Resumo:
A partir do horizonte de uma pesquisa mais ampla acerca do que há de próprio ao discurso filosófico, pretende-se demonstrar, neste trabalho, a necessária condição performática da filosofia em sua origem. Toma-se aqui o conceito de ‘performance’ para estabelecer uma aproximação entre a poética dos aedos gregos, estudada na primeira parte, e a matriz da investigação filosófica, iniciada por J. L. Austin, sobre os enunciados performáticos, entendidos como decisivos para a compreensão das situações de fala, e sobretudo dos enunciados declarativos que neles se comunicam. Desde o enfoque dessa aproximação, o Diálogo de Platão assume, pela dramatização da fala originária de Sócrates, ao mesmo tempo a indicação da necessária preocupação filosófica com situações de fala (apropriada a toda verdadeira reflexão sobre o que enunciados efetivamente dizem) e a condição de que a reflexão filosófica, ela mesma, acontece em razão da poética do ato de dizer a verdade entendida como efeito purgativo do exame de si. Em outras palavras, o discurso filosófico precisa ser concebido, desde o paradigma do Diálogo platônico, enquanto capaz de realizar a performance do exame de si como um trabalho de reflexão sobre atos e seus contextos de fala, cujo interesse ético-político e educativo se faz finalidade última de toda análise.
Palavras-chave:
Discurso; Performance; Atos de Fala; Platão
Abstract:
As from the perspective of a extensive research about what is specific to the philosophical discourse, we intend to demonstrate, in this paper, the necessary performative condition of philosophy in its origin. The concept of 'performance' is used here to establish an approximation between the poetics of the Greek aedos, studied in the first section, and the matrix of philosophical investigation on performative statements initiated by J. L. Austin, comprehended as decisive for the understanding of speech acts and the declarative statements in them communicated. From the focus of this approach, Plato's Dialogue takes on, through the dramatization of Socrates' original speech, the indication of the necessary philosophical concern with speech situations (appropriate to any true reflection on what utterances actually say) and simultaneously the condition that philosophical reflection itself happens due to the poetics of the act of telling the truth understood as a purgative effect of self-examination. In other words, philosophical discourse needs to be conceived, since the paradigm of Platonic Dialogue, as capable of carrying out the performance of self-examination as a work of reflection on acts and their contexts of speech, whose ethical, political and educational interest is the ultimate purpose of all analysis.
Keywords:
Discourse; Performance; Speech Acts; Plato
Introdução
O evento constitutivo do que se chamou propriamente philosophía entre os gregos pode ser caracterizado como um paradoxo literário: o primeiro filósofo, Sócrates, que nada escreveu, torna-se memorável como personagem dos Diálogos do primeiro filósofo escritor, Platão, que jamais fala em seu nome.1 Esse esforço de cada discípulo de Sócrates, em tornar memorável a atividade do mestre, produziu um gênero literário particular que ficou conhecido, desde aquela dificuldade aristotélica em defini-lo, pela expressão logoi sokratikoi (Arist. Poet. 1447b10). Mas essa dificuldade de caracterização, que provoca o gênero a ser denunciado como decadente por um dos mais agudos leitores dos clássicos,2 ainda que persistente, não esconde a raiz do problema: se o exercício da performance dialógica iniciado por Sócrates recebe o nome de filosofia, seu exercício só pôde alcançar as gerações posteriores através da tecnologia da escrita, que o elabora e o substitui enquanto literatura, sobretudo a partir dos Diálogos de Platão. Nosso intuito será demonstrar que os Diálogos, na proposta de transpor a atividade oral de Sócrates para o âmbito da escrita, tornaram possível a compreensão do discurso filosófico enquanto um trabalho de reflexão sobre atos e contextos de fala, com uma finalidade ético-política e educativa inafiançável.
Com a filosofia contemporânea, tivemos de reconhecer, desde os estudos seminais de Austin (1990), não só a importância filosófica dos enunciados performativos na linguagem, mas acima de tudo, ainda que não sem controvérsias, o caráter determinante dos contextos performáticos da fala para a compreensão dos enunciados proposicionais ou declarativos, para a plena determinação do significado.3 Ao contrário dos lógicos e de parte da filosofia analítica, a verdade proposicional, que desde Aristóteles parece assumir a primazia do interesse dos filósofos,4 não verbaliza toda a verdade - e os Diálogos de Platão, em sua performance poética, permitem que se constate a tarefa do discurso próprio à filosofia como interessado fundamentalmente na sedução do ouvinte, para fazê-lo refletir acerca das implicações danosas de sustentar modos de ação (prattein) em discursos (logoi) cujas opiniões (doxai) se mostrem mal fundadas. Os Diálogos de Platão, quero crer, produzem o acontecimento desse mostrar.5
Se o fim da filosofia é o exercício da excelência que Sócrates iniciou,6 a literatura feita pelos socráticos pretende transpor esse exercício para um efeito, ao mesmo tempo, de escrita e de leitura. A fixidez artificial que a escrita viabiliza é compensada pelos movimentos textuais que a dramática dos atos de fala produz no leitor, semelhante ao efeito patético que a poesia grega era capaz de produzir. Nesse sentido, o movimento de nosso texto será o de constatarmos, em um primeiro estudo, a dinâmica da criação poética para os gregos, reconhecendo na palavra mítica a performance de sua verdade como efeito de ordenação do destino humano. O ritual desse efeito educativo é o que, veremos no segundo estudo, faz a textura do Diálogo platônico ser reconhecida enquanto um dizer que dispõe a ordem dos discursos sob o influxo de novo ritmo: o da performance das apropriações e transposições da verdade na construção do dizer reflexivo, aquele que redireciona o desejo do interlocutor para o que ele, ao dizer, não sabe que diz, provocando-o à tarefa de reconhecer, no que esquece, a raiz de sua ignorância.
