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PORTOS NO CONTEXTO DO MEIO TÉCNICO

the ports in the context of technical means

Resumos

Na contemporaneidade alguns espaços adquirem um caráter funcional e desempenham papel importante na arquitetura da globalização. Dentre eles podemos destacar os portos, que se constituem em elos, entre distintos pontos do globo terrestre e extensas hinterlândias, dependendo de sua conectividade. Essa importância se amplia à medida que tais espaços incorporam mais e mais uma racionalidade pautada pelo meio técnico científico, que lhes confere um aspecto diferente do que foram os portos no passado, bem como sinaliza para um ambiente permeado de lógicas hegemônicas e que procura responder a elas de forma satisfatória. Assim, os novos arranjos expressam a trajetória do capitalismo e sua relação com a técnica, seja no aspecto visível ou nas normas e relações que se estabelecem nesses espaços.

Portos; Meio técnico cientifico; Globalização


In the contemporaneity, some spaces acquire a functional purpose and play an important role in the globalization’s architecture. Among them we can emphasize the ports, which constitute themselves in links, between different points of the earth and extensive hinterlands, depending on their connectivity. This importance is amplified according as these spaces incorporate more and more a rationality ruled by the scientific technical method, that gives them a different aspect of what were the ports in the past, as well as leads to an ambiance permeated by hegemonic logics and tries to answer to them satisfactorily. So, the new arrangements express the capitalism’s trajectory and its relationship with the technique in the visible aspect or in the norms and relationships established in these spaces.

Ports; Scientific technical method; Globalization


En algunos espacios contemporáneos hay un carácter funcional, y estos tenen un importante papel en la arquitectura de la globalización. Entre ellos podemos destacar los puertos, que constituyen los vínculos entre las diferentes partes del mundo y extensas zonas de influencia, en función de su conectividad. Esta importancia se amplifica uma vez que tales espacios incorporan cada vez más racionalidad científica, guiada por medios técnicos, lo que les da una imagen diferente do que los puertos no pasado, así como señala para um ambiente permeado pela la logica hegemónica, y busca responderla de manera satisfactoria. Por lo tanto, las nuevas disposiciones expresan la trayectoria del capitalismo y su relación con la técnica, sea en el aspecto visible o en las normas y las relaciones que se establecen en estos espacios.

Puertos; Medio técnico cientifico; Globalización


INTRODUÇÃO

A historia da humanidade poderia ser contada através não só dos deslocamentos realizados pelos grupos, como também pelas formas utilizadas para essa movimentação. Se fizéssemos um breve resgate do passado, verificaríamos que desde o primitivismo o homem já se deslocava e suas necessidades, mais elementares eram satisfeitas por essa mobilidade. No escravismo, as guerras de conquista levaram ao deslocamento de grandes contingentes de indivíduos e os fluxos eram constantes com vistas a garantir o controle dos impérios. Já no feudalismo, embora mais fixados a terra e, portanto mais sedentários, os grupos humanos, tenderiam a se movimentar menos, mas isso não ocorreu, pois as demandas por bens já se tornavam mais complexas e naturalmente as trocas permaneceram permeando a vida dos indivíduos. Mas foi a emergência do capitalismo que intensificou as relações sociais e econômicas. Dessa forma, os meios de viabilizar essas transações também necessitam se aperfeiçoar.

Os transportes, mesmo os mais rudimentares, sempre estiveram relacionados ao movimento de indivíduos e mercadorias, procurando responder as necessidades de cada época, segundo os recursos técnicos existentes e o conhecimento disponível.

Adicionalmente, pode-se falar que cada grupo social também adotava meios de deslocamento particulares em face de suas características culturais e das condições geográficas do ambiente que habitavam. Esses traços permitem, na atualidade, a coexistência de modernos modais, mas também de meios de transporte ainda rudimentares e específicos de alguns grupos sociais.

Logo, o momento atual conserva ainda meios de transporte de tração animal que vem do primitivismo até as redes impulsionadas por distintas fontes de energias, passando pelo vapor e pelo motor a explosão, entre outros instrumentos de propulsão resultantes do avanço da técnica.

Historicamente, as cidades também estabeleceram uma estreita relação com essa rede de transportes, desde o Império Romano e perpetuam até os dias atuais essa lógica de serem os “nós” de múltiplos modais. No entanto, algumas das mais importantes cidades da atualidade, mesmo servido a outros sistemas de transporte, nasceram de suas funções de entreposto de mercadorias vindas de terras distantes e também foram escoadouros de produtos de sua hinterlândia.

Nesse entrelaçamento, os portos desempenharam importante papel tanto no desenvolvimento das cidades, como de alguns países inteiros, a exemplo de Veneza e Genova, na Itália, no período do renascimento e outros portos como Roterdã e Hamburgo, que apesar de seculares, despontam como modernos terminais do século XX, além dos portos inteligentes, que se fazem presentes na contemporaneidade, a exemplo de Xangai e Singapura.

No entanto, não se pode deixar de compreender que o papel desses portos nas cidades não decorria de forças endógenas. Desde sempre esses grandes entrepostos foram espaços determinados pela economia internacional, seja ela no modelo colonial ou no capitalismo monopolista e globalizado. Assim, os portos sempre foram respostas ao comércio praticado em grande volume que se dá via marítima, lacustre e fluvial e sofreram adaptações, ou modernizações, de acordo com um conjunto de fatores, que vão desde a sua localização privilegiada frente a extensas hinterlândias, passando por sua conectividade com modernas redes de transportes que garantam acessibilidade, associados, no atual momento, a tecnologia, que os transformam em pontas de lança de uma economia globalizada que comprime o tempo em nome da produtividade e competitividade.

Nesse sentido, os portos associam-se ao debate proposto pelo Professor Milton Santos quando trata do meio técnico e toda teorização que envolve esse arcabouço conceitual. Seja qual for o momento dessa trajetória dos portos na vida econômica e social é possível compreender os entrelaçamentos existentes com o debate conceitual de Milton. Assim, a compreensão do espaço portuário, não se limitada aos muros do porto, mas deve ultrapassá-lo e buscar as relações estabelecidas entre essas estruturas no contexto do modo de produção capitalista, que no atual momento intensifica sua reprodução em face do dinâmico mercado mundial das trocas.

Assim, o presente artigo pretende discutir os portos na perspectiva da teorização de Milton Santos, mostrando como essa evolução, ao longo do tempo revela traços que permitem definir questões tratadas pelo autor no debate sobre o meio técnico cientifico e todos os demais aspectos dessa rica trama que se forja no sentido de viabilizar a reprodução do capital em escala ampliada.

