da pesquisa cartográfica é constituído de passos que se sucedem sem se separar. Como o próprio ato de caminhar, onde um passo segue outro num movimento contínuo [...]”, movimento este de uma tentativa de acompanhar e desenhar modulações e linhas de forças que se emaranham no fenômeno da pesquisa (De Barros; Kastrup, 2009). a problemática de “como dizer”, não se separa de habitar um campo que produz interferências, que paira e também se desfaz. E trazendo isso à tona, encontramos, ao longo de experimentações narrativas, um procedimento expressivo8 8 Luiz Orlandi se refere aos procedimentos expressivos de um caso e diz: “Do ponto de vista do problema que nos ocupa - o dos procedimentos expressivos de um caso — essa posição do caso como ‘expressão de mundo’, e um mundo que é condição constitutiva do próprio caso enquanto expressivo é que nos obriga a uma mudança de perspectiva em nossas tentativas de exprimir um caso: não posso ater-me ao meu ponto de vista de sujeito capaz de exprimir um caso que seria meu objeto; devo deslocar-me à perspectiva das relações expressivas que fazem do caso ‘expressão de mundo’, perguntando: que mundos se expressam nesse caso? Quando se liga caso e mundo através da palavra expressão, há de se ter cuidado para não se domesticar esses termos através de operadores de calmaria. É que as coisas a serem percebidas através dessas palavras re-conceituadas subsistem em estado de disparidades” (Laboratório de Sensibilidades, 2017). possível com o que havia em um contexto de formação “boa por insuficiência”, para dizer acerca dos conhecimentos páticos. Narrativas que buscam sondar, compor questionamentos vitais. Que atuam com conceitos e linguagens, numa tentativa de mover-se com processos pulsantes e não os estancar. Não por acaso a maior parte dos conceitos e autores referidos aqui estão em notas de rodapé, literalmente sob as narrativas, como modo de privilegiar e realçar aquilo que foi vivido e é vivo. Os trechos narrados, contudo, não têm a pretensão de ilustrar teorias e ideologias, tampouco de serem legendados por análises que plenamente se encaixem. Há desencaixes. E interessam as fissuras, caminhos que nos aproximam desse clima pático.
Para construir essas narrativas, então, foi necessário criar um corpo com frequências que não estão dadas, mas são cotidianas. Desinvestindo o voluntarismo e a crença na espontaneidade, estivemos à espreita para captar ambientes, atmosferas, patos. Algo que se avizinha das frequentes referências de Deleuze (1988DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Direção de Pierre-André Boutang. Éditions Montparnasse: Paris, 1988. Disponível em: https://clinicand.com/o-abecedario-de-gilles-deleuze/ . Acesso em: 28 ago. 2023.
https://clinicand.com/o-abecedario-de-gi...
) ao carrapato, que passa anos na extremidade de um galho, amorfo e sem comer, esperando sua presa, e depois finalmente deixa-se cair no bicho, quando sente seu cheiro.9
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Ver especialmente o verbete A de Animal em O abecedário de Gilles Deleuze (Deleuze, 1988).
“Sinto um frio na espinha, um medo nostálgico. Ando e estranho olhares. Todos parecem ver disfarçadamente. As conversas na rua não são as mesmas, a pressa nos passos. Algo não tão explícito, e evidente. Os gestos, um braço que foi mais pra cá. O movimento das ruas, o fluxo não é o mesmo. A maneira de encarar de frente o vento, pois não há mais tempo a perder.
Buzinas e mais buzinas.
Uma preocupação em tantas testas…
Sigo em passo demasiadamente normal para onde quer que seja. Uma entre tantas.
Lembro-me de algo... Não cair na fraqueza de cultivar apenas a força.
Sou uma mulher do fim de um mundo.”
(Diário de campo, 2018)
Partindo dessas espreitas nos mais diversos espaços e situações de formação, foram se tecendo modos de narrar, de sondar e de pesquisar. E esses modos apontaram para embates e novos problemas. Uma dessas questões diz respeito à própria forma de apresentar esse escrito, dividido em tópicos que não têm relação cronológica ou causal. Dessa maneira, os subitens podem ser lidos em qualquer ordem, pois se trata de um processo híbrido, sujo, no qual pudemos entrever experiências intervalares - “entretantos intensivos”.10 10 Luiz Orlandi se refere a entretantos intensivos: “Que são esses entretantos? Assim que se começa a aprender algo, já os entretantos se põem como ovos do questionamento vital, seja faiscando de brancura ou se escondendo num sombreado qualquer. Enquanto este ou aquele aprendizado vai ocorrendo ao longo de um tempo cronológico, criam-se entretantos inesperados, acontecem entretempos intensivos. Isso é possível, porque as operações maquinadoras desses entretantos intervalares, longe de se reduzirem a uma função adversativa, opositiva ou restritiva, cria um intensivo intervalo de tempo até numa bem disciplinada linearidade cronológica de um aprendizado, do sentir, do pensar etc.; cria um meio-tempo dinâmico, tensionado no jogo de forças do questionamento vital, jogo favorável ao aprendizado, sim, mas que a consciência aprendiz não tematiza simultaneamente e, muitas vezes, nem depois” (Laboratório de Sensibilidades, 2016b). Não houve uma pretensão iluminista de desmistificar algo, explicitando um método e concluindo, mas de captar algumas frequências que permitissem lançar perguntas. Mesmo a escolha pelo enunciado ritmos parte de uma mistura entre a ideia de ritmos da clínica, do encontro com performances, dos contatos com os ritmos presentes na música e na dança, para remeter à noção de que o artigo expressa diversas cadências e experimenta com elas.