1. A poética das origens: discurso e verdade como performance
Nosso mundo tem sido, desde o início, concebido em mythos - palavra que nos expõe à disposição originária de gestar, de partejar a realidade na pretensão de sua significação.7 No caso grego, o efeito dessa autoridade em significar, dessa primazia do dizer, deve ser encontrado na atuação do poeta, daquele que dispõe o mundo desde sua vocalização. ‘Mundo’, em grego kosmos, diz já sobre esse dispor, porque ordenar, também adornar. As palavras que tecem e revestem o mundo em sua significação vêm a ser - melhor dito, dão a ser desde o sopro, a voz do aedo em seu cantar: “assim primeiro nasceu Khaos” (Hes. Th. v. 116). O poeta ordena o mundo pelo ritmo de sua arte, de sua técnica (tekhne) - mas também ordena, manda e exige das Musas a disposição para o canto: “Canta a ira, deusa, do Pelida Aquiles” (Hom. Il. I, v.1).8 O que tanto Homero quanto Hesíodo deixam ver é que ordenar o próprio canto, nos dois sentidos de ordem, é já toda a justificativa de sua autoridade, do efeito do verso. Mas é, com isso, o próprio indicativo da necessidade dessa justificativa: “isso significa que, na Grécia, sempre se apresentou como problemático o estatuto do poeta, do poema, do poético” (Brandão, 2015, p. 29). O caráter problemático da poesia é o que precipita o poeta ao desvio de precisar dizer de si mesmo enquanto dispõe o mundo: “elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto” (Hes. Th. v. 22). Em suma, o dizer do mythos, ao partejar o mundo, faz nascer o poeta - ou melhor, torna imperativa sua existência.
O belo canto (kalen aoiden), são elas que ensinam. Quem são elas? Semelhante ao modo da evocação homérica, Hesíodo também recorre às Musas - para se pôr com elas: “pelas musas heliconíades comecemos a cantar” (Hes. Th. v.1). Neste proêmio, em que o poeta se mostra ao mostrar as Musas, ele dispõe/é disposto por elas como poeta. Mas de que disposição se trata? É conhecida, e engenhosa, a interpretação platônica. O poeta se põe sob uma inspiração divina, considerada possessão (enthousiaseon) ou loucura (mania), tecendo os fios do canto que louva e justifica. O poeta dotado apenas de técnica, mas sem inspiração, será eclipsado junto com sua poesia (Pl. Phdr. 245a). Para ser capaz de cantar os feitos mortais e imortais, o poeta deve fazer de si mesmo um intermediário, espécie de daimon em que deságuam as correntezas, por um lado, de todos os atos admirados naqueles maiores representantes da vida em sua comunidade e, por outro lado, as do delírio que o auxiliam a dizer o indizível naquilo que há neles de valor. O mergulho na tradição e o abrir-se às potencialidades do discurso aparecem como a dupla face da arte poética. Teria razão a imagem platônica do poeta? É preciso compreendermos melhor as duas personae que são forjadas junto à feitoria do poema: a das Musas e a do poeta.
Essa correnteza dupla, que forja versos e poetas, procede das potências de Mnemosyne (memória): as Musas (mousa, do qual deriva mousike, artes ‘musicais’, inspiradas pelas Musas), cuja paternidade, atribuída a Zeus, parece traçar, para os encantos da memória, aquelas margens que ordenam os fatos desde a nascente, segundo seu devir. “Dizei agora a mim, Musas, que a Olímpica morada tendes, como então, primeiro...” (Hom. Il. XVI, v. 112-113). A recorrência de uma marca de composição como esta, destacada por Brandão, ecoa o saber dizer a ordem das coisas, aquilo que veio primeiro, como o admirável do poeta, sua força kósmica. Na genealogia das Musas desenhada por Hesíodo, contudo, é do seio da memória que o poema se alimenta: “A elas, a Piéria, gerou, unida ao pai cronida,/ Memória, que nas colinas de Eleutero reinava,/ esquecimento dos males e pausa das preocupações” (Hes. Th. v. 53-55). A presença de Zeus nesta genealogia, também evidenciada em Homero, é posta às margens deste canto que provoca os ouvintes a esquecerem os males e a estancarem os sofrimentos. Ainda voltaremos a essa marca inevitável do efeito poético.
Antes, é preciso dizer - a presença de Zeus, ali às margens, jamais se mostra marginal em Hesíodo: (Brandão, 2015, p. 83-87) propõe, sem negar a autoridade materna de Memória, compreender o poder seminal de Zeus na criatividade do aedo. Isso porque o canto que as Musas inspiram não é simplesmente recordação dos feitos gloriosos de deuses e de homens, mas é sobretudo recriação, cujo fantasiar, a que o poeta se entrega, molda a ação poética na ordenação do material memorável. É por isso que, como vemos ao início dos dois poemas de Homero, o poeta suplica, ou ordena, que as Musas cantem aquilo que ele, poeta, as faz dizer. A inspiração, no dizer platônico, não passa de ordenação, no dizer poético: é a disposição dos acontecimentos cuja ênfase compõe, na marca de ausência do poeta (são as Musas quem cantam), sua necessária presença no que é dito, na maneira de dizê-lo - mas também no que não está dito, porque não quer, ou não deve, ou não pode. Segundo a linguagem poética, Zeus fertiliza a Memória com a potência de Mêtis - argúcia e sagacidade, com a qual as Musas impõem limites ao rememorado, contornos ao fluxo da memória, acentuando a soberania do ato de criar, ou de recriar, ao dizer. Porque nem tudo deve ser dito. Nem tudo vale ser lembrado. A questão da não-memória dispõe o canto poético em sua potência - entendida como esquecimento. Já sabemos dos efeitos que as Musas provocam: “esquecimento dos males e pausa das preocupações”. Se há o ventre do memorável em cada verso, há, por composição, a seminal argúcia que desvia, pelo canto, para o esquecimento.