Na primeira parte serão discutidos aspectos que fundamentam teoricamente o artigo, procurando associar a um cenário mais amplo e relacioná-lo aos portos, na segunda fase serão discutidos e mostrados, na forma de imagens, os traços dessa evolução além de analisar, através de dados e imagens, como o meio técnico-científico contribui para incorporar os portos como espaços de competitividade, na seqüência são discutidos aspectos que evidenciam uma rede que se orienta por distintas lógicas, por fim, são trazidas algumas questões que possibilitam futuros debates tomando por base outras categorias analíticas de Milton Santos nessa associação com os terminais portuários.

BREVE DEBATE CONCEITUAL

A evolução das sociedades tem sido explicada a partir de distintos campos do conhecimento e de suas perspectivas de abordagem, bem como de teorias e conceitos que procuram respostas para um conjunto de questões e entre elas está a dinâmica geográfica que se forja em face das relações sociais. Assim, uma primeira contribuição de Milton Santos aclara essa trajetória enquanto processo:

As características da sociedade e do espaço geográfico, em um dado momento de sua evolução, estão em relação com um determinado estado das técnicas. Desse modo, o conhecimento dos sistemas técnicos sucessivos é essencial para o entendimento das diversas formas históricas de estruturação, funcionamento e articulação dos territórios, desde os albores da história até a época atual [...] (SANTOS, 2012SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo, EDUSP, 2012., p. 171)

Assim, não só a vida cotidiana e sedentária dos indivíduos são marcas do avanço das técnicas, mas também as relações que se estabelecem entre os grupos sociais, bem como o alcance do espaço conhecido, e muitas vezes dominado, também decorre dessa evolução. Esse espaço se expande à medida que se aperfeiçoam as técnicas para ampliar a capacidade dos meios de transporte, bem como para torná-los mais rápidos, o que implica na intensificação dos fluxos, sejam eles de mercadorias ou de pessoas.

Historicamente as barreiras para essa mobilidade foram sendo vencidas exatamente pelo conjunto de técnicas disponíveis, bem como pelo desejo crescente de expansionismo, em um primeiro momento pelos Estados-Nacionais, e no atual momento pelas grandes corporações que atuam em escala mundial. Ainda sobre a essência das técnicas e sua validade, Milton Santos pontua:

[...] a vida das técnicas é sistêmica e sua evolução também o é. O conjunto de técnicas aparece em um dado momento, mantêm-se como hegemônicas durante certo período, constituindo-se a base material da vida e da sociedade, até que outro sistema de técnicas tome o lugar [...] (SANTOS, 2012SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo, EDUSP, 2012., p. 176)

Logo, podemos pensar em sucessivas técnicas que se hegemonizaram em algum momento, mas que coexistiram com outras, sobretudo na área de transportes. Durante muitos séculos predominou a navegação em embarcações de pequeno e médio porte e outros meios tracionados por animais, nos últimos anos novos modais foram se incorporando, a destacar as estradas de ferro, que se fizeram presentes no centro da Revolução Industrial, e em tempos mais recentes o modal rodoviário com a expansão das auto-estradas e o nascimento da indústria automobilística. Quando tomamos como referência os últimos 60 anos tivemos a forte presença do transporte aéreo tanto de cargas como de passageiros.

Isso permite constatar que nos transportes não há substituição, mas adição de novos modais, que adquirem relevância em face de um conjunto de fatores, que podem ser econômicos, sociais, culturais, políticos e geográficos. Logo, na atualidade diversas formas de transporte coexistem nos territórios, e o que os distingue é o espaço que possuem na vida social e econômica dos países e/ou regiões e seu grau de modernização, que possibilita a conectividade crescente com a globalização, constituída na forma de redes. Nesse aspecto a contribuição de David Harvey (1990)HARVEY, D. A condição pós moderna. São Paulo, Loyola, 1990., é importante quando afirma que os transportes foram preponderantes no processo de globalização, e complementa em outra obra sua dizendo:

O modo capitalista de produção fomenta a produção de formas baratas e rápidas de comunicação e transporte, para que o produto direto possa ser realizado em mercados distantes e em grandes quantidades, ao mesmo tempo em que novas esferas de realização para o trabalho, impulsionadas pelo capital podem se abrir. Portanto, a redução nos custos de realização e circulação ajuda a criar espaço novo para acumulação de capital. Reciprocamente, a acumulação de capital se destina a ser geograficamente expansível, e faz isso pela progressiva redução do custo de comunicação e transporte. (HARVEY, 2005HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. São Paulo: AnnaBlume, 2005., p. 48).

Nesse sentido as técnicas não estão reduzidas aquilo que denominamos de tecnologia. Elas são amplas e alcançam mundo das idéias, o que possibilita a orientação dos comportamentos sociais, como bem destaca Milton Santos ao dizer: “As épocas se distinguem pelas formas de fazer, isto é, pelas técnicas. Os sistemas técnicos envolvem formas de produzir energia, bens e serviços, formas de relacionar os homens entre si, formas de informação, formas de discurso e interlocução.” (SANTOS, 2012SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo, EDUSP, 2012., p. 177). Logo, as técnicas são parte da vida social e econômica dos indivíduos e dos grupos.

A própria produção decorre do sistema de técnicas em cada momento. Ao fazer uma breve digressão na historia da geografia econômica verifica-se padrões de organizações espaciais recentes a partir de lógicas distintas que se mostraram hegemônicas em determinados momentos, a exemplo, dos pólos, dos clusters, dos distritos industriais, entre outros. Todos eles na realidade decorrentes da busca pela maximização de lucros e diminuição de custos por parte dos agentes econômicos, que vêm na economia de aglomeração uma possibilidade de reproduzir capital de forma constante e ampliada. Do mesmo modo que nos transportes, muitas dessas formas de organizar-se coexistem na atualidade, através de plataformas multimodais. Nesse aspecto cumpre resgatar a contribuição dada por Fighera ao dizer:

[...] a globalização, como uma das realizações da história do presente, assume expressões concretas cujas origens devem ser buscadas na maneira como se funcionalizam, desde a segunda guerra mundial, os traços definidores do sistema capitalista como modo de produção dominante em escala mundial, não é menos certo que, dada sua natureza contemporânea, apresenta características que permitem afirmar que esse período histórico se diferencia de qualquer outro que o tenha precedido. (FIGHERA, 2001FIGHERA, D. Globalização e seletividade espacial. In: A. F. A. Carlos (Org.). Ensaios de Geografia Contemporânea. São Paulo: EDUSP, 2001., p. 267)

A contribuição da autora encaminha o entendimento que o processo de globalização apesar de sua roupagem aparentemente inovadora, teve seus fundamentos plantados desde muitas décadas. Assim, o que nos interessa é compreender como esses fundamentos manifestados no espaço geográfico chegam ao presente momento formando uma complexa rede de lugares, que funcionam sincrônica e diacronicamente, de forma contraditória, mas combinada, atendendo as leis fundamentais do capitalismo.