Percebemos, enfim, com as muitas dificuldades expressivas, a necessidade de inventar, tropeçando, essas pequenas narrativas com a linguagem ao limite.11 11 Deleuze (1988) no verbete A de animal da entrevista abecedário, diz que: “Precisamos, às vezes, inventar uma palavra bárbara para dar conta de uma noção com pretensão nova. [...] Mas escrever no lugar dos animais que morrem é levar a linguagem a esse limite. Não há literatura que não leve a linguagem a esse limite que separa o homem do animal. Deve-se estar nesse limite. Mesmo quando se faz filosofia. Fica-se no limite que separa o pensamento do não pensamento. Deve-se estar sempre no limite que o separa da animalidade, mas de modo que não se fique separado dela. Há uma inumanidade própria ao corpo humano, e ao espírito humano, há relações animais com o animal” (Cf. DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Direção de Pierre-André Boutang. Éditions Montparnasse: Paris, 1988. Disponível em: https://clinicand.com/o-abecedario-de-gilles-deleuze/. Acesso em: 28 ago. 2023). Dessa maneira, foi propondo inflexões e tensionando as palavras que se pôde dizer parte daquilo que se dá nos entremeios, que é real, presente, e vai se espraiando pelas vidas: o pático.
“Algumas coisas chegam com tal força que são difíceis de incorporar. Chegam em tantas intensidades que não têm forma, nem símbolo, nem métrica. Existem gestos que são socos no estômago. E reparem bem: não disse que são ‘como’ socos no estômago, disse apenas que são. Não passam pelo pensamento até virar sintoma... Chegam no estômago. E há que se deixar quarar até que a dor e o susto da pancada passem um pouco, para, só então, poder decifrar o vivido, através das marcas.
Passei uma semana e mais alguns dias com as mulheres de Helena falando em mim, até que pudesse me dispor a essa tentativa de escrita. Com a certeza de que não darei conta de colocar a experiência em palavras e com a intenção de expandir, em vez de encerrar esse encontro, inicio este diário, sem fim previsto.”
(Diário de campo, 2018)
Ritmo 8
Corpo pático
“Tentamos planejar algo por horas e dias e não saía nada. Tem sempre alguém, então, que diz algo como: ‘e se a gente começasse no chão?’”.
“Isso é muito necessário. Porque criar exige esse chão sólido embaixo do corpo, ainda que o corpo esteja suspenso - assim, é do chão que vem o risco de cair. E esse chão vem lembrar que a criação não é espontânea, nem original, nem inédita. É através do chão, no qual já nos apoiamos por anos e anos, que fazemos um recorte. E a isso chamamos invenção.
Toda criação é coletiva.”
“Começamos deitadas no chão e deixamos pendurados no teto dois tecidos e duas liras em diferentes alturas. Com nada acordado, colocamos uma música. Iniciamos juntas uma movimentação lenta e baixa, cada uma num canto da sala. Aos poucos, por visão periférica ou por uma finíssima linha que penso que nos ligava, acabamos todas no centro do espaço. Nos encostamos e sem dizer uma palavra, íamos sintonizando. Algumas se penduraram e balançavam entre a gente. Puxei um dos tecidos em direção à parede e outra pessoa puxou-o no sentido contrário. Outras fizeram o mesmo, e iniciamos movimentos nesses tensionamentos. A sala inteira foi tomada desses tecidos atravessados, puxados em diversos ângulos, e aquilo dava ainda mais concretude àquela matéria desconhecida que antes nos ligava. Estávamos brincando, estávamos em jogo. E havia um ambiente comum que recombinava nossas ondas e frequências. Parecia haver uma questão topográfica. Partes mais ou menos densas no nosso território, que era a sala, o laboratório. Algumas partes magnéticas, onde todas se aglomeravam de uma vez e outras um tanto aversivas. Corpos, abertos e andando. Nos juntamos por calor, por ímpeto.”