De que se trata, em cada verso, no canto das Musas, esse lembrar e esse esquecer? Não devemos esquecer que Hesíodo nos diz sobre elas, ou antes, faz elas dizerem, estes versos emblemáticos: “sabemos dizer muitas mentiras a fatos semelhantes, / e sabemos, se quisermos, dizer muitas verdades” (Hes. Th. v. 27-28). Parece irrecusável constatar que a condicionante, “se quisermos” (eut’ ethelomen), marca a força poética como propriamente destacada pelo verso anterior. As verdades, alethea, podem ou não estar presentes; as mentiras, pseudea, semelhantes a acontecidos, conformam, decisivamente, a arte das Musas em sua potência. Tais mentiras, símeis a fatos, devem ser relacionadas aos efeitos da não-memória do canto, ao prazer do esquecimento dos males pela arte. É o que nos faz crer Homero, ao dizer do efeito da poética de Odisseu sobre Penélope: “desse modo, Odisseu muitas mentiras assemelhavam a fatos, / e ela, enquanto ouvia, vertia uma torrente de lágrimas” (Hom. Od. XIX, v. 203-4). É uma tal habilidade que o rapsodo Íon diz possuir: disposto numa cadeia que liga deuses e espectadores, os rapsodos são intérpretes de intérpretes (hermenes hermeneon, Pl. Íon, 535a), diz Sócrates, tal como Homero e Hesíodo são os rapsodos (Pl. Rep. 600d) capazes de avançar a sedução natural da arte no efeito de tornar as palavras semelhantes aos acontecidos (Pl. Rep. 601a). Essa arte de fazer esquecer, de seduzir pelo esquecimento, se compõe com os artifícios que tornam presentes os acontecimentos como se ali mesmo acontecessem, outra vez, repetidos não da mesma forma, porém, porque representados, porque feito símeis.
Se uso a imagem de uma dupla correnteza precipitando-se desde as Musas, é preciso, agora que o falso se fez arte desde o esforço de seus exercícios, entender que a fonte de alethea, das coisas verdadeiras, procede do traço propriamente memorável a que o poeta se destina em seu canto. É preciso, pois, voltarmos ao seu fazer. Antes da caracterização feita pelo dizer da obra de Hesíodo, as Musas eram consideradas três, cada uma a simbolizar “um aspecto essencial da função poética”: Melete, a concentração e o esforço mental no exercício do aedo; Mneme, sua capacidade de recitação e improviso; Aoide, traduz o poema enquanto canto, feito produto do fazer poético.9 A ode, o canto das Musas, era uma realização cooperativa entre o esforço do poeta, no limite do que lhe era possível, e a graça a ele concedida, ao se aventurar a dizer o que está além do que ocorre, além dos limites de sua temporalidade, e que remonta às origens, ao que veio antes que, feito índice do que ocorrerá, enlaçando por isso mesmo ditos e feitos de deuses e homens naquilo “que é, que será e que foi” - fórmula que traduz em essência aquilo a que ele estava destinado cantar: a glória digna de ser lembrada, tornada presente outra vez pela performance do aedo, em seu dizer a verdade. “E inspiraram-me”, diz-nos ainda Hesíodo, “um canto divino para que eu glorie o futuro e o passado”. E mais à frente, reitera: “elas a Zeus pai / hineando alegram o grande espírito no Olimpo/ dizendo o presente, o futuro e o passado” (Hes. Th. v. 36-38). O artifício do canto alegra deuses e homens.
O poeta, ao compor seu canto, apoia-se na autoridade musical do que deve ser louvado desde o início: traduzida enquanto o dignamente realizado, o louvável que abrange a totalidade do tempo, a potência das Musas faz conviver antes e depois no movimento presente eternizado pelo valor do seu dizer. O memorável é feito presença. Em Hesíodo, isto se dá, de maneira ainda mais visível que em Homero, por genealogia: o enlace das origens estabelecido na continuidade entre pais e filhos é continuidade que se faz contiguidade, afirma (Torrano, 2007, p. 68). O antes não é simplesmente referência ao anterior, ao passado, mas é, sobretudo, contemporânea, coetânea, ali também presente no acontecer dos acontecimentos. Num jogo elucidativo, Torrano escreve mo(vi)mentos, como sintagma capaz de dar conta dessa verdade poética. O que se vê no eterno momento cantado pela poesia é seu movimento eterno em direção a este estar presente da trama poética. Ou, em termos gnosiológicos, “a descendência é sempre uma explicitação da natureza dos genitores” (Torrano, 2007, p. 75). Por essa razão, é sempre mais difícil dizer sobre a origem: “a natureza ama ocultar-se”, diria depois a prosa de Heráclito. É sempre essa força da verdade dos mythoi a se manter memorável enquanto revela o definitivamente perdido da sua origem.
Ainda não esclarecemos, devidamente, a maneira pela qual é preciso compreendermos o significado dessa verdade, que se diz em grego aletheia para denunciar, com o ‘a’ privativo, a negação do que é lethe, do que se faz esquecimento ou, antes, indigno de ser lembrado. É preciso compreender, então, de que maneira Mnemosyne e Lethe aparecem imbricadas (como potências complementares) no acontecer da ode. Dissemos que a persona do poeta se define na atividade daquele que tece os fios do canto para o louvor dos feitos gloriosos que justificam a tradição. As trilhas desta tradição são tecidas, sobretudo, pelos sentidos de justiça e de ordem: o mundo, verbalizado em mythos, dispõe e ordena os papéis e as funções de cada um em vista do que se lhes espera. Essa ordenação do mundo é realização, não por acaso, da atuação gloriosa de Zeus, entre os imortais, e do rei, entre os mortais. Os feitos gloriosos de deuses e de homens é o motivo, a justificação da canção poética. Por ela, a ordem e a justiça se estabelecem como dignas de louvor: quer dizer, o mythos produz, em seu dizer, a ordenação do mundo que as forças cósmicas e políticas produzem, em seu fazer, de modo a sugerir que o produto dessas forças, naturais ao mesmo tempo que culturais, kosmos e dike, a justiça como ordem, constitua o verdadeiramente louvável. Louvor e censura: duas funções primordiais da poética grega, depois apropriadas pela prosa retórica, já dispõem aquilo que, no fazer, na ação, se faz digno de ser rememorado ou esquecido.