A seletividade seria, portanto uma marca desse momento em que os espaços são incorporados as redes globais em face daquilo que podem oferecer. E essa “potencialidade” passa pela capacidade de cada um deles de internalizar o conjunto das técnicas e responder a contento aos reclames do capitalismo globalizado, que acelerou sobremaneira os fluxos e, conseqüentemente o ritmo do trabalho territorial.

Os “espaços eleitos” são, portanto alçados a categoria de “globalizados” e passam a funcionar pautados pelo regramento das corporações que dele fazem uso. Milton Santos elucida essa situação ao explicar o entrelaçamento que se estabelece do espaço com a técnica, onde essas grandes organizações se tornam protagonistas na configuração do território: “O casamento da técnica e da ciência [...] em sua versão atual como tecnociência, está situada a base material e ideológica em que se fundam o discurso e a prática da globalização.” (SANTOS, 2012SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo, EDUSP, 2012., p. 177)

Sob a máscara da competitividade territorial que marca a globalização, o que se estabelece é na verdade um processo predatório de competição entre distintos espaços geográficos, muitas vezes reforçados pela atuação dos Estados Nacionais e de suas políticas públicas, que acabam por promover internamente a hegemonização de algumas porções do território em detrimento de outras, reforçando as desigualdades. Fighera dá o tom desse cenário:

[...] é evidente que nem todos os lugares, dos distintos territórios nacionais, têm a mesma capacidade para participar do processo de globalização, já que nem todos teriam as devidas e necessárias condições objetivas (internas e externas) para serem co-participantes de sua realização [...] (FIGHERA, 2001FIGHERA, D. Globalização e seletividade espacial. In: A. F. A. Carlos (Org.). Ensaios de Geografia Contemporânea. São Paulo: EDUSP, 2001., p. 265)

Essa potencialidade fica evidenciada quando em uma mesma porção de território são unidas as possibilidades de produzir e circular. Assim, não podemos deixar de associar os sistemas industriais em suas distintas fases aos portos e seu funcionamento dentro da economia das trocas. Quando essas estruturas localizam-se em grandes centros urbanos industriais ou em áreas não urbanas, mas fortemente marcadas pela presença do setor de transformação, como muitos portos industriais espalhados pelo planeta, estabelecem-se as condições ideais para a atuação de grandes grupos econômicos, que reproduzem seu capital através do uso intensivo dessas estruturas, bem como as fortalecem no contexto de competição existente entre os portos mundiais.

Assim, o conjunto de agentes que atuam nos portos, seja como utilitários, seja aqueles que os fazem funcionar se constituiria naquilo que Milton Santos denomina de configuração territorial, e assim a define: “[...] conjunto de sistemas de engenharia que o homem vai superpondo à natureza, verdadeiras próteses, de maneira a permitir que se criem as condições de trabalho próprias de cada época [...]” (SANTOS, 1996SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e o meio técnico-científico informacional. São paulo: Hucitec, 1996., p. 141).

A lógica funcionalista e racional que se faz presente nos portos, desde os menores, mas que é muito mais presente nos Hubs, é uma questão de ultrapassa seus limites. Na realidade, eles fazem parte da complexa engrenagem que move a economia internacional e, cada vez mais, adquirem importância em face do grande volume de bens deslocados de um canto a outro do planeta.

Os portos são carregados de intencionalidades, pois neles há funções manifestas e exclusivas, e também são portadores de intencionalidades, pois ajudam a estabelecer o ritmo dessas trocas e, simbolicamente são mensageiros da globalização, sobretudo naquilo que diz respeito ao consumo e a circulação. Nesse sentido o fragmento textual de Milton Santos é esclarecedor: “[...] os objetos criados pelas atividades hegemônicas dotados de intencionalidade [...] faz com que o número de fluxos sobre o território se multiplique [...]” (SANTOS, 1996SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e o meio técnico-científico informacional. São paulo: Hucitec, 1996., p. 140). Assim, os portos são um dos sinônimos mais evidentes dessa convergência de fluxos que utilizam o território procurando fazer valer suas lógicas hegemônicas.

Em outro fragmento textual Milton Santos, possibilita compreender as razões da semelhança observada em alguns espaços da globalização e entre eles podemos destacar os portos: “[...] Os sistemas técnicos mais atuais, isto é, os sistemas técnicos dominantes, aqueles que servem aos atores hegemônicos [...] tendem a ter a mesma composição em todos os lugares. Não era assim no passado quando os sistemas podiam ser diversos segundo os lugares” (SANTOS, 1996SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e o meio técnico-científico informacional. São paulo: Hucitec, 1996., p. 112).

A fala do autor permite compreender porque a imagem dos portos na antiguidade e até algumas décadas passadas guardava particularidades e diferenciações, mesmo aqueles que eram considerados os maiores. Na atualidade, eles possuem o mesmo conteúdo técnico, pois também cumprem as mesmas funções nos fluxos globais. Assim, há uma unicidade dos seus sistemas de objetos, pois cabe a cada um deles servir de receptáculo e emissor, eficiente, dos símbolos da economia internacionalizada. Logo, todos se assemelham muito na sua aparência e, na essência não se pode dizer a mesma coisa, pois guardam contradições que se particularizam segundo cada local, mas também apresentam traços de semelhança, entre eles o mais revelador certamente é a permanência do embate fundamental que se estabelece entre o capital e o trabalho. Estamos tratando de sistemas técnicos carregados daquilo que há de mais moderno nas operações de carregamento de grandes embarcações, o que requer altos investimentos em tecnologia, ou seja, uso intensivo de capital, com a conseqüente e crescente liberação de mão de obra, obscurecendo até a resistência do trabalhador, como diz Milton Santos: “[...] a subordinação à racionalidade impõe aos indivíduos um enquadramento e lhes reduz a possibilidade de manifestação de uma inconformidade [...]” (SANTOS, 1996SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e o meio técnico-científico informacional. São paulo: Hucitec, 1996., p. 107)

É esse cenário em que competição e competitividade decorrem do conjunto das técnicas que desejamos analisar na secção subseqüente do artigo, procurando associar como nos últimos anos os portos foram se adaptando para atender aos reclames da economia nas suas distintas fases e características.