(Diário de campo, 2018)
Mais do que mera definição do que é pático, nos interessam as interferências no e com o corpo. E, ao longo do processo de pesquisa, ficou evidente a necessidade dessa imersão corporal,12 12 Nas narrativas, interessou explorar a vida como ela é, o corpo exposto à sujidade da vida e não a premissa de racionalizar para realizar. Nietzsche (2011, p. 32), em Assim falou Zaratustra, já anuncia o corpo como a grande razão: “O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão que chamas de ‘espírito’, meu irmão, um pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razão. [...] Há mais razão em teu corpo do que em tua melhor sabedoria.” encontrando e criando um tônus, um tensionamento preciso. Um modo de estar que permitisse captar e descrever atmosferas que fossem além de quem as sentiu.13 13 Deleuze (1988), referindo-se à literatura, indica a noção de perceptos: “O que são os perceptos? O artista é uma pessoa que cria perceptos. [...] Porque perceptos não são percepções. O que é que busca um homem de Letras, um escritor ou um romancista? Acho que ele quer poder construir conjuntos de percepções e sensações que vão além daqueles que as sentem. O percepto é isso. É um conjunto de sensações e percepções que vai além daquele que a sente” (Cf. DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Direção de Pierre-André Boutang. Éditions Montparnasse: Paris, 1988. Disponível em: https://clinicand.com/o-abecedario-de-gilles-deleuze/. Acesso em: 28 ago. 2023). Percebendo e construindo sensações auditivas, olfativas, quase gustativas. Nessa perspectiva, o fio condutor foi o corpo, e o plano conceitual e metodológico veio em favor, e se misturou - às vezes precariamente - com possibilidades das artes, da dança, da performance, de tecnologias da presença.
Parte do trabalho também foi o de uma invocação simpática14 14 Acerca da formação histórico-etimológica da palavra simpatia, que ecoa com o sentido que sustentamos no artigo, Inforsato (2011, p. 933) diz: ‘Ela é resultado da prefixação ‘sún-‘ - correspondente ao prefixo latino com-, no sentido de ‘juntamente, do lado de, em favor de’ -, da palavra grega ‘pathos’ - ‘estar aberto, estar exposto ou acessível, o que se experimenta’ (aplicado às paixões e às doenças).” ao sensível, e isso diz, intimamente, do que entendemos por pático nessas andanças: aquilo que se dá nos interstícios - no “entre” - que é das ambiências, de atmosferas sutis e concretas. Nisso, não se contenta com um conhecimento bem delimitado, consciente, racional e científico, e se conecta a marcas estético-afetivas.15 15 Afetivo e não sentimental, o que ressoa com os escritos de Félix Guattari (1992, p. 161), que situam e operam uma noção de pático: “Mas de que meios o arquiteto dispõe para apreender e cartografar essas produções de subjetividade que seriam inerentes ao seu objeto e à sua atividade? Poder-se-ia falar aqui de uma transferência arquitetural que, evidentemente, não se manifestaria através de um conhecimento objetivo de caráter científico, mas por intermédio de afetos estéticos complexos. O que caracteriza esse conhecimento, que após Viktor Von Weizsaker pôde-se qualificar de pático, é o fato de que ele não procede de uma discursividade concernente a conjuntos bem delimitados, mas antes por agregação de territórios existenciais”. Contradiz uma ideia de passividade, quando valoriza o viés ativo daquilo que nos acontece e faz com que mudemos de estado, potências do corpo de afetar e ser afetado, trazendo a possibilidade de um novo contato com aquilo que nos ataca.16 16 Pelbart (2013, p. 37) reencontra a patosofia de Viktor von Weizsacker, e diz: “Pathos remete, contudo, menos a uma passividade dolorosa do que ao que é ‘experimentado’. Como para os gregos, uma questão do tipo ‘o que te acontece’ coloca o acento sobre a dimensão ativa do que nos advém. O ser pático, finalmente, é o ser passível de experimentar dor ou prazer. Em termos filosóficos, o que importa é um poder de ser afetado, de mudar de estado, de transir.” Nem sempre, porém, experiências páticas são bons encontros, há também cargas perigosas para a existência, que arrebatam e, por isso, um conhecimento das ambiências implica vulnerabilidade, baixa imunidade, menos conforto e defesa.
“Estávamos todos os estagiários sentados na sala em roda. Essa era uma cena cotidiana, mas naquele dia havia uma diferença sutil, que não sabia nomear. Ombros tensos, contra a nuca. Dentes cerrados, quase tilintando. Nos olhávamos pouco, parecíamos trocar comunicações de outras maneiras. Os últimos acontecimentos anunciavam que algo se daria e, para além disso, corpos e climas faziam denúncias. Os supervisores chegaram e esse ambiente ficou ainda mais denso. Um corpo transpirava muito, mas mantinha o rosto impávido. Outro, segurava a cadeira embaixo de si, com toda sua força. Observava aquilo pelos poros, não só com os olhos. Mirava nos interstícios daquele encontro e podia sentir as forças. Algumas coisas foram ditas, mas quase não importavam, mediante a maneira que saíam e chegavam aos locutores e interlocutores. Valiam mais entoações, cadências do que significações, e o som ia atingindo, concretamente, cada um. Quase nenhuma mensagem se direcionava a mim, mas me sentia numa zona de embate. Pega de raspão por vários vetores.”