O que essa maneira de dizer, enquanto poética do louvor e do memorável, parece ecoar são os requintes de uma comunidade bastante sensível ao olhar alheio; ao que, desse modo, se entende por honra. Não vou entrar aqui na questão política que a honra postula, em função das maneiras de viver - mas ela repercute uma importância do poeta como responsável pelo mundo cujo sentido se encontra não em fazer ou ser, mas em ter sido visto no discurso.10 A motivação para agir se deve ao dizer, por ser digno de permanecer aquele que é cantado, aquele que se faz, na comunidade, motivo de louvor. A força dessa autoridade não poderia se justificar senão como potência divina: em seu Hino a Hermes, Homero descreve a criação da poética musical a partir da invenção da cítara pelo deus mensageiro (Hom. Hymni 4, v. 25), deixando Apolo surpreso pela força daquela arte, até então desconhecida por deuses e homens (Hom. Hymni 4, v. 443-446), que torna imortal o próprio Hermes, “pois, neste instante terás glória entre os deuses imortais, tu e tua mãe - e isto eu proclamo sem rodeios” (Hom. Hymni 4, v. 458-9). A presença de Apolo não é casual: a referência délfica, para a qual a sociedade grega deslocara seu omphalos (o umbigo, ou o centro do mundo), até então alocado na mítica ilha de Creta,11 aproxima o canto dos poetas à vidência dos adivinhos, oriundos, de certo modo, da mesma fonte na compreensão atemporal do nosso destino temporal. “Nesses meios de poetas inspirados”, diz-nos (Detienne, 2013, p. 15), “a Memória é uma onisciência de caráter divinatório; tal como o saber mântico, define-se pela fórmula: ‘o que é, o que será, o que foi’”. Apolo, ao conferir a Hermes a imortalidade pela sua arte, entende-a como afim a seu poder de inspirar em mortais a vidência que faz florescer o discurso imortal. É o próprio Apolo que se mostra capaz de, por afinidade, produzir a primeira classificação da palavra poética, como chefe das Musas.12 A poesia se aproxima da mântica desde a origem.
A mântica compreende um conjunto de acontecimentos culturais geralmente atribuídos à experiência religiosa, e que situam algumas instituições fundamentais dessa prática, ligadas ao aspecto ritualístico da religião grega. Se (Colli, 1988, p. 11) estiver certo ao dizer: “em Delfos se manifesta a vocação dos gregos para o conhecimento”, aquilo que faz o orgulho ateniense, seu afã pelo saber, nutre-se da ancestralidade ritual que Apolo não apenas preside, mas justifica. A imbricação entre prática divinatória, poética e conhecimento, Cornford sinaliza a partir de uma única atividade, descrita por Chadwick como raiz de antigas línguas do Norte europeu.13 Parece, de fato, ser esta a compreensão da referência platônica à mais bela das artes (kalliste tekhne), a mântica, como tendo sido, em tempos passados, nomeada em referência à loucura (mania, manike, Pl. Phdr. 244b-c): pois a loucura é a fonte dos maiores bens oferecidos dos deuses aos homens (Pl. Phdr. 244a). O valor atribuído aos capazes de se tornar criadores de um logos maníaco, por assim dizer, sem dúvidas fez moldar a dinâmica de investigação que o espírito grego manifestou como rebento do saber verdadeiro. De modo emblemático, portanto, “a loucura é a matriz da sabedoria” (Colli, 1988, p. 17).
Essa realização da ritualística da loucura é o elemento final da verdade poética. O ritual, enquanto ação repetível, digna de ser imitada, é a matriz do discurso poético. As instituições religiosas que permitiram o florescimento da canção do aedo nos esclarecem, com isso, a razão de a verdade do seu dizer não se manifestar senão por um recurso à eficácia da palavra. Não há, desse modo, palavras inúteis ou vãs, porque todo dizer é ação, se faz como realização na verdade: o canto do deus Hermes, ao preludiar sua poesia, “realiza (krainon) os deuses imortais e a negra terra” (Hom. Hymni 4, v. 427), que significa instaurar as potências invisíveis no território dos acontecimentos humanos.14 Essa eficácia, em grego krainein (realizar, cumprir), entrelaça o ato de vocalizar com os gestuais do corpo que vocaliza, com o lugar que este corpo ocupa, lugar que é físico e espiritual, por assim dizer, sem o qual não se compreende a função da (sua) verdade. O recurso à eficácia deixa-nos em meio ao próprio ato discursivo como razão de seu poder, manifestado pela autoridade espiritual do profeta-poeta-sábio15 - de modo que é preciso concluir, com (Detienne, 2013, p. 53), que “nesses planos de pensamento, a ‘verdade’, portanto, está sempre ligada a certas funções sociais; é inseparável de certos tipos de homens, de suas qualidades próprias e de um plano do real, definido por sua função na sociedade grega arcaica”.16 Em suma, a alethea de que nos falam as Musas hesiódicas obtém seu valor desde a ação performática que realiza o mundo pelo dizer, relegando ao esquecimento o que não se faz digno de ser nomeado.17
2. O performático no discurso filosófico
Se a performance poética realiza o mundo ao dizer, e se a verdade do que diz compõem o que se torna digno de ser repetido, há algo dessa realização que voltou a interessar o dizer filosófico após as investigações de Austin - algo que, no entanto, esteve presente nas etapas de consolidação do discurso filosófico desde Sócrates, e que agora parece difícil de relegarmos ao esquecimento. Ao assumirmos que os Diálogos de Platão se tornaram o acontecimento decisivo dessa consolidação, ao viabilizar que o leitor participe do momento mesmo em que ele se constitui,18 somos levados a observar a dupla face de sua poética: a exigência performativa da repetição da ação reflexiva como verdade e a produção da legitimação e fundamentação do saber como inescapável ao circuito do diálogo. No primeiro caso, a investigação da verdade compreende uma finalidade decisivamente ética; no segundo, é a própria ética do filósofo que se elabora.19
Para observar essa constituição, utilizarei o texto do Críton como estudo de caso, a fim de pontuar, em uma síntese não exaustiva, os traços performáticos da atividade filosófica, dispostos a partir da ritualização, pelo texto platônico, do exercício reflexivo que lhe dá origem e sentido. Se o próprio Austin havia recomendado esse tipo de atitude: “mas seu verdadeiro interesse [da teoria dos atos de fala] começa quando passamos a aplicá-la à filosofia” (Austin, 1990, p. 132); alguns intérpretes de Platão poderiam supor anacrônico o estudo que se segue. Não se trata, contudo, de interpretar Platão desde a teoria dos atos de fala de Austin, mas de mostrar em que medida aquilo que este descobre já aparece ali mesmo no propósito latente da atividade literária daquele. A meu ver, a aproximação possível e desejável entre Platão e Austin diz mais sobre a insistente atualidade do primeiro, que de uma falta de originalidade do segundo.