DO FUNDEADOURO AO PORTO HUB

A navegação e, consequentemente, os locais para abrigar as embarcações contam muito da história da humanidade. Assim, pensar sobre a evolução dos portos e das relações que os mesmos estabelecem com suas hinterlândias e entre si, enquanto portas de integração com terras distantes é sempre um exercicio de associação com o sistema de técnicas, discutido por Milton Santos. O autor pontua essa relação no fragmento textual:

As épocas se distinguem pelas formas de fazer, isto é, pelas técnicas. Os sistemas técnicos envolvem formas de produzir energia, bens e serviços, formas de relacionar os homens entre si, formas de informação, formas de discursos e interlocução (SANTOS, 2012SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo, EDUSP, 2012., p. 177)

Embora em outra perspectiva, merece destaque a contribuição dada por Blot, ao compreender essas fases como uma arqueologia do meio aquático esclarendo, de forma similar a Santos, que esse campo de estudos: [...] procura uma compreensão do passado do Homem, nas suas variadas relações com o meio aquático enquanto espaço privilegiado de circulação, por razões que se relacionam com a deslocação de embarcações [...] (BLOT, 2003, p. 28BLOT, M. L. P. H. P . Os portos na origem dos centros urbanos: contributo para a arquelogia das cidades marítimas e flúvio-marítimas em Portugal. Lisboa: Instituto Português de Arquelogia, 2003.). Nesse aspecto a autora destaca a relação estabelecida entre as sociedades e o meio aquático e analisa como eram os elos dessas comunidades com esses corpos de água, indo desde pequenos atracadouros, fundeadouros e pequenos portos que eram suficientes para sua sobrevivência.

Para não ficar excessivamente histórica, a nossa digressão resgata, de forma breve, o papel dos portos no declinio do sistema feudal e passa a discutí-los de forma mais aprofundada no capitalismo em suas distintas fases. Cabe entretanto, destacar que as cidades que, já no pré-capitalismo, abrigavam portos nos seus limites, adquiriram grande importância e visibilidade, sobretudo no continente europeu, a exemplo de Veneza e Gênova, na Itália, que serviam de entrepostos com o oriente médio.

Essas cidades possuiam tamanha importância e centralidade que se constituíram em verdadeiros “guetos” de opulência em uma Europa agrária e pobre, marcada ainda pela dispersão de poder na mão dos senhores feudais e onde as cidades tinham um espaço secundário frente ao campo.

A crise do modo de produção feudal e a emergência do capitalismo, reforçou, sobremaneira o papel das cidades que detinham portos nos seus limites. Assim, o seleto grupo que manteve-se hegemonico na idade média, se amplia consideravelmente, principalmente, naquelas nações que passavam a centralizar os espaços coloniais, a exemplo de Portugal e Espanha.

Observa-se portanto, que apesar de não se constituirem na origem desses aglomerados da Peninsula Ibérica, os portos adquirem cada vez mais centralidade na importância das relações ultramarinas e internas ao continente europeu. Logo, eles são parte das respostas a um processo histórico que possui nas navegações um motor de mudanças nas relações sociais e economicas até então prevalescentes. O entorno dos portos passa a ser o ambiente privilegiado dessas cidades, onde parte importante de suas economias ocorrem e a vida social e política fervilha.

Esse caráter é tão visivel que até as aglomerações urbanas das colonias que detinham portos nos seus limites são vistas de uma forma diferenciada, como explicita Blot:

[...] as capitais dos territórios das antigas colonias [portuguesas], todas elas são criadas de raiza como cidades maritimas, em posição costeira bem escolhida, de acordo com os pdrões humanos de protecção e ao mesmo tempo de estratégiarelativamente ao aproveitamento da via maritima como a grande rota de comunicação com metropole e com o mundo (BLOT, 2003BLOT, M. L. P. H. P . Os portos na origem dos centros urbanos: contributo para a arquelogia das cidades marítimas e flúvio-marítimas em Portugal. Lisboa: Instituto Português de Arquelogia, 2003., p. 31)

A medida que o comercio ultramarino e entre as metropoles se intensificava essas cidades se mantiveram em posições hegemônicas, como grandes entrepostos de produtos primários que saiam das colonias para beneficiamento e consumo nos países europeus.

O processo de acumulação que levaria a Revolução Industrial, modifica esse cenário, uma vez que algumas das metropoles, sobretudo Portugal e Espanha não participariam diretamente dessa transformação no modo de produção. Assim, a centralidade das cidades portuárias da Peninsula Ibérica vê-se obscurecida pela concorrência de novas áreas dinâmicas, concentradoras das novas atividades de transformação, bem como da forte articulação que esses espaços possuiam, viabilizadas pela integração do modal ferroviário com os portos, o que lhes possibilitava operar em grande escala e ampliar seus mercados.

As cidades portuárias, assim como no periodo colonial, continuavam a se constituir em “portas”, só que agora em outras bases econômicas e mediadas por outras relações de poder. Nesse aspecto Milton Santos já alertava: “O casamento da técnica e da ciência, longamente preparado desde o século XVIII, veio reforçar a relação que desde então se esboçava entre a ciência e a produção [...]” (SANTOS, 2012SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo, EDUSP, 2012., p. 177). Dessa forma, o feixe de inovações trazidas pela passagem para o periodo industrial naturalmente não se limitaria somente ao processo produtivo em si, questões mais amplas que se relacionavam a sobrevivência do modo de produção estavam intrinsecamente colocadas e nesse aspecto a circulação de bens e mercadorias adquiria centralidade.

A medida que a industria se expandia os portos procuravam responder às demandas e, assim se consolidaram como espaços privilegiados que atuavam quase simbioticamente com as cidades, que viam neles os pontos de conectividade. Essas infraestruturas eram viabilizadoras da atividade de transformação por seu papel central no ciclo industrial, uma vez que eram os canais de entrada para insumos e de saída para produtos finais. Logo, esse foi um período em que os portos moldaram seu entorno imediato segundo suas lógicas de ação, iniciando um processo de “apartação” do restante da cidade, sobretudo quando se localizavam nas áreas centrais.

Essa separação foi se acentuando a medida que as cidades foram mesclando a economia industrial com as atividades terciárias. A relação entre os portos e as cidades foi se tensionando em face das disputas por glebas do tecido urbano central, onde até então se hegemonizava a lógica do suporte ao setor industrial, e agora em tais áreas passavam a atuar outros agentes desejosos de fazer valer seus interesses de uso.

Esse cenário de disputas se intensifica por um conjunto de aspectos, com destaque para alguns. O primeiro é o fato de que, embora essas cidades tenham passado para uma economia do terciário, os portos que nelas se localizam, em face de sua modernidade e eficiencia, servem a extensas hinterlândias. Logo, não são apenas os interesses daquela economia urbana que prevalecem, mesmo o porto se localizando nos limites da cidade. Adicionalmente, no contexto da globalização há também que se considerar os agentes exôgenos que possuem interesses nesses terminais portuários em face dos fluxos de mercadorias que por eles transitam.