(Diário de campo, 2018)
Na escrita das narrativas páticas, fomos também tateando outras pistas, sustentando que narrar não é representar, mas inventar, viver experiências, o que foi enunciado com e através do método cartográfico, que pressupõe o corpo do pesquisador em jogo nas criações e abre espaços de encontro com o imprevisto: “O pathos precede o logos” (Canguilhem, 1978CANGUILHEM, George. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978., p. 169; Bezerra Jr., 2006BEZERRA JR., Benilton. O normal e o patológico: uma discussão atual. SOUZA, Alicia Navarro de; PITANGUY, Jacqueline (Org.). Saúde, corpo e sociedade. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006., p. 94). Não se pensa para agir ou sentir. Ao contrário de Descartes: sou afetado, existo, sinto, logo penso. E essa dimensão pática se dá nos interstícios, em um nível pré-conceitual, pré-linguístico. De corpo, de pele, de gesto. Guattari (1992GUATTARI, Félix. Caosmose. São Paulo: Editora 34, 1992., p. 161) diz que o exemplo mais simples de conhecimento pático se dá pela apreensão de um clima “que apreendemos imediatamente e globalmente e não pelo acúmulo de informações distintas”. Ou, como diria Leminski (2013LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013., p. 166): “Só existe um segredo. Tudo está na cara.”
O conhecimento pático, dessa maneira, não tem lugar delimitado ou garantido na formação e, ao mesmo tempo, está por toda parte, perpassando experiências. Difícil de agarrar, porque se esvai, se esfumaça. Suas marcas, no entanto, são reais, atuantes, e podem produzir ecos em distintos modos de conhecer, nos quais o acúmulo de informações é supervalorizado.
É necessário retomar, porém, que os espaços de formação são sempre campos de disputas, nos quais diferentes forças coexistem e interferem-se. Um acesso pático àquilo que acontece pode furar algumas estruturas rígidas e abrir novas possibilidades, mas a quem interessa essas experiências? A serviço de que elas estariam? Guattari (1992GUATTARI, Félix. Caosmose. São Paulo: Editora 34, 1992.) sublinha que o conhecimento pático é ocultado nas relações racionalistas, capitalísticas, que o contornam e o colocam entre parênteses. Isso dá pistas para pensar que, no contemporâneo, a subjetividade pática é desinvestida, uma vez que ameaça instituições e dinâmicas naturalizadas, justamente por operar nesse acesso global a tudo aquilo que é explícito, mas segue permanentemente velado por uma dinâmica lógico-cientificista que frequentemente sustenta o bom senso e o senso comum. O conhecimento pático atravessa isso, pois não tem mediação, representação. Dá-se por contaminação. Passa a existir em nós, apesar de nós.17 17 Cf. Guattari (1992, p. 117): “[esses agenciamentos] não os conhecemos através de representações, mas por contaminação afetiva. Eles se põem a existir em você, apesar de você. E não apenas como afetos rudes, indiferenciados, mas como composição hipercomplexa”.
Nesse âmbito, é preciosa e precisa a diferenciação entre essas experiências globais, complexas, singulares, e a noção de comportamento apresentado,18 18 Acerca destas questões, ver especialmente Adriano Amaral de Aguiar (2004): A psiquiatria no divã: entre as ciências da vida e a medicalização da existência. Relume Dumará, 2004. como forma de abrir questões que permitem implicar o pático no cotidiano. Distinção entre experiência e comportamento. Para pensar com essa problemática é importante sublinhar que no campo psi - especialmente na psiquiatria biológica e, posteriormente, na psicologia - novas noções emergiram a partir dos anos 80 do século XX, com o DSM-III, tais como disfunção, transtorno ou déficit (Bezerra Jr., 2006BEZERRA JR., Benilton. O normal e o patológico: uma discussão atual. SOUZA, Alicia Navarro de; PITANGUY, Jacqueline (Org.). Saúde, corpo e sociedade. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.). Efeito de uma transformação em relação ao adoecimento/saúde, que vai deixando de se revestir de uma aura experimental para progressivamente ser concebido numa seara do desvio de funcionamento, erro de programação ou falha de desempenho. Essas noções foram enunciadas porque, no contemporâneo, há modos de vida que operam, sustentam e demandam uma lógica comportamental, criando formas de expressão com efeitos concretos, como a produção de manuais diagnósticos e prontas designações a partir de checklists pré-determinados, os atuais CID 10 e DSM V.
Tal lógica implica uma aposta em que o logos precede o patos, e concebe ao modo de transtorno ou deficit19 19 Cf. Bezerra Jr. (2006, p. 93): “As noções de disfunção, transtorno ou déficit vêm transformando nossa experiência do pathos, que vai deixando de se revestir de uma aura vivencial ou existencial, para progressivamente serem concebidas e experimentadas como desvios de funcionamento, erros de programação ou falhas de desempenho”. qualquer desfuncionamento ou vazio, desinvestindo uma experiência pática viva e complexa. Certas explicações, então, passam a interessar mais, as que aliviam, as estruturadas, rápidas, demasiadamente adequadas e que contribuem para que não haja desencaixe, para que a rigidez dê respostas. Recobrindo brechas que podem instigar outros modos de estar junto, de compor, de amar, etc.