Austin propôs remanejar o interesse da investigação filosófica, até então debruçado na significação dos enunciados, para o âmbito do ato de enunciação - mais precisamente, para o campo semântico em que o uso de certas expressões deve ser examinado, para o contexto de fala que possibilita elucidar o não expresso em tais expressões.20
Devemos considerar de modo global a situação em que se fez o proferimento - isto é, o ato de fala em sua totali dade - para que se possa perceber o paralelismo que há entre a declaração e o proferimento performativo, e como um e outro podem dar errado (Austin, 1990, p. 56).
Se essa situação de fala torna-se, para a hermenêutica de Ricoeur (1976), exigência fundamental de toda interpretação - afinal, para ele, o discurso só tem sentido a partir de seu evento de significação -, o leitor atual de Platão rapidamente se dá conta de que a estrutura dialogada de seu discurso pode ser concebida como um artifício de dramatização dessa situação de fala, em vista da qual o enunciado, e a opinião que ele verbaliza, exige o circuito dialógico de seu exame para uma terapêutica das ações.
A teoria dos atos de fala, em sua implicação mais decisiva, expõe-nos outra vez para a função das palavras não meramente como representativas de coisas e de pessoas, mas sobretudo como dotadas de um poder de realizar aquilo que dizem. Em um enunciado típico, cuja análise referencial permitiria qualificá-lo como verdadeiro ou falso, Austin percebeu que se escondia uma sua forma mais completa - ou seja, que toda declaração, se bem observada, possui dispositivos performáticos que são por vezes esquecidos, ou não levados em conta, pelos que pretendem analisá-la abstraindo-a de seu contexto de enunciação. Tais dispositivos dispõem o que não é dito ao dizer - ou o que Austin chamou de atos ilocucionários: “a fim de esclarecer o conteúdo descritivo das expressões”; no que concorda (Stegmüller, 2012, p. 539) “é necessário ter em conta o papel ilocucionário das palavras”. O performático do ato de fala, que abrange o que se faz ao dizer (ato ilocucionário) e o efeito que o dizer produz (ato perlocucionário), também compreende, e por certo determina, aquilo que se declara (o ato locucionário).21
O exemplo de Críton pode nos servir aqui como um estudo de caso, como modelo para o que há de modelar nos Diálogos - ou seja, para a encenação do acontecimento discursivo pelo qual os discursos, no ato de dizer, põem em questão o agente. Críton é considerado, sob o ponto de vista da construção literária, um diálogo-drama, aquele em que as cenas não são narradas, mas acontecem em ato; é, portanto, segundo a classificação platônica do terceiro livro da República, um texto mimético - texto que dramatiza. Na catalogação feita por Trasilo de Alexandria, Críton integra a tetralogia que apresenta os dias finais da vida de Sócrates, sob a motivação de dispor, diz-nos Diógenes Laércio, “que tipo de vida seria a do filósofo” (D. L. III. 57).
Pela cena do texto, acompanhamos a visita da personagem que dá título ao Diálogo, um dos amigos mais chegados de Sócrates, para avisá-lo de que a execução da pena de morte imposta pelo tribunal ateniense está para se realizar. Na prisão, Sócrates acorda surpreso menos com a presença de Críton do que com seu silêncio, por não tê-lo acordado assim que chegou. Se a conversa que ocorre entre eles pode ser assumida como uma análise sobre o efetivamente justo, essa análise segue a moldura dramática de um prólogo um tanto inusitado.22 Ao saber pelo amigo a notícia de que o barco enviado a Delos, que impede a execução de penalidades de morte enquanto não retorna a Atenas, está para chegar àquele dia, Sócrates lhe confessa; “creio, então, que não aportará no dia de hoje, mas amanhã. Conjeturo isso com base em um sonho que tive há pouco essa noite. E foi provavelmente oportuno você não ter me despertado...” (Pl. Cri. 44a).
Que espécie de performance filosófica esse juízo onírico emoldura? Sob os influxos da notícia, Críton proporá a Sócrates que fuja da prisão, pois além do infortúnio de perder o amigo, “a maioria das pessoas... presumirá ter havido negligência de minha parte, estando em meu poder salvá-lo, caso quisesse despender meu dinheiro” (Pl. Cri. 44b-c). A ânsia de que Sócrates enfim se faça persuadido expõe a oportunidade para que seja Sócrates quem, definitivamente, faça Críton ser persuadido das razões pelas quais fugir não seria justo. Para tanto, algumas noções precisam ser estabelecidas. A construção do discurso filosófico, ao contrário do que diz a maioria, não pode se deixar levar pelas circunstâncias, mas manter a repetição: “ao menos eu, Críton, almejo investigar junto a ti se me é manifesta alguma mudança naquele argumento porque me encontro nesta condição, ou se ele permanece o mesmo” (ho autos, Pl. Cri. 46d).