Outro aspecto que merece referência são os vultuosos investimentos já realizados em alguns desses grandes portos, como vistas a torná-los mais eficientes e integrados ao sistema global. Esse processo se deu motivado, em alguns países pelas políticas públicas, que incentivaram investimentos privados, seja na forma de concessões de portos inteiros, ou mesmo na delegação para construção e operação de terminais privados. Qualquer mudança de localização geraria custos, em face da quebra de contratos, bem como poderia estabelecer um ambiente de desconfiança por parte dos grandes agentes econômicos que se utilizam desses portos. Assim, o Estado se vê, muitas vezes em meio a um dilema, de tentar estabelecer uma coexistência menos tensa, mas com poucas ou nenhuma alternativa para o problema.

Dessa forma, a saida, em alguns casos foi a implantação de portos distantes das áreas urbanas, que pudessem continuar a servir aos interesses dos grandes agentes econômicos que atuam em escala mundial e nacional, e atender essas extensas hinterlândias. Surgem nesse contexto de forte modernização os denominados portos Hubs, que seriam aqueles que predominantemente recebem embarcações intercontinentais de grande porte, e fazem a distruição de mercadorias para navegação interior – cabotagem -, ou ainda para outros países que não possuem portos com capacidade para receber esses navios maiores, nem tampouco possuem equipamentos modernos e eficientes, ou mesmo instalações adequadas para armazenagem de determinados produtos. Assim, esses terminais denominados de Hubs se coadunam com as palavras de Milton Santos:

[...] a interpretação do tempo das técnicas não é única [...] não sendo elas eventos isolados, mas realidade que permitem reencontrar as suas relações, a ideia de sucessão também pressupoe que na sequencia das invenções existe uma ordem estrutural, independente de outras condições (SANTOS, 2012SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo, EDUSP, 2012., p. 176)

Logo, os modernos portos, sejam aqueles que permaneceram nos limites das cidades ou os portos industriais, são uma resposta, ou melhor dizendo, uma invenção que continua a viabilizar os interesses de grandes agentes econômicos que se utilizam diretamente dessas infraestruturas, mas também possibilitam que outros agentes sejam agraciados, quando desmobilizam áreas portuárias em pontos centrais das cidades, para projetos de requalificação urbana, os quais muitas vezes são fortemente capitalizados pelas incorporadoras imobiliárias, a exemplo de Barcelona, Baltimore, Boston, Londres, Buenos Aires entre outras.

Os grandes portos da atualidade são parte de uma totalidade, que se orienta pela ação hegemonica de alguns agentes, por isso se tornam repositórios de lógicas exôgenas, como assevera Milton Santos no fragmento textual: “O espaço é hoje um sistema de objetos cada vez mais artificiais, povoados por sistemas de ações igualmente imbuídos de artificialidade, e cada vez mais tendentes a fins estranhos, ao lugar e a seus habitantes [...]” (SANTOS, 1996SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e o meio técnico-científico informacional. São paulo: Hucitec, 1996., p. 90).

Dessa forma, nos grandes Hubs, há um verdadeiro “cosmopolitismo do cais”, onde se encontram corporações mundiais, embarcações de países distantes, tripulações de nacionalidades diversas, produtos que viajarão milhares de quilometros e outros que já o fizeram. Quando estão encravados nas áreas urbanas, há todo um conjunto de atividades complementares que também gravitam em torno do porto e de sua movimentação, tornando assim, esse cinturão que o envolve uma extensão de sua funcionalidade. E quanto maior for o porto mais extensa é essa área de alcançe, pois sua escala de operações também é ampliada, o que na maioria das vezes, tornam “estranhas” a cidade as porções lindeiras ao terminal. Esse fenômeno é explicável na perspectiva daquilo que Milton Santos denomina de assincronia:

[...] o espaço nunca é portador de técnicas da mesma idade ou de variáveis sincronicas, pode se dizer que se trata de um espaço assincrônico, ao mesmo tempo revelador e organizador da sincronia. Os elementos do espaço, quando considerados dentro de uma totalidade concreta, um lugar, são vistos como sincrônicos (SANTOS, 1996SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e o meio técnico-científico informacional. São paulo: Hucitec, 1996., p. 66)

Assim, esse espaço próximo ao porto, entendido como totalidade e como parte dela, carrega consigo traços históricos, na dimensão, social, econômica, cultural e política, muitas vezes incompatíveis com a funcionalidade que agora se impõe. Mas, mesmo aparentemente conflituosas, as variáveis se permitem integrar em uma complexa engrenagem que viabiliza a lógica hegemônica de funcionamento do terminal portuário.

Assim, percebe-se a existência de uma complexa rede de natureza diversa que envolve o funcionamento do porto, e que se traduze na paisagem e nos processos que a proxima secção do artigo pretende se debruçar.

DO GUINDASTE AO PORTAINER: perspectivas da trajetória dos portos

A trajetória de expansão dos portos, como já visto, foi uma decorrência das mudanças ocorridas no modo de produção capitalista. No entanto, analisar uma instalação portuária na atualidade é algo revelador, pois permite entender toda a evolução do sistema de técnicas e seu estágio atual. Milton Santos sinaliza para essa questão:

Vivemos a era da inovação galopante. A rapidez com que geograficamente se dinfundem as tecnologias do presente periodo mostra-se ainda maior quando a comparamos com o que o mundo conheceu na fase anterior [...] as novas tecnologias [...] colonizam muito mais áreas [...] (SANTOS, 2012SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo, EDUSP, 2012., p. 179)

Assim, os portos tem buscado cada vez mais recursos técnicos para se manterem competitivos e aptos a receber mais investimentos e fluxos de mercadorias. Nessa corrida há um par que aparenta ser dialético, mas não é – especialização e diversificação. Essa é uma combinação que vai se refletir na constituição do espaço geográfico desses terminais. Assim, os portos procuram diversificar ao maximo sua atuação em relação aos produtos que podem receber, sem perder de vista que também desejam movimentar bens de maior valor agregado, o que demanda instalações específicas. Portanto, teriamos uma diversificada especialização ou uma especialização diversificada. O fato é que isso os torna consumidores vorazes de espaços, não só no seu entorno imediato, mas também na média hinterlândia, uma vez que para seu funcionamento são constuituídas atividades de apoio a operação portuária, que muitas vezes necessitam localizar-se nas suas proximidades, como já fora comentado.