Embora ambos os modos de operar - pático e lógico - se anunciem no distanciamento de um fundamento psicologizante, se desloquem de uma perspectiva da profundidade do eu, existem relevantes desacordos, distintas apostas que implicam diferentes éticas e políticas. Por isso é urgente localizá-los e acompanhar seus sentidos na formação, ainda que coexistam e se expressem, frequentemente, misturados e em muitas camadas.
“Ela estava falando dos efeitos daquele projeto nela. Disse acerca de tudo que aprendeu e foi fazendo uma retrospectiva do que havíamos vivido ali, naquela sala, por uns meses. Ao final, então, o que mais ressoou em mim foi como concluiu: ‘a gente faz, mas não sei como faz’”.
[...]
“Pode vir em qualquer canto: no estômago, na orelha, no dedão do pé. E mais tarde é que nos damos conta. Algumas coisas chegam com uma intensidade, nos tocam na pele e lá mesmo resolvem-se, ou não. Tinha algo disso. Construímos um fazer no entre, e não depois de elaborar o plano.”
(Diário de campo, 2018)
Em consonância com essa discussão, é possível pensar que, no contemporâneo, portanto, em que tantas forças trabalham azeitando dinâmicas da rigidez, o conhecimento pático pode ser um modo possível de sustentar sutilezas, desencaixes, delicadezas, vazios e desfuncionamentos. De acessar complexidades e resistir ao comunicativismo, à avalanche de informações e explicações, e abrir espaço a outras sensibilidades e percepções. Em contextos de formação, ainda que de maneira inaudita, pode interferir, furar algumas certezas, slogans, bandeiras demasiadamente prontas e abrir possibilidades para desejar diferentemente de modelos, sejam eles lógicos, militantes, científicos, ideológicos. No entanto, as experiências e o corpo pático não estão dados. São tecidos nos encontros, nos exercícios, no tato, ao se construir manejos abertos e à altura do que nos acontece. E, ainda assim, não há garantias de que as experiências páticas produzam, por si só, tantos deslocamentos. Ao avesso do que é garantido, importam os “entretantos”, intervalos nos excessos acachapantes.
Isso é um convite a escancarar a fragilidade, uma invocação a tudo que não é onipotência.20 20 Referência à última frase de um dos filmes de Arthur Omar (1984), O som, ou o tratado de harmonia: “Eu quero tudo que não é onipotência. Eu quero escancarar a fragilidade”.
Referências
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» https://medium.com/rock/o-som-ou-tratado-de-harmonia-a10f50922460#:~:text=De%20Arthur%20Omar%2C%20O%20Som,sil%C3%AAncio%2C%20e%20assim%20por%20diante - PELBART, Peter Pal. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 edições, 2013.
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» https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2016/08/01/aposta-tchekov-fragmento-de-carta
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1
A expressão emerge de uma inflexão no escrito de Luiz Claudio FigueiredoFIGUEIREDO, Luiz Claudio M. A preparação do psicólogo: formação e treinamento. In: FIGUEIREDO, Luiz Claudio M. (Ed.). Revisitando as psicologias: da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.: A preparação do psicólogo: formação e treinamento (1996, p. 115), que se refere a uma formação em psicologia suficientemente boa. A noção de uma formação boa por insuficiência é um desvio produzido no artigo de Sidnei J. Casetto et al. (2016)CASETTO, Sidnei J. et al. A good training based on insufficiency: Work in health care as an ethics. Journal of Health Psychology, v. 21, n. 3, p. 291-301, 2016. Disponível em: http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/1359105316628747?journalCode=hpqa . Acesso em: 10 out. 2018.
http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1... : “Uma formação em psicologia insuficientemente boa: o trabalho em saúde como uma ética”. -
2
O trecho ecoa com o artigo “Secalharidade como ética e como modo de vida: o projeto AND Lab e a investigação das práticas de encontro e de manuseamento coletivo do viver juntos”, de Eugénio e Fiadeiro (2019)EUGÉNIO, Fernanda; FIADEIRO, João. Secalharidade como ética e como modo de vida: o projeto AND_Lab e a investigação das práticas de encontro e de manuseamento coletivo do viver juntos. Urdimento: Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 19, p. 61-69, 2019. https://doi.org/10.5965/1414573102192012063
https://doi.org/10.5965/1414573102192012... . -
3
Desinvestindo na escrita, do cativante platonismo, percebemos a necessidade de dizer aquilo que se passou, que está se passando e nada além disso. O escritor russo Anton Tchekhov (2002)TCHEKHOV, Anton. O assassinato e outras histórias. Tradução, seleção e prefácio: Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. Disponível em: https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2016/08/01/aposta-tchekov-fragmento-de-carta /. Acesso em: 21 out. 2018.