É evidente que esse mesmo do discurso está sempre em movimento, exatamente porque é sempre posto em questão, a fim de evidenciar a permanência, a repetição de sua eficácia: “desde sempre fui alguém que não dá ouvidos [ou alguém que não se deixa persuadir (peithestai)] a nada mais que me pertence senão àquele argumento (logos) que, submetido à reflexão (logizomenoi), se manifesta a mim como o melhor (beltistos)” (Pl. Cri. 46b). Se a tetralogia platônica a que o texto Críton pertence se dedica, segundo Trasilo, a mostrar o modo de ser do filósofo, esta afirmação de Sócrates pode ser entendida como programática de seu exercício de pôr em questão os discursos, a fim de examinar se a opinião que sustentam conduz à melhor ação. Esse mesmo do discurso filosófico, sempre repetível em sua reflexão, portanto em seu pôr o logos em logizesthai, produz sua verdade ao produzir o efeito da ação desejada, enquanto aquilo que se expõe, que se mostra ou que se reconhece como o melhor a ser feito. Toda análise epistemológica deve estar, portanto, determinada por uma ética.23
A verdade proposicional, como enunciado constatativo sobre as coisas, é uma estratégia filosófica para a eficácia de seu discurso. Ela é parte da macroestrutura que Rossetti chamou de a atmosfera dos Diálogos, enquanto fundamental ao assentimento do seu leitor - tanto assim que parece condicionar a recepção do texto platônico à fascinação que muitas vezes ludibria a intenção de racionalidade dos seus comentadores.24 Isso porque o efeito dessa atmosfera dispõe o interlocutor-leitor à receptividade do que se enuncia. A performance do Platão escritor reproduz, em seu leitor, o efeito de Sócrates sobre Críton, de modo a que sejamos levados à eficácia do argumento sobre a justiça como se fossemos Críton, como se Sócrates nos conduzisse pelo caminho do ato feliz de purgar de nós mesmos a ignorância.
A palavra de Platão produz a disposição do leitor através dos movimentos de cumplicidade e companheirismo com que Críton é desenhado. Sua preocupação aparece como legítima (dikaioi, Pl. Cri. 45a) e sensata a olhos fraternos, e é sob esse olhar que a aceitação da condenação por Sócrates aparece ao amigo como em nada justa (oude dikaion, Pl. Cri. 45c). Críton chega à ousadia de invalidar uma vida inteira dedicada ao zelo pela virtude (Pl. Cri. 45d), já que Sócrates parece escolher o caminho mais fácil. É nesse ponto que se opera a inversão no jogo das razões: o zelo da amizade torna-se uma ameaça se não vier junto da correção na ação (orthotetos, Pl. Cri. 46b). O movimento fraterno, que nos permitiu aproximarmo-nos de Sócrates, põe-nos agora em questão. “Pois é de grande importância para mim que eu aja como estou agindo (prattein) tendo persuadido você (peisas), e não contra a sua vontade” (akontos, Pl. Cri. 48e).
Para que sejamos persuadidos, Críton deve aceitar o princípio socrático de que não se deve cometer injustiça de nenhuma forma. A advertência sobre esse assentimento: “tome cuidado, Críton, para não consentir contra a sua opinião” (Pl. Cri. 49d). Ao aparecer também dirigida a nós, leitores, não chega a receber nenhum argumento para demonstrá-lo, exceto o fato de tratar-se de algo com que “concordamos inúmeras vezes no passado” (Pl. Cri. 49a). Um leitor não de todo afeito a essa tese, de duas uma: negará razão ao que Sócrates argumenta, ou será seduzido a buscar saber por que razão ele a aceita. Essa última atitude, no fim, é a que define como filosófica a postura desejável do leitor.
Era Críton quem, inúmeras vezes (pollakis, Pl. Cri. 48e), repetia seu argumento sobre o poder da maioria (hoi polloi), e sobre a injustiça da atitude de Sócrates em aceitar a morte imposta pela cidade. Essa repetição do argumento da maioria, Sócrates inverte pela repetição do logos de quem sabe (ho epaiion), aquele que, dando-se conta do que há de semelhante em casos singulares, encarna a própria verdade (aute he aletheia, Pl. Cri. 48a). A verdade do que Sócrates diz, portanto, depende de uma convivência com seu repetido exercício de exame, com sua performance de pôr o discurso em reflexão, de predispor seu interlocutor à torção que seu ritual opera. “Não sei que resposta dar, Sócrates, à sua pergunta, pois não a compreendo” (Pl. Cri. 50a) é um tipo de afirmação repetida constantemente entre interlocutores de Sócrates.25 Se Críton, ao final, depois da argumentação sobre a injustiça da fuga, se vê reduzido ao silêncio, àquela mesma posição assumida por ele antes de a conversa iniciar “não tenho nada a dizer, Sócrates” (Pl. Cri. 54d), é porque Sócrates, como a repetir o seu sonho, fez substituir os polloi do discurso de Críton pelas nomoi (as leis) de Atenas, a sobrevoá-los (epistantes, Pl. Cri. 50a) como um espectro divino.26
O propósito argumentativo aqui é evidente: a um interlocutor que se deixa levar pelo vozerio, substitui-se a voz das gentes pela voz das leis, a voz de quem sabe. Já que os argumentos permitiram que Críton concordasse com a necessidade de dar mais apreço aos que sabem, a encarnação das leis na voz de Sócrates enuncia o justo no momento mesmo em que estabelece a performance deste acordo, deste contrato social orientado pelo melhor do que se deve fazer em comum na cidade (to koinon tes poleos, Pl. Cri. 50a).