Nos casos em que esse processo de modernização requer áreas já bastante ocupadas, a saída têm sido o deslocamento para espaços não urbanos, em outros casos há uma otimização no uso do porto, através de tecnologias que permitem uma intensificação das operações sem que necessariamente tenha que haver expansão fisica.

Os recursos tem sido os mais diversos, desde ampliação do funcionamento, e isso é possivel de se constatar quando se verifica que a maior parte dos grandes portos mundiais funcionam 24 horas por dia. O outro recurso que se relaciona com o primeiro para tornar o porto eficiente, são seus modernos equipamentos que permitem maior velocidade de operações e, portanto otimizam o uso de suas instalações, pelas grandes embarcações. A figura abaixo, mostra um dos indicadores mais importantes para conferir competitividade e eficiência a um porto.

Figura 1
Variáveis Referentes ao tempo

Assim, a matematização torna-se um recurso fundamental para a operação portuária, pois é possivel observar que a varivel tempo, seja na espera, seja na operação, é determinante. Para viabilizar esse uso dos terminais em curto espaço de tempo, permitindo maior rotatividade, e também desembaraçar a embarcação para que ela continue sua viagem, entram em ação um diverso conjunto de objetos técnicos inseridos no sistema, como afirma Milton Santos (2012SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo, EDUSP, 2012., p. 187): “Esse rigor matemático vai também se inscrever no território [...]”. Logo, uma fotografia como a que segue abaixo permite compreender aquilo que o autor nos fala.

Descrever o conteudo da foto não é dificil somente para quem é leigo no assunto, mas seria algo estranho até para um trabalhador portuário de três decádas atrás, que conhecia um conjunto de termos reduzidos e de nomenclatura local, tais como docas e guindastes. O que se vê na imagem acima é uma “retroárea”, com alguns “portainers” sobre trilhos em primeiro plano, no plano secundário se observa pilhas de containers e “refers”, tendo ao fundo um conjunto de “shiploaders”. Essa é apenas uma pequena amostra de um vocabulário global que permite se compreender tudo aquilo que um moderno porto contem dentro dos seus limites. A natureza desse conjunto, inclusive, é destacada por Milton Santos:

A artificialidade do objeto técnico é a garantia de sua eficácia para as tarefas para a qual foi concebido. É assim que ele se torna concreto [...] a técnica alimenta a estandardização, apoia a produção [...] A racionalidade resultante se impõe às expensas da espontaneidade e da critividade, porque está o serviço de um lucro a ser obtido universalmente (SANTOS, 2012SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo, EDUSP, 2012., p. 182)

Essa imposição da racionalidade, na dimensão tempo e espaço, dos portos, está imbricada com a magnitude das operações comerciais em escala global. Os terminais modernos são apenas a ponta de um sistema que, para movimentar mercadorias, interconecta diversos modais de transporte e que, na atualidade igualmente passam por um intenso processo de modernização. A maximização de lucros assim como na maior parte das corporações do setor industrial, passa a ser objeto fundamental para os transportes. Isso no caso do modal maritimo vai levar a um agigantamento das embarcações e naturalmente demandar dos portos adaptações para receber esses super navios, a exemplo do Triple E.

Esse é, atualmente, o maior navio porta containers do mundo, possui 60 metros de largura e 73 de altura, e transporta 18 mil TEUs (containers), ou seja, se associarmos um container a um caminhão, caberiam no navio em torno de 18 mil veiculos de grande porte. Independentemente dos numeros que envolvam a embarcação é necessario compreender que ele, assim como os portos, são elos dessa complexa rede que a economia global teceu. Um bom exemplo dessas “necessidades” criadas pela intensificação das relações comerciais internacionais via maritima é a expansão do Canal do Panamá, com vistas a suportar embarcações como a da imagem acima.

Além do tamanho, a navegação intercontinental conta com um número cada vez maior de embarcações adaptadas a detrminados produtos, o que remete ao que já foi mencionado sobre as especializações nos portos. Atualmente existem navios carvoeiros, porta containers, para automóveis, petroleiros e gaseiros, mineraleiros, para sucos-cítricos, frigorificos, graneleiros, multicargeiros, entre outros. Enfim, os portos que desejarem se manter nesse cenário competitivo, devem estar aptos a receber todo esse conjunto de embarcações especializadas e de diferentes tamanhos, fazendo a sua parte de acelerar fluxos no processo de globalização. Nesse sentido a contribuição de Xavier mostra-se pertinente ao dizer:

A distancia é construida a partir do desejo e da necessidade de homenas, instituições e firmas de estabelecer relações de se comunicar garando fluxos de matéria e informação. A medida métrica ou temporal passa a ser verificável a partir das relações estabelecidas entre as partes, relações entre lugares que se aproximam pelos sistemas técnicos em unicidade ou se conectam pela convergência de momento (XAVIER, 2001XAVIER, M. A. M. As distâncias no meio técnico científico e as metáforas contemporâneas. In: A. F. A. Carlos (Org.). Ensaios de Geografia Contemporânea. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 199)

Outro fator de forte atratividade dos portos Hubs para as grandes empresas utilitárias são seus custos. Embora carregados de tecnologia, seu uso intensivo permite uma maior amortização dos investimentos em capital fixo e, portanto reinvestimentos constantes. Portanto, aquilo que se denomina de Terminal Handlling Charge, ou seja, o conjunto dos custos de operação e a tarifa final pelo uso, é muito mais vantajoso para aqueles usuários que operam em larga escala. Assim, se estabelece um ciclo virtuoso para o porto, seus investimentos são revertidos em modernização constante, tornando-o cada vez mais competitivo e atrativo, o que leva para ele maior número de embarcações e movimentação de mercadorias. Esse uso intensivo dos equipamentos viabiliza a posição hegemonica que alguns portos mundiais que, na atualidade, se constituem em modelos de gestão empresarial, a exemplo de Singapura, Xangai, Roterdã, Hamburgo entre outros.

Ainda na perspectiva de sua integração na economia internacionalizada, observa-se nos portos, assim como em outros setores, a atuação de agentes econômicos que operam em escala mundial. As grandes corporações globalizadas não são apenas aquelas que utilizam as instalações para movimentar suas mercadorias, elas são também aquelas que movimentam as mercadorias, denominadas de armadoras. No quadro seguinte constam as maiores empresas mercantes do mundo, com o número de containers que cada uma delas possui, bem como de embarcações.