https://laboratoriodesensibilidades.word... , em uma de suas cartas, anuncia uma escrita avessa às metas, que narra “a vida como ela é”, e diz acerca dos “escritores que chamamos eternos ou simplesmente bons, que nos inebriam, possuem um traço comum e extremamente importante: rumam para um lugar determinado e nos chamam para lá”, e sublinha que “os melhores entre eles são realistas e escrevem sobre a vida como ela é, mas, uma vez que cada linha está impregnada, como se fosse de uma seiva, pela consciência da meta, nós, além da vida como ela é, também pressentimos a vida tal como deveria ser, e isso nos cativa. E nós? Nós! Nós escrevemos a vida tal como ela é e não damos nem mais um pio. Mesmo chicoteados, não avançaremos um passo além daí.” -
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Acerca do desejo, interessa a problematização de Luiz Orlandi, que diz da importância de “[…] [uma] guerrilha contra nós mesmos, ou melhor, uma guerrilha contra as potências maiúsculas - sejam Partidos, Religiões, Mídias ou quaisquer proeminências transcendentes - que nos invadem, que nos habitam e habilitam, que desejam em nós”. E que há de se perguntar “o que deseja em mim quando desejo”, “o que em mim quer, o que na minha vontade está querendo?” É essa a questão. Com essa pergunta somos lançados para além da psicologização imediata, para duvidar de certa naturalização do sujeito, que faz crer que o que pensa e deseja é individual e se expressa da interioridade, desde dentro (Laboratório de Sensibilidades, 2016aLABORATÓRIO DE SENSIBILIDADES. Recolha de escritos e uma fala de Luiz Orlandi. 2016a. Disponível em: https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2016/03/24/que-e-que-junta-em-mim-as-coisas-que-leio-e-vejo-que-forcas-em-mim-me-fazem-ver-isso-que-forcas-em-mim-me-fazem-expressar-assim-o-que-estou-pensando-que-forcas-ja-me-dominam-com-que-forcas-me-alio /. Acesso em: 10 out. 2018.
https://laboratoriodesensibilidades.word... ). -
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Nesse caso, preensão tem o sentido de segurar, contrair, e se relaciona com a ideia de contemplação. Uma contração é um exercício de contemplar, e, em vez de submeter a contemplação ao mero negativo da atividade, Deleuze (2006DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006., p. 106) em Diferença e Repetição diz que: “contemplar é questionar”.
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O subtítulo é também o nome de um poema de Samuel BeckettBECKETT, Samuel. Como dizer. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 2013. Disponível em: https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2013/04/28/como-dizer-samuel-beckett /. Acesso em: 10 out. 2018.
https://laboratoriodesensibilidades.word... que possui ecos com as questões desse escrito, especialmente no trecho a seguir: “[...] como dizer/ vendo tudo isso/ todo este isso/ loucura ao ver o quê/ entrever/ crer entrever/ querer crer entrever/ali lá longe mal-e-mal o quê/ loucura em querer crer/ entrever lá o quê/ o quê/ como dizer/ como dizer”. O poema “Como dizer” foi traduzido por Tomaz Tadeu da Silva e está disponível em: https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2013/04/28/como-dizer-samuel-beckett/. Acesso em: 10 out. 2018. -
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A perspectiva cartográfica refere-se a um modo de investigação e criação que se dá no próprio percurso da pesquisa e que não pressupõe uma separação asséptica do pesquisador e do problema com o qual ele versa. De Barros e Kastrup (2009DE BARROS, Laura Pozzana; KASTRUP, Virgínia. Cartografar é acompanhar processos. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; DA ESCÓSSIA, Liliana (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 52-75. , p. 59) dizem, a esse respeito, que “[...] o caminho da pesquisa cartográfica é constituído de passos que se sucedem sem se separar. Como o próprio ato de caminhar, onde um passo segue outro num movimento contínuo [...]”, movimento este de uma tentativa de acompanhar e desenhar modulações e linhas de forças que se emaranham no fenômeno da pesquisa (De Barros; Kastrup, 2009DE BARROS, Laura Pozzana; KASTRUP, Virgínia. Cartografar é acompanhar processos. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; DA ESCÓSSIA, Liliana (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 52-75. ).