Dizer que foi o deus que os guiou para a justiça da ação de aceitar a condenação da cidade (Pl Cri. 54e) é só uma outra forma de dizer, de repetir e ratificar o que, desde o início, estava claro para Sócrates em seu sonho: que “as coisas aconteçam da melhor forma, tal como querem os deuses” (Pl. Cri. 43d). Se é pelo dizer de quem sabe que o filósofo se orienta, seu discurso deve servir, ao mesmo tempo, para apontar os critérios de quem sabe (pela fixação e repetição da verdade) e para nos seduzir ao desejo que move a saber (delimitando os atos que as falas justificam, para demonstrá-las infundadas ou dignas de serem lembradas). A poética do discurso filosófico repõe, portanto, o lugar do divino como limite para o diálogo humano, e o saber a verdade como efeito purgativo da atitude memorável de se pôr em questão, em comum, eternamente.27
Considerações finais
A moldura performática com que Sócrates inicia e finaliza sua conversa com Críton diz, efetivamente, mais do que suas palavras poderiam convencê-lo, e a nós. A leitura literária do texto filosófico fertiliza a busca pela verdade ao reconhecer, no discurso filosófico, a atitude para um exercício essencialmente reflexivo28 - não no sentido de espelhamento, como se as palavras reproduzissem as coisas que elas significam, mas no sentido de um flexionar outra vez o discurso sobre sua condição de enunciação. Por certo, era a esse reflexionar que Sócrates aludia em sua famosa segunda navegação (Pl. Phd. 96a), ao constatar que, sem poder olhar diretamente às coisas, era preciso olhar para o discurso em seu modo de dizê-las. A poética da filosofia, ao pôr o discurso da cidade e das gentes em questão, dispõe o cidadão ao interesse de reorientar seu modo de agir pelo que é efetivamente digno da ação humana - dignidade que jamais independe do outro. Na leitura, a efetividade dessa ação faz parte da construção dramática do texto, e preterir os prólogos e a ação dramática dos Diálogos é não compreender Platão, efetivamente. É, também, não compreender a finalidade ética que faz o discurso filosófico atualizar a verdade da poesia enquanto eficácia do dizer, a partir da autoridade daquele que flexiona os discursos sobre o ato de sua significação.
É na eficácia poética que a verdade se estabelece, O discurso, ao florescer em poesia, brota desde sua raiz mítica pela ordem que ritualiza o memorável, o que é, foi e será, e que se estabelece afim com a natureza transcendente das potências divinas. Através das Musas, os louvores germinam qualidades e valores dignos de serem repetidos, de serem realizados não só por palavras, mas em atos. A potência do mythos está em fazer fecundar ou esterilizar os atos: feito um pharmakon, ele é capaz de restabelecer a saúde ou envenenar.29 Em sua repetição, o mythos realiza o mundo. Mas se o memorável repercute uma ação fora do tempo, no ritual que estrutura o kosmos de uma cultura, aquele que o diz se faz presente, no instante do dizer, como acontecimento do que diz. O poder do aedo, do rapsodo a ele vinculado, e do filósofo que lhe segue a potência, marca a instância da verdade pela ritualização, pela repetição sempre nova do que se reconhece como digno. Isso não seria possível sem que a comunidade não confiasse precisamente neste poder de realização do discurso - e em quem o verbaliza. A pistis é o que a eficácia do discurso exige de ouvintes, espectadores e leitores. É o acordo entre o que é dito e seu poder, de forma a ressaltar ainda mais a natureza política do logos, na tarefa comunitária de se pôr em comum no mundo (verbalizado) como ele é.
Quando Cassandra, veraz profetisa, zomba da pistis na peça Agamêmnon de Ésquilo, vê-se privada por Apolo do poder de sua fala convencer os ouvintes. Convencer ou persuadir, em grego peitho, anuncia, no âmbito do discurso, o poder de seduzir que os gregos divinizaram em Afrodite e suas habilidades femininas. A filosofia, não por acaso, move sua reflexão sob os auspícios da sedução. A pior punição a uma mulher, em sua autoridade discursiva, estava em ser incapaz de seduzir pela palavra. Estar fora da verdade é enlouquecer - no sentido de perder a voz e a vez. Quando o Sócrates de Banquete traz de volta o poder da palavra feminina, ele performatiza a loucura erótica como aquilo sem o que o discurso filosófico se revela estéril.
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1
Sobre a origem da filosofia com Sócrates e os socráticos, ver Rossetti (2015), Alencar (2021).
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2
Refiro-me ao juízo de F. Nietzsche (2020).
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3
Um interessante exemplo de aplicação da análise de Austin para a compreensão dos recentes efeitos produzidos pelos discursos pode ser lido em Butler (2021). Quanto ao relativo traço de novidade da perspectiva de Austin, vale a pena ouvir (Stegmüller, 2012, p. 536, destaque do autor): “é um escândalo uma vergonha, para todos aqueles que, nos últimos 2.500 anos, se preocuparam de algum modo com a linguagem, não se haver chegado, há muito tempo, à descoberta feita por Austin, cuja essência pode ser resumida na seguinte frase: Com o auxílio das manifestações linguísticas podemos realizar os mais variados tipos de ações.”
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4
Enquanto pressuposto de uma pesquisa mais ampla que busca compreender as origens do discurso filosófico entre os socráticos e o papel de leitor com o qual Aristóteles torna hegemônica a analítica enquanto tarefa filosófica, a afirmação feita acima só poderá ser desdobrada em outro momento.
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5
Se a consideração dessa performance parece se aproximar do paradigma de leitura cética quanto ao propósito da escrita dos Diálogos, a referida ‘sedução’ em Platão destaca uma motivação educativa não exatamente avessa à defesa de determinadas concepções, ainda que estas não pareçam construir um sistema, como postulam os dogmáticos. Para uma análise dos paradigmas de leitura cético e sistemático, ver a introdução de Gonzalez. Nosso texto pretende se situar entre as abordagens por ele apresentados como third way: “an interpretation that, unlike the sceptical one, grants positive content to Plato 's philosophy, and that, unlike the "doctrinal" one, is able to show some necessary connection between this philosophy and the dialogue form” (Gonzales, 1995, p. 13).
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6
Para uma análise da excelência (arete) como exercício socrático ao mesmo tempo de ação e de discurso, ver Alencar (2021).
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7
O pronome ‘sua’, aqui, sustenta a ambiguidade referencial que ele tem na frase, ao se referir tanto à situação originária quanto ao mundo que ele significa, porque é a dupla face do ato que constitui aquilo que, mais à frente, será tematizado a partir da teoria do performativo de Austin (1990).
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8
Para os dois poemas homéricos, adoto, com pequenas modificações, as traduções de Brandão (2015).