Tabela 1
Maiores empresas armadoras do mundo

A lógica de funcionamento dessas grandes corporações em nada difere daquelas do setor de transformação que atuam mundialmente, e nelas encontarmos caracteristicas muito semelhantes nos processos de terceirização de algumas funções subsídiárias, como a contratação de tripulações, ou ainda relações verticais quando as mesmas encomendam a construção de suas embarcações que, embora delegadas a estaleiros muitas vezes distantes de suas sedes, são supervisionadas em todo o processo, por profissionais da empresa que encomendou. Grosso modo, seria a mesma coisa que um engenheiro da cia aérea TAM se fizesse presente dentro das instalações da Airbus, opinando como o avião deverá ser construído. Isso é bem traduzido por Pierre Veltz ao dizer: “[...] as decisões, responsabilidades e recursos estratégicos descentralizados se submetem a um estreito controle que inclui a integração no nível mundial da concepção dos produtos, de sua fabricação e distribuição” (VELTZ, 1993VELTZ, P. Logiques d’enterpreise et territories les nouvelles regles du jeu. In: SAVY. M.; VELTZ, P. (Orgs.). Les nouveaux espaces de l’entreprise. Paris, L’Aube:, 1993., p. 52)

Assim, esse conjunto de fatores seleciona naturalmente alguns portos e os eleva a categoria de Hubs ou de super portos que desempenham um papel fundamental na constituição da rede global e nos fluxos de mercadorias. Isso não quer dizer que portos menores não conservem algum espaço nesse tecido das trocas, tanto na escala nacional como regional, conforme será observado na proxima seção do artigo.

DO HUB AO PORTO ESPECIALIZADO: um retorno ou uma alternativa?

Alternativamente, a saida encontrada por alguns portos menores para sobreviver frente aos grandes terminais, foi de se “ultra especializarem”. Aquilo que parece contraditório ou até incompativel tem uma explicação. Nem tudo que passa por um terminal portuário possui alto valor agregado e é de interesse do porto, nem tampouco tem escala que justifique construir estruturas para movimentar tais cargas.

Se estamos falando de redes, não faz sentido etendê-las somente na perspectiva da horizontalidade estabelecida entre os grande portos, mas também na sua orientação vertical, quando os portos medianos são integrados a rede principal, seja na qualidade de alternativa e suporte no momento de maior estress de movimentação, ou mesmo como terminal de mercadorias que não são de interesse do Hub.

Ainda há que se considerar que essa classificação pode adquirir particularidades dependendo das escalas geográficas que se toma como referência, bem como das articulações reticulares existentes. Adicionalmente, pode-se dizer que essa posição secundária de um porto não lhe retira a possibilidade de integrar o mundo das técnicas, apenas isso é feito de uma forma menos intensa. Se o terminal participa, ainda que de forma subordinada, da rede de portos mundiais, há uma imposição pela sua modernização, embora em escala diferenciada de um porto Hub.

Tabela 2
Maiores portos da União Européia por movimentação de carga

O que o diferencia é a escala de operações e seu papel na rede global, que é secundário, mas também seu papel na rede regional e nacional, que é de grande relevância, evidenciando assim, que as análises geográficas devem sempre considerar a complexidade em que se inserem. Nesse sentido as palavras de Milton Santos cabem perfeitamente no contexto: “[...] os objetos técnicos semelhantes e atuais existem numa situação de interdependência funcional, igualmente universal [...]” (SANTOS, 2012SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo, EDUSP, 2012., p. 194)

Corroborando com as palavras do autor, constata-se que esses portos que funcionam como intermediários entre os Hubs mundiais e os portos regionais se constituem em elos fundamentais da rede. Ora, seus traços manifestos na paisagem se aproximam dos Hubs, a exemplo do conjunto de objetos técnicos presentes; ora guardam similaridade com portos menores, sobretudo naquilo que toca a sua relação com o entorno imediato. Tendem a ser terminais menos intrusivos na vida das cidades, mas nem por isso, estabelecem relações harmonicas.

Se tivessemos que formular um teorema que explicasse essa relação, teriamos um gráfico que mostraria uma relação inversa onde, quanto mais técnica e competitividade um porto apresenta, maior é a tendência de impor sua lógica espacial e, portanto de estabelecer uma relação tensionada com seu entorno imediato. Por outro lado, menos técnica incorporada e menor competitividade, o que se observa principalmente nos portos regionais e locais, tende a uma relação mais harmonica. E no meio teriamos os Hubs nacionais, onde a técnica se faz presente, igualmente aos grandes portos, mas a sua limitada capacidade de competição não demanda deles trabalho intensivo, o que impõe uma relação menos tensionada, mas nem por isso pacífica. Nesse sentido, as palavras de Milton Santos soam como uma sintese desse teorema: [...] outra carateristica das técnicas atuais vem do fato de sua indiferença em relação ao meio que se instalam [...] (SANTOS, 2012SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo, EDUSP, 2012., p. 180)

Esse carater mais harmonico ou tenso na coexistência entre o porto e as cidades se manifesta pela seletividade das técnicas que a ele se incorporam. No caso de portos regionais, a paisagem denuncia uma tecnificação limitada, o que torna sua presença bem menos intrusiva. A presença de um porto com menor densidade técnica, resulta em uma configuração com menores interferências no aspecto vísivel. O feixe de inovações é muito limitado nesses terminais, em face de sua baixa capacidade de investimento e de suas limitações no quadro de competição global e continental. Assim, eles operam de forma residual em relação às demandas dos maiores portos nacionais e tendem a se tornar especializados em escoar produtos de seu entorno imediato, o que vai demandar inovações pontuais que viabilizam tais fluxos.

Essa rede que estrutura-se em portos Hubs mundiais, portos continentais ou nacionais e portos regionais, tem legado a esses últimos uma especialização em determinados produtos, observa-se também o papel de alimentadores dos maiores, através da navegação de cabotagem ou costeira. Nesse sentido Castillo chama atenção para:

A unicidade dos sistemas técnicos torna-se, assim, a base material da globalização, uma solidariedade técnica em escala mundial que interage com o lugar e o espaço geográfico, conferindo-lhes diversos graus de racionalidade a depender das características e das heranças espaciais de cada um. Tal racionalização corresponde à organização própria do lugar e depende do grau de tecnificação do território (CASTILLO, 2001CASTILLO, R. Unicidade técnica planetária, informação e espaço geográfico. In: A. F. A. Carlos (Org.). Ensaios de Geografia Contemporânea. São Paulo: EDUSP, 2001., p. 193)

Logo, independente da posição que se ocupa nessa hierarquia da rede mundial dos portos, há um aspecto que os une de forma decisiva: a unicidade da técnica que segundo Milton Santos resulta de: “[...] sistemas técnicos hegemônicos cada vez mais integrados formando conjunto de instrumentos que operam de forma conexa [...]” (SANTOS, 2012SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo, EDUSP, 2012., p. 194). Esse é um laço que marca todas as redes globais, e que de forma similar, estrutura e se espelha nos portos, onde a densidade da técnica vai sofrer variações.