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Luiz Orlandi se refere aos procedimentos expressivos de um caso e diz: “Do ponto de vista do problema que nos ocupa - o dos procedimentos expressivos de um caso — essa posição do caso como ‘expressão de mundo’, e um mundo que é condição constitutiva do próprio caso enquanto expressivo é que nos obriga a uma mudança de perspectiva em nossas tentativas de exprimir um caso: não posso ater-me ao meu ponto de vista de sujeito capaz de exprimir um caso que seria meu objeto; devo deslocar-me à perspectiva das relações expressivas que fazem do caso ‘expressão de mundo’, perguntando: que mundos se expressam nesse caso? Quando se liga caso e mundo através da palavra expressão, há de se ter cuidado para não se domesticar esses termos através de operadores de calmaria. É que as coisas a serem percebidas através dessas palavras re-conceituadas subsistem em estado de disparidades” (Laboratório de Sensibilidades, 2017LABORATÓRIO DE SENSIBILIDADES. Procedimentos expressivos de um caso que já é, ele próprio, expressão de um mundo. 2017. Disponível em: https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2017/04/24/procedimentos-expressivos-de-um-caso-que-ja-e-ele-proprio-expressao-de-um-mundo-do-ponto-de-vista-do-problema-que-nos-ocupa-o-dos-procedimentos-expressivos-de-um-caso-essa-posicao-d /. Acesso em: 12 jul. 2018.
https://laboratoriodesensibilidades.word... ). -
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Ver especialmente o verbete A de Animal em O abecedário de Gilles Deleuze (Deleuze, 1988DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Direção de Pierre-André Boutang. Éditions Montparnasse: Paris, 1988. Disponível em: https://clinicand.com/o-abecedario-de-gilles-deleuze/ . Acesso em: 28 ago. 2023.
https://clinicand.com/o-abecedario-de-gi... ). -
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Luiz Orlandi se refere a entretantos intensivos: “Que são esses entretantos? Assim que se começa a aprender algo, já os entretantos se põem como ovos do questionamento vital, seja faiscando de brancura ou se escondendo num sombreado qualquer. Enquanto este ou aquele aprendizado vai ocorrendo ao longo de um tempo cronológico, criam-se entretantos inesperados, acontecem entretempos intensivos. Isso é possível, porque as operações maquinadoras desses entretantos intervalares, longe de se reduzirem a uma função adversativa, opositiva ou restritiva, cria um intensivo intervalo de tempo até numa bem disciplinada linearidade cronológica de um aprendizado, do sentir, do pensar etc.; cria um meio-tempo dinâmico, tensionado no jogo de forças do questionamento vital, jogo favorável ao aprendizado, sim, mas que a consciência aprendiz não tematiza simultaneamente e, muitas vezes, nem depois” (Laboratório de Sensibilidades, 2016bLABORATÓRIO DE SENSIBILIDADES. Problemas em estados fetais e entretantos intensivos: Luiz Orlandi. 2016b. Disponível em: https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2016/06/28/problemas-em-estado-fetal-e-entretantos-intensivos-luiz-orlandi-video-6-minutos-e-49-segundos /. Acesso em: 25 set. 2018.
https://laboratoriodesensibilidades.word... ). -
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Deleuze (1988)DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Direção de Pierre-André Boutang. Éditions Montparnasse: Paris, 1988. Disponível em: https://clinicand.com/o-abecedario-de-gilles-deleuze/ . Acesso em: 28 ago. 2023.
https://clinicand.com/o-abecedario-de-gi... no verbete A de animal da entrevista abecedário, diz que: “Precisamos, às vezes, inventar uma palavra bárbara para dar conta de uma noção com pretensão nova. [...] Mas escrever no lugar dos animais que morrem é levar a linguagem a esse limite. Não há literatura que não leve a linguagem a esse limite que separa o homem do animal. Deve-se estar nesse limite. Mesmo quando se faz filosofia. Fica-se no limite que separa o pensamento do não pensamento. Deve-se estar sempre no limite que o separa da animalidade, mas de modo que não se fique separado dela. Há uma inumanidade própria ao corpo humano, e ao espírito humano, há relações animais com o animal” (Cf. DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles DeleuzeDELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Direção de Pierre-André Boutang. Éditions Montparnasse: Paris, 1988. Disponível em: https://clinicand.com/o-abecedario-de-gilles-deleuze/ . Acesso em: 28 ago. 2023.
https://clinicand.com/o-abecedario-de-gi... . Direção de Pierre-André Boutang. Éditions Montparnasse: Paris, 1988. Disponível em: https://clinicand.com/o-abecedario-de-gilles-deleuze/. Acesso em: 28 ago. 2023). -
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Nas narrativas, interessou explorar a vida como ela é, o corpo exposto à sujidade da vida e não a premissa de racionalizar para realizar. Nietzsche (2011NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 32), em Assim falou Zaratustra, já anuncia o corpo como a grande razão: “O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão que chamas de ‘espírito’, meu irmão, um pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razão. [...] Há mais razão em teu corpo do que em tua melhor sabedoria.”