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9
A recuperação dessa definição triádica originária das Musas, em Pausânias, é feita por (Detienne, 2013, p. 12).
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10
Diotima, em Banquete, menciona o desejo da glória em ser cantado pelos poetas como a salvação dos mortais na imortalidade poética (touto gar to tropoi pon to thneton sózetai, Pl. Sym. 208a-e).
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11
Sobre a geopolítica da simbólica de Creta e Delfos, ver Voegelin (2009). Também (Colli, 1988, p. 19ss) chama a atenção, neste deslocamento da mântica para a autoridade do Apolo de Delfos, ao que seria a origem cretense do poder maníaco de Dioniso, resgatado pelas tradições órficas e dos mistérios como estando ligado a Mnemosyne: “com a ajuda da memória, ‘serás um deus ao invés de um mortal’” (Colli, 1988, p. 29).
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12
Na formulação de (Cornford, 1952, p. 89).
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13
“Em todas as antigas línguas do Norte da Europa, as ideias de poesia, eloquência, conhecimento (especialmente sobre a antiguidade) e profecia estão intimamente unidas... A sabedoria gnômica, a mântica e o conhecimento místico de vários tipos pertencem ao mesmo tipo de atividade... Os poemas de Hesíodo... abarcam uma série de interesses quase igual” (Cornford, 1952, p. 90).
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14
Aqui sigo a interpretação de (Detienne, 2013, p. 58).
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15
Ver outras indicações dessa combinação entre as três atividades, reunidas e comparadas com outros povos, em (Cornford, 1952, p. 96-114).
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16
Foucault (2013) fizera questão de ressaltar, por isso, o modo pelo qual a verdade está sempre condicionada por essa disposição política.
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17
É (Torrano, 2007, p. 20) quem nos chama a atenção para as criaturas sem nome ou não nomeáveis da Teogonia (ouk onomastoi, Hes. Th. v. 148), seres monstruosos pertencentes ao domínio do que não deve ser dito (oú ti phateion, Hes. Th. v. 310).
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18
Um estudo paralelo, sobre a condição do texto platônico em meio à dita literatura dos socráticos, está em preparação. Há interessantes apontamentos sobre isso, por exemplo, em Giannantoni (2005) e Rossetti (2015).
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19
A indicação da ética como razão da performance socrática não significa aceitar uma analítica dedicada ao método do que se chamou Socratic’ Elenchus - desde Vlastos (1993) até as pretensões de invalidar a problemática do método, como em Benson (2002). Estamos mais próximos da compreensão, avançada por Rossetti (2015), de variadas estratégias retóricas adotadas por Sócrates em face de certos interlocutores e contextos de fala.
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20
Desde a perspectiva de uma análise do significado, sob a ótica da dialética entre sentido e referência, o estudo de Austin foi entendido como integrado a uma teoria da intencionalidade da comunicação, mais preocupada com as situações de fala do que com o que efetivamente é dito, cf. (Miller, 2010, p. 249-251). A produção poética de Platão, entretanto, parece mostrar, tal como Austin o fizera, que o efetivamente dito depende das situações de fala: não necessariamente em vista da intenção em dizer, mas da efetividade contextual que torna o dito dotado de sentido para falante e ouvinte - e sobretudo para nós leitores, que analisamos a situação em completude.
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21
Mesmo (Frege, 2009, p. 130), ao pensar a referência como determinada pelo sentido, dispunha o sentido como a maneira de apresentação do objeto - de modo que, se a dimensão extralinguística aparece aqui como parte do critério de verdade dos juízos, toda a questão está em ser possível indicar o que se impõe ao dado dos sentidos sem fazê-lo recorrendo, em último caso, ao próprio discurso.
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22
Sobre a tradição de discussões acerca da função e da importância dos proêmios dos Diálogos de Platão, ver a preleção de Burnyeat (1997).
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23
Defendo, portanto, o inverso da ordem de prioridade do que T. Robinson afirmara (1987 apud Rossetti, 2015, p. 251): “cada diálogo é um convite à filosofia, um convite que pressupõe, da parte do leitor, um desejo de fazer tudo o que é preciso; primeiro, para compreender os argumentos com todos os seus detalhes; depois, para elaborar um juízo sobre sua qualidade e, finalmente, se necessário, sobre a ação apropriada”.
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24
“Como acompanha passo a passo o leitor, ela condiciona a recepção do texto e realiza uma ‘formatação’ clandestina (mas muito eficaz) daquele, a atmosfera acaba, então, pondo-o sob tutela e impedindo sua autonomia intelectual” (Rossetti, 2015, p. 247). Pretendo demonstrar, no entanto, que a construção dramática e dialógica de Platão, ao contrário de ser um recurso de dominação intelectual, como argumenta Rossetti, é o recurso literário mais eficaz pata a emancipação intelectual.
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25
Ver, por exemplo, (Pl. Euthphr. 11b; Men. 72d; Tht. 148e).
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26
Esse vocábulo grego aparece comumente, segundo (Lopes 2022, p. 345, n. 45) para descrever sonhos e visões, o que sugere considerar as leis como uma aparição.
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27
Embora pareça hiperbólico dizer eternamente, é o Sócrates de Apologia (Pl. 38a; 41a-c) quem nos adverte sobre sua expectativa em continuar, após a morte, pondo-se em exame pelo diálogo.
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28
Para um outro sentido de reflexivo na dialógica platônica, ver (Gonzalez, 1995, p. 159ss).
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29
Contra a esterilização da glória, prometida pelas noturnas e sanguinárias Erínias, as Cárites fecundam e dão brilho ao logos do poeta, razão pela qual o discurso, ao associar-se a umas ou a outras, obtém os efeitos de verdade ou do crescimento ou da degeneração a que estão submetidos os entes naturais, conforme (Detienne, 2013, p. 60). Sobre o efeito do dizer para realizar ações, Apolo mesmo o havia determinado, segundo (Hom. Hymni 4, v. 529-533).
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ALENCAR, C. de. (2024). A performance poética do discurso filosófico. Archai 34, e03416.