Há um outro fator importante que caracteriza esses portos regionais, em geral eles são de primeira ou segunda geração. Os portos de primeira geração segundo Sousa (1994SOUZA, José Figueira de. Os portos e o desenvolvimento das actividades logísticas. O exemplo do terminal Roll-on/Roll-off do Porto de Sétubal e dos parques de segunda linha. Revista Inforgeo. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1994., p. 66) eram vistos na perspectiva mais tradicional e serviam meramente de interface com os demais modais. Os portos de segunda geração segundo o mesmo autor já ampliam suas funções para armazenagem e, em geral, são pólos dinamizadores das economias regionais. As estruturas desses portos frente aos terminais denominados de terceira geração – portos Hubs -, dificulta, sobremaneira, a ampliação de sua participação nas redes de trocas. Portanto, essa “condição” de porto regional é resultante do processo de histórico de incorporação da técnica, que encontra respaldo em Milton Santos: “Em qualquer que seja a fração do espaço, cada variável revela uma técnica ou um conjunto de técnicas particulares [...]” (SANTOS, 1996SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e o meio técnico-científico informacional. São paulo: Hucitec, 1996., p. 61)

Essa incorporação maior por algumas frações em detrimento de outras também decorre da capacidade que cada porto possui para responder prontamente aos reclames das grandes corporações que desejam fazer circular seus produtos. Isso muitas vezes passa pelos arranjos institucionais, viabilizados por políticas públicas, as quais conferiu competitividade a determinados portos, mais tradicionais que se modernizaram ao longo de sua história, como Roterdã, Nova York, Hamburgo, até os novos portos asiáticos, planejados como Xangai ou Busan. Nesse sentido as palavras de de Milton Santos são elucidativas:

Considerando um todo, o espaço é o teatro dos fluxos com diferentes níveis, intensidade e orientações. Há fluxos hegemonicos e fluxos hegemonizados, fluxos mais rápidos e eficazes e fluxos mais lentos. O espaço global é formado de todos os objetos e fluxos. A escala dos fluxos materiais e imateriais é tanto mais elevada quanto seus objetos dão prova de maior inovação (SANTOS, 1996SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e o meio técnico-científico informacional. São paulo: Hucitec, 1996., p. 53)

Assim, percebe-se que ocupar um determinado espaço em qualquer rede global requer “competência” e com os portos a situação não é diferente. Estar entre os Hubs mundiais é o resultado da convergência de multiplos interesses, onde prevalecem as lógicas hegemonizadoras e os agentes que detém as melhores estratégias. Ao ocuparem posições subordinadas, os portos nacionais ou regionais, necessariamente não seriam signos de contra racionalidades, mas tão somente espaços excluídos da racionalidade extremada, que pauta o processo da globalização. Nesse sentido Ralfo Matos dá o tom do espaço que esses portos possuem ao dizer: “[...] redes efetivamente globais existem, mas repletas de interstícios. Daí a importância de não só identificar as redes mundializadas, mas também as redes de caráter local e regional que, muitas vezes possuem potencial para propor organizações territoriais alternativas [...]” (MATOS, 2013MATOS, Ralfo. Territórios e redes: dimensões econômico-materiais e redes sociais especiais. In: DIAS, Leila Christina; FERRARI, Maristela (Ogs.). Territorialidades humanas e redes sociais. Florianópolis: Insular, 2013., p. 173).

Dessa forma, essas subordinações devem ser sempre relativizadas, pois mesmo quando organizam redes regionais, tais portos o fazem como uma resposta a dimensão global da rede, que inclusive necessita deles para reproduzir sua lógica de intensificação dos fluxos, da ampliação dos mercados e da minimização de custos e maximização dos lucros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos últimos anos a geografia se mostrou bastante tímida nas suas análises sobre o setor de transportes, o que empobreceu sobremaneira, o temário dentro desse campo do conhecimento. Embora, o arcabouço teórico forjado nas últimas décadas abra um amplo espaço para discutir os fluxos de pessoas e mercadorias os estudos da ciência geográfica muitas vezes se limitaram a descrições e análises de acontecimentos pontuais no tempo e no espaço.

Cabe aqui relembrar uma contribuição dada por Ron Martin (1996)MARTIN, Ron. Teoria econômica e geografia humana. In: GREGORY, Derek; MARTIN, Ron; SMITH, Graham. Geografia Humana: sociedade, espaço e ciência social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996., ao dizer que a geografia econômica deverá ser reconstruída em bases multidimensionais, multivocal e com multiplas perspectivas. Trata-se de uma fala reveladora, no sentido de se refazer o entrelaçamento entre o campo de conhecimento da geografia e os estudos da economia procurando utilizar aquilo que foi acumulado pelas duas áreas e que ainda encontra-se distanciado, por temores ou questões ideológicas.

O presente artigo resultou de um incomodo ao perceber que um dos grandes autores da geografia, o Professor Milton Santos, ofereceu um excelente conjunto de teorias e conceitos que se prestam perfeitamente as análises de espaços distribuidores de fluxos, a exemplo dos portos.

Nesse sentido, se evidencia uma associação entre o debate feito por Milton Santos no que tange ao meio técnico e os portos nos últimos séculos. Adicionalmente, as análises que se desdobram nas suas obras e procuram esmiuçar o processo, são igualmente reveladoras para o entendimento desses terminais no âmbito do espaço reticular tecido pela globalização, bem como tornam mais fácil a compreensão daquilo que se expressa na paisagem dos portos na atualidade.

De forma geral, a contribuição de Santos alicerça teoricamente aquilo que se observa na empiria de um estudo baseado em dados estatísticos, mas sobretudo no conhecimento da realidade dos portos. Perceber que essas estruturas são mais do que um emaranhado de opbjetos técnicos reunidos em um sistema, desvenda um mundo de possibilidades para novas análises e estudos.

O artigo estabeleceu os enlaçes teorico conceituais com a realidade existente, evidenciando que o suporte dado pela obra de Milton Santos pode, e deve, ir além das atuais análises e encorajar os pesquisadores rumo a uma reinterpretação da geografia dos transportes, agora fortemente tributária de todos os processos que envolvem a globalização e revestem a modernização dos espaços que integram esse processo.

Assim, o que se pretendeu foi interpretar espaços voltados para a dinâmica da economia global, a luz das contribuições do Professor Milton Santos, sem a pretensão de esgotar o tema, mas pelo contrário, de provocar outras prospecções que estudem os portos ou que lançem mão das obras de Milton para estudar outras frações do espaço capitalista.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2014

Histórico

  • Recebido
    Jun 2014
  • Aceito
    Jul 2014
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