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Deleuze (1988)DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Direção de Pierre-André Boutang. Éditions Montparnasse: Paris, 1988. Disponível em: https://clinicand.com/o-abecedario-de-gilles-deleuze/ . Acesso em: 28 ago. 2023.
https://clinicand.com/o-abecedario-de-gi... , referindo-se à literatura, indica a noção de perceptos: “O que são os perceptos? O artista é uma pessoa que cria perceptos. [...] Porque perceptos não são percepções. O que é que busca um homem de Letras, um escritor ou um romancista? Acho que ele quer poder construir conjuntos de percepções e sensações que vão além daqueles que as sentem. O percepto é isso. É um conjunto de sensações e percepções que vai além daquele que a sente” (Cf. DELEUZE, GillesDELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Direção de Pierre-André Boutang. Éditions Montparnasse: Paris, 1988. Disponível em: https://clinicand.com/o-abecedario-de-gilles-deleuze/ . Acesso em: 28 ago. 2023.
https://clinicand.com/o-abecedario-de-gi... . O abecedário de Gilles Deleuze. Direção de Pierre-André Boutang. Éditions Montparnasse: Paris, 1988. Disponível em: https://clinicand.com/o-abecedario-de-gilles-deleuze/. Acesso em: 28 ago. 2023). -
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Acerca da formação histórico-etimológica da palavra simpatia, que ecoa com o sentido que sustentamos no artigo, Inforsato (2011INFORSATO, Erika Alvarez. Adaptação e simpatia: trajetórias críticas na clínica. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v. 15, n. 38, p. 929-936, 2011. https://doi.org/10.1590/S1414-32832011000300028
https://doi.org/10.1590/S1414-3283201100... , p. 933) diz: ‘Ela é resultado da prefixação ‘sún-‘ - correspondente ao prefixo latino com-, no sentido de ‘juntamente, do lado de, em favor de’ -, da palavra grega ‘pathos’ - ‘estar aberto, estar exposto ou acessível, o que se experimenta’ (aplicado às paixões e às doenças).” -
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Afetivo e não sentimental, o que ressoa com os escritos de Félix Guattari (1992GUATTARI, Félix. Caosmose. São Paulo: Editora 34, 1992., p. 161), que situam e operam uma noção de pático: “Mas de que meios o arquiteto dispõe para apreender e cartografar essas produções de subjetividade que seriam inerentes ao seu objeto e à sua atividade? Poder-se-ia falar aqui de uma transferência arquitetural que, evidentemente, não se manifestaria através de um conhecimento objetivo de caráter científico, mas por intermédio de afetos estéticos complexos. O que caracteriza esse conhecimento, que após Viktor Von Weizsaker pôde-se qualificar de pático, é o fato de que ele não procede de uma discursividade concernente a conjuntos bem delimitados, mas antes por agregação de territórios existenciais”.
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Pelbart (2013PELBART, Peter Pal. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 edições, 2013., p. 37) reencontra a patosofia de Viktor von Weizsacker, e diz: “Pathos remete, contudo, menos a uma passividade dolorosa do que ao que é ‘experimentado’. Como para os gregos, uma questão do tipo ‘o que te acontece’ coloca o acento sobre a dimensão ativa do que nos advém. O ser pático, finalmente, é o ser passível de experimentar dor ou prazer. Em termos filosóficos, o que importa é um poder de ser afetado, de mudar de estado, de transir.”
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Cf. Guattari (1992GUATTARI, Félix. Caosmose. São Paulo: Editora 34, 1992., p. 117): “[esses agenciamentos] não os conhecemos através de representações, mas por contaminação afetiva. Eles se põem a existir em você, apesar de você. E não apenas como afetos rudes, indiferenciados, mas como composição hipercomplexa”.
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Acerca destas questões, ver especialmente Adriano Amaral de Aguiar (2004)AGUIAR, Adriano Amaral de. A psiquiatria no divã: entre as ciências da vida e a medicalização da existência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.: A psiquiatria no divã: entre as ciências da vida e a medicalização da existência. Relume Dumará, 2004.
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Cf. Bezerra Jr. (2006BEZERRA JR., Benilton. O normal e o patológico: uma discussão atual. SOUZA, Alicia Navarro de; PITANGUY, Jacqueline (Org.). Saúde, corpo e sociedade. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006., p. 93): “As noções de disfunção, transtorno ou déficit vêm transformando nossa experiência do pathos, que vai deixando de se revestir de uma aura vivencial ou existencial, para progressivamente serem concebidas e experimentadas como desvios de funcionamento, erros de programação ou falhas de desempenho”.
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Referência à última frase de um dos filmes de Arthur Omar (1984)OMAR, Arthur. O som ou o tratado de harmonia. Direção e roteiro: Arthur Omar. Fotografia: Antônio Luis e Carlos Azambuja. Som: Heron Alencar. Montagem: Ricardo Miranda. Brasil: Melopeia/Cortex, 1984. 35mm, 16 min. https://medium.com/rock/o-som-ou-tratado-de-harmonia-a10f50922460#:~:text=De%20Arthur%20Omar%2C%20O%20Som,sil%C3%AAncio%2C%20e%20assim%20por%20diante.
https://medium.com/rock/o-som-ou-tratado... , O som, ou o tratado de harmonia: “Eu quero tudo que não é onipotência. Eu quero escancarar a fragilidade”.
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Editora responsável pelo processo de avaliação:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
24 Nov 2018 -
Revisado
30 Jul 2023 -
Revisado
20 Ago 2023 -
Aceito
14 Set 2023